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1 Preconceito e Educação Inclusiva Coordenador: José Leon Crochík Organização: Laboratório de Estudos sobre o Preconceito Branca M. de Meneses • Cíntia C. Freller • Dulce R. dos S. Pedrossian • Janaina P. Pinheiro Morais • José L. Crochik Karen D. M. Ferreira • Lenara Spedo • Luca B. M. da Silva • Marian A. de L. e Dias • Marisa Feffermann Nicole Crochik • Pedro F. da Silva • Rafael B. do Nascimento • Raphael C. T. de Almeida • Ricardo Casco Taline de Lima e Costa • Tatiana Q. Samper • Tatiane Superti • Thays M. de Oliveira • Thiago O. Custódio 3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................................. 5 SuMáRiO...................................................................................... 7 PARTE I - O FENÔMENO DO PRECONCEITO: REFLEXÕES SOBRE SUAS DETERMINAÇÕES SOCIAIS E PSÍQUICAS 1- Preconceito, indivíduo e Sociedade ...............................................11 José Leon Crochík 2- Teoria Crítica da Sociedade e Estudos Sobre o Preconceito ....................35 José Leon Crochík 3- Preconceito e inclusão ...............................................................65 José Leon Crochík PARTE II - REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA E PRECONCEITO 4- Normalização e Diferenciação do indivíduo com Deficiência intelectual: uma Análise do Filme ‘Os Dois Mundos de Charly’ ...............................81 José Leon Crochík 5- Preconceito e Desempenho nas Classes Escolares Homogêneas ...............97 José Leon Crochík; Nicole Crochík 6- Teoria Crítica e Educação inclusiva............................................... 111 José Leon Crochík ; Nicole Crochík PARTE III - RELATOS DE PESQUISAS SOBRE PRECONCEITO E SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA 7- Manifestações de Preconceito em Relação às Etnias e aos Deficientes ..... 129 José Leon Crochík 8- um Estudo do preconceito e de atitudes em relação à educação inclusiva ....149 Dulce Regina dos Santos Pedrossian; José Leon Crochík; Branca Maria de Meneses; Janaina Pulcheria Pinheiro Morais; Taline de Lima e Costa; Tatiana Quintana Samper; Tatiana Superti; Thays Marcondes de Oliveira; Thiago Oliveira Custódio 9- Análise de um Formulário de Avaliação de inclusão Escolar .................. 169 José Leon Crochik; Pedro Fernando da Silva; Lucas Bullara M. da Silva; Raphael C. T. de Almeida; Lenara Spedo; Karen Danielle Magri Ferreira; Marian ávila de Lima e Dias 10- Atitudes de Professores em Relação à Educação inclusiva .................... 193 José Leon Crochík; Cintia C. Freller; Marian ávila de Lima e Dias; Marisa Feffermann; Rafael Baioni do Nascimento & Ricardo Casco PRESIDENTA DA REPÚBLICA Dilma Vana Rousseff MINISTRA DE ESTADO CHEFE DA SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Maria do Rosário Nunes SECRETÁRIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Carmen Silveira de Oliveira DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE POLÍTICAS TEMÁTICAS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Márcia ustra Soares COORDENADORA DO PROGRAMA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Leila Regina Paiva de Souza REITOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO João Grandino Rodas VICE-REITOR DA USP Hélio Nogueira da Cruz DIRETOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP. Emma Otta DEPARTAMENTO DA PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM, DO DESENVOLVIMENTO E DA PERSONALIDADE Maria isabel da Silva Leme COORDENADOR DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE O PRECONCEITO José Leon Crochík 4 5 APRESENTAÇÃO O objetivo desta coletânea é apresentar ensaios e relatos de pesquisas sobre o preconceito e a educação inclusiva, tendo como referência teórica principal trabalhos de pensadores da Teoria Crítica da Sociedade, tais como Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. São textos que foram publicados em revistas científicas, que tiveram esteio empírico nas pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos sobre o Preconceito, do instituto de Psicologia da universidade de São Paulo; o mais antigo data de 1995; o mais recente foi publicado neste ano. A organização da coletânea foi feita por este Laboratório, que conta com os seguintes membros: Aline Mossmann, Cíntia Copit Freller, José Leon Crochík, Karen D. M. Ferreira; Lenara Spedo, Lucas B. M. da Silva, Marian A. L. Dias, Marisa Fefferman, Patrícia Ferreira de Andrade, Raphael Camara, Ricardo Casco e Thiago Bloss. Os três primeiros ensaios discutem o fenômeno do preconceito, refletindo sobre suas determinações sociais e psíquicas. A definição de preconceito que é defendida contrapõe-se a duas outras perspectivas: a que o entende somente como derivado de conflitos grupais e a que o restringe à compreensão psíquica; a noção de preconceito desenvolvida nesses ensaios servirá de base para os estudos empíricos apresentados em outros artigos desta coletânea. O quarto e o quinto ensaios, sem deixar a temática do preconceito, direcionam a reflexão para a educação inclusiva; discutem a homogeneização e a normalização escolares e suas relações com o preconceito, criticando a prática de formação de classes homogêneas quanto à aptidão escolar e indicando os limites da normalização, que não é compreendida como necessariamente restritiva à formação individual; ao contrário, compreende-se que sem normas não há individuação. O sexto ensaio defende a educação inclusiva por meio de conceitos e análises desenvolvidos pelos autores da Teoria Crítica da Sociedade; certamente, essa defesa está presente em outros textos desta coletânea; nesse ensaio, no entanto, ela é o seu objetivo expresso. Os quatro últimos artigos trazem relatos de pesquisas empíricas sobre o preconceito e sobre atitudes frente à educação inclusiva; mais do que relatos, refletem os dados coligidos por meio das análises desenvolvidas nos ensaios anteriores e acrescentam outras. O sétimo texto relata e reflete resultados de pesquisa que compara o preconceito étnico e o preconceito voltado a pessoas com deficiência. O oitavo artigo tem como objetivo a compreensão da relação entre preconceito, ideologia, personalidade, de um lado, e a atitude frente à educação inclusiva, de outro. O próximo texto traz a análise de um questionário que tem como objetivo verificar o grau de inclusão escolar das escolas que aceitam alunos considerados em situação de inclusão. O décimo e último artigo, por sua vez, tem como objetivo verificar a atitude de professores, com e sem experiência em educação inclusiva, em relação a este tipo de educação. Copyright © 2011 - Secretaria de Direitos Humanos – SDH A reprodução do todo ou parte deste documento é permitida somente para fins não lucrativos e com a autorização prévia e formal da SDH/PR. Título original: “Preconceito e Educação inclusiva” Conteúdo disponível também no site da SDH: www.direitoshumanos.gov.br ISBN: Tiragem desta edição: 500 exemplares impressos 50 cd-rom impresso no Brasil 1ª edição: 2011 Grupo de Trabalho constituído para realização do estudo: Coordenador: José Leon Crochík Membros: Branca M. de Meneses, Cintia C. Freller, Dulce R. dos S. Pedrossian, Janaina Pulcheria Pinheiro Morais, José Leon Crochík, Karen D. M. Ferreira, Lenara Spedo, Luca B. M. da Silva, Marian A. de L. e Dias, Marisa Feffermann, Nicole Crochik, Pedro F. da Silva, Rafael B. do Nascimento,Raphael C. T. de Almeida, Ricardo Casco, Taline de Lima e Costa, Tatiana Q. Samperk,Tatiane Superti, Thays M. de Oliveira, Thiago O. Custódio. Dados internacionais de catalogação na Publicação: Preconceito e Educação inclusiva/ José Leon Crochík (Coordenador) - Brasília: SDH/ PR, 2011. 215p. iSBN: 1. Educação, Psicologia, Ciências Sociais. i. Título: Preconceito e Educação inclusiva. 7 De todos os ensaios e artigos foram retirados seus resumos e abstracts; as referências bibliográficas não foram alteradas em relação às normas das revistas nas quais foram publicados. Os textos tiveram poucas modificações em relação aos originalmente publicados; quando foi possível,algumas expressões foram alteradas, pois, se apropriadas à época da publicação do texto, podem não ser mais adequadas; é o caso, por exemplo, do termo ‘deficiente’, que passou a ser substituído por ‘pessoa com deficiência’; mesmo com esse cuidado, no entanto, nem sempre foi possível a alteração, principalmente, quando as expressões, hoje inadequadas, fizeram parte dos instrumentos utilizados em pesquisa; outras modificações foram efetuadas para tornar o texto mais claro. Decidiu-se, também, pela atualização dos vínculos profissionais e dos títulos acadêmicos dos autores dos textos. Aproveitamos esta apresentação para agradecer todas as comissões editoriais que consentiram na republicação dos artigos, desta feita, em forma de livro. Na primeira página de cada texto, são apresentadas suas referências originais. O fato de esta coletânea apresentar textos sob as formas de ensaios e de relatos de pesquisa e ter temas diversos como o preconceito, a ideologia e a educação inclusiva não a torna um conjunto sem unidade, pois, subjacente à diversidade dos artigos se encontra não somente uma referência teórica apropriada aos temas, mas também a luta por uma sociedade sem violência. Trata-se de uma unidade interna à diversidade. Participantes do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito do Instituto de Psicologia da USP PREFÁCIO No processo de disseminação e implementação da metodologia do PAiR – Programa de Ações integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual infantojuvenil, é fundamental a articulação com a universidade, por razões obvias. Além do compromisso institucional com a produção de novos conhecimentos que possam impactar na realidade social que determina algumas situações de exploração sexual, as universidades também podem aportar novos questionamentos nas análises e diagnósticos que serão a base para a implementação de ações de mobilização e formação das redes locais de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. No PAiR, é a universidade que, além de estar à frente do processo de diagnóstico – imprescindível para a formulação de qualquer política pública –, pode trazer a inquietação que produz novos conhecimentos e contribui no processo de formação continuada da rede de enfrentamento da violência sexual, especialmente, frente aos novos cenários que envolvem transnacionalidade, internet, mercado, preconceito, sexualidade, gênero, etnia, entre outros. Essa publicação é um exemplo disso. No processo de implementação da metodologia do PAiR em São Paulo fomos mobilizados pela universidade a pensarmos melhor a influência dos preconceitos nas políticas de proteção aos meninos e meninas envolvidos em situações de exploração sexual. O objetivo do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da SDH/PR, ao apoiar essa coletânea que traz ensaios e relatos de pesquisas sobre o preconceito e a importância da educação inclusiva, foi contribuir com o incremento da discussão sobre as causas e consequências da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, assumindo que, em sendo uma realidade multifacetada carece de ampliação do horizonte dos fatores que precisam estar presentes na construção de caminhos de superação. O estudo tem como referência teórica principal os trabalhos de pensadores da Teoria Crítica da Sociedade, tais como Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, e reúne textos que foram publicados em revistas científicas, que tiveram esteio empírico nas pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos sobre o Preconceito, do instituto de Psicologia da universidade de São Paulo; o mais antigo data de 1995, o mais recente foi publicado neste ano. A análise do preconceito, o conhecimento das teorias sobre sua origem e justificativa e o desafio de pensá-lo como componente dificultador da inclusão de suas vítimas, pode estabelecer um marco na formulação de políticas no Brasil que propiciem o reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes oriundas da violência sexual. 8 9 PARTE I O FENÔMENO DO PRECONCEITO: REFLEXÕES SOBRE SUAS DETERMINAÇÕES SOCIAIS E PSÍQUICAS Essa obra trata do tema com a sutileza e simplicidade necessárias para sua introdução nos fóruns nacionais que pensam o problema e estabelece novos desafios, especialmente no processo de inclusão social e escolar do público foco. Nossos agradecimentos pelo compromisso dos profissionais que participaram desse projeto e que participam do desafio da implementação de uma metodologia de integração de redes, desde o momento do diagnóstico da situação das crianças e adolescentes envolvidos na violência sexual e das redes de proteção. A publicação desta obra pretende ser mais uma contribuição na construção conjunta de novos caminhos de superação e afirmação de direitos do público infantojuvenil no Brasil. Leila Paiva 10 11 1 PRECONCEITO, INDIVÍDUO E SOCIEDADE1 Crochík, J. L.2 O objetivo principal deste trabalho é discutir o preconceito a partir de suas dimensões psíquicas e sociais. Para isso, utilizaremos os resultados obtidos em pesquisas empíricas, como as de Allport (1946), Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1965), Jahoda e Ackerman (1969) e os trabalhos teóricos de Duckitt (1992) e de Horkheimer e Adorno (1986), entre outros. O trabalho será apresentado em três partes. Na primeira, serão descritos diversos elementos que constituem o preconceito ou que auxiliam na sua constituição; na segunda, serão dadas explicações sobre a formação do preconceito no que se refere às suas variáveis sociais e individuais; e, na terceira, serão apresentadas as características dos indivíduos predispostos ao preconceito, tomando como base o estudo de Adorno et al. (1965). ELEMENTOS DO PRECONCEITO uma das questões centrais sobre o preconceito refere-se a como se dá a relação entre os fatores psíquicos e sociais na sua constituição. Conforme as pesquisas de Allport (1946) e de Adorno et.al. (1965) mostram, o preconceito não é inato; ele se instala no desenvolvimento individual como um produto das relações entre os conflitos psíquicos e a estereotipia do pensamento – que já é uma defesa psíquica contra aqueles – e o estereótipo, o que indica que elementos próprios à cultura estão presentes. Por outro lado, essas pesquisas indicam também que o indivíduo que tem preconceito em relação a um objeto tende a apresentá-lo em relação a outros objetos, o que revela uma relativa independência do indivíduo que porta o preconceito e o objeto ao qual esse se destina. Contudo, como são diversos os estereótipos presentes nos preconceitos que são dirigidos a diferentes objetos, algo destes últimos deve estar presente para a constituição daqueles, ainda que não se refira aos próprios objetos, mas à percepção que se tem deles. Ou seja, ao mesmo tempo em que podemos afirmar que o indivíduo predisposto ao preconceito independe dos objetos sobre os quais esse recai, podemos dizer também que o objeto não é totalmente independente do estereótipo apropriado pelo preconceito que lhe diz respeito. O estereótipo em relação ao negro não é o mesmo que se volta contra o judeu, que, por sua vez, é diferente do estereótipo sobre o indivíduo com deficiência física. 1 Artigo originalmente publicado na Revista Temas em Psicologia, Ribeirão Preto - São Paulo, v. 3, p. 47-70, 1998. 2 Docente do instituto de Psicologia da uSP; bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. 12 13 Jahoda e Ackerman (1969), em seu estudo sobre antissemitismo, dizem que para o antissemita o judeu serve como se fosse uma prancha de Rorschach sobre a qual o preconceituoso projeta os seus medos. Conforme podemos lembrar, o teste de Rorschach compõe-se de uma série de manchas a serem mostradas para os sujeitos, que devem dizer o que percebem nelas, ou seja, pede-se para configurar algo apresentado como desfigurado; há um objeto não definido aoqual se deve dar significações definidas. Já Horkheimer e Adorno (1986) indicam que a própria história do povo judeu dentro da cultura ocidental e seu papel civilizador trazem elementos que atiçam reações hostis nos antissemitas. Por exemplo, o fato de os judeus durante o período moderno terem a sua participação vedada nos processos de produção confinou-os na esfera da circulação, no comércio, por um longo tempo, o que leva a identificá-los com essa esfera, e daí proviriam as características atribuídas a eles de apego ao dinheiro e às coisas materiais; ou seja, uma situação histórica delimitada é substituída no estereótipo por uma série de características consideradas imanentes ao judeu. As características de um povo que foram determinadas historicamente, devido à determinação social, são consideradas inerentes a ele. Assim, se não é possível dizer que o preconceito seja proveniente das características de seus objetos e se tampouco elas lhe são indiferentes, pode-se dizer que algo é percebido no objeto que não pertence a ele, mas às circunstâncias que o levam a agir de determinada forma. Dessa maneira, um dos elementos do preconceito seria dado pela atribuição de características, comportamentos, julgamentos inerentes ao objeto, quando não o são, o que o configuraria por uma percepção e por um entendimento distorcidos da realidade. Como veremos mais adiante, essas distorções relacionam-se com conflitos psíquicos. Outro elemento do preconceito é a generalização das características supostas de um determinado grupo para todos os indivíduos que pertencem a ele. A experiência individual, o contato com o particular, são obstados pelo preconceito. As relações pessoais dos preconceituosos ocorrem por meio de categorias que permitem classificar os indivíduos, o que impede que a experiência individual possa se contrapor ao estereótipo. As experiências, em geral, conforme mostram Horkheimer e Adorno (1986), são pouco úteis para desfazer o preconceito, uma vez que o sujeito preconceituoso não precisa de contato com o objeto para desenvolvê-lo. Ou seja, aquilo que é o objeto do preconceito já está previamente enunciado, de forma que a sensibilidade e a reflexão próprias das experiências com o objeto são suspensas. Mesmo as experiências, que de alguma maneira poderiam ser gratificantes, são racionalizadas para que o estereótipo se mantenha. Em outras palavras, não só a experiência não é necessária para a constituição do preconceito como este a deforma. Evidentemente, toda experiência é mediada por conteúdos pré-formulados, mas ela serve para reformular o conceito previamente formado. Quando isto não ocorre é porque existem conflitos psíquicos que se beneficiam da manutenção de uma conceituação rígida e fechada à realidade externa. A não necessidade de contato com o objeto do preconceito para que este surja mostra que ele pode se dar sem conexão nenhuma com a realidade, mas assim temos de supor que os estereótipos apresentados no preconceito ou são produções individuais ou são produções culturais; como a sua expressão em geral é coletiva, ou seja, se repete da mesma forma em diversos indivíduos, podemos deduzir que os indivíduos se apropriam de algumas representações culturais para que, junto à hostilidade dirigida ao objeto, configurem o preconceito. Assim, o preconceito se caracteriza por um conteúdo específico dirigido ao seu objeto e por um determinado tipo de reação frente a ele, em geral, de estranhamento ou de hostilidade. Ao conteúdo podemos chamar de estereótipo, cujo significado inicial pode ser remetido à máquina de reproduzir tipos, utilizada pela imprensa que deve, portanto, reproduzir fielmente as letras, mas que passou a ganhar sentido também daquilo que é fixo, imutável. No caso do preconceito, é neste último sentido que ele deve ser entendido. O estereótipo compõe-se de uma série de predicados fixos que são atribuídos ao objeto, mas há um principal, do qual os outros são derivados. Assim, o intelectual é visto como alheio ao que ocorre com o mundo material, tem pouco interesse por atividades esportivas, é pedante, julga-se o dono da verdade etc. O predicado principal é, no exemplo, ser intelectual, que, no caso, deriva da própria divisão social do trabalho. Obviamente, aquele que é designado por esse termo tem outras qualidades não derivadas e não associadas a ele: é homem ou mulher, religioso ou ateu, esportista ou não, que são eliminadas quando o rótulo aparece. O estereótipo retira o seu predicado principal e os derivados de distinções estabelecidas pela cultura entre sexos, ocupações, doenças, raças, povos, religiões, idade etc. e assim, de alguma maneira as classificações culturais colaboram com ele. Mas não é somente com a nomenclatura que a cultura contribui, ela atribui também juízos de valores às suas distinções. Assim, historicamente o trabalho intelectual tem sido mais valorizado do que o trabalho manual; o sexo masculino tem sido considerado mais adequado ao trabalho na esfera pública e o sexo feminino ao trabalho doméstico; os indivíduos com deficiência são desvalorizados por não poder participar, tal como os outros, da construção e da manutenção da sociedade; os povos que adentram 14 15 posteriormente na civilização ocidental são discriminados frente os povos europeus, e assim por diante. Os valores não têm um papel menor na constituição do preconceito. E, na nossa cultura, eles até o momento têm sido relacionados com a autoconservação, segundo Horkheimer e Adorno (1986). Neste sentido, os papéis sociais têm sido valorizados em função da sua importância para a manutenção da ordem social, mas isso só de forma aparente, uma vez que na divisão do trabalho todos são importantes, e que a diferenciação por meio da valorização social só pode ser entendida pela existência de um poder desigual entre os homens frente à natureza e frente aos outros homens. Se esse poder desigual, conforme afirmam Horkheimer e Adorno (1986), é fundado na vida sedentária, na apropriação da propriedade privada, aquilo que deriva desta situação repõe a dominação inicial, contrapondo-se ao impulso presente, quer no conhecimento quer na moral que, por sua possível universalização, aponta para a igualdade entre os homens. Assim, no próprio processo civilizatório está presente uma contradição que, ao mesmo tempo em que permite o progresso, indica a manutenção da ordem social. Os preconceitos serviriam para auxiliar a conservação desta ordem, na medida em que tendem a fixar e a considerar da ordem da natureza a realidade a partir da qual são criados. Com o progresso, muito do sacrifício exigido de todos os indivíduos poderia ser eliminado, contudo, como o próprio sacrifício contido no trabalho foi interiorizado como um fim, a liberdade da autoconservação é sacrificada. Assim, embora as condições objetivas já possam permitir a independência de uma vida calcada na sobrevivência diária, esta continua a ser necessária, e todos os elementos que possam indicar a fragilidade humana frente à natureza – que desde os primórdios devia ser conquistada – suscitam a lembrança da nossa impotência e a de nossos antepassados frente a ela, que deve ser ocultada da consciência para que o processo de dominação prossiga. Por isso, também é ensinado aos homens que devem ser fortes, não devem ser frágeis como uma criança. O estereótipo do homem adulto, forte, empreendedor, independente, funciona como padrão de ideal social. Que ele não possa ser independente, uma vez que também depende das circunstâncias sociais; que ele continue frágil quer frente à vontade coletiva quer porque, como Freud (1986) mostrou, o passado que é vivido como fragilidade frente ao mundo adulto sobrevive no adulto, são dados que devem ser ocultados de sua consciência. Certamente, os estereótipos que atribui ao outro e a si mesmo contribuem para isso. Se a mimese – no sentido de imitação – era utilizada, no início da civilização, como uma forma de se defender danatureza, ao longo do desenvolvimento, quer cultural quer individual, ela continua a existir apesar de sua proscrição que pode ser notada na perseguição que os ciganos e os artistas tiveram durante longos períodos e no incentivo dado à criança para que ela não imite os outros, que seja ela mesma. O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como às massas dominadas, a recaída em modos de vida miméticos – começando pela proibição de imagens na religião passando pela proscrição social dos atores e dos ciganos e chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis – é a própria condição da civilização... Toda diversão, todo abandono tem algo de mimetismo. Foi se enrijecendo contra isso que o ego se forjou (Horkheimer e Adorno, 1986, p. 169). Contudo, ao tentar aproximar-se do ideal estabelecido pela cultura, o mecanismo da mimese não deixa de estar presente: imita-se aquilo que é valorizado culturalmente; de outro lado, o objeto do preconceito, para exacerbar aquela mimese, é percebido como a cópia que o ideal nega: aquilo que não se deve ser. Enquanto a mimese original continha a possibilidade de o indivíduo ajustar-se ao mundo externo, tornando o estranho familiar, a imitação de um ideal que postula o homem como senhor coloca as características de ideal como se fossem propriedades do homem para que aquele possa ser realizado, e o que é familiar torna-se estranho. Esta falsa mimese rompe a relação entre o indivíduo e o mundo. Enquanto investido da posição do senhor, o indivíduo se cinde e se fixa, tendo necessidade de levar essa cisão para o outro, que também deve ser fixado para ser melhor controlado. O controle sobre a natureza que o homem teve de desenvolver para a sua própria sobrevivência implicou também o controle sobre os outros homens e sobre si mesmo; para controlar a natureza, ele próprio teve de se transformar em natureza a ser dominada e, assim, mesmo a matemática, que se baseia na contraposição à mimese – no conceito – guarda em si algo daquela: A ciência é repetição, aprimorada como regularidade observada e conservada em estereótipos. A fórmula matemática é uma regressão conscientemente manipulada, como já era o rito mágico; é a mais sublime modalidade do mimetismo. A técnica efetua a adaptação ao inanimado a serviço da autoconservação, não mais como magia através da imitação corporal da natureza externa, mas através de sua transformação em processos cegos (HORKHEiMER E ADORNO, 1986, p. 16). A própria ciência, dessa forma, como substituta e oponente da magia, contribui com os processos de criação de estereótipos enquanto mantém a sua função de dominação da natureza que a leva enrijecer o conceito assim como o seu objetivo. 16 17 Mas, se o ideal pode ser considerado um conceito ao redor do qual os tipos sociais devem ser constituídos, na socialização apresentam-se modelos referidos a este ideal que implicam mimese, que não é voltada à natureza, mas a algo que a transcende, e nem por isso perde o seu caráter original. Se há um ideal, permeado por valores, há também aquilo que se contrapõe ao ideal e, se aquele é fixado em formas próximas ao estereótipo, aquilo que se afasta dele também o é. A estereotipia justaposta ao objeto do preconceito é concomitante à estereotipia que o sujeito se atribui. O estereótipo, assim, é um produto cultural que nasce no próprio processo de adaptação do homem à natureza, que na nossa cultura implicou uma dominação a mais, visto que o poder entre os homens – exercido inicialmente pela força – transformou-se em violência sublimada, propagada pelas palavras na própria divisão social do trabalho. isso explica porque foi proibida a entrada de mulheres muçulmanas que insistiam em manter um véu sobre o seu rosto em universidades europeias. A explicação econômica que reduz essa proibição ao medo de enfrentar a concorrência na busca dos escassos empregos é só parcialmente verdadeira, na medida em que mesmo na época de pleno emprego a necessidade de garantir a sobrevivência não é anulada. Da mesma forma que uma presa é observada pelo caçador para que a regularidade de seus movimentos possa indicar o momento preciso do bote, o objeto do preconceito precisa ser descrito pela sua regularidade, fixidez, para que possa ser contido. A natureza, contudo, não se reduz à mera regularidade pela qual é percebida, e a natureza humana menos ainda. Se o homem, tal como Kant pôde mostrar, contrapõe-se à causalidade presente na natureza como ser dotado de liberdade, esta não deve ser a fiadora da fixação do objeto, mas de sua libertação. E, assim, o ser psicológico preso ao mundo da empiria, ao reino da causalidade, deve ser libertado de sua conformação às leis naturais. Allport (1946) verificou em sua pesquisa se os grupos minoritários tendiam a desenvolver preconceitos em relação a outros grupos minoritários ou se tendiam a solidarizar-se com eles. Concluiu a partir de seus dados pelas duas possibilidades, ou seja, em algumas ocasiões, há solidariedade entre os grupos vítimas do preconceito, em outras há contraposição. Já Horkheimer e Adorno (1986), na análise que fizeram do antissemitismo, parecem defender a primeira possibilidade – a da contraposição -, quer porque o preconceito contra os judeus foi apresentado pelos trabalhadores alemães, vítimas eles mesmos de preconceitos, quer porque, dizem esses autores, as vítimas e os algozes são intercambiáveis ao longo da história: A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção. E como as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal. (p. 160) O que marca a contraposição contínua entre as minorias sociais, permeada pelo preconceito, é a oposição força-fraqueza que é remetida à proximidade que cada qual é julgado da natureza que deve ser dominada. Contudo, como a dominação também se dá entre os homens, é a própria natureza que continua a estar presente: Hoje, quando a utopia baconiana de “imperar na prática sobre a natureza” se realizou uma escala telúrica, tornou-se manifesta a essência da coação que ele atribuía à natureza não dominada. Era a própria dominação. É a sua dissolução que pode agora proceder o saber em que Bacon vê a “superioridade do homem”. (ADORNOO e HORKHEiMER, 1986, p. 52). Esta dominação se apresentou no século passado na noção de indivíduo. O conceito de indivíduo com autonomia de consciência, livre e responsável, defendido pelo liberalismo, transformou-se em ideologia por não se anunciar que as condições objetivas para sua existência são cada vez menos propícias. Se, segundo Marcuse (1972), o objeto psicológico vem sendo preparado desde Lutero, o conceito sobre ele cede frente às teorias totalitárias de Estado. Essa transformação, de acordo com esse autor, ocorreu também com a noção de autoridade que tinha se desenvolvido pelo iluminismo, desencadeando o surgimento de teorias que, por explicar a coesão social existente ou possível, por fatores quer morais quer psicológicos, auxiliaram a preparar o caminho para o surgimento da teoria do estado totalitário. Se Kant e Hegel tinham apontado para a possibilidade de uma sociedade constituída à base da razão, que pressupõe também indivíduos que ajam racionalmente, as teorias que apontam que a coesão social existente se dá a partir da moral e da psicologia inauguram a possibilidade de dominação se dar por meio dessas esferas. E, de fato, segundo ilustram Horkheimer e Adorno (1986), o fascismo pode caracterizar-se como totalitário também porque se utiliza dos desejos psíquicos em um sentido contrário aos interesses racionais do indivíduo. Mais à frente teremos outros elementos para poder pensar se o preconceito não se refere a essa mesma utilização. Até o momento temos que: 1.o preconceito não é inato, é desenvolvido durante o processo de socialização; 2. o indivíduo que estabelece um determinado tipo de preconceito tende a estabelecer diversos outros; 3. o estereótipo presente no preconceito, se não diz respeito diretamente ao objeto, mas à percepção dirigida sobre ele, não é totalmente independente deste; a percepção sobre o objeto o desfigura; 5. o indivíduo predisposto ao preconceito tende a ser imune à experiência, sendo que, em geral, esta é apropriada 18 19 em função daquele; 6- o estereótipo é constituído por predicados culturais, sendo que um deles – em geral o que nomeia o objeto de preconceito – é o principal e os outros são seus derivados; 7. a (des)valorização dos objetos do preconceito provém da divisão do trabalho, da hierarquia social estabelecida, das necessidades sociais do mundo do trabalho; 8. o objeto do preconceito é confrontado com o ideal cultural introjetado pelo indivíduo predisposto ao preconceito; 9. os grupos-alvos do preconceito podem solidarizar-se com outros grupos também vítimas do preconceito ou ser preconceituosos em relação a eles; no Estado fascista, esta última possibilidade é a mais provável, uma vez que os grupos excluídos socialmente são lançados uns contra os outros. Passemos agora a ver algumas das explicações dadas sobre o preconceito para tentar entender a sua constituição, embora parte disto já tenha sido feito. EXPLICAÇÕES SOBRE O PRECONCEITO No passado, outros sentidos foram dados ao termo preconceito. Marcuse (1972) mostra que no movimento da contrarreforma – que visava restaurar o poder dos nobres e da igreja que fora tomado pela burguesia – o termo preconceito foi utilizado e defendido para representar os dogmas que deveriam ser aceitos para que não se gerasse um caos social. Do lado oposto, Kant (1992) propunha a autonomia da razão como antídoto ao preconceito que se dirigia ao apego aos dogmas que impediam que cada um pudesse pensar por si próprio e assim sair de seu estado de menoridade. Focault (1978), por sua vez, mostra como a loucura de fenômeno de significado coletivo se transforma em doença mental com significado quer médico quer psicológico, ao mesmo tempo em que descreve como o crime, que até o século XiX era basicamente considerado devido às circunstâncias sociais, passa a ser considerado também como produto da história de vida individual (ver Focault, 1977). Ou seja, uma série de fenômenos, que nos séculos passados eram atribuídos à cultura ou à sociedade, passa, sobretudo a partir do século passado, a ganhar um cunho individual. É importante darmos ênfase a essa transformação, tendo em vista que o preconceito, nos nossos dias, é de forma geral percebido como um fenômeno individual, isto é, busca-se menos entender as determinações sociais na sua constituição do que prejulgar o preconceituoso e assim repetir o mesmo procedimento que é criticado. Mas, ao dizer isso, não se quer eliminar a importância dos estudos que mostrem o fenômeno de seu lado individual, desde que não o vejam desarticulado de sua mediação social. O entendimento de que o preconceito seja uma distorção da realidade e que dependa de necessidades psíquicas para se constituir é recente, conforme mostra Duckitt (1992). Esse autor alega que, ao longo do século XX, diversos paradigmas teóricos sucederam-se na compreensão do preconceito, ora enfatizando aspectos culturais, ora aspectos individuais, ora ambos os aspectos. Segundo o autor, até o final do século XiX, o preconceito não era entendido como uma distorção da realidade, como um fenômeno psíquico ou cultural. A ciência de então buscava encontrar os motivos que explicariam as diferenças que eram percebidas entre as raças. Estas explicações, em geral, recaíam sobre fatores biológicos e, em última instância, genéticos. Com as críticas presentes nos movimentos sociais à dominação colonial, nas primeiras décadas do século passado, principalmente nos Estados unidos, passou-se a se preocupar com o que levaria algumas pessoas a converter diferenças sociais e culturais em diferenças naturais. Por certo, as teorias que atuavam neste sentido foram consideradas preconceituosas, o que por si só já indica uma crítica à isenção, pela qual a ciência gera as perguntas que norteiam as suas pesquisas. Ainda, segundo Duckitt (1992), as teorias sobre o preconceito, que foram desenvolvidas no século passado, podem ser agrupadas da seguinte forma: 1. teorias que utilizam conceitos psicanalíticos para explicá-lo como produto de mecanismos de defesa que surgem frente à frustração. Os indivíduos preconceituosos procurariam um objeto para justificar a sua insatisfação com a sua situação de vida; 2. teorias que consideram que o preconceito resulta de perturbações no desenvolvimento de estruturas psíquicas, o que levaria o indivíduo a tornar-se predisposto a ele; 3. teorias para as quais o preconceito é fruto da socialização, ou seja, os indivíduos se adaptariam às normas e aos valores culturais transmitidos; 4. teorias que julgam ser o preconceito um produto dos conflitos entre interesses sociais diversos; e 5. teorias que consideram ser o preconceito um problema cognitivo. Ou seja, os indivíduos para poder compreender o mundo, simplificam-no por meio de estereótipos. Apesar da variabilidade de explicações, Duckitt (1992) as considera complementares. E, de fato, esta complementaridade surge ao menos em um estudo que veremos mais adiante com um pouco mais de detalhes: o de Adorno et. al. (1965). Como foi visto, o estereótipo é um produto cultural e para existir ele precisa que os indivíduos se apropriem dele. Mais do que isso, os indivíduos precisariam ter ou desenvolver uma estrutura psíquica para incorporá-lo e deixar que ele ocupe o lugar daquilo que sua experiência poderia lhe proporcionar. 20 21 Freud (1986) mostra que no início da constituição do “eu” começa a se formar, mediado pelo princípio do prazer, uma cisão, na qual tudo que é considerado prazeroso é tido como pertencente a si e tudo que leva à dor, à frustração, à carência, é percebido como sendo externo ao eu. Cabe, segundo esse autor, à experiência reparar essa falsa dicotomia. Contudo, como aquilo que se formou no passado é preservado no presente, podemos supor que aquela dicotomia, por vezes, tome o lugar da experiência. Assim, à partição do mundo em estereótipos variados acresce-se a dicotomia própria do princípio do prazer e, dessa forma, a cultura não deixa de propor conteúdos e um modo de se estruturar esses conteúdos que podem suscitar a presença do “eu-prazer”. A experiência é, em ambos os casos, negada. Mas, se é mediante a experiência que o eu pode adaptar os juízos aos fatos e estabelecer a consciência, com a sua negação ocorre uma regressão a um ponto anterior à sua formação, como se ela fosse sustada. O estereótipo pode tanto substituir a experiência quanto alterar o seu teor, conduzindo-a para o resultado previsto por ele. Mas o que pode levar o indivíduo a abandonar a possibilidade de julgar por si mesmo, que a experiência permite, para aderir a julgamento consolidado por parte da cultura? Por que a experiência deve ser negada? Para pensarmos essas questões, podemos fazer uma analogia com a análise que Freud (1986) fez da adesão por parte dos indivíduos às ilusões presentes na religião. Segundo esse autor, o conteúdo da religião vai ao encontro da necessidade de um pai que atenue ou encubra o sentimento de desamparo, de impotência, existente na infância, quando se descobre que o pai pode não oferecer a proteção que inicialmente imaginava: E quanto às necessidades religiosas, parece-me irrefutável que derivam do desamparo infantil e da nostalgia do pai que aquele desperta, tanto mais se se pensa que este último sentimento não se prolonga em forma simples desde a vida infantil, e sim que é conservado duradouramente pela angústia frente ao hiperpoder do destino. (pp.31-32). Em outras palavras, o conteúdo da religião serve para ocultara possibilidade de se experimentar a realidade do desamparo, que é universal na época contemporânea. E, ao impossibilitar a percepção do sofrimento, permite que ele possa ter continuidade, fazendo com que quanto mais ele aumente mais seja necessária a presença da ilusão. Assim, a heteronomia e a privação da experiência seriam provenientes da tentativa de se iludir o sofrimento. isso explicaria porque o conteúdo dos estereótipos não é indiferente às necessidades psíquicas, ou seja, não é qualquer conteúdo que se presta àquelas necessidades. Se dessa forma a cultura e o psiquismo não se complementam não é porque a primeira seja adequada às características do último, mas porque ambos impedem o surgimento do indivíduo que pode ser considerado autônomo. Se na infância se estabelecem os mecanismos adequados à apropriação do conteúdo do preconceito, surge a questão de se esses mecanismos impediriam ou dificultariam o surgimento de uma consciência oriunda da experiência, ou se, ao lado desses mecanismos, a experiência se daria em certa medida sendo mediada por eles, embora os transcendendo. Marcuse (1982) parece apontar para a primeira alternativa, na medida em que afirma que a cultura se caracteriza pela gratificação “imediata” dos desejos individuais com a redução de Eros à sexualidade. Além disso, segundo esse autor, com o enfraquecimento da família patriarcal, o indivíduo passa a ser socializado por diversas instâncias sociais, resultando que o indivíduo atualmente é diretamente socializado pela sociedade, havendo o surgimento de um eu frágil, que tem dificuldades de perceber a realidade e quase não tolera o sofrimento: ... a perda da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma sociedade sem liberdade favorece uma consciência feliz que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade. É o indício de autonomia e compreensão em declínio (p. 85). Neste sentido, Adorno (1986) mostra o enfraquecimento do eu em seu objetivo de mediar entre os desejos individuais e o mundo exterior. Mais do que isso, já como crítica à psicanálise, esse autor mostra que esse eu enfraquecido incrementa a adaptação do indivíduo à cultura e à sociedade. Com o eu frágil, a comunicação se dá diretamente entre as instâncias sociais e o inconsciente, sustentando e reforçando no indivíduo as suas necessidades irracionais do ponto de vista de sua autoconservação, mas racionais para a preservação dos interesses dos que mais se beneficiam desta sociedade. Para que esta hipótese não soe absurda, basta lembrar o quanto os indivíduos atentam contra a sua própria vida no cotidiano e o quanto eles são levados a esse tipo de atentado devido às necessidades sociais que lhes são impostas. Os kamikazes da segunda guerra mundial e os atuais homens-bombas são apenas o exagero da situação da normalidade. A violência nos estádios de futebol; o prazer com que se assiste uma luta de boxe; a satisfação com a desgraça alheia, e o acirramento da competição entre os indivíduos num mercado caótico não são meramente exemplos. Mas, se a primeira hipótese pode ser sustentada, a segunda também é defendida por Marcuse (1982) e Adorno (1986), o que mostra que as duas são complementares. Já Freud (1986) indicou a convivência entre os desejos infantis e a consciência adulta e criticou a necessidade de ilusões e de restrições sociais que são injustas com a diversidade humana. É verdade que esse autor sofre críticas de Marcuse (1981) e de Adorno (1986) por ter entendido o desenvolvimento de nossa cultura em termos de 22 23 filogênese e não de história, além de Adorno alegar que a psicanálise é anacrônica, uma vez que o objeto que analisou, constituído pela relação entre as três instâncias psíquicas – id, ego, superego -, já se constitui de outra forma. Contudo, mesmo esses autores não desprezam a possibilidade de que o eu enfraquecido possa se fortalecer e perceber o sofrimento e as contradições presentes na sociedade: Na verdade, há infelicidade penetrante, e a consciência feliz é bastante abalável – uma delgada superfície sobre o temor, a decepção, o desgosto. Essa infelicidade se presta facilmente à mobilização política; sem lugar para o desenvolvimento consciente, ela se torna o reservatório instintivo para um novo estilo fascista de vida e morte. Mas há meios pelos quais a infelicidade que está sob a consciência feliz pode ser transformada em fonte de vigor e coesão para a ordem social (MARCuSE, 1982, p.86). Ou seja, mesmo a consciência danificada pode ser reconstituída, uma vez que sob a máscara da felicidade o sofrimento continua a pressionar. Contudo, deve-se atentar também, na última citação, à ênfase dada pelo autor à possibilidade de o sofrimento transformar-se em violência quando não é consciente, que é o que ocorre, como estamos assinalando, quando a realidade insiste em se mostrar harmônica, ocultando, ainda que de forma branda, as suas contradições. Se, como alega Adorno (1986), a sociedade favorece os modelos de constituição de subjetividade que a fortalecem, o eu também se forma a partir do princípio da realidade, que, se não pode ser reduzido à realidade existente, tampouco pode se desvincular desta. Se, no século XiX, o ideal cultural se calcava em uma sociedade racional, o princípio da realidade também deveria suscitar a racionalidade individual, mas se, no século passado, com o desenvolvimento do capitalismo dos monopólios, a racionalidade do indivíduo não é mais necessária para a manutenção do sistema produtivo, uma vez que a administração racionalizada e as máquinas pedem ao indivíduo somente que siga corretamente regras e instruções, não é mais o mundo do trabalho que pode ser responsável pela constituição de um indivíduo autônomo: A teoria de alienação demonstrou o fato de que o homem não se realiza em seu trabalho, que sua vida se tornou um instrumento de trabalho, que seu trabalho e respectivos produtos assumiram uma forma e um poder independentes dele como indivíduo. Mas a emancipação desse estado parece requerer não que se impeça a alienação, mas que esta se consuma; não a reativação da personalidade reprimida e produtiva, mas a sua abolição. A eliminação das potencialidades humanas do mundo de trabalho (alienado) cria as precondições para a eliminação do trabalho do mundo das potencialidades humanas (MARCuSE, 1981, p.103). Se é certo que isso tem um caráter emancipatório, pois o indivíduo poderia já prescindir de trabalhar para viver ou ao menos diminuir a intensidade de seu trabalho, as outras instâncias sociais - a família, a escola e, ultimamente, os meios de comunicação de massa -, responsáveis pela socialização do indivíduo, se aproximaram em demasia da racionalidade da produção do mundo do trabalho por meio do crescente processo de racionalização social, conforme mostraram Marcuse (1981) e Habermas (1983). Assim, em vez de o indivíduo poder ser libertado do mundo do trabalho e passar a ser dono de seu tempo livre, ele tem de se adaptar à racionalidade da máquina que passa a impregnar as diversas esferas sociais. Como a racionalidade da produção capitalista é voltada para o lucro e não para as necessidades humanas, e como com as transformações sociais ocorridas no século XX, a racionalidade do mundo do trabalho se propaga às outras esferas de vida, o objetivo da sociedade torna-se o de ser um mundo perfeitamente administrado. Ou seja, como a racionalidade virou o fim do próprio sistema social, mas não mais um meio para que todos possam ter uma vida digna, a sociedade tornou-se irracional. Se a cultura que se reduziu à sociedade da sobrevivência torna-se irracional, o seu princípio de realidade contém também algo dessa irracionalidade. E se, no século XiX, a irracionalidade presente no inconsciente poderia contrapor-se à racionalidade da cultura introjetada pelo indivíduo, atualmente aquela irracionalidade compõe-se com a irracionalidade da cultura e opõe-se às próprias percepções que tenham umcaráter racional, que apontam para o sofrimento desnecessário dos homens em uma sociedade que visava à sua eliminação. A possibilidade de uma sociedade racional que vise à igualdade de condições de existência e a possibilidade de a diversidade poder expressar-se a partir daquela igualdade passam a ser consideradas um sonho, uma alucinação, destacados da realidade. A loucura converteu-se em realidade e a realidade em loucura. Em uma sociedade assim, não é incompreensível que a predisposição psicológica ao preconceito seja a regra, uma vez que a realidade existente é fixada como eterna e a possibilidade de pensar e de agir para que ela se transforme é considerada própria de visionários. Se a cultura atual se mantém pela ênfase na naturalização e na fixação dos fenômenos, esses são elementos básicos do preconceito. Mais do que isso, junto à fixidez da cultura exige-se de cada um de seus membros a fixidez de seus comportamentos e a fixação do comportamento dos outros. Certamente é um ambiente oportuno para surgir o preconceito. Assim como os preconceitos tendem a fixar os objetos de uma vez para sempre, a nossa cultura apresenta o que é percebido como imediato, como natural. O pensamento é treinado para adaptar-se à realidade tal como se apresenta a não para refleti-la a partir daquilo que a determina: 24 25 Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados não apenas suas relações espaço-temporais abstratas, com as quais se possa então agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a superfície, como aspectos mediatizados do conceito, que só se realizam no desdobramento de seu sentido social, histórico, humano – toda a pretensão do conhecimento é abandonada. Ela não consiste no mero perceber, classificar e calcular, mas precisamente na negação determinante de cada dado imediato. Ora, ao invés disso, o formalismo matemático, cujo instrumento é o número, a figura mais abstrata do imediato, mantém o pensamento firmemente preso à mera imediaticidade. (Horkheimer e Adorno, 1986, pp.38-39). Mas se a sociedade tende a tornar-se autônoma em relação aos homens, ou seja, pode prescindir deles para o seu funcionamento reprodutivo, aos homens não resta outra alternativa para atenuar o seu sofrimento, as suas carências, que se voltar para si, afastando-se dos outros. Se não encontram amparo nas relações sociais, devem apropriá-las para si conforme as suas necessidades. Devem atuar como um ser social que no fundo despreza essa sua característica. A sociedade que deveria poder, por meio do trabalho, mitigar o sofrimento humano torna-se adversária do indivíduo, tal como pode ser notado na descrição que Freud (1986) faz da hostilidade dos homens em relação à cultura. Em um texto anterior, Freud (1976) já havia apontado que, quando os ideais coletivos desmoronam, surge o pânico que leva os indivíduos a atuarem contrariamente às regras a que antes obedeciam. Como, atualmente, os ideais coletivos são escassos, o pânico surge, mas as ações contrárias à ordem social são mantidas pela ameaça direta. Ou seja, se no passado os ideais coletivos poderiam justificar os sacrifícios individuais desde que fossem racionais, possibilitando a adesão não só pela supremacia da vontade coletiva, mas também pela racionalidade desta, com o ruir daqueles ideais, só a ameaça de um poder coletivo é capaz de conter o caos. Contudo, junto à ameaça existe a percepção do sofrimento que obriga a consciência a cada vez mais se encolher frente à realidade e a procurar objetivos externos sobre os quais possa projetar a sua própria impotência. Os preconceituosos veem no objeto aquilo que eles têm de negar em si mesmos: a fragilidade, o desamparo. Não é à toa que os objetos do preconceito sejam, em geral, considerados frágeis socialmente: os judeus, os negros, as mulheres, os indivíduos com deficiências, os indivíduos com doenças mentais. Se, no mundo da concorrência, os indivíduos são levados a disputar entre si, as suas habilidades devem se transformar em instrumentos para derrotar o mais frágil, e os outros homens devem ser percebidos como inimigos à sua sobrevivência. Os meios de comunicação de massa não se fazem de rogados e fortalecem a apologia da força desde que as regras sejam seguidas. Mas, assim como no futebol um gol com a mão é validado e traz satisfações para a torcida, pois o que importa é vencer, no trabalho aquele que consegue vencer, ainda que com métodos pouco lícitos, é admirado e não deixa de servir de modelo. Aliás, se é verdade que a administração é independente do sistema social ao qual serve, os traficantes de drogas e os mafiosos mostram a essência dessa verdade, pois são tão organizados quanto os monopólios industriais. Para o preconceituoso, segundo mostra o estudo de Adorno et al. (1965), a dicotomia força/fragilidade está sempre presente com o concomitante respeito à primeira e o desprezo à segunda. Os líderes fascistas em seus discursos, segundo Horkheimer e Adorno (1978), apoiam-se nesta dicotomia, inicialmente colocando-se no lugar dos perseguidos por aqueles que exercem influência sobre o poder, os quais seriam os responsáveis pela exclusão social de que se sentem alvos. Como a audiência é identificada com o líder, não deixa de haver, segundo os autores, um ganho narcísico nesta identificação que encontra uma explicação para as suas frustrações, ou seja, para a sua própria fragilidade. Mas se aqueles que exercem o poder usurparam-no, cabe, segundo os supostos expropriados, reapropriá-lo pela força. Assim, nessa percepção distorcida, os inimigos devem ser despossuídos de seu lugar, que se sustenta por uma ordem que privilegia a fraqueza daqueles que não deveriam ocupar o poder. Pela impossibilidade de perceber que o lugar que ocupam de subalternos na estrutura social é devido a esta e não a outros grupos sociais, voltam-se contra estes últimos para reproduzir a exclusão de que se julgam vítimas. Ou seja, por mais que aparentemente a violência fascista seja imediata, ela se vale de categorias sociais mediadas por necessidades psíquicas individuais. Até o momento temos acentuado, predominantemente, os aspectos culturais e sociais presentes na constituição do preconceito que não podem ser dissociados das individuais. Passemos agora a ver quais são as necessidades psíquicas subjacentes ao preconceito. O estudo de Adorno et al. (1965) traz dados sobre isso. CARACTERÍSTICAS DOS INDIVÍDUOS PREDISPOSTOS AO PRECONCEITO O estudo de Adorno et al. (1965) visava saber qual era a predisposição dos americanos na década de 1940 a aderir a uma ideologia fascista. Os autores partiram da hipótese de que a adesão à determinada ideologia pode ser mediada por necessidades psíquicas profundas, e não necessariamente pela sua racionalidade. utilizaram diversos instrumentos para atingir seu objetivo. Quatro escalas de atitudes, o Teste de Apercepção 26 27 Temática e perguntas de caráter projetivo foram aplicados a alguns poucos milhares de sujeitos de diversos grupos sociais e vários sujeitos foram submetidos a entrevistas. uma das escalas de atitudes visava verificar a tendência dos sujeitos em relação ao etnocentrismo (E) e outra delas ao antissemitismo (AS). uma terceira escala foi construída para verificar a presença de tendências autoritárias nos sujeitos (F) e outra para verificar as suas atitudes em relação ao ideário político-econômico (PEC). As altas correlações obtidas entre as duas primeiras escalas (AS e E) comprovam o que foi dito no início deste texto sobre haver uma tendência no indivíduo preconceituoso a desenvolver o preconceito em relação a diversos objetos, uma vez que a escala sobre o etnocentrismo continha questões sobre diversos tipos de minorias. As correlações também altas entre as duas primeiras escalas com a terceira (escala F) mostram que as atitudes diretamente voltadas ao preconceito se relacionam com atitudes autoritárias. Já as correlações de magnitudes medianas, embora significantes, entre as três primeirasescalas e a escala sobre o conservadorismo político-econômico mostram que, se de fato os sujeitos preconceituosos tendem a aderir a uma ideologia conservadora e os sujeitos sem preconceitos tendem a aderir à ideologia liberal, existem outras relações entre as duas variáveis. uma delas é que alguns sujeitos isentos de preconceitos aderiram à ideologia conservadora, outra delas, é a de que indivíduos autoritários defenderam o ideário político-econômico liberal, o que os levou a concluir que a adesão à ideologia se dá por motivos psíquicos ou pela própria racionalidade perceptível na ideologia. Em outras palavras, em alguns sujeitos a adesão à ideologia se dá devido ao reconhecimento de sua racionalidade por um ego maduro; em outros, por necessidades psíquicas não imediatamente apreensíveis. Este último dado é importante por mostrar que a relação entre a adesão a ideários político-econômicos e os conflitos individuais não é imediata, ou seja, há outros elementos na escolha individual que apontam tanto para a possível racionalidade presente na ideologia quanto para o emprego da razão por parte do indivíduo, assim como indica que a defesa de certos ideários emancipatórios nem sempre se dá com a intenção da emancipação. Assim, no ideário político-econômico conservador examinado podem estar presentes elementos considerados importantes para uma sociedade justa, e no ideário liberal, elementos que possam satisfazer impulsos autoritários. Se esses autores associaram os preconceitos com ideologias políticas é porque supunham que não só o indivíduo desenvolve o preconceito, mas que a sociedade colabora para esse desenvolvimento. Contudo, seria a relação entre os conflitos individuais e a ideologia que apontaria para uma relação análoga àquela presente entre o preconceituoso e seu objeto. Assim, se há relação entre os preconceitos avaliados diretamente pelas escalas de Etnocentrismo e de Antissemitismo e indiretamente pela Escala F, de um lado, e a posição político-econômica, avaliada pela escala de conservadorismo político- econômico, de outro lado, é porque há um mesmo movimento presente em ambos – tanto o objeto do preconceito como o ideário político responderiam a necessidades psíquicas. Os sujeitos com altas pontuações nos dois tipos de escala não estariam respondendo pela sua experiência ou pela reflexão sobre o objeto. A relação entre preconceito e ideologia pôde ser claramente associada pelos autores, como hipótese, pela clareza da evocação de preconceitos presentes na ideologia fascista. Como para Horkheimer e Adorno (1986), o fascismo não ocorreu por acaso na história, mas foi produto da própria forma de evolução de nossa cultura, essa movimentação não foi percebida separadamente da sociedade capitalista. isso nos leva a pensar a relação entre a consciência individual e a consciência social. Em “A Personalidade Autoritária”, Adorno et al. (1965) afirmam que uma remete à outra, o que não significa que sejam redutíveis uma à outra, isto é, o conhecimento dos conflitos não leva necessariamente à consciência social, caso contrário, todos aqueles que se submeterem a um bom tratamento analítico estariam necessariamente associados com posições sociais progressistas, o que parece não ser verdadeiro. De outro lado, a consciência das contradições sociais não conduz necessariamente à autopercepção, caso contrário, aqueles que defendem ideias progressistas não utilizariam de métodos de controle da opinião alheia, que são facilmente visíveis nos movimentos sociais. Mas não se trata de objetos separados e sim de um objeto cindido, cujo isolamento recíproco de suas partes não desfaz o seu entrelaçamento, uma vez que o indivíduo para se constituir, precisa incorporar a cultura. Assim, a distância entre o indivíduo e a sociedade é menos fruto da busca de idiossincrasias pessoais do que do impedimento de o indivíduo se desenvolver pela apropriação daquilo que a cultura pode lhe oferecer. E é uma cultura empobrecida, que tem dificuldades de superar a si mesma, que afasta o indivíduo de si. Se o indivíduo se vê impossibilitado de pensar as suas experiências por meio de instrumentos culturais que não incorporou, ele só pode desenvolver uma relação de estranheza frente à cultura. É esse estranhamento que o faz tomar segundo os seus desejos o que a cultura dispõe como objetos, ficando a consciência impedida de se desenvolver, ou ao menos, de se firmar. Para evitar perceber a irracionalidade na 28 29 cultura, com a qual é obrigado a conviver para sobreviver, o individuo deve renunciar à possibilidade de crítica. O que significa que mesmo em uma cultura marcantemente irracional a racionalidade individual pode se desenvolver negativamente, isto é, a partir de alguma racionalidade que consegue perceber no mundo. Segundo Horkheimer e Adorno (1986), esse paradoxo pode ser explicado pela contradição presente no movimento do esclarecimento: ao mesmo tempo em que este movimento, por não poder avançar, esteja levando o indivíduo à regressão, não deixa de manter a possibilidade de libertação. Contudo, se a experiência e o pensamento levam à percepção do sofrimento, eles devem ser escamoteados e a relação com o mundo deve se dar de forma preconcebida. Os objetos passam a ser aquilo que se diz sobre eles, indicando o caminho que não devemos seguir. Neste sentido, está presente no preconceito aquilo que devemos abandonar no desenvolvimento. Dotamos o objeto do preconceito de características que devemos esquecer em nós mesmos. Assim, aquele que evoca a fragilidade, a natureza, deve ser perseguido para que a nossa força natural beire a onipotência. Dessa forma, os preconceitos são por nós desenvolvidos em conjunto com uma série de valores e ideias. A forma como se dá a incorporação desses valores e ideias já foi descrita por Freud (1986). Ela se dá por meio da ameaça que vemos a nós dirigida por nossos pais, ou quem os represente, para que não percamos o seu amor, ou seja, a sua proteção. Nessa linha de raciocínio, um forte determinante do preconceito já se apresenta na infância. Adorno, em Adorno et al. (1965), estabeleceu uma tipologia composta de uma variabilidade de constituições de indivíduos predispostos aos preconceitos e de indivíduos menos afeitos a ele. Fizeram isso a partir das entrevistas realizadas com os sujeitos que obtiveram respectivamente os escores mais altos e os mais baixos na escala sobre o fascismo, ou em suas congêneres. Foram descritos seis tipos de indivíduos com altos escores e cinco tipos de indivíduos com baixos escores. Os tipos descritos no primeiro grupo foram denominados de: ressentido superficial; convencional; autoritário; rebelde e psicopata; lunático e manipulador. Os indivíduos considerados ressentidos superficiais são os que utilizam o objeto do preconceito para justificar os seus fracassos pessoais, uma vez que não conseguem encontrar os motivos destes fracassos nos condicionantes sociais de sua vida. Diferentemente de outros indivíduos preconceituosos, não projetam sobre a sua vítima os seus impulsos agressivos, limitam-se a utilizar o preconceito como uma forma de racionalização. Têm o pensamento estereotipado e pouca consciência crítica. Outro tipo propício a apropriar-se de estereótipos foi denominado convencional. Os indivíduos descritos como convencionais incorporam os estereótipos do grupo ao qual querem pertencer sem refletir sobre eles. O ódio voltado ao objeto de preconceito não tem motivos próprios além daqueles presentes na identificação com o grupo a que desejam pertencer. Em geral, não demonstram impulsos hostis, são “bem-educados”. Se o grupo a que pertencem recrimina o preconceito, eles não o desenvolvem. Contudo, costumam introjetar rigidamente as normas e têm facilidades de criar dicotomias que dão suporte ao preconceito. O tipo autoritário, devido à sua ambivalência frente ao ‘pai’, que representa a autoridade, cinde os seus afetos, dirigindo o seu amor ao ‘pai’ e o ódio àquelesque representam uma ameaça imaginária ao grupo que pertence. O ódio que sente também é cindido em uma parte masoquista, que emprega para submeter-se à autoridade, e em uma parte sádica, utilizada para submeter aqueles que julgam mais frágeis a si. A experiência e a razão pouco podem fazer para atenuar ou eliminar o seu preconceito e, de outro lado, como a nossa cultura preza a hierarquia, a obediência e a força, não se sente inadaptado a ela. Já o rebelde, ao contrário do autoritário, identifica-se com a autoridade inconscientemente, mas manifestamente se contrapõe a qualquer tipo de poder. É niilista e preza o presente. O alvo de seu preconceito não é especificamente elaborado, serve, apenas, para dar vazão aos seus impulsos hostis. A sua agressividade, em geral, é dirigida aos mais frágeis, e ocorre, segundo os autores, devido a uma aliança inconsciente com a autoridade que representa a força. Não consegue identificar-se com a hierarquia do mundo do trabalho, pois não quer seguir regras; quando trabalha, a sua realização não se dá como uma forma de sublimação, mas pela satisfação direta de seus impulsos hostis. Ainda segundo esse autor, o rebelde é um tipo de indivíduo comum nas camadas mais pobres da população e se adapta bem ao trabalho de torturador nos regimes manifestamente fascistas. A cultura não deixa de fortalecer as características deste tipo de indivíduo: Não é possível deixar de mencionar em relação a esse tipo, o incentivo que a cultura dá. O culto ao corpo, a crítica ao espírito, a autoridade desprezada enquanto representante de um saber acumulado, a ênfase nos esportes perigosos e violentos, a necessidade de o indivíduo se defender por si mesmo, a valorização do momento se contrapondo à possibilidade de um projeto de vida, são marcas da cultura atual (CROCHÍK, 1995, p.131). O psicopata tem a mesma dinâmica que o rebelde, mas deseja a plena gratificação de seus desejos. 30 31 O tipo lunático diz respeito ao indivíduo que frente aos conflitos entre os desejos e a realidade modifica ilusoriamente esta última para suportá-los. Abrange aqueles indivíduos que criam ou seguem as seitas fanáticas. Eles substituem o mundo externo por vozes internas ou por forças sobrenaturais. O último tipo descrito entre aqueles que apresentaram altos escores na escala sobre o fascismo ou nas escalas sobre o etnocentrismo e sobre o antissemitismo é o manipulador. Para esse tipo, os estereótipos deixam de ser meios e passam a ser fins. A realidade e os seus objetos devem ser classificados seguindo dicotomias. Quase não apresenta vinculação e afetos em relação às pessoas. Aprecia o trabalho quando este lhe permite exercer um controle eficaz, sem que o conteúdo do trabalho em si mesmo importe. Se não há afetos em relação às pessoas, esses são deslocados para a técnica. Segundo dizem os autores, é de se esperar um número crescente deste tipo de indivíduo em nossa cultura, pois esta preza a eficácia do emprego da técnica de forma desarticulada dos fins visados. Os indivíduos entrevistados que tiveram baixos escores na escala sobre o fascismo foram divididos em cinco tipos: rígido, protestador, impulsivo, despreocupado, e liberal genuíno. O tipo rígido apresenta também a estereotipia do pensamento e a sua rigidez, tal como os sujeitos de alto escore. No entanto, o conteúdo básico que defende é o de um ideal coletivo indiferenciado; as minorias são defendidas em nome desse ideal. Não deixa de apresentar desejos de punição em relação a elas, mas esses são racionalizados. O tipo protestador tem um superego bem desenvolvido, tem uma consciência interna que se opõe à autoridade externa e tenta reparar as injustiças contra as minorias. Apresenta, tal como o rígido, um ideal coletivo que parece aproximar-se de um ideal, de um mundo perfeito, o que talvez o afaste da experiência que lhe permitiria fortalecer o ego. O indivíduo impulsivo tem um superego e um ego frágeis e, assim, é dominado pelos impulsos do id, mas, ao contrário do rebelde, quase não apresenta impulsos agressivos. Simpatiza com as minorias pela diversificação de prazer que essas podem proporcionar. Se ele é imune ao estereótipo, não se preocupa em conceituar, o que, segundo os autores, é problemático por não possibilitar o pensamento sobre a realidade e a sua modificação. Ao contrário do tipo impulsivo, o despreocupado tem controle sobre sua experiência e evita a todo custo molestar o outro. Não emprega a violência nem para deter a violência; atua como se já estivéssemos vivendo em uma sociedade verdadeiramente humana (conforme ADORNO et al.,1965, p.725). Por fim, o liberal genuíno aproxima-se do ideal freudiano e apresenta um bom equilíbrio entre as três instâncias psíquicas. introjeta os valores e ideais paternos, mas não de forma rígida, o que lhe permite dar vazão a alguns impulsos provenientes do id. identifica-se com as minorias sem deixar de diferenciá-las. Percebe a realidade não por meio de classes ou de categorias, mas de indivíduos. Os indivíduos com baixos escores são pouco propensos, como vimos, a desenvolver preconceitos, embora alguns deles não deixem de apresentar a estereotipia de pensamento ou mesmo um pensamento pouco elaborado. Em geral, a descrição dos tipos feita por Adorno et al. (1965) calca-se também no fenômeno descrito pela psicanálise como o Complexo de Édipo e, portanto, dá importância à família. No caso do liberal genuíno, é dito que a família conseguiu transmitir compreensão e carinho de forma a facilitar a superação daquele complexo. Ou seja, se o conflito edipiano envolve basicamente dimensões psíquicas, essas não são imunes à influência que a família exerce sobre ele. um pai autoritário não é semelhante a um pai indulgente, embora em ambos os casos, seja possível encontrar prejuízos à formação da consciência individual, segundo Freud (1986). um pai autoritário pode gerar a submissão e a ambivalência a toda autoridade; um pai brando e indulgente pode levar a criança a desenvolver um superego rígido, por não ter a quem dirigir a sua hostilidade, sendo obrigada a voltá-la novamente a si. As mudanças na configuração da família nuclear durante o século XX e a socialização cada vez mais direta do indivíduo por agências extrafamiliares enfraqueceram a figura do pai. Esse quase não tem mais a possibilidade de se apresentar como um ideal, uma vez que a sua impotência frente à realidade é palpável e, devido à própria instabilidade dos valores e regras sociais, torna-se cada vez mais difícil para ele se constituir como um modelo: Os especialistas dos meios de comunicação com a massa transmitem os valores requeridos; oferecem o treino perfeito em eficiência, dureza, personalidade, sonhos e romance. Com essa educação, a família deixou de estar em condições de competir... A sua autoridade (do pai) como transmissor de riqueza, aptidões e experiências está grandemente reduzida; tem menos a oferecer e, portanto, menos a proibir (MARCuSE, 1981, p.97). Além disso, o fato de ter de preparar o filho para um mundo competitivo e sem perspectivas leva a própria educação a não ter quase outros valores que não sejam os 32 33 da sobrevivência. A culpa de se colocar um filho em um mundo no qual vive as injustiças e se vê impotente para mudá-lo torna o pai permissivo e submetido à vontade daquele, impedindo o filho de perceber adequadamente os sofrimentos presentes na realidade, aos quais não está imune. Para viver aparentemente sem conflitos, o indivíduo deve desenvolver uma insensibilidade ao próprio sofrimento, que logo se estende ao sofrimento do outro. Allport (1946) mostra que os indivíduos que incorporam preconceitos não sentem nem culpa nem vergonha por eles; Adorno et al. (1965) indicam que esses indivíduos são contrários à intracepção, ou seja, a tudo aquilo que seja pessoal e subjetivo. A hostilidade que voltam contra a vítima, de forma manifesta ou não, não é associada por eles à sua própria subjetividade, mas àquilo quejulgam que impede a realização de seus desejos, mesmo que esses sejam contrários a seus próprios interesses racionais, como a preservação da vida, por exemplo. A autoridade é amada ou odiada não em função de sua racionalidade, mas em si mesma. O preconceito formulado pelo ódio é tão indiferenciado quanto o conceito elaborado a partir do desprezo do objeto. Neste sentido, como mencionamos antes, mesmo a ciência, apesar de toda a sua potencialidade emancipatória do mundo do sofrimento, não é imune ao preconceito. A separação entre fato e valor (ver HORKHEiMER, 1976), destinado o primeiro à ciência e o segundo a uma sociedade desigual, possibilita que a própria neutralidade científica possa prescindir de conceitos que permitam pensar a sua produção. Além disso, na idealização dos fatos esquece-se de buscar as determinações sociais presentes na percepção do próprio objeto, eliminando-se a possibilidade de pensar a si mesmo como objeto, ou seja, como ser determinado. Mas se o próprio sujeito é determinado, ele não deixa de trazer consigo ideais, valores que sejam anteriores ao objeto percebido, que podemos denominar de pré- conceitos para distingui-los dos preconceitos. Ou seja, toda experiência é mediada por aquilo que já se estabeleceu no indivíduo, que pode se transformar em conceito quando pode ser refletido naquilo que o objeto fornece, ou pode não se alterar. Se o objeto oferece novos atributos ao sujeito, mas este mantém os seus pré-conceitos, esses se tornam preconceitos; de outro lado, se a concepção anterior não é considerada na produção do conhecimento, é esse mesmo que é eliminado (ver CROCHÍK, 1997). Há, portanto, dois perigos a serem enfrentados; o impedimento da percepção do objeto por aquilo que é preconcebido, que diz respeito diretamente ao preconceito, e a ideia da experiência pura, não mediada pela constituição do próprio sujeito, que impediria a própria construção da teoria. Neste último caso, devemos lembrar que o pensamento deveria ser um dos antídotos ao preconceito e o quanto a nossa cultura o despreza, desprezando, entre outros elementos, o passado. De um lado, a experiência é fortemente impedida pelos riscos que enuncia de conhecer algo que é distinto daquilo que se formou, ou daquilo a que se reduziu o objeto preconcebido, de outro lado, o pensamento é reduzido a tarefas também já preconcebidas pelas necessidades industriais. A realidade, não se mostrando em sua diversidade, impede o movimento da consciência em direção ao combate ao sofrimento existente, pois este é iludido sem por isso deixar de existir. Do mal-estar resultante provém o preconceito. Evidentemente, neste texto, o preconceito foi concebido em diversos aspectos e poderia ser considerado em vários outros, mas isso não nos deve levar a pensar que eles devam ser analisados isoladamente, sem que isso signifique que as suas particularidades sejam abandonadas. Antes, o preconceito deve ser concebido quanto aos seus diversos elementos e na configuração que assume na nossa cultura. Se a sobrevivência quer cultural quer individual parece ser a base mais importante para que ele seja desenvolvido, é só com a superação dessa necessidade que poderíamos viver sem ele. Como tal possibilidade parece distante, resta-nos poder favorecer a experiência e a razão para que o preconceito possa ser, ao menos, atenuado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T.W. (1986) Acerca de la relación entre sociologia y psicologia. Em H. Jensen (Org.) Teoria Crítica del Sujeito. Buenos Aires: Ed Sigilo, XXi. ADORNO, T.W.; FRENKEL-BRuNSWiK, E.; LEViSON, D.J. e SANFORD, R.N. (1965). La Personalidade Autoritária. Buenos Aires: Editorias Proyéccion. ADORNO,T.W. e HORKHEiMER,M. (1978). Temas Básicos de Sociologia. São Paulo: Cultrix. ADORNO,T.W. e HORKHEiRMER,M. (1986). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. ALLPORT, G.W. 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Nesse estudo, do qual Adorno foi um dos autores principais e Horkheimer um dos coordenadores do conjunto de pesquisas financiadas pelo Comitê Judaico de Nova York, entre elas a pesquisa em questão, foram utilizadas diversas técnicas das ciências humanas para se compreender a relação entre a adesão a diversas ideologias sintetizadas nas ideologias conservadora e liberal -, a configuração da personalidade – se propensa ou não ao fascismo – e o preconceito – presente quer no anti-semitismo, quer no etnocentrismo. Para se estabelecer a relação entre a personalidade e a ideologia, presente também nas escalas sobre o preconceito, e para analisar e interpretar os dados obtidos, os autores – Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson, Sanford e outros - adotaram a Psicanálise, para o estudo da configuração psíquica, e uma teoria da sociedade de matiz marxista, visível nos capítulos assinados por Adorno e Levinson. Apesar das diferentes especialidades que caracterizavam os coordenadores do trabalho, a posição política – crítica ao conservadorismo político-econômico e defesa da democracia – e a metodológica, não os diferenciavam de forma marcante, o que permitiu a vários deles escrever alguns capítulos em conjunto, além de se referirem, nos capítulos que cada qual escreveu, aos dados e/ou análises contidos nos capítulos escritos pelos outros. A forte presença da psicanálise nesse estudo, por sua vez, não destoa da perspectiva dos frankfurtianos, antes é inerente a ela. Adorno (1986) defende a psicanálise como: “...la única que investiga seriamente las condiciones subjetivas de la irracionalidad objetiva”(p.36)4, ou seja, a psicanálise, segundo esse autor, permite compreender as bases psíquicas da servidão voluntária. 3 Artigo originalmente publicado na Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 67-99, 2001. 4 Para a discussão sobre a intensa presença da psicanálise nos escritos dos frankfurtianos ver Rouanet (1989). 36 37 Este ensaio está dividido em alguns fragmentos. Esses fragmentos são breves, mas procuram fazer justiça ao seu objeto e se implicam mutuamente; o eixo que os relaciona é a
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