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POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS - Antologia

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POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Invenção de Orfeu 
 
 
(Canto I – Fundação da Ilha) 
 
 
XVIII 
 
E vós rei 
animal 
rei sem trono, 
cetro e o mais; 
e do menos: 
coisas várias. 
Rei? Não sei. 
 
Rei escravo, 
viscerado, 
sem memória. 
 
Rei de manto 
de mentiras. 
Rei? Não sei. 
Rei viciado. 
 
Conheço quem vos fez, quem vos gorou, 
Rei animado e anal, chefe sem povo, 
tão divino mas sujo, mas falhado, 
mas comido de dores, mas sem fé, 
orai, orai por vós, rei destronado, 
rei tão morrido da cabeça aos pés. 
 
Rei? Não sei. 
Rei escravo, 
viscerado, 
governado, 
sem memória. 
Rei? Não rei. 
 
 
 ​Jorge de lima 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Invenção de Orfeu 
 
 
(Canto III – Poemas relativos) 
 
 
XXVI 
 
Sombra encantada, declinara 
Num vago dia, incerto dia. 
Eis uma deusa, pelos gestos, 
por sua dança, sua órbita. 
Era preciso compreendê-la, 
mas quando nós a avizinhávamos, 
a deusa arisca recuava. 
Se nós recuávamos, voltava 
ao nosso encontro, sem tocar-nos. 
Então corríamos, devassos, 
quase enlaçando-a: ela fugia. 
Era uma deusa pelos modos 
com que mentia e se ausentava. 
Mas outro dia, vago dia, 
Abruptamente a aprisionamos. 
O que tu és, deusa, ignoramos, 
mas desejamos qualquer coisa 
fazer de ti, terror ou júbilo 
ou nossa Vênus favorável 
ou nossa esfera de vocábulos. 
Ela chorava, não queria; 
e o pranto logo a dissolvia. 
Então descemos ventre abaixo 
e renascemos de seu sexo 
– trânsito virgem de palavras. 
Era uma deusa, pela fúria 
com que nós todos a ultrajamos. 
Era uma deusa e não sabíamos 
se cada qual mesmo a violou. 
Era uma deusa, pela dúvida 
que em cada um de nós, deixou. 
 
 
Jorge de lima 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Invenção de Orfeu 
 
 
(Canto IV – As aparições) 
 
 
XI 
 
E a ave opaca voando, voando, e após 
transfixada de luz pousada em vale 
secreto, entre dois seios, indecisa, 
ave com suas penas, tudo um ouro 
 
só ou senão o apelo de outra voz 
ansiando a entranha amada. Quem a cale 
ternura não será nem alma incisa 
aberta ao signo e ao claro doce agouro. 
 
Nem mesmo a dissonância amarga e doce 
entre o cântico e as asas deste poema 
e o vale procurado mas fugace, 
 
como se o poema por inteiro fosse 
a angústia transportada pra a face 
com o vôo recomeçado de seu tema. 
 
 
 
Jorge de lima 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Invenção de Orfeu 
 
 
 
(Canto IV – As aparições) 
 
 
XI 
 
A tristeza era tanta, tanta a mágoa 
que seu anjo da guarda resolvera 
lutar com ele, lutar para lutar, 
que o interesse da vida perecera. 
 
Ave e serpente, círculo e pirâmide, 
os olhos em fuzil e os doces olhos, 
os laços, os vôos livres e as escamas, 
que doida simetria nesses ódios! 
 
Que forças transcendentes aros e ângulos 
Alguém quis que lutassem nesse dia! 
Ave e serpente, círculo e pirâmide: 
 
Que divina constante simetria 
nessa luta soturna, nessa liça 
em que Deus reconstrói o eterno cisne! 
 
 
Jorge de lima 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
Invenção de Orfeu 
 
(Canto I – Fundação da Ilha) 
 
X 
 
Os rios que passam, 
os rios que descem, 
já foram cantados 
por muitos. 
 
Os rios parados 
na face do templo, 
porém mais velozes, 
são rios. 
 
Os seus afogados 
jamais conseguiram 
descer apressados 
para o mar. 
 
As luas que neles 
se espelham constantes 
não têm suas fases, 
não mudam. 
 
Pois que esses rios 
são rios do espaço 
com águas do tempo 
velozes. 
 
Mas se elas parassem 
abaixo das faces... 
Que parem! Quem importa! 
Eu não. 
 
Mas se eles corressem 
com as faces passadas, 
presentes, futuras, 
seriam. 
 
Os rios não são 
parados ou rápidos, 
alegres ou tristes, 
são rios. Jorge de lima 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
O Tigre 
 
O tigre crescia como uma serpente. 
Viril como um crucifixo 
plantava-se na terra macia. 
 
Como uma estrela de gelo 
queimava a pele 
inflamando espasmos. 
Tinta roxa como o céu bem cedo. 
 
Abria bocas, 
engatilhava-se. 
 
O tigre-mel confundia: opala. 
 
Deslizava em grutas secretas. 
Tomava a senda mais branca 
feito cobra, 
feito as mãos de quem ora 
em segredo tenso. 
 
Sem regras, 
espreitava-se em chuvas, 
em salvas, 
salivas 
e coisas assim tão finas 
que o diriam morto. 
 
O tigre suspeitava gretas 
perante o céu mais cristalino 
que o olho do que expia. 
 
Tomando a carne mais virgem 
como um ogro , 
ou só um tigre, 
o faria. 
 
Deixando as garras de fora 
como um rio de metal 
que aguarda o sol. 
 
Pedindo o gozo mais quente 
como a língua que deseja a água 
e se estica feito uma serpente. Micheliny Verunschk 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Salomé 
 
Lances: 
dados: 
serpente, os dedos dançam: 
 
Uma noite 
me habita 
a cada abismo 
que piso. 
 
João Batista me olha: 
precipício: 
 
 
Micheliny Verunschk 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Terço 
 
Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. 
Em cada pedra uma mullher de sol. 
Nas maiores se ornam de estrelas, 
nas menores, de todas as luas. 
 
Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. 
Serpente a engolir o próprio corpo , 
anáfora, mandala, 
palavras, mistérios, intenções. 
 
Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. 
E Eva gloriosa, no verso da medalha. 
 
 
Micheliny Verunschk 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
O dragão 
 
Um dragão marfim e dourado 
se desprendeu do livro 
de um antigo sábio 
numa tarde qualquer do século VIII. 
 
Morreram de tristeza e saudade 
as cinco gueixas da página vinte. 
 
Procuraram por ele 
os valentes samurais de nanquim 
que fechavam cada capítulo. 
 
Mas ninguém mais viu 
o dragão que sangrava ouro. 
E na fábula, uma chaga (fogo). 
 
 
 
Micheliny Verunschk 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Borboleta 
 
Faminta mancha 
na parede branca 
a negra borboleta 
abre as asas. 
Devora toda 
a parede branca 
a lepra 
da faminta 
que se alastra. 
Somente mancha, 
somente mancha, 
mancha que se alarga . 
Somente mancha, 
faminta mancha, 
estrela negra 
abrindo grandes asas. 
 
 
Micheliny Verunschk 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
História 
 
Desenterrar os mortos 
e chupar seus ossos, 
sugar seu mosto 
de terra e sangue seco, 
seu gosto secreto 
de anos infindáveis, 
arcos, 
costelas, 
arquitetura. 
 
Se infeccionar com os mortos. 
triturar seus artelhos 
de esponja ressequida, 
pintar de negro a noite 
os dentes e a saliva 
e abandonar o sonho, 
viva, 
muito viva. 
 
 
Micheliny Verunschk 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Centauro 
 
[...] ​E morreu relativamente jovem – porque a parte 
Animal mostrou-se menos capaz de durar que a sua 
Humanidade 
Joseph Brodsky, “Epitáfio para um centauro” 
 
Como um velho centauro 
cuja parte humana 
sobrevivesse à parte animal 
temos próteses, extensões 
enfeites, móveis 
que nos sobrevivem 
levamos conosco 
palavras que já não usamos 
planos que já não temos 
mulheres que não amamos 
pai morto 
cachorro morto 
amigos mortos 
 
como um velho centauro 
que levasse a passeio 
seu rabo 
morto 
de cão 
seus olhos 
mortos 
de pássaro. 
 
 
Ana Martins Marques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Sereia 
 
 
Sereia 
centauro 
com sal 
 
melhor é tua metade 
animal 
 
a parte humana sendo humana 
sempre mente 
 
só mesmo um peixe pode ser 
contente 
 
de nada te serviriam 
joelhos ou pés 
 
o que és é também 
o que não és 
 
nada 
é o que fazes bem 
 
metade do que sou 
não sou também 
 
 
Ana Martins Marques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Aparador 
 
Sonho que estou de volta 
ao primeiro apartamento 
quando éramos jovens e tínhamos 
muito menos coisase nem sabíamos que já éramos 
felizes como pensávamos que seríamos 
estás na minha memória 
jovem e alegre como numa fotografia 
talvez ainda mais jovem e mais alegre 
mais jovem do que jamais foste 
e mais alegre 
usas uma presilha 
no cabelo castanho e comprido 
invejo a presilha 
que está mais próxima do que eu 
do teu pensamento 
e dos teus cabelos 
da tua cabeça de cabelo e pensamento 
e invejo a fotografia 
que se parece tanto comigo 
talvez ainda mais do que tu mesma 
ouço as juntas que estalam 
como portas batendo 
sou hoje uma chaleira, uma pá, uns óculos 
esquecidos sobre o aparador 
sou o aparador 
esquecido de mim mesmo 
sobre o aparador está um fotografia 
que nos sobreviverá 
 
 
Ana Martins Marques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Religião 
 
"If I were called in 
to construct a religion 
I should make use of water" 
Philip Larkin 
 
Inaugurar uma religião: 
adorar os pontos em que se formam 
as estações do ano 
os gestos de desnudar-se 
o dia depois da chuva 
a distância: entre uma árvore e outra árvore, 
entre cidades com o mesmo nome 
em diferentes continentes. 
Criar relíquias: 
os táxis ao entardecer, as colheres 
brilhando ao sol, toda tecnologia 
tornada obsoleta 
esboços de mãos e pés 
de pintores antigos 
as presas ensanguentadas 
que nos trazem os gatos. 
E ainda outras, íntimas, insensatas 
a luz nos seus cabelos 
as fotografias de parentes 
que não sabemos quem são. 
Adotar novas bíblias: 
longos romances inacabados 
palavras lidas sobre os ombros 
de alguém no metrô 
poemas clássicos traduzidos 
por tradutores automáticos. 
Reconhecer enfim o divórcio 
como um sacramento. 
Na liturgia 
tocar como partituras 
os mapas das cidades. 
E no Natal 
só celebrar o que nasce 
do sexo 
para morrer 
de fato. 
Ana Martins Marques 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Os rememorantes 
 
 
Também chamados de os duendes da noite, os rememorantes são animais 
dotados de uma inimaginável memória. 
Vigiam o sono dos demais seres que habitam esse mundo acerbo, graças a uma 
característica que faz deles, dos rememorantes, únicos sobre o planeta. 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Já ouvi essas vozes antes 
 
 
Já ouvi essas vozes, 
na cordilheira, no altiplano, 
ali na praça. 
 
percebo sua harmonia ancestral, 
inarticulada tentação, essas vozes 
celebram a epifania. 
 
se me chamam essas vozes, 
não as colho de frente, 
mas refaço o caminho. 
 
sei que são vozes do magma, 
sopro animado 
matéria informe. 
 
vozes primordiais, despertam-me 
tenazes se durmo e meus ouvidos 
querem acordados. 
 
assim são essas vozes, 
sempre aqui ab initio 
como o barro em meus pés. 
 
 
Antonio Fernando de Franceschi 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
O princípio da poesia 
nas dobras de uma palavra 
(viés de dulcíssima 
rosa) onde pousa 
o pólen do nada. 
Fuso de prata que a mão, 
submergindo, 
ilude-se agarrar. 
Rosto relance 
perdido (definitivo) da cidade, 
na avalanche. 
Ácido – má viagem. 
Vertigem ciclotímica de anular-se. 
Olho cego, surdo, mudo 
de Dédalo, 
enreda pétala por pétala o seu botão de fracasso. 
 
 
Claudia Roquette Pinto 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Árvore de fogo, chama negra, 
labareda sob a qual me agacho 
em reverência, 
pés descalços sobre um chão tão árido 
quanto íntimo 
(depois de abandonar ​cummulus nimbus, 
a luz aparente, ninho 
do temporal). 
Flor do segredo quase extinto 
sua dança irrefletida 
destrói, estala nas ramas, 
resvala em cabelos, num céu. 
Terras ou rebanhos desdenho 
possa deitar-me entre as tuas raízes, 
feliz e 
imaculada seguir 
o caminho do que te alimenta. 
 
Cláudia Roquette Pinto 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Não a garganta 
– o grito, cortado 
canta. 
Mais do que a boca, 
a voz, rouca, amordaça. 
O corpo, 
presença que se perdeu 
como uma roupa rasga. 
Nudez fechando 
pétala por pétala forrada 
do espinho 
que não conhece como seu. 
 
Cláudia Roquette Pinto 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
A Rosa da Memória 
 
A rosa da memória 
abre-se tênue 
desigual. 
 
Não oferece sua corola 
não desabrocha no ciclo 
dos fenômenos naturais. 
 
É ambígua, alheia 
a quem a quer 
por completo. 
 
Escapa, morre 
arde em suas feridas 
e súbito, retorna: 
 
clarão que redime. 
 
“Eu lembro” 
e as pétalas 
os móveis antigos, os laços 
se dissolvem 
na infinita margem da infância 
que fugiu há pouco. 
 
Nos vãos 
nos acenos que se apagaram 
nos vasos formidáveis 
vindos da China 
nas raízes úmidas 
que os mortos deixaram 
 
tudo se dissolve. 
 
A rosa da memória 
vegetal e inconclusa 
murmura um segredo 
que mal ouvimos 
(e nunca esquecemos) 
 
E repetimos, incansáveis 
Em nossa fome de tê-la. 
Samarone Lima 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Antes mordias 
 
Antes mordias meus calcanhares – 
víbora de doce veneno – 
agora busco o atalho onde encontrar-te 
Pois sem ti não vivo e só de ti vivia 
num enlace do amargo ao suave. 
Sou tua ave (o Canto não me roubes), 
ou devo esperar a nova primavera? 
O inverno fecha as flores da floresta 
e as minhas. Onde achar-te 
se és livre e estações jamais conheces? 
Sem teu corpo minha alma adormece 
como quem busca a morte. Nunca é dia 
se me abandonas 
e a noite é turva sem estrelas, 
sem tuas mil centelhas vivas 
sem teu amor calado 
sem tua labareda de fogo e seda. 
 
 
Dora Ferreira da Silva 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Minemósina I 
 
 
Fragmentos ao sol, serenidade íntegra. 
Festas silenciadas nos teatros: lagos pétreos 
de ondas fugitivas, mas ouvidas 
nos lábios do mar próximo. 
Túnicas tecidas por mãos céleres, 
diálogos nas ágoras, 
carros da alvorada incendiando as pedras, 
os declives de pinheiros duros, 
perfumados. 
 
Mnemósina: mãe ds musas e da enumeração 
da progênie dos deuses e dos fados, 
que preserva os nomes dos guerreiros, 
dos vencedores nos jogos, dos mortais 
marcados pela moira, pelo amor: 
banhas em tuas águas minha fronte 
e me ordenas a lembrança do passado. 
 
Dora Ferreira da Silva 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Mulher e pássaro 
 
Voltamos ao jardim 
ao banco lavado pela chuva. 
Pedimos o verde ao verde 
a flor à flor 
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã. 
(Nossa presença 
desalinha ar e folhas 
num frêmito.) 
 
Mas se nada pedimos 
como quem dorme seguindo a linha natural 
do corpo 
respiramos o puro abandono: 
um pássaro alveja o azul (sem par) 
ultrapassa o muro do possível 
e assim damos um ao outro 
a súbita presença 
do Céu. 
 
 
Dora Ferreira da Silva 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Orfeu 
 
I 
Canto canções 
para os que morreram. 
Doces animais acorrem 
para ouvir o canto 
e me acolhem 
nos quietos corações: 
pomba, pavão, 
pássaros de beira d’água, 
cervos, esquilos 
e a Árvore. 
Vem a pantera, agora mansa. 
Sob as folhas vivas 
sustenho na mão a lira. 
É isso a solidão. 
 
 
II 
Colheu a flor – o Poema – 
arrancou-o à resina da vida 
e entre as páginas prendeu-o 
debatendo-se, vivo. 
A fonte alimentou-o nas águas. 
E a mão o feriu 
para dispersá-lo 
e, nele, o coração. 
 
 
III 
Sob a Árvore chamas, 
sem que os lábios falem. 
Eis o cervo, a pantera, 
a áspide, o pássaro, 
o boi ruminando sombra: 
ramos dispersos, 
bebem o orvalho da música, 
reunidos nas cordas 
de teu claro 
coração. 
 
Dora Ferreira da Silva 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
Cobra 
 
 
Neste lugar, 
pois aqui a cobra que 
morde o rabo 
é minha amiga. 
 
Aqui, come-se na mesma 
hora diária, 
nascida de um sacrifício 
oculto, a vida. 
 
Dar-se no abraço 
que ainda não se conhece 
plantá-lo atento. 
Sê-lo. 
 
Aí estáo lugar 
que amanhece a noite 
na ansiedade das coisas 
e acalma o pesadelo. 
 
 
Felipe Aguiar 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Outra biografia 
 
 
Sou um pintor de desertos. 
Areias e ventos comovo. 
Meus sentimentos são ecos 
Da solidão dos mil povos. 
 
Sou muito do que me esqueço 
Nas busca do grande olvido. 
São muitos meus endereços 
Lá onde nem hei vivido 
 
Senão em sonhos, remorsos. 
Sou feito de mil resquícios, 
Herança de sacrifícios, 
Silêncio vivo dos mortos. 
 
 
Roberval Pereyr 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Jugo 
 
 
Aqui os mitos me afogam 
Nas ruínas em que os deixaram, 
E ainda vivos me encaram 
E em suas entranhas me jogam. 
 
Aqui os mitos me atacam 
(ruínas que me governam). 
E eu, empunhando facas, 
Ataco-os e ainda os quero. 
 
Aqui os mitos são elos 
Partidos, que viram farpas, 
Impondo-me duros flagelos 
Dos quais eu talvez não escape. 
 
Aqui os mitos são trastes 
Que foram deuses um dia. 
E à força de seus contrastes, 
A vida (arte, combate) 
 
Destila suas agonias. 
 
 
Roberval Pereyr 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Visão sem prestígio 
 
 
Aqui Ulisses um quilo 
Certo cagou. De nada lhe adiantou 
Esperteza e estilo. 
Chegou, foi ignorado. Nenhuma 
Penélope à vista, 
Nenhum castelo ocupado, 
Telêmaco era só um 
Anarquista cheio de tédio. 
E ao chegar a sua Ítaca, 
Velho, sujo, enganado, 
Eis que Ulisses, falido, 
Falhando no senso crítico, 
Disse (teria dito): amigos, 
Cheguei fodido; não só fodido: cagado! 
 
 
Roberval Pereyr 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Escuta 
 
 
Ouço os deuses no vórtice do meu ser. 
São deuses fósseis que gemem 
E adentram meu corpo 
E percutem venenos na minha voz. 
 
Ai os mortos, os mortos 
Com suas causas falidas 
Perpetuando remorsos, 
Amontoando 
Destroços 
Em nossas vísceras. 
 
 
Roberval Pereyr 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Oráculo 
 
 
Recorda e terás esquecido 
Nada ocorre por acaso 
Não há destino escrito 
 
 
Thomaz Albornoz Neves 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
O touro cego 
 
 
O campo é estelar. Sem céu. 
O vento entalha esses no ar. 
 
No arroio bebe o touro cego 
(arabescos de água clara 
Desaparecem no escuro 
D sede sendo saciada). 
 
O pasto se afasta em onda 
Em espirais os ciprestes. 
 
 
 
Thomaz Albornoz Neves 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Predomínio do fogo 
 
 
Aproxima-te desta cabeça em ruínas 
E por ela mede a tua própria sombra. 
Não há tempo para disfarce ou prece, 
Nem para o vôo sobre as águas. 
Apenas um último instante 
Para enfrentar calor e escuridão. 
 
Aqui sepultamos nossos pais imolados. 
Aqui, na província do totem e do tabu, 
Onde o pássaro febril devora a carniça 
E o vento brande a árvore seca. 
Mosquitos bordam lacunas no silêncio. 
 
Vem, põe os dedos nas órbitas vazias. 
Saboreia com ternura e terror 
O suspiro final destes reinos perdidos. 
 
 
Carlos Manes 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Terra 
 
 
Gorilas correm pelas ruas, 
Aos gritos. 
Plantas murcham. 
Vidros partem. 
 
Inexoráveis, 
Instauram atônita, simiesca ordem. 
O medo impera. 
Ninguém pensa em reação. 
 
Alguns artistas em desespero, 
Atiram-se no canal. 
Outros disfarçados 
Tornam-se comerciantes. 
Vitoriosos, os gorilas 
Batem no peito. 
 
Apelos, discursos em prol da paz 
Escrevem-se a duas, quatro, dezenas de mãos. 
Mas à fleuma da palavra 
Os gorilas opõem, 
Do alto dos edifícios, 
Uma dança selvagem, 
Lúbrica. 
 
 
Carlos Manes 
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A noiva da água 
 
 
Mulher azul 
De bruços sobre o pólo. 
 
Os cabelos 
Inundam continentes e mares. 
Sobem pelas árvores, 
Dão voltas em edifícios. 
 
Para compreendê-la, 
Toda ciência é vã. 
 
Os homens se contorcem 
de espanto. 
 
Multidões descansam 
Sob o inexplicável 
Feminino. 
 
 
Carlos Manes 
 
 
 
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A árvore seca 
 
 
Em torno da árvore seca 
Satisfeitos nos sentamos. 
O sol, que cega e resseca 
Varava os seus secos ramos. 
 
Estendemos nossas mãos 
Para alcançar-lhe algum fruto, 
Mas rindo, entre os seus desvãos, 
Só achamos galhos em luto. 
 
Cantamos à sua volta 
E ave alguma respondia 
À nossa canção revolta, 
À nossa poenta alegria. 
 
De noite, sob os seus galhos, 
Dormimos, mas folha alguma 
Nos protegeu dos orvalhos 
Que a frígida alva ressuma. 
 
E assim, crestados, famintos, 
Úmidos, sós, aqui estamos 
Entre os seus braços extintos 
E as leves viúvas dos ramos. 
 
Em torno da árvore seca, 
Com as folhas pardas vestidos, 
Onde a coruja defeca, 
Dançamos, plenos, cumpridos. 
 
 
Alexei Bueno 
 
 
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Disfarce 
 
 
Esta sombra antiga, 
A beleza, diga, 
Onde se acha e abriga, 
Se o imaginares. 
 
Não aqui, nos duros 
Paredões escuros, 
Entre arames, muros, 
Vísceras, bazares. 
 
Não junto das bestas, 
Nos roncos das sestas, 
Nos bares, nas festas, 
Nos rançosos lares. 
 
Mas só lá, nos portos, 
Nos arbustos tortos 
Entre o vento e os mortos, 
No arquejar dos mares. 
 
Lá onde não se fala, 
Onde a terra exala, 
E tudo se cala 
Só para escutares 
 
O que não se escuta, 
Que se esquiva, e luta, 
A voz absoluta 
A atroar nos ares. 
 
 
Alexei Bueno 
 
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Momento 
 
 
Estou deitada em meu corpo 
 
A vida rumoreja 
recua como um mar 
 
E o sangue circula sem saída 
 
 
Eunice Arruda 
 
 
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Tarefa 
 
 
cabe agora 
morrer o corpo 
 
dia a 
dia ir 
 
me desacostumando 
do rosto 
que eu chamava 
meu 
 
 
Eunice Arruda 
 
 
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O Tempo 
 
 
Os olhos se resguardam 
sob as pálpebras 
mas o tempo passa 
 
Junto de nossos passos cautelosos 
que ultrapassam mas retornam 
sempre 
o tempo caminha 
Na superfície calma dos retratos 
inscreve seu itinerário 
e passeia com cautela em nosso rosto 
fala pela boca das crianças 
murmura no cansaço nossas mortes 
 
Em vão 
se preenchem as horas 
O tempo carrega em seu rio nossas sementes 
para um mar. 
 
 
 
Eunice Arruda 
 
 
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Metafísica 
 
 
 
Metafísica 
 
 das alturas 
 
 
 
mil anjos servem 
 
 um ser escuro 
 
 
 
frio indevassável 
 
 
 
e já não 
 
consideram 
 
privilégio 
 
 
 
viver 
 
 
 
junto à vertigem que os consome 
 
 
 
Marco Lucchesi 
 
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Filhos do fogo 
 
 
Não foi o cansaço da jornada 
Que de novo nessa noite nos venceu, 
Mas um sofrimento antigo, igual a sempre, 
A realidade com sua mão espadaúda 
Juntando a poeira de uns castelos demolidos, 
De tudo extraindo o que sobra de nosso, afinal: 
O irreversível. 
 
Cultivamos rituais silenciosos, 
Temos dentro de nós a alma do mundo. 
Fomos feitos para a solidão, 
A mesma que sente um animal 
Ao largar o seu rebanho 
E esperar a morte suavemente 
Numa longa tarde de chuva em Gibeon. 
 
Damos calor às coisas enquanto é tempo 
E mais tempo há enquanto estamos mudos. 
Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo. 
Assim acontece certas vezes, por espanto: 
De um golpe, o infinito nos apanha. 
 
 
Mariana Ianelli 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
A música fala pelos que ficam 
 
 
A música fala pêlos que ficam. 
Nenhuma distância é possível 
Entre a nítida presença de um corpo 
E sua despedida repentina. 
Para aquele que viaja em busca do futuro 
Eu canto com a impureza do amor 
Que me esgota e também me extasia, 
Que me leva a produzir o tédio 
Com os meus dedos engordurados de vida. 
A violência do ódio primitivocanta comigo 
E são estas trevas que me acompanham 
À dimensão de um tempo sem destino 
Em que nada se perde porque nada existe. 
 
 
Mariana Ianelli 
 
 
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Treva alvorada 
 
 
Absurda leveza que te faz afundar 
E não é a morte. 
 
Cumpres tua descida calado 
(Uma palavra por descuido 
Seria amputar a verdade). 
 
Náufrago do tempo, 
Tuas horas transbordam. 
Dentro da lágrima, 
Imensidão, já não choras. 
 
Estrelas e estrelas, 
Copulam a sede e o engenho 
De que te alimentas 
Como nunca te alimentou 
O gosto da carne. 
 
Tua face atônita 
Se existisse uma face, 
Tuas costas nuas, 
Se a nudez fosse do corpo. 
 
Um sorvedouro 
Onde a paz dos contrários, 
Treva alvorada. 
 
Fecundado, flutuas. 
É a lei da graça. 
 
 
Mariana Ianelli 
 
 
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Mulheres de milho 
 
 
Milhares de mulheres de milho 
brotam do meu olho calado como espigas 
fortes. No ar elas se endireitam 
 
como folhudas criaturas carnosas 
que ao vento se transmudam, de fêmeas, 
em formosos penachos machos. 
 
Acho graça na cruza; penso nisso 
que é ser mulher a passo 
de, sob a vertigem solar, virar confusa 
 
hibridação. Abro-me. Brinco 
de me dar. Rapto-me e opto-me 
como se eu mesmo fosse me comer inteiro 
 
enquanto as coisas simplesmente nascem. 
 
 
Leonardo Fróes 
 
 
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Justificação de Deus 
 
 
O que eu chamo de deus é bem mais vasto 
e às vezes muito menos complexo 
que o que eu chamo de deus. Um dia 
foi uma casa de marimbondos na chuva 
que eu chamei assim no hospital 
onde sentia o sofrimento dos outros 
e a paciência casual dos insetos 
que lutavam para construir contra a água. 
Também chamei de deus a uma porta 
e a uma árvore na qual entrei certa vez 
para me recarregar de energia 
depois de uma estrondosa derrota. 
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa 
no ponto de desespero total 
em que uma flor se movimenta ou um cão 
danado se aproxima solidário de mim. 
E é ainda a palavra deus que atribuo 
aos instintos mais belos, sob a chuva, 
notando que no chão de passagem 
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma 
e é talvez a calma 
na química dos meus desejos 
de oferecer uma coisa. 
 
 
Leonardo Fróes 
 
 
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Paisagem voando em direção ao orgasmo 
 
 
Trens sonolentos resfolegam 
na gare do escuro rostos antigos se alumbram 
e nos sorriem discreta- 
mente a razão se estilhaça os sentidos 
se destapam os cheiros se condensam os sabores 
se associam ao cuspe a vida nos penetra o vento 
nos penteia e espalha 
por coloridas areias os dias nos dividem 
os horários nos limitam a memória escasseia o mar 
devolve ondas vazias 
em que já fomos levados 
nas noites frias de outrora o outro espia o outro espera o outro 
nos sedimenta em nosso desvario 
e ensina um corpo à solidão 
o outro ampara a nossa queda beija 
nossos pudores e a boca 
sempre entupida de espanto o canto explode 
o gato canta a cama range o ar se fende o riso 
nos comunica o gosto diferente 
desse gesto largado o riso alarga eleva desarruma as gavetas 
de nossa servidão coitidiana. 
 
 
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Fogo dos rios 
 
 
49-a 
 
Corpo: rio 
de tantas margens 
de onde 
secretamente 
se entra e se sai. 
 
 
Fernando Paixão 
 
 
 
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Adão e Eva 
 
 
cordeiro de Deus 
que tirais o pecado do mundo 
 
zelai pelos jovens 
trigais e 
pelas uvas verdes 
destes alqueires 
para que ao vê-los 
nossos desejos amadureçam 
 
cordeiro de Deus 
que tirais o pecado do mundo 
 
cuidai para que cresçamos 
raposas famintas 
e aprendamos 
a fabricar o próprio pão 
e vinho 
 
cordeiro de Deus 
que tirais o pecado do mundo 
 
deixai-nos a sós 
no Paraíso 
— não órfãos — 
espírito e tentáculos 
de vossa imaginação 
 
cordeiro de Deus 
que tirais o pecado do mundo 
 
partilhai conosco 
apenas o gozo 
e a paz dos insaciáveis 
 
 
Ruy Proença 
 
 
 
 
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O nascimento de Vênus 
 
 
Vênus nasceu! 
Vênus nasceu! 
Sobre a casta concha de areia 
Sobre a concha imaterial. 
Anjos morenos a nasceram 
De seu sono batismal. 
Vênus nasceu 
Já mulher feita 
Prêt-à-porter. 
As curvas mais belas 
Que as montanhas 
Do sul de Minas. 
Vênus sem biquíni 
Dos ossos bem polidos 
Da pele lampinha 
Protegida por filtro solar nº30 
Do umbigo torneado 
Dos seios-polpa-de-coco. 
Se veio ao mundo 
Borrada de batom 
Foi para avisar 
Que algo em nós 
Estava fora 
De controle. 
 
 
Ruy Proença 
 
 
 
 
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O rio sem nome 
 
 
“Ouves o grito dos mortos?” 
Indaga o poema dos antigos 
Numa enfiada de versos 
Que retornam ao ponto: 
 
“Ouves o grito dos mortos?” 
 
 
E se os mortos que temos 
Não gritam, nem arqueiam 
Os últimos pensamentos: 
Que som de passagem? 
 
Porque nem todos os que se vão 
Deixam o arcano da voz rente às coisas 
Há vezes e que a umidade 
Cresce entre objetos mudos 
 
– só. 
 
Como anteontem. A cabeça 
À beira do rio extremo 
Ela suspirou lentamente 
E calou-se: lençol na pedra. 
 
 
 
Fernando Paixão 
 
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Dispersona 
 
 
Tantos que fui 
Ficaram poucos. 
 
Uns 
Nunca tiveram semblante 
Dissiparam-se nas roupas 
– igual a zero. 
Outros 
Devastaram colunas à cidade 
(santa ironia) 
Enfrentadas por espadas de saliva. 
 
Muitos eram ​clowns 
Noturnas aparições da face praticável... 
Alguns restam fixados 
Em datas: 
 
Corpo e nome 
Aluguel 
De meu alguém. 
 
Perdi-me 
Diverso de mim. 
Tantos 
(celebrados) 
Tão pouco. 
Que nem perceber sei 
Este agora 
 
eu 
 
de mim (de quem?) 
fixado contra o rosto. 
 
 
Fernando Paixão 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Consolação 
 
 
Escuto. E debaixo do abrigo 
Árvores disfarçam o cavalo. 
Barulhos. Volto a imaginar 
O lentíssimo brilho de tua beleza. 
Biótipo de deusa de estação de metrô. 
Tampouco esquecerei dos pés 
Pisando noites anfíbias. 
 
 
Josoaldo Lima Rêgo 
 
 
 
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Ecologia íntima 
 
 
Planta tua cara verde musgo 
Enfia o corpo num buraco 
Deixa nascer galhos pousar pássaros 
Os braços como duas grandes folhas 
As pernas bebendo água 
Cabeça solta olhos fixos 
Cu pra não caber uma palavra 
Planta tuas raízes rasas o calendário. 
 
 
Josoaldo Lima Rêgo 
 
 
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Boqueirão 
 
 
Audaz o Caos e a trina Hécate 
No instante trôpego deste canto 
Cai o náufrago 
Heitor, cá está Andrômaca 
Leva o morto ao pai e sentencia 
O boqueirão é mais velho 
 
 
Josoaldo Lima Rêgo 
 
 
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Fala abrevia prévia 
 
 
Íntimo reverso, 
Prestes a surdir 
Carminado: lábios 
 
Hálito molda-se 
Entre, 
Molha iletrado 
 
Sem signo, algo 
 
Ensurdece 
Poro a poro 
A epiderme 
Toda 
É só ouvidos: 
 
Nada a decifrar 
 
Até o frio cala 
Nas vértebras 
 
 
Simone Homem de Melo 
 
 
 
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Seu duplo, meu próprio 
 
 
Relentam fisgados às coisas: gestos 
 
Dedos: o que amarram ao atarem 
Amuleto – o do desejo qual o resto 
Preso ao nó, 
Pingente 
 
Algo – 
Foi sangria, foi granizo contra o vidro, 
Foi grito, foi – 
o que fez esquecer o tinteiro aberto, fez 
 
ausente no mata-borrão 
o verso 
da escrita, seu duplo 
 
que raro: eu 
rastreara 
alheio aposento 
em meu próprio. 
 
 
Simone Homem de Melo 
 
 
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Kouros 
 
 
De quem adia 
com os olhos 
(visionário) 
o que acaba de 
se gravar à pele: 
 
deitado ao chão, 
o mármore 
semilapidado, 
dissimula-se às tantas 
curvasdo relevo, 
esquecido do cinzel. 
 
Divaga 
(lisa malícia essa, 
a que seus lábios 
acabam de esboçar) 
ainda ao alcance 
das mãos, ainda 
pouco depois de 
a pedra romper, 
quem o esculpia 
se ausentou 
a meio caminho: 
e ele, 
ele, tosco, 
no descampado. 
 
Do mármore, o grafismo 
marca traços ausentes, 
sua face, sempre outra, 
à contraluz. sob um sol 
eclipsado, 
obscurece: repentino, 
ele, 
ofuscado pela sombra 
interina 
(que tanto se pensa 
infinda quanto passa), 
deslembrado 
de cada réstia 
de luz já vista. 
 
Aquele instante era sem prazo: 
lapso do restante, 
não consentia 
nenhum depois – 
enquanto 
o Kouros de Naxos 
dorme em Melanes, 
sob tamariscos. 
 
Aquela sombra o cegou. 
E a boca, entreaberta, 
soletrou 
(os lábios incharam) 
que o êxtase 
é um corte 
 
 
Simone Homem de Melo 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Memória, mãe das musas 
 
primeiro sim foi 
quando 
deuses 
tolheram as letras 
das tuas 
preciosas palavras 
e acho te partiram em mil 
pedaços 
espalharam 
teus sons 
sem sentido soando 
sim mas outros te ouviram 
e suponho colheram 
tuas sílabas 
num tecido de ritmo 
indecisas e belas 
em fuga perpétua 
do sentido 
força informe 
que desfez 
a velha Babel 
e a devolveu 
num 
como é mesmo 
num 
pequeno milagre. 
 
 
Dirceu Villa 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
a fala de shamash 
& a febre de enkidu 
 
 
 ​para josé francisco botelho 
 
 
“enkidu, és um tolo se ofendes shamhat, 
prostituta que deu-te o néctar dos deuses, 
que te serviu a cerveja vermelha dos reis, 
que te vestiu com as cores do céu e da terra 
e deu-te o amigo melhor, o belo gilgamesh: 
ishtar entre na casa daquele que colhe seus dons; 
o touro te olha entre a névoa do sonho, 
patas leoninas com garras de harpia 
te agarram os cabelos, te erguem no ar, te sopram 
e eis que te tornas um pombo, e eis que és agora 
cativo das sombras, trono de irkalla, 
onde a porta é trancada na casa da areia, 
onde o silêncio te mostra a mesa de enlil, 
as coroas dos reis já deitados na terra, 
o perfume dos pães bem cozidos, da água 
tão fresca e corrente: estás na casa da areia, 
diz-te o touro de asas que viste em frente ao palácio, 
da porta cerúlea de onde saem os heróis 
buscando o leão, o touro selvagem, o íbex, 
a floresta de cedros onde sussurra o segredo 
que ao desbastar a morte da vida burila uma jóia”. 
 
 
Dirceu Villa 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Imagem 
 
 
O corpo estirado na cama, 
esticado até o limite, 
solda coisas desiguais. 
 
Recolhe no reduzido espaço 
de uma noite, de um quarto, 
imagens porosas do passado> 
 
E vislumbra, amor maduro, 
o peso, o braço, o adubo 
de outro corpo no escuro. 
 
 
Augusto Massi 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Nudez 
 
 
Despido de tudo 
pronto a aceitar 
a própria nudez 
no quarto escuro 
 
O espelho em branco 
— mar amniótico — 
projeta nos flancos 
uma luz uterina 
 
Homem em estado bruto 
na metade da vida 
homem sem atributos 
— nudez como medida. 
 
 
Augusto Massi 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Poesia e vinho 
 
 
Como conter a embriaguez do vinho 
No curto espaço temporal de um verso? 
Como reter um traço em pergaminho 
tão sutil que se esboroa em tempo adverso? 
 
A arte é uma Dama que distrai a morte 
Enquanto se atira aos braços da vida. 
Não seja o verso entregue à pura sorte, 
Nem surja apenas do suor da lida. 
 
Que nele circule a seiva das veias, 
Espesso fluxo que num corte jorre; 
Mas tenha o rigor e a trama das teias, 
E inspire lucidez, mesmo de porre. 
 
 
Adalberto Müller 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
ÍCARO 
 
 
talvez 
todo esse ruflar 
de asas por dentro não 
seja mais que um rumor de plumas 
não mais que o bater de um músculo 
na jaula do peito não seja talvez 
mais que um rumor de penas 
não seja isso apenas mais 
que cera ao sol 
talvez 
 
 
 
Adalberto Müller 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
O TEMPO DO POEMA 
 
 
 ​para Alcides Villaça 
 
 
lento lento lento 
 
 
o poema se gesta 
canção de 
gestos inefáveis 
 
um dia se olha no espelho 
e rugas lhe escavam 
a face 
 
ninguém o leu 
tão a fundo 
quanto o 
 
tempo 
 
 
Adalberto Müller 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Bashô 
 
 
Árvore que não desperta, 
Rede de imagens gestando tudo, 
Curva dos galhos entrelaçados ao vento, 
Copa cálida que aquece a sombra, 
À noite notei que virou pássaro. 
De manhã, te ouvi no vento. 
 
 
Pedro Cesarino 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Caminhamos pelo círculo cujos arcos 
Sempre retornam à coreografia da morte. 
NO centro esta aquela flor, a mãe 
Que nos atraiu para as suas pétalas. 
Seguramos as cordas enferrujadas do tempo, 
Somos os trapezistas ingênuos 
Que o arco-íris criou para se divertir, 
Somos os anéis quebrados da sincronia 
– Macho e fêmea enredados no rio. 
 
 
 
 
 
 
Pedro Cesarino 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Fotografia 
 
 
Se pudesse agitaria o redemoinho 
Do pensamento como quem dá a luz 
A uma ave com penas repletas de desejo. 
 
Se pudesse, faria dos tijolos escada 
Para as vísceras do silêncio 
E descansa ali nos pés marcados pela subida. 
 
Entregaria ao céu os negativos de minha câmera 
O panorama, a sequência interminável 
Dos horizontes que se desdobram da espinha 
Para se acomodarem ali, junto à flor da amplidão. 
 
Entregaria o traçado de linhas incertas, 
O caminho que se abre na rede de luz 
E confunde meu sopro à tessitura da ventania. 
 
Entregaria o plano distorcido do olho, 
O êxtase multiplicado pelo prisma, 
A cor volátil do delírio, testemunho trêmulo, 
O registro incompleto do que imaginei ter visto 
Por essas terras estranhas. 
 
 
Pedro Cesarino 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Dos estudos de objetos e ver 
 
 
1. 
Tão brutal a matéria 
Ao excurso do olhar 
Que a impossibilidade 
De qualquer imagem 
 
Pois o adensamento 
(cores e formas se desfazem) 
Que sobre o suporte 
Obstrui por acúmulo 
 
2. 
A expansão da contextura 
Na superfície que 
(sequer hipótese de simulacro) 
Concreta se amalgama 
 
Ainda se acrescenta 
Na espessura com que 
A crueza da matéria 
Reocupa o espaço 
 
3. 
Nem é sempre que pela medida 
Um espaço se define 
Antes o peso da intensidade 
Com que severa a cor 
 
Pode impor-se como massa 
E ora grave sobretons 
Se elabora um corpo 
Que ocupa seu espaço 
 
4. 
Se os planos se distinguem 
Pela superposição de recortes 
Que irregulares compartilham 
Fragmentos uns dos outros 
 
Tal diretriz para medida 
Ou controle de uma área 
Avança pela imaginação 
Se arredores se desvãos 
 
5. 
A matéria como projeto 
De dimensão do olhar 
Quando no espaço 
Não só uma ordenação 
 
Nem frágil descompasso 
Mas todo um percurso 
Linhas volumes cálculo 
Talvez resumo de paisagem. 
 
 
Júlio Castañon Guimarães 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Corpo 
 
 
O corpo, 
Esta ilusáo, 
 
A transparência 
Onde o tempo se inscreve, 
 
A esculpida 
Relembrança 
— o não vivido. 
 
O corpo, 
Este completo desfrutar-se, 
Onda, peixe, sereia, 
De barbatanas selvagens 
Como facas. 
 
Corpo — o corpo, 
Território do nunca, 
Inigualável 
País do meu espanto. 
 
De todos os espantos. 
(des)encontros, naufrágios, 
Precipícios. 
 
Pássaro-fêmea, carne 
Colada em moldura, 
Pele, poro. 
 
 
Myriam Fraga 
 
 
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Coro dos Sátrapas 
 
 
Palavras ... Palavras ... Palavras ... 
São grades de cristal, são arabescos, 
Palavras são marcas desenhadas, 
Nas paredes da sala 
 
São aranhas famintas, com suas patas, 
Tecendo nas trevas do palácio 
Astentações do esplendor que se desata. 
 
Celebremos a púrpura e seu destino 
No malefício das noites consteladas 
De sois extintos e estrelas apagadas. 
 
Que volteiem os bailarinos nessa hora, 
Rasguem-se os véus, desatem-se as volúpias, 
Que o sangue lave a mesa do banquete 
E nas entranhas decifre-se: morte e vida. 
 
 
Myriam Fraga 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Esfinge 
 
 
Revesti-me de mistério 
Por ser frágil, 
Pois bem sei que decifrar-me 
É destruir-me. 
 
No fundo não me importa 
O enigma que proponho. 
 
Por ser mulher e pássaro 
E leoa, 
Tendo forjado em aço 
Minhas garras, 
É que se espantam 
E se apavoram. 
 
Não me exalto. 
Sei que virá o dia das respostas 
E profetizo-me clara e desarmada. 
 
E por saber que a morte 
É a última chave, 
Adivinho-me nas vítimas 
Que estraçalho. 
 
 
Myriam Fraga 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
Paraíso 
 
 
As vozes, de novo, as vozes – 
O chacoalhar do guizo. 
Esposas entrelaçadas, Virgínias, 
Eucaristia dada aos porcos, 
Dentes e membros fendas e cicatrizes. 
 
Haja fome! Haja fúria! 
 
A madrugada de pernas abertas, 
Lateja o verde, explode a púrpura: 
Venham todos de mãos erguidas, 
Que as uvas já estão maduras. 
Venham pequenos e grandes, 
Venham graves e agudos. 
 
Será noite quando chegarem 
E quando quiserem partir, não poderão. 
Infinitamente, o cativeiro. 
O reverso do tempo: mil vezes noite. 
 
Gritem, escandalizem, 
Enganem-se uns ao outros. 
Cantem por medo e sorriam, 
Lambuzem os dedos de horror. 
 
O prazer de matar, o jogo da mentira, 
O banquete da carne ao vosso dispor. 
O que existe de belo, quem souber que o diga. 
Garras e chifres dirão mais e melhor. 
 
Amores, torpes amores. 
Pois que amem até a angústia! 
Cubram-se de moedas, 
Esquartejem a música! 
 
Seja a felicidade megera 
Que tudo quer, tudo pode. 
Procriam as aberrações 
Que a terra dá, depois come: 
Magnatas, capitães, 
Ratos que se dizem homens. 
Seda, escarlate, marfim, 
E ouro, muito ouro. 
 
Divirtam-se, dissimulem 
Qualquer resquício de alma. 
A noite os sodomize, 
Liberte-os para o ódio. 
 
Limites, que limites? 
O proibido nomeia-se fábula, 
Flor de farinha, canela, cheiro verde: 
Desfrutem, devorem, regalem-se! 
 
O que resta do cordeiro 
É pasto dos chacais. 
As fontes entronam 
A faca trabalha. 
 
Nâo peçam perdão, 
Nâo se sintam culpados 
(sempre há de vencer o mais fraco) 
Aonde forem – e não será longe – 
Acompanha-os a trindade 
Da gula, da morte e do orgasmo. 
 
Não perguntem pela razão, 
Não pensem demasiado. 
De uma antiga doença 
Desabrocham novas enfermidade. 
 
Não seja um membro imperfeito, 
Um dorso, um rosto bastardo, 
Mas a própria mente analfabeta, 
Inteligência degolada. 
 
Não chorem. 
 
Dói a falta de recato? 
Pois a dor os recompense 
Faça-os gemer mais alto. 
Misturem-se as partes siamesas. 
Dobre-se o ventre para o lado de fora. 
 
O ócio pelo ócio, 
Fogo nos compêndios da História! 
Tornou-se outro o que era um 
E nenhum o que era vário. 
Perca-se o fio da memória. 
 
Mais funda a noite, 
Mais a fêmea se contorce. 
Escuridão prostituta, 
Cruzes empestando as covas. 
 
Não há dias que se desenrolem, 
Só um imenso atoleiro de horas 
Onde dura o irracional. 
Crianças contaminadas pelo tédio, 
Velhos fartos de deboche. 
 
Vá subindo a fumaça do riso , 
O pó do que eram ossos. 
Toca uma flauta, esta flauta 
Universal como a treva. 
E os irmãos se consomem, 
Ladram e se consomem. 
 
Orgia de crinas e patas, 
O Caos, o estribilho do nojo. 
No imperativo perder, 
Arrancar a planta, malbaratar. 
No imperativo dançar, 
A dança dos animais, 
Casos e mãos para trás. 
 
Quem jamais destruiu, 
Jamais destruirá: 
Os poucos que não vingaram, 
Aqueles que foram poupados, 
Sonâmbulos, vegetais. 
 
Nunca o mistério, a piedade, 
Nunca o repouso – 
só estrondo e mais noite: voragem. 
 
Nada oculto no escuro 
Que já não tenha sido violado. 
Nada mais que o absurdo, 
O apetite mórbido, o acaso. 
 
Em torno da mesa, 
Os filhos sem pai 
Compartilham o fuzil 
Na milícia geral da orfandade. 
O avesso e o direito embriagam-se. 
 
No corpo de cada um, 
Seu feroz adversário. 
 
Massacres! 
 
Gira a roda dos convivas, 
Gira a cabeça do filósofo. 
Bocas cheias de desejo, 
Tortura entre os aliados. 
 
Despertos os que têm sono, 
Limpas as mãos facínoras, 
Mais ricos os pródigos. 
Paraíso na terra: 
As guerras, as feras, o córtex. 
 
É o nervo que arrebenta, 
Qualquer coisa que fermenta, 
Uma boca e outra boca 
Nos reparte das sobras. 
É um tumulto de coxas, 
De punhos endurecidos, 
O espasmo, a epidemia, 
E, ainda assim, não é o bastante. 
 
Mel, leite, licor e azeite, 
O vermelho-visgo, 
Correm os humores. 
Pois que derramem, transbordem! 
 
Os amantes enlouqueçam, 
Os embriagados se afoguem. 
Esganicem como bichos, 
Pois já não há mais que um balido 
No lugar de toda a linguagem. 
Nada: o ermo da palavra. 
 
E esta sangria, quando acaba? 
Perto do fim, mais o fim se dissolve. 
Não esperem, não implorem. 
Juntos na cama do altar, gozem! 
Agora o cálice, a máscara, a roda. 
 
As voes, de novo, as vozes – 
 
Mariana Ianelli 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Terceira vigília 
 
 
Mulher nua dormindo. O mistério em pétalas. 
Os labirintos semicerrados, como se deuses 
movessem a mobília dos sonhos. 
 
A cama é uma mulher silenciosa. Gótico barco 
e páginas de antigos mares na insônia 
das palavras caladas, âncoras de sombra. 
 
Noite entre mulher e vigília. 0 luar salta a janela 
(uma lagoa) e por uma fresta mínima 
a ternura sonha pequenos dragões. 
 
 
André Ricardo Aguiar 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Os Argonautas 
 
Os mortos com seus sapatos ébrios. 
Quem os detém? Beberam os licores 
da perda e andam por corredores 
com suas certezas de pó, desafagos, 
suas bíblias da inércia. 
Parecem dizer algo, anúncio de verme. 
Às vezes, cismam e por instantes 
folheiam o vento, habitam 
uma fotografia, pesam uma lágrima. 
Não os tivessem tocado, é o batismo 
geral ou a relva inconcebível 
voltariam a arquivá-los 
numa lua de esquecimento. 
 
 
André Ricardo Aguiar 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
A tartaruga 
 
 
Tem u quê de pedra 
Que não se atira. 
 
(Eremita em sua caverna 
Sem idéia de Platão) 
 
Aciona sua casa 
Por controle remoto 
– quando se pilha 
Em movimento. 
 
Sempre em sua direção 
Corre o tempo. 
 
 
André Ricardo Aguiar 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Da imagem 
 
 
Trapo de lua 
Dá para vestir 
Um poema 
Se uma imagem 
Souber o caminho 
Mais curto 
Entre a coisa em si 
E o dizer espantado 
 
Susto de iceberg 
A inaugurar sua ponta. 
 
 
 
André Ricardo Aguiar 
 
 
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Afrodite 
 
 
Disse a deusa a sorrir: 
esta manhã o mar deu-me adereços 
e vestida de pérolas 
fui a um reino distante. 
Cânticos despertaram vides 
e frutos nasceram, que o sol 
cultiva nos pomares. 
Coros adolescentes perseguiam Eros 
— p coroado de pâmpanos — 
pois de meus lábios haviam provado , 
o vinho farto e suave. 
 
Liames atando e desatando, 
ele a beleza ocultava nas angras mais profundas, 
pois quando emergia — flâmeo! — 
o murmúrio do mar as praias inundava 
e a embriaguez vizinha da morte 
ameaçava os amantes... 
 
 
 
Dora Ferreira da Silva 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Lavar os olhos 
na luz aguda 
 
secar nos poros 
a verve nua 
 
o suor que se atreve 
a falar pela pele. 
 
 
 
Contador Borges 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Na mais imóvel das semelhanças a borboleta 
e o corpo de cera evitam a chama para encarnar a vida 
em movimento além da aparência e do alarido 
funerário (com cabelos postiços) na trama opaca de água, 
ao mesmo tempo diáfana no adejar de asas 
dobrando o poente como uma página, e a carne,a seda, 
uma trajando reluzente metáfora (ouro e negro nas bordas), 
a outra retirada de um catálogo de ceroplástica, 
mais aderente possível à matéria a ponto de iludir o tempo 
exibindo uma têmpera de luxo alheia a toda influência. 
A cera se move num pacto de vida e de morte, 
simulando a morte no horror interno e disforme 
dos órgãos e nervos, e a vida, na pele imantada em ícone 
liso e contínuo a temer só a incandescência: uma chama 
de vela a tirar-lhe o fôlego. E assim a beleza foragida 
se viu despida das partes do que foi em labareda. 
 
 
 
Contador Borges 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
O que faz entre os dedos 
o movimento 
sem receio 
de vertigem 
na escura vigília 
do que veio 
antes da origem: 
espelho de estrelas 
imberbes 
em meneio de cílios 
niquelados 
na forma da leveza 
sem sobressalto 
como as cores 
da cegueira 
onde toda ausência 
se faz presença 
mais que nua: rarefeita 
ao ser tocada 
com a língua. 
 
 
 
Contador Borges 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Ao tocar seu osso, cartilagem 
noturna do canto, um som 
rascante (de êxtase?) 
acalma o insidioso pomo-de-adão dos castrati 
e o pendor de ouro nos testículos 
desses anjos de sangue. 
Quanto mais se afastam do ideal, 
mais firme aderem ao pentagrama da carne 
em lua desnudada pelo raio 
durante a tempestade do corpo, 
que começa grave e acaba em soprano. 
 
 
 
Contador Borges 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
A luz oscila na pálpebra 
pêndulo perfeito 
sem peso 
entre sono e silêncio 
e aquece a ponta nos dedos 
reincidentes (sem luvas 
de doença) 
em meio ao dilúvio 
trás do segredo 
beijo incolor 
já despido de todo carmim 
que a nudez da palavra 
decifra 
quando cobre a página. 
 
 
 
Contador Borges 
 
 
 
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Teu verde 
 
Para Nina Rizzi 
 
Todas as mulheres são tigres desenhados em teus olhos. 
 
* * * 
 
Há um vocabulário do verde, 
inumeráveis ecos do teu verde 
que se desdobram na noite estrelada: 
olhos-pés, olhos-mãos, olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada. 
Cada letra de teu nome tem a sua própria cabeleira, 
denso alfabeto que incita à iniciação no segredo de teu segredo. 
Tua sombra segue minha sombra em cada passo mínimo. 
 
 
Claudio Daniel 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Anônimos 
 
 
Há um louco solto na rua. 
(Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) 
Um policial pede os seus documentos. 
(Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) 
O louco entrega-lhe um tijolo. 
(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.) 
O policial fica furioso porque queria um sapato. 
(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.) 
Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão. 
(Sobre o que conversam as abelhas?) 
O louco declara o seu amor pelos incêndios. 
(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?) 
O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas. 
 (Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.) 
A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato. 
(Quem conhece um grande romancista da Lituânia?) 
O cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre. 
(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.) 
 Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros 
e tem início uma pancadaria. 
(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.) 
 
 
 
Claudio Daniel 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
 
Encantação do Tigre 
 
o 
mar; 
digo: tigre, 
pupilas de verde fúria; 
suas tígricas vagas, garras, 
punhais esfervilhantes 
em arcadas de espuma, presas aguçadas; 
o fluir e o refluir de suas águas 
em ondulação, tigrinoso emblema da fera, 
cantabile alabarda em jaspe e luzidia prata urdida, 
nos seduz como selvagem dança sarracena, 
seus lenços de tépida alfazema escura; 
dissolvidos em seu puro olhar 
de algas em si algas, najas, corais 
em opalino alvoroço musgoso, 
não mais resistimos, estancados na argêntea areia, 
e entramos em suas águas de água 
sob o sol; aí cessamos. 
 
 
 
Claudio Daniel 
 
 
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA 
 
 
Lição da água 
 
I 
 
o 
mar, 
 
fêmea 
possessa. 
 
sua fala 
de suave 
 
lâmina 
abissínia; 
 
o ritmo 
ondulado, 
 
que flui 
em espiral; 
 
a precisão 
especular 
 
do teatro 
aquático; 
 
o secreto 
pugilato 
 
que sulca 
as rochas. 
 
 
II 
 
o 
mar, 
 
leoa 
furiosa, 
 
ensina 
ao poeta 
 
sua arte 
plumária; 
 
a dança- 
escultura 
 
das vagas 
incessantes; 
 
a pulsação 
do poema, 
 
seus ciclos 
menstruais. 
 
o 
mar 
 
ensina 
ao poeta 
 
sua arte 
sem arte. 
 
 
Claudio Daniel

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