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POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Invenção de Orfeu (Canto I – Fundação da Ilha) XVIII E vós rei animal rei sem trono, cetro e o mais; e do menos: coisas várias. Rei? Não sei. Rei escravo, viscerado, sem memória. Rei de manto de mentiras. Rei? Não sei. Rei viciado. Conheço quem vos fez, quem vos gorou, Rei animado e anal, chefe sem povo, tão divino mas sujo, mas falhado, mas comido de dores, mas sem fé, orai, orai por vós, rei destronado, rei tão morrido da cabeça aos pés. Rei? Não sei. Rei escravo, viscerado, governado, sem memória. Rei? Não rei. Jorge de lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Invenção de Orfeu (Canto III – Poemas relativos) XXVI Sombra encantada, declinara Num vago dia, incerto dia. Eis uma deusa, pelos gestos, por sua dança, sua órbita. Era preciso compreendê-la, mas quando nós a avizinhávamos, a deusa arisca recuava. Se nós recuávamos, voltava ao nosso encontro, sem tocar-nos. Então corríamos, devassos, quase enlaçando-a: ela fugia. Era uma deusa pelos modos com que mentia e se ausentava. Mas outro dia, vago dia, Abruptamente a aprisionamos. O que tu és, deusa, ignoramos, mas desejamos qualquer coisa fazer de ti, terror ou júbilo ou nossa Vênus favorável ou nossa esfera de vocábulos. Ela chorava, não queria; e o pranto logo a dissolvia. Então descemos ventre abaixo e renascemos de seu sexo – trânsito virgem de palavras. Era uma deusa, pela fúria com que nós todos a ultrajamos. Era uma deusa e não sabíamos se cada qual mesmo a violou. Era uma deusa, pela dúvida que em cada um de nós, deixou. Jorge de lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Invenção de Orfeu (Canto IV – As aparições) XI E a ave opaca voando, voando, e após transfixada de luz pousada em vale secreto, entre dois seios, indecisa, ave com suas penas, tudo um ouro só ou senão o apelo de outra voz ansiando a entranha amada. Quem a cale ternura não será nem alma incisa aberta ao signo e ao claro doce agouro. Nem mesmo a dissonância amarga e doce entre o cântico e as asas deste poema e o vale procurado mas fugace, como se o poema por inteiro fosse a angústia transportada pra a face com o vôo recomeçado de seu tema. Jorge de lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Invenção de Orfeu (Canto IV – As aparições) XI A tristeza era tanta, tanta a mágoa que seu anjo da guarda resolvera lutar com ele, lutar para lutar, que o interesse da vida perecera. Ave e serpente, círculo e pirâmide, os olhos em fuzil e os doces olhos, os laços, os vôos livres e as escamas, que doida simetria nesses ódios! Que forças transcendentes aros e ângulos Alguém quis que lutassem nesse dia! Ave e serpente, círculo e pirâmide: Que divina constante simetria nessa luta soturna, nessa liça em que Deus reconstrói o eterno cisne! Jorge de lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Invenção de Orfeu (Canto I – Fundação da Ilha) X Os rios que passam, os rios que descem, já foram cantados por muitos. Os rios parados na face do templo, porém mais velozes, são rios. Os seus afogados jamais conseguiram descer apressados para o mar. As luas que neles se espelham constantes não têm suas fases, não mudam. Pois que esses rios são rios do espaço com águas do tempo velozes. Mas se elas parassem abaixo das faces... Que parem! Quem importa! Eu não. Mas se eles corressem com as faces passadas, presentes, futuras, seriam. Os rios não são parados ou rápidos, alegres ou tristes, são rios. Jorge de lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O Tigre O tigre crescia como uma serpente. Viril como um crucifixo plantava-se na terra macia. Como uma estrela de gelo queimava a pele inflamando espasmos. Tinta roxa como o céu bem cedo. Abria bocas, engatilhava-se. O tigre-mel confundia: opala. Deslizava em grutas secretas. Tomava a senda mais branca feito cobra, feito as mãos de quem ora em segredo tenso. Sem regras, espreitava-se em chuvas, em salvas, salivas e coisas assim tão finas que o diriam morto. O tigre suspeitava gretas perante o céu mais cristalino que o olho do que expia. Tomando a carne mais virgem como um ogro , ou só um tigre, o faria. Deixando as garras de fora como um rio de metal que aguarda o sol. Pedindo o gozo mais quente como a língua que deseja a água e se estica feito uma serpente. Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Salomé Lances: dados: serpente, os dedos dançam: Uma noite me habita a cada abismo que piso. João Batista me olha: precipício: Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Terço Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. Em cada pedra uma mullher de sol. Nas maiores se ornam de estrelas, nas menores, de todas as luas. Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. Serpente a engolir o próprio corpo , anáfora, mandala, palavras, mistérios, intenções. Sofia, Shekinnah, Maria, Fatma. E Eva gloriosa, no verso da medalha. Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O dragão Um dragão marfim e dourado se desprendeu do livro de um antigo sábio numa tarde qualquer do século VIII. Morreram de tristeza e saudade as cinco gueixas da página vinte. Procuraram por ele os valentes samurais de nanquim que fechavam cada capítulo. Mas ninguém mais viu o dragão que sangrava ouro. E na fábula, uma chaga (fogo). Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Borboleta Faminta mancha na parede branca a negra borboleta abre as asas. Devora toda a parede branca a lepra da faminta que se alastra. Somente mancha, somente mancha, mancha que se alarga . Somente mancha, faminta mancha, estrela negra abrindo grandes asas. Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA História Desenterrar os mortos e chupar seus ossos, sugar seu mosto de terra e sangue seco, seu gosto secreto de anos infindáveis, arcos, costelas, arquitetura. Se infeccionar com os mortos. triturar seus artelhos de esponja ressequida, pintar de negro a noite os dentes e a saliva e abandonar o sonho, viva, muito viva. Micheliny Verunschk POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Centauro [...] E morreu relativamente jovem – porque a parte Animal mostrou-se menos capaz de durar que a sua Humanidade Joseph Brodsky, “Epitáfio para um centauro” Como um velho centauro cuja parte humana sobrevivesse à parte animal temos próteses, extensões enfeites, móveis que nos sobrevivem levamos conosco palavras que já não usamos planos que já não temos mulheres que não amamos pai morto cachorro morto amigos mortos como um velho centauro que levasse a passeio seu rabo morto de cão seus olhos mortos de pássaro. Ana Martins Marques POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Sereia Sereia centauro com sal melhor é tua metade animal a parte humana sendo humana sempre mente só mesmo um peixe pode ser contente de nada te serviriam joelhos ou pés o que és é também o que não és nada é o que fazes bem metade do que sou não sou também Ana Martins Marques POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Aparador Sonho que estou de volta ao primeiro apartamento quando éramos jovens e tínhamos muito menos coisase nem sabíamos que já éramos felizes como pensávamos que seríamos estás na minha memória jovem e alegre como numa fotografia talvez ainda mais jovem e mais alegre mais jovem do que jamais foste e mais alegre usas uma presilha no cabelo castanho e comprido invejo a presilha que está mais próxima do que eu do teu pensamento e dos teus cabelos da tua cabeça de cabelo e pensamento e invejo a fotografia que se parece tanto comigo talvez ainda mais do que tu mesma ouço as juntas que estalam como portas batendo sou hoje uma chaleira, uma pá, uns óculos esquecidos sobre o aparador sou o aparador esquecido de mim mesmo sobre o aparador está um fotografia que nos sobreviverá Ana Martins Marques POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Religião "If I were called in to construct a religion I should make use of water" Philip Larkin Inaugurar uma religião: adorar os pontos em que se formam as estações do ano os gestos de desnudar-se o dia depois da chuva a distância: entre uma árvore e outra árvore, entre cidades com o mesmo nome em diferentes continentes. Criar relíquias: os táxis ao entardecer, as colheres brilhando ao sol, toda tecnologia tornada obsoleta esboços de mãos e pés de pintores antigos as presas ensanguentadas que nos trazem os gatos. E ainda outras, íntimas, insensatas a luz nos seus cabelos as fotografias de parentes que não sabemos quem são. Adotar novas bíblias: longos romances inacabados palavras lidas sobre os ombros de alguém no metrô poemas clássicos traduzidos por tradutores automáticos. Reconhecer enfim o divórcio como um sacramento. Na liturgia tocar como partituras os mapas das cidades. E no Natal só celebrar o que nasce do sexo para morrer de fato. Ana Martins Marques POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Os rememorantes Também chamados de os duendes da noite, os rememorantes são animais dotados de uma inimaginável memória. Vigiam o sono dos demais seres que habitam esse mundo acerbo, graças a uma característica que faz deles, dos rememorantes, únicos sobre o planeta. POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Já ouvi essas vozes antes Já ouvi essas vozes, na cordilheira, no altiplano, ali na praça. percebo sua harmonia ancestral, inarticulada tentação, essas vozes celebram a epifania. se me chamam essas vozes, não as colho de frente, mas refaço o caminho. sei que são vozes do magma, sopro animado matéria informe. vozes primordiais, despertam-me tenazes se durmo e meus ouvidos querem acordados. assim são essas vozes, sempre aqui ab initio como o barro em meus pés. Antonio Fernando de Franceschi POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O princípio da poesia nas dobras de uma palavra (viés de dulcíssima rosa) onde pousa o pólen do nada. Fuso de prata que a mão, submergindo, ilude-se agarrar. Rosto relance perdido (definitivo) da cidade, na avalanche. Ácido – má viagem. Vertigem ciclotímica de anular-se. Olho cego, surdo, mudo de Dédalo, enreda pétala por pétala o seu botão de fracasso. Claudia Roquette Pinto POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Árvore de fogo, chama negra, labareda sob a qual me agacho em reverência, pés descalços sobre um chão tão árido quanto íntimo (depois de abandonar cummulus nimbus, a luz aparente, ninho do temporal). Flor do segredo quase extinto sua dança irrefletida destrói, estala nas ramas, resvala em cabelos, num céu. Terras ou rebanhos desdenho possa deitar-me entre as tuas raízes, feliz e imaculada seguir o caminho do que te alimenta. Cláudia Roquette Pinto POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Não a garganta – o grito, cortado canta. Mais do que a boca, a voz, rouca, amordaça. O corpo, presença que se perdeu como uma roupa rasga. Nudez fechando pétala por pétala forrada do espinho que não conhece como seu. Cláudia Roquette Pinto POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A Rosa da Memória A rosa da memória abre-se tênue desigual. Não oferece sua corola não desabrocha no ciclo dos fenômenos naturais. É ambígua, alheia a quem a quer por completo. Escapa, morre arde em suas feridas e súbito, retorna: clarão que redime. “Eu lembro” e as pétalas os móveis antigos, os laços se dissolvem na infinita margem da infância que fugiu há pouco. Nos vãos nos acenos que se apagaram nos vasos formidáveis vindos da China nas raízes úmidas que os mortos deixaram tudo se dissolve. A rosa da memória vegetal e inconclusa murmura um segredo que mal ouvimos (e nunca esquecemos) E repetimos, incansáveis Em nossa fome de tê-la. Samarone Lima POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Antes mordias Antes mordias meus calcanhares – víbora de doce veneno – agora busco o atalho onde encontrar-te Pois sem ti não vivo e só de ti vivia num enlace do amargo ao suave. Sou tua ave (o Canto não me roubes), ou devo esperar a nova primavera? O inverno fecha as flores da floresta e as minhas. Onde achar-te se és livre e estações jamais conheces? Sem teu corpo minha alma adormece como quem busca a morte. Nunca é dia se me abandonas e a noite é turva sem estrelas, sem tuas mil centelhas vivas sem teu amor calado sem tua labareda de fogo e seda. Dora Ferreira da Silva POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Minemósina I Fragmentos ao sol, serenidade íntegra. Festas silenciadas nos teatros: lagos pétreos de ondas fugitivas, mas ouvidas nos lábios do mar próximo. Túnicas tecidas por mãos céleres, diálogos nas ágoras, carros da alvorada incendiando as pedras, os declives de pinheiros duros, perfumados. Mnemósina: mãe ds musas e da enumeração da progênie dos deuses e dos fados, que preserva os nomes dos guerreiros, dos vencedores nos jogos, dos mortais marcados pela moira, pelo amor: banhas em tuas águas minha fronte e me ordenas a lembrança do passado. Dora Ferreira da Silva POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Mulher e pássaro Voltamos ao jardim ao banco lavado pela chuva. Pedimos o verde ao verde a flor à flor sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã. (Nossa presença desalinha ar e folhas num frêmito.) Mas se nada pedimos como quem dorme seguindo a linha natural do corpo respiramos o puro abandono: um pássaro alveja o azul (sem par) ultrapassa o muro do possível e assim damos um ao outro a súbita presença do Céu. Dora Ferreira da Silva POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Orfeu I Canto canções para os que morreram. Doces animais acorrem para ouvir o canto e me acolhem nos quietos corações: pomba, pavão, pássaros de beira d’água, cervos, esquilos e a Árvore. Vem a pantera, agora mansa. Sob as folhas vivas sustenho na mão a lira. É isso a solidão. II Colheu a flor – o Poema – arrancou-o à resina da vida e entre as páginas prendeu-o debatendo-se, vivo. A fonte alimentou-o nas águas. E a mão o feriu para dispersá-lo e, nele, o coração. III Sob a Árvore chamas, sem que os lábios falem. Eis o cervo, a pantera, a áspide, o pássaro, o boi ruminando sombra: ramos dispersos, bebem o orvalho da música, reunidos nas cordas de teu claro coração. Dora Ferreira da Silva POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Cobra Neste lugar, pois aqui a cobra que morde o rabo é minha amiga. Aqui, come-se na mesma hora diária, nascida de um sacrifício oculto, a vida. Dar-se no abraço que ainda não se conhece plantá-lo atento. Sê-lo. Aí estáo lugar que amanhece a noite na ansiedade das coisas e acalma o pesadelo. Felipe Aguiar POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Outra biografia Sou um pintor de desertos. Areias e ventos comovo. Meus sentimentos são ecos Da solidão dos mil povos. Sou muito do que me esqueço Nas busca do grande olvido. São muitos meus endereços Lá onde nem hei vivido Senão em sonhos, remorsos. Sou feito de mil resquícios, Herança de sacrifícios, Silêncio vivo dos mortos. Roberval Pereyr POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Jugo Aqui os mitos me afogam Nas ruínas em que os deixaram, E ainda vivos me encaram E em suas entranhas me jogam. Aqui os mitos me atacam (ruínas que me governam). E eu, empunhando facas, Ataco-os e ainda os quero. Aqui os mitos são elos Partidos, que viram farpas, Impondo-me duros flagelos Dos quais eu talvez não escape. Aqui os mitos são trastes Que foram deuses um dia. E à força de seus contrastes, A vida (arte, combate) Destila suas agonias. Roberval Pereyr POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Visão sem prestígio Aqui Ulisses um quilo Certo cagou. De nada lhe adiantou Esperteza e estilo. Chegou, foi ignorado. Nenhuma Penélope à vista, Nenhum castelo ocupado, Telêmaco era só um Anarquista cheio de tédio. E ao chegar a sua Ítaca, Velho, sujo, enganado, Eis que Ulisses, falido, Falhando no senso crítico, Disse (teria dito): amigos, Cheguei fodido; não só fodido: cagado! Roberval Pereyr POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Escuta Ouço os deuses no vórtice do meu ser. São deuses fósseis que gemem E adentram meu corpo E percutem venenos na minha voz. Ai os mortos, os mortos Com suas causas falidas Perpetuando remorsos, Amontoando Destroços Em nossas vísceras. Roberval Pereyr POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Oráculo Recorda e terás esquecido Nada ocorre por acaso Não há destino escrito Thomaz Albornoz Neves POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O touro cego O campo é estelar. Sem céu. O vento entalha esses no ar. No arroio bebe o touro cego (arabescos de água clara Desaparecem no escuro D sede sendo saciada). O pasto se afasta em onda Em espirais os ciprestes. Thomaz Albornoz Neves POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Predomínio do fogo Aproxima-te desta cabeça em ruínas E por ela mede a tua própria sombra. Não há tempo para disfarce ou prece, Nem para o vôo sobre as águas. Apenas um último instante Para enfrentar calor e escuridão. Aqui sepultamos nossos pais imolados. Aqui, na província do totem e do tabu, Onde o pássaro febril devora a carniça E o vento brande a árvore seca. Mosquitos bordam lacunas no silêncio. Vem, põe os dedos nas órbitas vazias. Saboreia com ternura e terror O suspiro final destes reinos perdidos. Carlos Manes POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Terra Gorilas correm pelas ruas, Aos gritos. Plantas murcham. Vidros partem. Inexoráveis, Instauram atônita, simiesca ordem. O medo impera. Ninguém pensa em reação. Alguns artistas em desespero, Atiram-se no canal. Outros disfarçados Tornam-se comerciantes. Vitoriosos, os gorilas Batem no peito. Apelos, discursos em prol da paz Escrevem-se a duas, quatro, dezenas de mãos. Mas à fleuma da palavra Os gorilas opõem, Do alto dos edifícios, Uma dança selvagem, Lúbrica. Carlos Manes POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A noiva da água Mulher azul De bruços sobre o pólo. Os cabelos Inundam continentes e mares. Sobem pelas árvores, Dão voltas em edifícios. Para compreendê-la, Toda ciência é vã. Os homens se contorcem de espanto. Multidões descansam Sob o inexplicável Feminino. Carlos Manes POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A árvore seca Em torno da árvore seca Satisfeitos nos sentamos. O sol, que cega e resseca Varava os seus secos ramos. Estendemos nossas mãos Para alcançar-lhe algum fruto, Mas rindo, entre os seus desvãos, Só achamos galhos em luto. Cantamos à sua volta E ave alguma respondia À nossa canção revolta, À nossa poenta alegria. De noite, sob os seus galhos, Dormimos, mas folha alguma Nos protegeu dos orvalhos Que a frígida alva ressuma. E assim, crestados, famintos, Úmidos, sós, aqui estamos Entre os seus braços extintos E as leves viúvas dos ramos. Em torno da árvore seca, Com as folhas pardas vestidos, Onde a coruja defeca, Dançamos, plenos, cumpridos. Alexei Bueno POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Disfarce Esta sombra antiga, A beleza, diga, Onde se acha e abriga, Se o imaginares. Não aqui, nos duros Paredões escuros, Entre arames, muros, Vísceras, bazares. Não junto das bestas, Nos roncos das sestas, Nos bares, nas festas, Nos rançosos lares. Mas só lá, nos portos, Nos arbustos tortos Entre o vento e os mortos, No arquejar dos mares. Lá onde não se fala, Onde a terra exala, E tudo se cala Só para escutares O que não se escuta, Que se esquiva, e luta, A voz absoluta A atroar nos ares. Alexei Bueno POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Momento Estou deitada em meu corpo A vida rumoreja recua como um mar E o sangue circula sem saída Eunice Arruda POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Tarefa cabe agora morrer o corpo dia a dia ir me desacostumando do rosto que eu chamava meu Eunice Arruda POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O Tempo Os olhos se resguardam sob as pálpebras mas o tempo passa Junto de nossos passos cautelosos que ultrapassam mas retornam sempre o tempo caminha Na superfície calma dos retratos inscreve seu itinerário e passeia com cautela em nosso rosto fala pela boca das crianças murmura no cansaço nossas mortes Em vão se preenchem as horas O tempo carrega em seu rio nossas sementes para um mar. Eunice Arruda POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Metafísica Metafísica das alturas mil anjos servem um ser escuro frio indevassável e já não consideram privilégio viver junto à vertigem que os consome Marco Lucchesi POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Filhos do fogo Não foi o cansaço da jornada Que de novo nessa noite nos venceu, Mas um sofrimento antigo, igual a sempre, A realidade com sua mão espadaúda Juntando a poeira de uns castelos demolidos, De tudo extraindo o que sobra de nosso, afinal: O irreversível. Cultivamos rituais silenciosos, Temos dentro de nós a alma do mundo. Fomos feitos para a solidão, A mesma que sente um animal Ao largar o seu rebanho E esperar a morte suavemente Numa longa tarde de chuva em Gibeon. Damos calor às coisas enquanto é tempo E mais tempo há enquanto estamos mudos. Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo. Assim acontece certas vezes, por espanto: De um golpe, o infinito nos apanha. Mariana Ianelli POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A música fala pelos que ficam A música fala pêlos que ficam. Nenhuma distância é possível Entre a nítida presença de um corpo E sua despedida repentina. Para aquele que viaja em busca do futuro Eu canto com a impureza do amor Que me esgota e também me extasia, Que me leva a produzir o tédio Com os meus dedos engordurados de vida. A violência do ódio primitivocanta comigo E são estas trevas que me acompanham À dimensão de um tempo sem destino Em que nada se perde porque nada existe. Mariana Ianelli POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Treva alvorada Absurda leveza que te faz afundar E não é a morte. Cumpres tua descida calado (Uma palavra por descuido Seria amputar a verdade). Náufrago do tempo, Tuas horas transbordam. Dentro da lágrima, Imensidão, já não choras. Estrelas e estrelas, Copulam a sede e o engenho De que te alimentas Como nunca te alimentou O gosto da carne. Tua face atônita Se existisse uma face, Tuas costas nuas, Se a nudez fosse do corpo. Um sorvedouro Onde a paz dos contrários, Treva alvorada. Fecundado, flutuas. É a lei da graça. Mariana Ianelli POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Mulheres de milho Milhares de mulheres de milho brotam do meu olho calado como espigas fortes. No ar elas se endireitam como folhudas criaturas carnosas que ao vento se transmudam, de fêmeas, em formosos penachos machos. Acho graça na cruza; penso nisso que é ser mulher a passo de, sob a vertigem solar, virar confusa hibridação. Abro-me. Brinco de me dar. Rapto-me e opto-me como se eu mesmo fosse me comer inteiro enquanto as coisas simplesmente nascem. Leonardo Fróes POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Justificação de Deus O que eu chamo de deus é bem mais vasto e às vezes muito menos complexo que o que eu chamo de deus. Um dia foi uma casa de marimbondos na chuva que eu chamei assim no hospital onde sentia o sofrimento dos outros e a paciência casual dos insetos que lutavam para construir contra a água. Também chamei de deus a uma porta e a uma árvore na qual entrei certa vez para me recarregar de energia depois de uma estrondosa derrota. Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa no ponto de desespero total em que uma flor se movimenta ou um cão danado se aproxima solidário de mim. E é ainda a palavra deus que atribuo aos instintos mais belos, sob a chuva, notando que no chão de passagem já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma e é talvez a calma na química dos meus desejos de oferecer uma coisa. Leonardo Fróes POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Paisagem voando em direção ao orgasmo Trens sonolentos resfolegam na gare do escuro rostos antigos se alumbram e nos sorriem discreta- mente a razão se estilhaça os sentidos se destapam os cheiros se condensam os sabores se associam ao cuspe a vida nos penetra o vento nos penteia e espalha por coloridas areias os dias nos dividem os horários nos limitam a memória escasseia o mar devolve ondas vazias em que já fomos levados nas noites frias de outrora o outro espia o outro espera o outro nos sedimenta em nosso desvario e ensina um corpo à solidão o outro ampara a nossa queda beija nossos pudores e a boca sempre entupida de espanto o canto explode o gato canta a cama range o ar se fende o riso nos comunica o gosto diferente desse gesto largado o riso alarga eleva desarruma as gavetas de nossa servidão coitidiana. POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Fogo dos rios 49-a Corpo: rio de tantas margens de onde secretamente se entra e se sai. Fernando Paixão POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Adão e Eva cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo zelai pelos jovens trigais e pelas uvas verdes destes alqueires para que ao vê-los nossos desejos amadureçam cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo cuidai para que cresçamos raposas famintas e aprendamos a fabricar o próprio pão e vinho cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo deixai-nos a sós no Paraíso — não órfãos — espírito e tentáculos de vossa imaginação cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo partilhai conosco apenas o gozo e a paz dos insaciáveis Ruy Proença POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O nascimento de Vênus Vênus nasceu! Vênus nasceu! Sobre a casta concha de areia Sobre a concha imaterial. Anjos morenos a nasceram De seu sono batismal. Vênus nasceu Já mulher feita Prêt-à-porter. As curvas mais belas Que as montanhas Do sul de Minas. Vênus sem biquíni Dos ossos bem polidos Da pele lampinha Protegida por filtro solar nº30 Do umbigo torneado Dos seios-polpa-de-coco. Se veio ao mundo Borrada de batom Foi para avisar Que algo em nós Estava fora De controle. Ruy Proença POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O rio sem nome “Ouves o grito dos mortos?” Indaga o poema dos antigos Numa enfiada de versos Que retornam ao ponto: “Ouves o grito dos mortos?” E se os mortos que temos Não gritam, nem arqueiam Os últimos pensamentos: Que som de passagem? Porque nem todos os que se vão Deixam o arcano da voz rente às coisas Há vezes e que a umidade Cresce entre objetos mudos – só. Como anteontem. A cabeça À beira do rio extremo Ela suspirou lentamente E calou-se: lençol na pedra. Fernando Paixão POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Dispersona Tantos que fui Ficaram poucos. Uns Nunca tiveram semblante Dissiparam-se nas roupas – igual a zero. Outros Devastaram colunas à cidade (santa ironia) Enfrentadas por espadas de saliva. Muitos eram clowns Noturnas aparições da face praticável... Alguns restam fixados Em datas: Corpo e nome Aluguel De meu alguém. Perdi-me Diverso de mim. Tantos (celebrados) Tão pouco. Que nem perceber sei Este agora eu de mim (de quem?) fixado contra o rosto. Fernando Paixão POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Consolação Escuto. E debaixo do abrigo Árvores disfarçam o cavalo. Barulhos. Volto a imaginar O lentíssimo brilho de tua beleza. Biótipo de deusa de estação de metrô. Tampouco esquecerei dos pés Pisando noites anfíbias. Josoaldo Lima Rêgo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Ecologia íntima Planta tua cara verde musgo Enfia o corpo num buraco Deixa nascer galhos pousar pássaros Os braços como duas grandes folhas As pernas bebendo água Cabeça solta olhos fixos Cu pra não caber uma palavra Planta tuas raízes rasas o calendário. Josoaldo Lima Rêgo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Boqueirão Audaz o Caos e a trina Hécate No instante trôpego deste canto Cai o náufrago Heitor, cá está Andrômaca Leva o morto ao pai e sentencia O boqueirão é mais velho Josoaldo Lima Rêgo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Fala abrevia prévia Íntimo reverso, Prestes a surdir Carminado: lábios Hálito molda-se Entre, Molha iletrado Sem signo, algo Ensurdece Poro a poro A epiderme Toda É só ouvidos: Nada a decifrar Até o frio cala Nas vértebras Simone Homem de Melo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Seu duplo, meu próprio Relentam fisgados às coisas: gestos Dedos: o que amarram ao atarem Amuleto – o do desejo qual o resto Preso ao nó, Pingente Algo – Foi sangria, foi granizo contra o vidro, Foi grito, foi – o que fez esquecer o tinteiro aberto, fez ausente no mata-borrão o verso da escrita, seu duplo que raro: eu rastreara alheio aposento em meu próprio. Simone Homem de Melo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Kouros De quem adia com os olhos (visionário) o que acaba de se gravar à pele: deitado ao chão, o mármore semilapidado, dissimula-se às tantas curvasdo relevo, esquecido do cinzel. Divaga (lisa malícia essa, a que seus lábios acabam de esboçar) ainda ao alcance das mãos, ainda pouco depois de a pedra romper, quem o esculpia se ausentou a meio caminho: e ele, ele, tosco, no descampado. Do mármore, o grafismo marca traços ausentes, sua face, sempre outra, à contraluz. sob um sol eclipsado, obscurece: repentino, ele, ofuscado pela sombra interina (que tanto se pensa infinda quanto passa), deslembrado de cada réstia de luz já vista. Aquele instante era sem prazo: lapso do restante, não consentia nenhum depois – enquanto o Kouros de Naxos dorme em Melanes, sob tamariscos. Aquela sombra o cegou. E a boca, entreaberta, soletrou (os lábios incharam) que o êxtase é um corte Simone Homem de Melo POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Memória, mãe das musas primeiro sim foi quando deuses tolheram as letras das tuas preciosas palavras e acho te partiram em mil pedaços espalharam teus sons sem sentido soando sim mas outros te ouviram e suponho colheram tuas sílabas num tecido de ritmo indecisas e belas em fuga perpétua do sentido força informe que desfez a velha Babel e a devolveu num como é mesmo num pequeno milagre. Dirceu Villa POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA a fala de shamash & a febre de enkidu para josé francisco botelho “enkidu, és um tolo se ofendes shamhat, prostituta que deu-te o néctar dos deuses, que te serviu a cerveja vermelha dos reis, que te vestiu com as cores do céu e da terra e deu-te o amigo melhor, o belo gilgamesh: ishtar entre na casa daquele que colhe seus dons; o touro te olha entre a névoa do sonho, patas leoninas com garras de harpia te agarram os cabelos, te erguem no ar, te sopram e eis que te tornas um pombo, e eis que és agora cativo das sombras, trono de irkalla, onde a porta é trancada na casa da areia, onde o silêncio te mostra a mesa de enlil, as coroas dos reis já deitados na terra, o perfume dos pães bem cozidos, da água tão fresca e corrente: estás na casa da areia, diz-te o touro de asas que viste em frente ao palácio, da porta cerúlea de onde saem os heróis buscando o leão, o touro selvagem, o íbex, a floresta de cedros onde sussurra o segredo que ao desbastar a morte da vida burila uma jóia”. Dirceu Villa POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Imagem O corpo estirado na cama, esticado até o limite, solda coisas desiguais. Recolhe no reduzido espaço de uma noite, de um quarto, imagens porosas do passado> E vislumbra, amor maduro, o peso, o braço, o adubo de outro corpo no escuro. Augusto Massi POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Nudez Despido de tudo pronto a aceitar a própria nudez no quarto escuro O espelho em branco — mar amniótico — projeta nos flancos uma luz uterina Homem em estado bruto na metade da vida homem sem atributos — nudez como medida. Augusto Massi POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Poesia e vinho Como conter a embriaguez do vinho No curto espaço temporal de um verso? Como reter um traço em pergaminho tão sutil que se esboroa em tempo adverso? A arte é uma Dama que distrai a morte Enquanto se atira aos braços da vida. Não seja o verso entregue à pura sorte, Nem surja apenas do suor da lida. Que nele circule a seiva das veias, Espesso fluxo que num corte jorre; Mas tenha o rigor e a trama das teias, E inspire lucidez, mesmo de porre. Adalberto Müller POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA ÍCARO talvez todo esse ruflar de asas por dentro não seja mais que um rumor de plumas não mais que o bater de um músculo na jaula do peito não seja talvez mais que um rumor de penas não seja isso apenas mais que cera ao sol talvez Adalberto Müller POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O TEMPO DO POEMA para Alcides Villaça lento lento lento o poema se gesta canção de gestos inefáveis um dia se olha no espelho e rugas lhe escavam a face ninguém o leu tão a fundo quanto o tempo Adalberto Müller POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Bashô Árvore que não desperta, Rede de imagens gestando tudo, Curva dos galhos entrelaçados ao vento, Copa cálida que aquece a sombra, À noite notei que virou pássaro. De manhã, te ouvi no vento. Pedro Cesarino POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Caminhamos pelo círculo cujos arcos Sempre retornam à coreografia da morte. NO centro esta aquela flor, a mãe Que nos atraiu para as suas pétalas. Seguramos as cordas enferrujadas do tempo, Somos os trapezistas ingênuos Que o arco-íris criou para se divertir, Somos os anéis quebrados da sincronia – Macho e fêmea enredados no rio. Pedro Cesarino POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Fotografia Se pudesse agitaria o redemoinho Do pensamento como quem dá a luz A uma ave com penas repletas de desejo. Se pudesse, faria dos tijolos escada Para as vísceras do silêncio E descansa ali nos pés marcados pela subida. Entregaria ao céu os negativos de minha câmera O panorama, a sequência interminável Dos horizontes que se desdobram da espinha Para se acomodarem ali, junto à flor da amplidão. Entregaria o traçado de linhas incertas, O caminho que se abre na rede de luz E confunde meu sopro à tessitura da ventania. Entregaria o plano distorcido do olho, O êxtase multiplicado pelo prisma, A cor volátil do delírio, testemunho trêmulo, O registro incompleto do que imaginei ter visto Por essas terras estranhas. Pedro Cesarino POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Dos estudos de objetos e ver 1. Tão brutal a matéria Ao excurso do olhar Que a impossibilidade De qualquer imagem Pois o adensamento (cores e formas se desfazem) Que sobre o suporte Obstrui por acúmulo 2. A expansão da contextura Na superfície que (sequer hipótese de simulacro) Concreta se amalgama Ainda se acrescenta Na espessura com que A crueza da matéria Reocupa o espaço 3. Nem é sempre que pela medida Um espaço se define Antes o peso da intensidade Com que severa a cor Pode impor-se como massa E ora grave sobretons Se elabora um corpo Que ocupa seu espaço 4. Se os planos se distinguem Pela superposição de recortes Que irregulares compartilham Fragmentos uns dos outros Tal diretriz para medida Ou controle de uma área Avança pela imaginação Se arredores se desvãos 5. A matéria como projeto De dimensão do olhar Quando no espaço Não só uma ordenação Nem frágil descompasso Mas todo um percurso Linhas volumes cálculo Talvez resumo de paisagem. Júlio Castañon Guimarães POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Corpo O corpo, Esta ilusáo, A transparência Onde o tempo se inscreve, A esculpida Relembrança — o não vivido. O corpo, Este completo desfrutar-se, Onda, peixe, sereia, De barbatanas selvagens Como facas. Corpo — o corpo, Território do nunca, Inigualável País do meu espanto. De todos os espantos. (des)encontros, naufrágios, Precipícios. Pássaro-fêmea, carne Colada em moldura, Pele, poro. Myriam Fraga POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Coro dos Sátrapas Palavras ... Palavras ... Palavras ... São grades de cristal, são arabescos, Palavras são marcas desenhadas, Nas paredes da sala São aranhas famintas, com suas patas, Tecendo nas trevas do palácio Astentações do esplendor que se desata. Celebremos a púrpura e seu destino No malefício das noites consteladas De sois extintos e estrelas apagadas. Que volteiem os bailarinos nessa hora, Rasguem-se os véus, desatem-se as volúpias, Que o sangue lave a mesa do banquete E nas entranhas decifre-se: morte e vida. Myriam Fraga POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Esfinge Revesti-me de mistério Por ser frágil, Pois bem sei que decifrar-me É destruir-me. No fundo não me importa O enigma que proponho. Por ser mulher e pássaro E leoa, Tendo forjado em aço Minhas garras, É que se espantam E se apavoram. Não me exalto. Sei que virá o dia das respostas E profetizo-me clara e desarmada. E por saber que a morte É a última chave, Adivinho-me nas vítimas Que estraçalho. Myriam Fraga POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Paraíso As vozes, de novo, as vozes – O chacoalhar do guizo. Esposas entrelaçadas, Virgínias, Eucaristia dada aos porcos, Dentes e membros fendas e cicatrizes. Haja fome! Haja fúria! A madrugada de pernas abertas, Lateja o verde, explode a púrpura: Venham todos de mãos erguidas, Que as uvas já estão maduras. Venham pequenos e grandes, Venham graves e agudos. Será noite quando chegarem E quando quiserem partir, não poderão. Infinitamente, o cativeiro. O reverso do tempo: mil vezes noite. Gritem, escandalizem, Enganem-se uns ao outros. Cantem por medo e sorriam, Lambuzem os dedos de horror. O prazer de matar, o jogo da mentira, O banquete da carne ao vosso dispor. O que existe de belo, quem souber que o diga. Garras e chifres dirão mais e melhor. Amores, torpes amores. Pois que amem até a angústia! Cubram-se de moedas, Esquartejem a música! Seja a felicidade megera Que tudo quer, tudo pode. Procriam as aberrações Que a terra dá, depois come: Magnatas, capitães, Ratos que se dizem homens. Seda, escarlate, marfim, E ouro, muito ouro. Divirtam-se, dissimulem Qualquer resquício de alma. A noite os sodomize, Liberte-os para o ódio. Limites, que limites? O proibido nomeia-se fábula, Flor de farinha, canela, cheiro verde: Desfrutem, devorem, regalem-se! O que resta do cordeiro É pasto dos chacais. As fontes entronam A faca trabalha. Nâo peçam perdão, Nâo se sintam culpados (sempre há de vencer o mais fraco) Aonde forem – e não será longe – Acompanha-os a trindade Da gula, da morte e do orgasmo. Não perguntem pela razão, Não pensem demasiado. De uma antiga doença Desabrocham novas enfermidade. Não seja um membro imperfeito, Um dorso, um rosto bastardo, Mas a própria mente analfabeta, Inteligência degolada. Não chorem. Dói a falta de recato? Pois a dor os recompense Faça-os gemer mais alto. Misturem-se as partes siamesas. Dobre-se o ventre para o lado de fora. O ócio pelo ócio, Fogo nos compêndios da História! Tornou-se outro o que era um E nenhum o que era vário. Perca-se o fio da memória. Mais funda a noite, Mais a fêmea se contorce. Escuridão prostituta, Cruzes empestando as covas. Não há dias que se desenrolem, Só um imenso atoleiro de horas Onde dura o irracional. Crianças contaminadas pelo tédio, Velhos fartos de deboche. Vá subindo a fumaça do riso , O pó do que eram ossos. Toca uma flauta, esta flauta Universal como a treva. E os irmãos se consomem, Ladram e se consomem. Orgia de crinas e patas, O Caos, o estribilho do nojo. No imperativo perder, Arrancar a planta, malbaratar. No imperativo dançar, A dança dos animais, Casos e mãos para trás. Quem jamais destruiu, Jamais destruirá: Os poucos que não vingaram, Aqueles que foram poupados, Sonâmbulos, vegetais. Nunca o mistério, a piedade, Nunca o repouso – só estrondo e mais noite: voragem. Nada oculto no escuro Que já não tenha sido violado. Nada mais que o absurdo, O apetite mórbido, o acaso. Em torno da mesa, Os filhos sem pai Compartilham o fuzil Na milícia geral da orfandade. O avesso e o direito embriagam-se. No corpo de cada um, Seu feroz adversário. Massacres! Gira a roda dos convivas, Gira a cabeça do filósofo. Bocas cheias de desejo, Tortura entre os aliados. Despertos os que têm sono, Limpas as mãos facínoras, Mais ricos os pródigos. Paraíso na terra: As guerras, as feras, o córtex. É o nervo que arrebenta, Qualquer coisa que fermenta, Uma boca e outra boca Nos reparte das sobras. É um tumulto de coxas, De punhos endurecidos, O espasmo, a epidemia, E, ainda assim, não é o bastante. Mel, leite, licor e azeite, O vermelho-visgo, Correm os humores. Pois que derramem, transbordem! Os amantes enlouqueçam, Os embriagados se afoguem. Esganicem como bichos, Pois já não há mais que um balido No lugar de toda a linguagem. Nada: o ermo da palavra. E esta sangria, quando acaba? Perto do fim, mais o fim se dissolve. Não esperem, não implorem. Juntos na cama do altar, gozem! Agora o cálice, a máscara, a roda. As voes, de novo, as vozes – Mariana Ianelli POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Terceira vigília Mulher nua dormindo. O mistério em pétalas. Os labirintos semicerrados, como se deuses movessem a mobília dos sonhos. A cama é uma mulher silenciosa. Gótico barco e páginas de antigos mares na insônia das palavras caladas, âncoras de sombra. Noite entre mulher e vigília. 0 luar salta a janela (uma lagoa) e por uma fresta mínima a ternura sonha pequenos dragões. André Ricardo Aguiar POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Os Argonautas Os mortos com seus sapatos ébrios. Quem os detém? Beberam os licores da perda e andam por corredores com suas certezas de pó, desafagos, suas bíblias da inércia. Parecem dizer algo, anúncio de verme. Às vezes, cismam e por instantes folheiam o vento, habitam uma fotografia, pesam uma lágrima. Não os tivessem tocado, é o batismo geral ou a relva inconcebível voltariam a arquivá-los numa lua de esquecimento. André Ricardo Aguiar POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A tartaruga Tem u quê de pedra Que não se atira. (Eremita em sua caverna Sem idéia de Platão) Aciona sua casa Por controle remoto – quando se pilha Em movimento. Sempre em sua direção Corre o tempo. André Ricardo Aguiar POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Da imagem Trapo de lua Dá para vestir Um poema Se uma imagem Souber o caminho Mais curto Entre a coisa em si E o dizer espantado Susto de iceberg A inaugurar sua ponta. André Ricardo Aguiar POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Afrodite Disse a deusa a sorrir: esta manhã o mar deu-me adereços e vestida de pérolas fui a um reino distante. Cânticos despertaram vides e frutos nasceram, que o sol cultiva nos pomares. Coros adolescentes perseguiam Eros — p coroado de pâmpanos — pois de meus lábios haviam provado , o vinho farto e suave. Liames atando e desatando, ele a beleza ocultava nas angras mais profundas, pois quando emergia — flâmeo! — o murmúrio do mar as praias inundava e a embriaguez vizinha da morte ameaçava os amantes... Dora Ferreira da Silva POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Lavar os olhos na luz aguda secar nos poros a verve nua o suor que se atreve a falar pela pele. Contador Borges POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Na mais imóvel das semelhanças a borboleta e o corpo de cera evitam a chama para encarnar a vida em movimento além da aparência e do alarido funerário (com cabelos postiços) na trama opaca de água, ao mesmo tempo diáfana no adejar de asas dobrando o poente como uma página, e a carne,a seda, uma trajando reluzente metáfora (ouro e negro nas bordas), a outra retirada de um catálogo de ceroplástica, mais aderente possível à matéria a ponto de iludir o tempo exibindo uma têmpera de luxo alheia a toda influência. A cera se move num pacto de vida e de morte, simulando a morte no horror interno e disforme dos órgãos e nervos, e a vida, na pele imantada em ícone liso e contínuo a temer só a incandescência: uma chama de vela a tirar-lhe o fôlego. E assim a beleza foragida se viu despida das partes do que foi em labareda. Contador Borges POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA O que faz entre os dedos o movimento sem receio de vertigem na escura vigília do que veio antes da origem: espelho de estrelas imberbes em meneio de cílios niquelados na forma da leveza sem sobressalto como as cores da cegueira onde toda ausência se faz presença mais que nua: rarefeita ao ser tocada com a língua. Contador Borges POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Ao tocar seu osso, cartilagem noturna do canto, um som rascante (de êxtase?) acalma o insidioso pomo-de-adão dos castrati e o pendor de ouro nos testículos desses anjos de sangue. Quanto mais se afastam do ideal, mais firme aderem ao pentagrama da carne em lua desnudada pelo raio durante a tempestade do corpo, que começa grave e acaba em soprano. Contador Borges POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA A luz oscila na pálpebra pêndulo perfeito sem peso entre sono e silêncio e aquece a ponta nos dedos reincidentes (sem luvas de doença) em meio ao dilúvio trás do segredo beijo incolor já despido de todo carmim que a nudez da palavra decifra quando cobre a página. Contador Borges POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Teu verde Para Nina Rizzi Todas as mulheres são tigres desenhados em teus olhos. * * * Há um vocabulário do verde, inumeráveis ecos do teu verde que se desdobram na noite estrelada: olhos-pés, olhos-mãos, olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada. Cada letra de teu nome tem a sua própria cabeleira, denso alfabeto que incita à iniciação no segredo de teu segredo. Tua sombra segue minha sombra em cada passo mínimo. Claudio Daniel POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Anônimos Há um louco solto na rua. (Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) Um policial pede os seus documentos. (Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) O louco entrega-lhe um tijolo. (Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.) O policial fica furioso porque queria um sapato. (Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.) Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão. (Sobre o que conversam as abelhas?) O louco declara o seu amor pelos incêndios. (Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?) O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas. (Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.) A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato. (Quem conhece um grande romancista da Lituânia?) O cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre. (Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.) Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem início uma pancadaria. (Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.) Claudio Daniel POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Encantação do Tigre o mar; digo: tigre, pupilas de verde fúria; suas tígricas vagas, garras, punhais esfervilhantes em arcadas de espuma, presas aguçadas; o fluir e o refluir de suas águas em ondulação, tigrinoso emblema da fera, cantabile alabarda em jaspe e luzidia prata urdida, nos seduz como selvagem dança sarracena, seus lenços de tépida alfazema escura; dissolvidos em seu puro olhar de algas em si algas, najas, corais em opalino alvoroço musgoso, não mais resistimos, estancados na argêntea areia, e entramos em suas águas de água sob o sol; aí cessamos. Claudio Daniel POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS: POESIA BRASILEIRA, IMAGEM E MEMÓRIA Lição da água I o mar, fêmea possessa. sua fala de suave lâmina abissínia; o ritmo ondulado, que flui em espiral; a precisão especular do teatro aquático; o secreto pugilato que sulca as rochas. II o mar, leoa furiosa, ensina ao poeta sua arte plumária; a dança- escultura das vagas incessantes; a pulsação do poema, seus ciclos menstruais. o mar ensina ao poeta sua arte sem arte. Claudio Daniel
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