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CAPÍTULO 2 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Apresentar as diferenças entre história tradicional e nova história. Examinar o tratamento conferido à imagem na historiografi a. Identifi car as teorias de análise das imagens. 28 Linguagem Visual na Historiografi a 28 29 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 29 Capítulo 2 CONTEXTUALIZAÇÃO Certamente você deve ter uma noção do que é história, mas você já parou para se perguntar como a história é construída? Esta questão é importante para repensarmos a noção que temos desta disciplina. Normalmente ouvimos que a História é uma ciência que estuda o desenvolvimento, a evolução das sociedades humanas, e que tem como objetivo o estudo do passado para a compreensão do presente. Estas afi rmações, no entanto, estão ancoradas em teorias da história do século XIX, de base positivista, que concebe a história como um movimento linear, contínuo e evolutivo. Sob a perspectiva cientifi cista do positivismo não existe margem para a subjetividade, na história, tampouco noutro tipo de fonte, senão o documento escrito. Atualmente, esta noção positivista, que privilegia o documento escrito e concebe a história como uma ciência objetiva, não se sustenta. Hoje a história, ou melhor, a historiografi a tem sido pensada sob as perspectivas do relativismo e do construtivismo. Neste sentido, a história é tratada como um discurso fabricado, que se fundamenta nas questões lançadas pelo historiador, e nas teorias e fontes utilizadas para responder problemas de pesquisa. Assim, quando pensamos a história hoje, devemos considerar as complexas relações que envolvem o trabalho do historiador; isto é: o contexto social e cultural em que ele está inserido. Em síntese, a questão não está mais em entender o que é a história, mas em compreender como as histórias (narrativas historiográfi cas) estão sendo construídas. Conceber a história como texto abre caminho para pensarmos o processo de trabalho do historiador, que se resume na interpretação do passado a partir das fontes coletadas e estudadas por ele. O documento não é mais visto como testemunho fi el da realidade. Ele não fala por si mesmo. É o historiador que constrói uma narrativa verossímil, a partir da confrontação de diferentes documentos. O documento, neste sentido, não é mais o lugar seguro onde a verdade histórica se esconde, mas sim, um indício cultural do passado. A importância de se compreender a história como uma construção e de problematizar os documentos históricos, faz parte da crítica à história tradicional, a qual privilegia a narrativa factual, as personalidades políticas e os documentos ofi ciais. É no contexto da crítica à historiografi a tradicional que situaremos os estudos da nova história e da história cultural, que passam a tratar a imagem como uma fonte de conhecimento. A imagem, na visão da nova história, é um documento como outro qualquer, indício cultural do tempo passado, que desafi a o pesquisador, ou educador, ao trabalho de interpretação. Este trabalho, no entanto, requer decodifi cação, associação e confrontação das imagens com outras fontes. Exige leituras, dedicação e sensibilidade por parte do analista. A questão não está mais em entender o que é a história, mas em compreender como as histórias (narrativas historiográfi cas) estão sendo construídas. A imagem, na visão da nova história, é um documento como outro qualquer, indício cultural do tempo passado, que desafi a o pesquisador, ou educador, ao trabalho de interpretação. 30 Linguagem Visual na Historiografi a 30 Isto torna a leitura de imagem um trabalho extremamente instigante. Veremos, neste capítulo, que existem diferentes enfoques de tratamento da imagem: a iconografi a, que valoriza os detalhes; os estudos da história social da arte, que valorizam as formas de recepção da imagem; as leituras psicanalíticas, que destacam os aspectos inconscientes das imagens; e o estruturalismo, que lê os elementos visuais como um sistema de signifi cados. HISTÓRIA TRADICIONAL E NOVA HISTÓRIA No século XIX, a história ocupava o lugar de honra entre as ciências humanas; não apenas pela erudição dos historiadores, ou pelo fato da história ser uma das mais antigas disciplinas dentre suas “irmãs” (sociologia, antropologia, linguística, fi losofi a etc), mas, sobretudo, pelo fato do texto histórico ter o poder de revelar o passado através de métodos de análise dos documentos. Por outro lado, a história tinha a nobre função de narrar a trajetória política dos Estados Nacionais modernos. A história era, enfi m, o meio legítimo de conhecer o passado. Entre os historiadores cientifi cistas do século XIX que mais se destacaram está o alemão Leopold Von Ranke, que, imbuido do espírito científi co, desejava transformar a história em uma área do conhecimento que mostrasse como realmente se desenrolaram os acontecimentos. Ele, juntamente com o fi lósofo e linguista Wilhelm Von Humboldt, priorizou a história política para conhecer o passado. Segundo Jacques Le Goff, Ranke “empobreceu o pensamento histórico, atribuindo excessiva importância à história política e diplomática” (1996, p. 90). Resumidamente podemos dizer que o historicismo de Humboldt e Ranke pensava a história como uma sucessão de acontecimentos no tempo, e caberia ao historiador o registro desses acontecimentos, a fi m de se conhecer a verdadeira face do passado, ou simplesmente, conhecer como se deram realmente as coisas. Historicismo: 1. “Conjunto de doutrinas fi losófi cas que buscam fazer da história o grande princípio explicativo da conduta, dos valores e de todos os elementos (artes, fi losofi a, religião etc.) da cultura humana.” (HOUAISS, 2002). 31 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 31 Capítulo 2 2. O seu fundamento é o reconhecimento de que os acontecimentos históricos devem ser estudados, não como anteriormente se fazia, como ilustrações da moral e da política, mas como fenômenos históricos. Na prática, manifestou-se pelo aparecimento da história como disciplina universitária independente, no nome e na realidade. Na teoria, expressou-se através de duas proposições: 1) o que aconteceu deve ser explicado em função do momento em que aconteceu; 2) para o explicar existe uma ciência específi ca, usando processos lógicos, a ciência da história. Nenhuma destas proposições era nova, mas nova era a insistência nelas colocada, e que levou a exagerar, em termos doutrinais, as duas proposições: Da primeira, tirou-se a ideia de que fazer história de algo é dar uma explicação sufi ciente, e, os que viam uma ordem lógica na ordem cronológica dos acontecimentos consideraram a ciência histórica capaz de predizer o futuro. (NADEL apud LE GOFF, 1996, p. 88). A partir da defi nição de Nadel, percebemos o historicismo como uma teoria que legitima a história como disciplina científi ca que tem como eixo central a noção de progresso histórico. Leopold von Ranke fazia parte de uma geração infl uenciada pelo positivismo, que combatia a história moralizante e idealista. Ele estava, neste sentido, imbuído da ideia de um fazer historiográfi co científi co, comprometido com um método que valorizava o documento, a fi m de recriar, verdadeiramente, o acontecido. Daí o grande interesse que os historiadores cientifi cistas nutriam pelos documentos escritos ofi ciais, considerados as únicas fontes válidas para recriar os fatos passados. Vejamos o que Edward Carr diz sobre a relação quase sagrada entre os historiadores oitocentistas e seus documentos. O fetichismo dos fatos do século XIX era completado e justifi cado por um fetichismo de documentos. Os documentos eram sacrário do templo dos fatos. O historiador respeitoso aproximava-se deles de cabeça inclinada e deles falava em tom reverente. Se está nos documentos é porqueé verdade. (2006, p. 52-53). Por sua vez, são justamente os documentos ofi ciais (decretos, tratados, correspondências, memorandos, etc) que serviram como principais fontes para a construção da história tradicional da nação. Este tipo de história é legitimada pelo discurso positivista, que enfatiza o progresso dos estados nacionais modernos. A história nacional, que nasceu com o próprio Estado Nacional, prestigiou a narrativa da evolução histórica da nação. Entre 32 Linguagem Visual na Historiografi a 32 os personagens deste tipo de história constam especialmente os povos primitivos (através de suas heranças culturais) e os heróis nacionais – aqueles que teriam dedicado suas próprias vidas à construção e ao desenvolvimento da nação. A história nacional ou tradicional nasceu, assim, no contexto de consolidação do Estado Nacional moderno, quando se buscou enaltecer certos valores políticos e culturais que interessavam às classes sociais dominantes. De modo didático, Peter Burke (1992) caracteriza a história nacional tradicional a partir de seis pontos: 1. Ênfase ao modelo de escrita que privilegia a história política estatal. 2. Escrita baseada na narrativa dos acontecimentos; feita pelo encadeamento de fatos históricos. 3. Visão “de cima”, ou seja, privilegia o “feito dos grandes homens, estadistas, generais, ou ocasionalmente, eclesiásticos” (BURKE, 1992, p.12). 4. Fundamentação em documentos ofi ciais. 5. Valorização das ações dos grandes homens. 6. Objetividade, ou seja, busca apresentar o que realmente aconteceu. Por outro lado, a nova história deve ser compreendida como um conjunto historiográfi co heterogêneo, que tem em comum os paradigmas historiográfi cos que se opõem à história tradicional. Assim, não devemos compreender a nova história como um movimento fi losófi co ou político fechado e articulado, mas sim como uma reação generalizada ao historicismo. Peter Burke mostra que a expressão “nova história” surgiu em 1912, no título do livro do historiador norte- americano James Robinson (The New History), e tinha como objetivo construir uma história utilizando diferentes fontes. (A reação à história rankeana também apareceu na Alemanha, em 1900, com Karl Lamprech; na frança, na década de 1920, com a Escola dos Annales.; na Inglaterra, nos anos 1930, com Lewis Namier). Porém, foi a partir da década de 1970 que houve uma reação mundial contra o modelo de história tradicional. Para cada uma das seis características da história tradicional apontadas anteriormente, Peter Burke apresenta seis contrapontos, que dão a ver a amplitude do movimento historiográfi co que estamos chamando de nova história. Vejamos as principais características da nova história: 1. Coloca ênfase na noção de cultura, entendida como um sistema de representações que age sobre o real. A nova história deve ser compreendida como um conjunto historiográfi co heterogêneo, que tem em comum os paradigmas historiográfi cos que se opõem à história tradicional. 33 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 33 Capítulo 2 2. Está centrada na análise do contexto (estrutura) e não em algum acontecimento isolado; e nas mudanças que se realizam a longo prazo. Está presente a noção de diferentes temporalidades históricas. 3. A história é vista “de baixo”. Problematiza a cultura popular e o cotidiano na história. 4. Utiliza diferentes fontes históricas, como os artefatos visuais e os depoimentos orais. 5. Preocupa-se com os movimentos coletivos. 6. A história é vista como uma construção discursiva. Não pretendo me deter em cada um dos pontos apresentados, mas simplesmente mostrar como podem ser diferentes as vertentes historiográfi cas, que estamos denominando de nova história. Fazem parte da nova história: a história econômica, a história das mentalidades, a micro-história, história das mulheres, história da infância e história do meio ambiente. Para se aprofundar nas características da Nova História indicadas anteriormente, sugiro a leitura do seguinte artigo: BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992. p. 7-37. Esta breve apresentação da nova história nos serve, todavia, para percebermos o cenário geral de difusão do uso das imagens como indícios históricos. A partir do que foi exposto, podemos dizer que as imagens começaram a ser tratadas como fontes históricas no processo de renovação da escrita da história, que inclui o questionamento da própria noção de documento. Contudo, apesar da renovação historiográfi ca ter vindo com força nas décadas de 1970 e 1980, veremos que, desde o começo do século XX, a história cultural propunha novas formas de escrever a história, a partir da leitura de imagens. As imagens começaram a ser tratadas como fontes históricas no processo de renovação da escrita da história, que inclui o questionamento da própria noção de documento. 34 Linguagem Visual na Historiografi a 34 A HISTÓRIA CULTURAL E O ESTUDO DA IMAGEM Uma das obras precursoras da história cultural é “Outono da Idade Média”, do historiador Johan Huizinga (1872-1945). Além de ser um marco para a história cultural, o livro também se apresenta como um dos precursores no tratamento da imagem como fonte histórica. Segundo Peter Burke, “a prosa [do livro] é sensual, atenta a sons, como o dos sinos e tambores, e às imagens visuais” (2005, p. 20). Huizinga utilizou, por exemplo, quadros do pintor holandês Jan van Eyck para compor o clima cultural do período do renascimento. Da mesma maneira, Jakob Burckhardt (1818-1897), antes mesmo de Huizinga, utilizou obras de arte para compor o ambiente cultural renascentista. Em “A cultura do renascimento na Itália” (1860), Burckhardt procurou pensar a sociedade, que inclui as relações políticas, em termos culturais, numa articulação profícua entre arte e cultura. É importante notar que, em ambos os livros, a obra de arte é dessacralizada, ou seja, ela deixa de ser vista em sua individualidade, ou como resultado da genialidade do artista, para ser tratada como um indício cultural do tempo. Aliás, este é um dos grandes méritos dos estudos culturais, que consideram a obra de arte como uma imagem elaborada a partir de sistema de valores socialmente constituídos. Neste sentido, a obra de Burckhardt é uma das precursoras dos estudos culturais da imagem, justamente por considerar as imagens como objetos “através dos quais é possível ler as estruturas de pensamento e representação de uma época”. (BURKE, 2004, p.13). A história cultural teve, assim, decisiva infl uência nos estudos históricos sobre imagem, pois ampliou a noção de fonte histórica ao incorporar a linguagem visual no rol de representações analisadas pelo historiador. Isto equivale a considerar a imagem como indício cultural de um período histórico. O historiador passa a contar, então, com mais um conjunto de fontes para ler o passado. Para tal, as fontes visuais devem ser tratadas com desconfi ança e estranhamento pelo historiador. Elas não devem ser vistas como uma simples ilustração do passado (por mais realistas que sejam), pois a imagem é uma composição, e como tal mescla elementos concretos e imaginários. Ou seja, as representações visuais integram objetos concretos, que estão explícitos, mas também concepções mentais implícitas. Ao leitor das imagens cabe, então, interpretar os diferentes aspectos das imagens, a fi m de tornar compreensíveis ideias (ou ideologia) presentes na composição. Sabemos, no entanto, que as imagens vêm servindo para os mais diferentes usos. Enquanto documentos “ilustrativos”, elas serviram para o estudo da história da vestimenta, das mobílias e dos espaços urbanos. Os cenógrafos, arquitetos e restauradores, por exemplo, utilizam as pinturas e as fotografi as para recompor a forma das fachadas de prédios antigos. Ahistória cultural teve, assim, decisiva infl uência nos estudos históricos sobre imagem, pois ampliou a noção de fonte histórica ao incorporar a linguagem visual no rol de representações analisadas pelo historiador. 35 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 35 Capítulo 2 Neste sentido, a imagem tem simplesmente valor de evidência, por mostrar a aparência verdadeira de determinados objetos que não existem mais. Para este tipo de trabalho a fotografi a é um documento perfeito. Neste caso, o caráter subjetivo da imagem não tem importância, e sim os elementos concretos que aparecem na representação. Considerar a imagem como uma cópia do real é acreditar que ela seja uma janela para o mundo, tal como ele era, porém, como apontamos anteriormente, devemos tomar cuidado com esta concepção e desconfi ar das leituras que consideram a imagem espelhos visuais do passado – quer dizer, refl exo exato do acontecimento. A imagem deve ser considerada, antes de tudo, como resultado de uma composição que, por sua vez, sofreu as infl uências do contexto cultural em que foi gestada. Nem a imagem que pretendeu ser a mais fi el das cópias de uma realidade qualquer jamais o será, assim como acontece com qualquer interpretação historiográfi ca. Há sempre a arbitrariedade, a parcialidade e as escolhas do observador e do historiador, o que garante, sempre, olhares e versões diferentes sobre um mesmo objeto. (PAIVA, 2006, p. 55). O historiador Eduardo França Paiva compara o trabalho do produtor de imagens (seja um artista ou técnico) com o trabalho do historiador. Ambos, o artista e o historiador, não retratam a realidade tal qual ela é, mas sim um fragmento do real, visto sob determinado ponto de vista (que inclui a formação escolar e a experiência de vida). Assim, a pintura, tal qual o texto histórico, não passa de uma construção específi ca, que é resultado de escolhas pessoais, mas também das circunstâncias sócioculturais que cercaram seu autor. Portanto, a relação entre história cultural e imagem não pode ser compreendida sem considerarmos a noção de representação e de imaginário, uma vez que a imagem envolve tanto elementos concretos quanto simbólicos. Neste sentido, a imagem apresenta-se como uma fonte de estudo valiosa para o historiador, pois é um artefato que permite analisar aspectos ideológicos, sociais, econômicos e políticos da época em que foi construída. A relação entre história cultural e imagem não pode ser compreendida sem considerarmos a noção de representação e de imaginário, uma vez que a imagem envolve tanto elementos concretos quanto simbólicos. 36 Linguagem Visual na Historiografi a 36 Atividade de Estudos: A partir daquilo que estudamos nesta seção, responda a seguinte questão: 1) Em que sentido o estudo da imagem contribui para a História Cultural? _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ ICONOGRAFIA: NOTAS E COMENTÁRIOS A imagem importa ao historiador na medida em que é considerada uma fi guração prenhe de memória. Isto é: a imagem é tida como uma representação que incorpora fi guras carregadas de sentidos historicamente construídos. É neste sentido que a iconografi a é um método importante para a interpretação de imagens e compreensão do passado. Iconografi a: “Estudo das representações fi guradas; repertório dessas representações. Estudo descritivo da representação visual de símbolos e imagens, tal como se apresentam nos quadros, gravuras, estampas, medalhas, efígies, retratos, estátuas e monumentos de qualquer espécie, sem levar em conta o valor estético que possam ter”. (HOUAISS, 2002). 37 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 37 Capítulo 2 Ler o passado através dos elementos simbólicos da imagem é um exercício que remonta à década de 1930, quando houve uma reação contra as leituras tradicionais da história da arte. De maneira geral, a história da arte considerava apenas os seus aspectos estéticos, deixando de lado a análise do seu conteúdo. Por outro lado, segundo Peter Burke (2004, p. 44), houve a reação também àqueles que consideravam a pintura uma cópia da realidade. A principal característica da iconografi a é a ideia de leitura de imagem. Isto quer dizer que a imagem, assim como o texto, deve ser interpretada em seus componentes visíveis, como também em seu aspecto subjetivo. Aby Warburg (1866-1929) e Erwin Panofsky (1890-1948) estão entre os principais intelectuais difusores da iconografi a, que tinham como foco de estudo as formas simbólicas nas imagens. Por sua vez, do estudo iconográfi co criado por Warburg, Panofsky criou seu próprio método, que foi publicado no livro: Studies in Iconology (1939). Este método consiste basicamente na leitura da imagem em três etapas: 1ª – pré-iconográfi ca; 2ª – iconográfi ca; 3ª – iconológica. A primeira etapa consiste na descrição e identifi cação dos elementos visíveis em uma imagem; é a mais simples e superfi cial. Na segunda etapa deve-se levar em conta os signifi cados convencionais da imagem, ou seja, o reconhecimento dos elementos como integrantes de determinado evento histórico – para isso o leitor deve ser uma pessoa erudita, deve conhecer os textos clássicos de literatura e história. Por fi m, a iconologia consiste em estudar as características intrínsecas da imagem. “Panofsky insistia na ideia de que imagens são parte de toda uma cultura e não podem ser compreendidas sem um conhecimento daquela cultura”. Assim, “para interpretar a mensagem, é necessário familiarizar-se com os códigos culturais” (BURKE, 2004, p. 46). Portanto, a descrição de uma imagem, segundo Panofsky, nos coloca no nível da análise iconográfi ca da imagem: a etapa inicial de uma leitura imagética. Para o mesmo autor, esta descrição (análise superfi cial ou intuitiva) deve ser seguida por uma análise mais aprofundada, a iconológica, que pretende encontrar a “essência” da imagem ou reconstituir o “espírito de uma época”. Podemos considerar, assim, que a análise simbólica, ou interpretativa, tem como proposta inscrever a imagem em um contexto mais amplo, relacionando-a a outros documentos que tenham sido produzidos no mesmo período. A iconologia, por sua vez, ganhou outros sentidos ao longo do tempo. “Para Gombrich, por exemplo, o termo refere-se à reconstrução de um programa pictórico [...]”. (BURKE, 2004, p.46). Portanto, Gombrich contestou a função única da imagem como refl exo do “espírito da época”, pensando a interpretação da imagem em uma relação íntima com valores subjetivos de quem a analisa. Neste sentido, a leitura de uma imagem depende dos conhecimentos do A análise simbólica, ou interpretativa, tem como proposta inscrever a imagem em um contexto mais amplo, relacionando-a a outros documentos que tenham sido produzidos no mesmo período. 38 Linguagem Visual na Historiografi a 38 intérprete sobre determinado período histórico e da “escola pictórica” a que pertence a imagem. A leitura da imagem resulta tanto da erudição quanto das questões levantadas pelo estudioso. Em outras palavras, a imagem não fala por si, é preciso estudá-la, entendendo as condições específi cas e o contexto histórico em que foi produzida. Segundo o holandês Eddy de Jongh, “iconologia é uma tentativa de explicar representações no seu contexto histórico, em relação aoutros fenômenos culturais” (Ibid). Aproximamos-nos da imagem, enquanto fonte histórica particular, não menos ou mais importante que outro documento escrito. Panofsky e Gombrich, por sua vez, são herdeiros da “Escola de Warburg” que, na década de 1920, dinamizou os debates em torno da interpretação de imagens. A iconografi a (ou o estudo das representações imagéticas do grupo ligado a Aby Warbug) deu um novo status à obra de arte e, por sua vez, à própria noção de imagem, que passou a ser percebida como documento suscetível de uma análise sociocultural. A imagem ultrapassou, assim, a fronteira da história da arte, dos estilos artísticos, e passou a ser “testemunho” de certos ideais e práticas do tempo passado. Warburg chama atenção para os elementos internos da imagem artística. Fala da necessidade de uma “descrição densa” (que se assemelha à descrição que os antropólogos fazem das culturas primitivas) e chama a atenção para a análise dos detalhes em uma pintura. Daí a importância dos elementos que compõem a imagem, pois são potencialmente transmissores de memórias e sensibilidades. Por que memórias? Porque, de acordo com Warburg, cada imagem evoca outras imagens ou representações anteriores. Assim, a imagem – da mesma maneira que um texto – é composta de outras referências, não em forma de palavras, mas de elementos gráfi cos. Segundo Peter Burke, a história cultural das imagens desenvolveu- se a partir dos estudos de Warburg, estudioso que se dedicou à análise das sobrevivências de elementos visuais em determinadas representações pictóricas. “Warburg interessou-se, em particular, pelos elementos da tradição, que chamou de esquemas ou fórmulas, visuais ou verbais, que persistiam com o passar dos séculos, embora seus usos e aplicações variassem”. (BURKE, 2000, p. 239-240). Daí a importância das imagens para a história cultural, uma vez que, através de uma interpretação das mesmas, é possível “a identifi cação de estereótipos, fórmulas, lugares-comuns e temas recorrentes em textos, imagens e apresentações e o estudo de sua transformação, se tornaram parte importante da história cultural [...]”. (Ibid). Se o método iconográfi co de Panofsky é criticado por considerar a existência de uma unidade cultural de uma época – na esteira do pensamento sobre “espírito do tempo” (o Zeitgeist) de Hegel - Warburg, por outro lado, possibilita pensar as 39 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 39 Capítulo 2 ambiguidades das imagens, o que ele percebeu em suas pesquisas sobre o período renascentista. De acordo com Warburg, uma imagem é composta de elementos antigos e novos. A imagem é, pois, uma fonte histórica híbrida, ou seja, ela mescla diferentes elementos simbólicos. O Nascimento da Vênus, de Sandro Botticelli, que foi analisado na tese de doutoramento de Warburg, por exemplo, é composto de símbolos da antiguidade, reelaborados a partir dos problemas específi cos do tempo em que o quadro foi produzido. A iconografi a de Warburg analisa a obra de arte como um verdadeiro testemunho histórico, mais que o resultado de um estilo estético preciso. De maneira geral, este estudioso concebe a imagem como um meio de acesso a ideias e sentimentos de uma época. Portanto, um estudo sobre a iconografi a dá a ver que as imagens não revelam o mundo, muito menos “valem por mil palavras”. Para que uma imagem “diga” algo é necessário que ela passe por um processo de análise, de leitura, em que sejam investigados os meios de produção e o contexto em que foi produzida. A Última Ceia (1495-8), de Leonardo da Vinci, por exemplo, é um quadro que trata de um tema da antiguidade, a partir do olhar humanista do renascimento. Além da simetria e da perspectiva (profundidade e volume), características da pintura renascentista, os personagens comunicam toda sua humanidade através de gestos realistas que denotam emoções. Partindo de uma análise iconográfi ca, podemos dizer que a pintura trata de uma cena da história bíblica, onde estão reunidos Cristo e seus apóstolos, antes da crucifi cação. O aspecto de tensão da Santa Ceia de Leonardo está na relação entre a agitação dos apóstolos e a serenidade de Cristo, após este ter anunciado que havia um traidor entre eles. Figura 2 - A Última Ceia, Leonardo da Vinci Fonte: Disponível em: <http://www.legal.adv.br/img/ shots/ceia.jpg>. Acesso em: 10 jul. 2009. Para que uma imagem “diga” algo é necessário que ela passe por um processo de análise, de leitura, em que sejam investigados os meios de produção e o contexto em que foi produzida. 40 Linguagem Visual na Historiografi a 40 Acompanhe, a seguir, a interpretação da Última Ceia do historiador de arte Ernst Gombrich (1909-2000) que, além de identifi car os personagens da cena (análise iconográfi ca), dá a ver os sentimentos que os envolvem (análise iconológica). Leonardo, como Giotto antes dele, revertera ao texto das Escrituras e se esforçara por visualizar como teria sido a cena quando Cristo disse: “‘Em verdade vos digo que um dentre vós me trairá.’ E eles, muitíssimo contristados, começaram um por um a perguntar-lhe: ‘Porventura sou eu, senhor?’” (Mateus XXVI, 21-2). [...]. São essas interrogações e esses sinais que trazem movimento à cena. Cristo acabou de pronunciar as palavras trágicas, e os que estão a Seu lado recusam horrorizados ao ouvir a revelação. Alguns parecem protestar seu amor a Jesus e sua inocência, outros discutem gravemente a quem o Senhor poderia se referir, outros ainda parecem aguardar uma explicação para o que ele disse. S. Pedro, o mais impetuoso deles, precipita-se para S. João, que se senta à direita de Jesus. Ao segredar algo ao ouvido de S. João, empurra inadvertidamente Judas para diante e ergue os olhos com desconfi ança ou cólera, um contraste dramático com a fi gura do Cristo, calmo e resignado em meio a esse crescente alvoroço. (GOMBRICH, 1999, p.298). Percebemos, nesta leitura, a sensibilidade de Gombrich, aliada a seus conhecimentos de história da arte. Além disso, este texto nos serve de lição: é possível e interessante reunir em um único texto as descrições e as interpretações acerca da imagem. Atividade de Estudos: 1) Apresente cada uma das etapas do método de análise de imagens, propostas por Erwin Panofsky: pré-iconográfi ca; iconográfi ca e iconológica. _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ 41 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 41 Capítulo 2 UMA LEITURA DA PRIMEIRA MISSA NO BRASIL Apresentarei uma análise da tela Primeira missa no Brasil (1861), pintada por Victor Meirelles (1832-1903), para mostrar os aspectos simbólicos envolvidos na leitura da imagem. Este famoso quadro ilustra a primeira missa realizada na colônia portuguesa, na América. A tela é uma das mais conhecidas pinturas brasileiras, em função de sua ampla reprodução em livros didáticos de história. Ela é convencionalmente aceita como uma ilustração do primeiro ritual católico realizado em solo brasileiro, feita a partir de elementos da Carta de Pero Vaz de Caminha (1500). Se a Carta de Caminha é considerada a certidão textual do nascimento do Brasil, a pintura de Meirelles é a certidão visual. Proponho, primeiro, a leitura de trechos da Carta, que descrevem a participação dos nativos em duas missas: a primeira teria ocorrido dia 26 de abril, domingo, e a segunda, dia 1º de maio, sexta-feira. A missa de 26 de abril: Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, poucomais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram [tocaram] corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. A missa de 1º de maio: Disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e ofi ciada por esses já ditos [religiosos e sacerdotes]. Ali estiveram conosco a ela perto de cinqüenta ou sessenta deles [nativos], assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, fi cando assim até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifi co a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros. 42 Linguagem Visual na Historiografi a 42 Alguns deles, por o Sol ser grande [cerca de meio- dia], quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim, entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos. (CAMINHA, 2002, p.115). As missas, pelo que consta na Carta, foram celebradas com muito prazer e devoção. Na primeira, parece que os nativos fi zeram seu próprio ritual; na segunda, eles já começam a imitar o movimento de se ajoelhar, ensaiando os primeiros movimentos de aculturação. As missas tiveram como cenário a praia, e, como vimos, contaram com a presença dos nativos da terra. Contudo, não podemos esquecer que a Carta de Pero Vaz de Caminha foi escrita para o agrado do rei D. Manuel, e por isso, procurou mostrar a inocência e afabilidade do nativo, características que facilitariam a conversão deles aos costumes da civilização, levada pela mão dos colonizadores portugueses. A Carta traz, então, o olhar de um escrivão português que refl ete os interesses colonialistas da Coroa portuguesa: expandir a fé, conquistar territórios e encontrar metais preciosos. A representação visual da missa (o quadro de Meirelles), por sua vez, foi elaborada trezentos e sessenta anos depois, passados exatos trinta e oito anos da independência do Brasil. A representação da Primeira Missa, de Meirelles, foi elaborada em um contexto completamente diferente do contexto que envolveu a redação da Carta de Caminha. Neste sentido, as missas, na Carta, são usadas para a construção da origem mítica do nascimento da nação, que consiste na miscigenação harmoniosa entre brancos e índios. A missa – enquanto ato capital da civilização cristã no novo mundo, foi resgatada da Carta para compor o cenário do primeiro momento de aculturação do nativo. Escreve Eduardo França Paiva: Malgrado a beleza e a refi nada técnica da obra, ela, assim como tantas outras que experimentaram trajetória similar, não são, nem poderiam ser, o retrato de uma realidade ou da forma que ela teria sido verdadeiramente. Mas isso não a faz menos apreciável aos olhos dos historiadores. Ao contrário, trata-se de um registro extremamente rico sobre as intenções ofi ciais de se inventar, de se criar uma identidade histórica para a jovem nação, que se tornou independente em 1822. Era preciso inventar o Brasil e seu passado. (PAIVA, 2006, p. 92). 43 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 43 Capítulo 2 A pintura revela, então, os objetivos da elite na segunda metade do século XIX, que investiu em representações que fundamentariam a cultura nacional através das relações culturais amistosas entre nativos e europeus. “Sob a égide católica, associam-se, numa cena de elevação espiritual, as duas culturas. Criava-se ali o ato de batismo da nação brasileira”. (COLI, 1998, p. 380). Sabemos, no entanto, que o processo de colonização na América portuguesa se deu a ferro e fogo. Os povos nativos foram escravizados ou confi nados em missões jesuíticas. Segundo Boris Fausto, “a chegada dos portugueses representou para os índios uma verdadeira catástrofe. [...]. Os índios que se submeteram ou foram submetidos sofreram a violência cultural, as epidemias e mortes”. (2008, p. 40). Este fato certamente era conhecido no século XIX, porém, a imagem ofi cial que se queria da nação deveria integrar e não dividir os povos e culturas. A tela de Victor Meirelles traz, assim, uma imagem romântica da miscigenação. Segundo Jorge Coli, o quadro Primeira Missa no Brasil “se tornou a verdade visual do episódio narrado na carta” (1998, p. 383). Coli mostra, ainda, que a imagem de Meirelles perpetuou-se no imaginário nacional, quando serviu de modelo para o fi lme ”A descoberta do Brasil” (1937), de Humberto Mauro. Podemos concluir que o quadro inventou defi nitivamente o próprio descobrimento do Brasil e de sua gente. Figura 3 - Reprodução do quadro Primeira Missa no Brasil Fonte: Disponível em: <http://www.moderna.com.br/moderna/didaticos/ei/ aventuradeaprender/datas/images/indio1.jpg>. Acesso em: 09 jul. 2009. A beleza da pintura é inebriante, por isso, é necessário o distanciamento para não sermos seduzidos pela imagem. A fi m de escapar da força sedutora da imagem, Eduardo Paiva chama a atenção para a importância do trabalho do historiador, pois é a partir da pesquisa e do olhar crítico do historiador que é possível compreender melhor a obra. O cenário da missa é a praia, como indica a Carta. Contudo, a praia que aparece no quadro é mais uma representação do litoral criado por Meirelles, do que propriamente uma praia 44 Linguagem Visual na Historiografi a 44 do litoral brasileiro, no ano de 1500. Note que, na extremidade esquerda do quadro, o pintor colocou um coqueiro, que serve de elemento simbólico, para mostrar aos espectadores que a primeira missa se deu em uma praia. Porém, o coqueiro, como assinala Paiva, não é originário do Brasil; ele foi trazido da Índia pelos colonizadores portugueses. O coqueiro não poderia, então, ter sido incluído na paisagem do descobrimento. Desta forma, podemos concluir que a identifi cação do coqueiro com a praia faz parte do imaginário que se tem das praias da Bahia, que, por sua vez, não corresponde à realidade da paisagem do litoral brasileiro no período do descobrimento. OUTRAS TEORIAS DE LEITURA DA IMAGEM A análise iconográfi ca é criticada por seu caráter especulativo e também por seus próprios limites. No primeiro caso, o método iconográfi co é acusado de deixar de lado os aspectos sociais ligados à produção das imagens; no segundo caso, por sua excessiva atenção às alegorias que compõem a imagem. Vale lembrar, no entanto, que a iconografi a nasceu para a análise das pinturas, em particular da arte renascentista. Sabemos que esta abordagem tem seus limites, pois nem todas as imagens trazem personagens ou objetos alegóricos para serem analisados. Estes objetos são comuns nas pinturas de motivos bíblicos ou mitológicos. Sobre o caráter limitado da teoria iconográfi ca temos o exemplo das pinturas de paisagens da natureza. Neste caso, o desafi o lançado ao historiador ou leitor não é decodifi car códigos para compreender a mensagem que a imagem transmite, já que em uma paisagem natural lidamos com a representação de elementos naturais e não com objetos construídos pelo homem. Importa à leitura da paisagem, no entanto, que o analista estabeleça associações entre os elementos naturais (água, rocha, mata etc) representados na imagem e no imaginário historicamente construído sobre os mesmos elementos. Sobreo estudo da análise do imaginário da paisagem, sugiro a leitura do livro: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Em função do caráter limitado da iconografi a, surgiram outras teorias de leitura da imagem. Contudo, consideramos que elas não se contrapõem 45 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 45 Capítulo 2 à análise iconográfi ca, mas servem para enriquecê-la. Ou seja, as teorias somadas nos auxiliam a compreender melhor uma imagem. Por isso, elas não devem ser vistas como aportes metodológicos que, simplesmente, se opõem à iconografi a. Dentre as metodologias de análise da imagem, que não a iconográfi ca, temos o método advindo da semiótica, da psicanálise e da teoria da recepção. Nosso objetivo não é aprofundar cada um destes enfoques teóricos, até porque não caberia nos objetivos deste Caderno, mas apenas apresentar, em linhas gerais, suas principais características. Começarei pela semiótica. A semiótica ou teoria estruturalista de análise leva em conta as conexões entre os elementos que compõem uma imagem. Seu interesse repousa no signifi cado integral da obra, e não em uma interpretação isolada dos elementos que a constituem (como propõe a iconografi a). A imagem é, neste sentido, tratada como um sistema integrado de signos. A semiótica é, em sua origem, um método de estudo do texto, e foi adaptada para a leitura de imagens na década de 1960, por Roland Barthes (1915-1918). Semiótica: Segundo Winfried Nöth, a semiótica é, de maneira geral, “a ciência dos signos e dos processos signifi cativos (semiose) na natureza e na cultura”. (NÖTH, 1995, 17). O que nos interessa aqui, no entanto, é perceber a análise semiótica, que associa as idéias de representação e de estrutura. Esta associação pode ser vista, por exemplo, na antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1829-1902), que buscou estabelecer uma relação entre hábitos e sistemas culturais mais amplos. O próprio estruturalismo (teoria que defi ne os fatos linguísticos a partir das estruturas ou sistemas), segundo Nöth, baseia-se nas noções da semiótica, desenvolvidas por Fernand de Saussure (1857-1913). “O estruturalismo possui uma base semiótica, que se evidencia na preocupação com a ideia de signo, da estrutura e dos sistemas sígnicos”. (NÖTH, 1996, p.111). A análise semiótica, entretanto, se assemelha à iconografi a em sua preocupação com os signos ou indícios presentes em uma imagem. Por exemplo, o gato, em pinturas renascentistas, signifi ca sensualidade, enquanto o cachorro, a fi delidade no casamento. A diferença, entretanto, está no objetivo do estruturalismo, que enfatiza a análise da composição como um todo, incluindo sua forma artística ou sua estética. A semiótica ou teoria estruturalista de análise leva em conta as conexões entre os elementos que compõem uma imagem. Seu interesse repousa no signifi cado integral da obra, e não em uma interpretação isolada dos elementos que a constituem. 46 Linguagem Visual na Historiografi a 46 Concepção estruturalista: Segundo Marilena Chauí, “A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando a eles sentido pela posição e pela função que ocupam no todo. As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma das partes nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas um princípio ordenador, diferenciador e transformado. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido”. (2003, p. 229-30). Assim, na concepção estruturalista, o sistema de signos que compõe uma imagem é visto como “um subsistema de um todo maior. Este todo, descrito pelos linguistas como langue (linguagem), é o repertório a partir do qual os falantes individuais fazem suas escolhas (parole)”. (BURKE, 2004, p. 217). Segundo a visão estruturalista, que tem como base a semiótica, os conteúdos das imagens formam “textos fi gurativos”. Ou seja, a imagem é tratada como discurso em que as fi guras se colocam no lugar das palavras. Cabe então ao leitor interpretar o signifi cado do texto-imagem como um todo e não decodifi car as fi guras isoladamente. Entender a imagem como um todo quer dizer, por exemplo, identifi car seus confl itos internos, as semelhanças e/ ou oposições. A leitura psicanalítica da imagem, por sua vez, dá ênfase às manifestações inconscientes na produção de uma obra. As teorias de Sigmund Freud (1856- 1939), presentes em Interpretação dos Sonhos (1899), servem de referencias para pensarmos esta forma de compreender a imagem. Na leitura psicanalítica os conteúdos das imagens são verdadeiras projeções subjetivas. O enfoque psicanalítico é ao mesmo tempo necessário e impossível. É necessário porque as pessoas de fato projetam suas fantasias inconscientemente nas imagens, mas é impossível justifi car este enfoque em relação ao passado de acordo com critérios acadêmicos normais porque as evidências cruciais foram perdidas. (BURKE, 2004, p. 216). O enfoque da psicanálise é particularmente difícil aos historiadores, já que o interesse do historiador repousa no estudo da sociedade e na cultura, Segundo a visão estruturalista, que tem como base a semiótica, os conteúdos das imagens formam “textos fi gurativos”. Ou seja, a imagem é tratada como discurso em que as fi guras se colocam no lugar das palavras. 47 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 47 Capítulo 2 e não no indivíduo, Por outro lado é extremamente difícil comprovar (por meio da confrontação de fontes textuais ou imagéticas) que certo elemento em uma obra visual tem um sentido preciso. Como afi rmar que determinado objeto em uma pintura é símbolo fálico, que representa o domínio dos valores masculinos sobre os femininos? Entretanto, a análise psicanalítica é importante para pensarmos, por exemplo, as mensagens subliminares presentes nos comerciais de televisão. Neles são vendidos produtos que teriam pretensos poderes mágicos, como determinada sandália, que tem o poder de transformar uma menina em uma mulher. Este é um mundo de imagem e sedução a que devemos estar atentos, enquanto pais, professores e cidadãos. Para discussão sobre o assunto mídia e consumo, sugiro que você assista ao vídeo “Criança, a alma do negócio” (2008). Para isso, basta acessar o seguinte site: h t tp : / /www.a lana .o rg .b r /C r i ancaConsumo/B ib l i o teca . aspx?v=8&pid=40 Por fi m, o terceiro enfoque relaciona-se com a recepção das imagens. Trata-se das análises oriundas da história social da arte. Esta vertente de estudos da arte baseia-se na relação entre obra de arte e suas condições de produção, distribuição e consumo na sociedade. O foco da história social da arte está nas relações entre arte e sociedade: perceber tanto as relações entre artistas e patrocinadores (que incluem as políticas culturais) como também a forma como a obra de arte ou imagem foi ou é recebida pelo público-espectador. Assim, na contramão dos estudos estruturalistas, a preocupação deste terceiro enfoque está no processo de recepção. Ou seja, nas diferentes formas de apropriação social da imagem. “O estudo dos efeitos das imagens na sociedade tomou virtualmente o lugar das análises sobre a infl uência da sociedade na elaboração da imagem”. (BURKE, 2004, p. 226-7). O sujeito está no centro da análise: ele é visto tanto como “refém” das estratégias de mídia, quanto “ator” que ressignifi ca o que lhe é oferecido por esta mesma mídia. A análise psicanalítica é importante para pensarmos, por exemplo, as mensagens subliminares presentes nos comerciais de televisão. 48 Linguagem Visual na Historiografi a 48 Atividade de Estudos: 1) Apresentea principal diferença entre o método iconográfi co e o semiótico de interpretação da imagem. _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Vimos, neste capítulo, o quanto as transformações na historiografi a (em particular as reações nos anos 1960 e 1970 contra a história tradicional) contribuíram para inclusão das imagens nos estudos históricos. E dentre as tendências historiográfi cas contemporâneas, destacamos a dedicação dos trabalhos de história cultural na incorporação da análise da imagem, isto porque a imagem serve como fonte privilegiada para se pensar as representações sociais. Assim, ao invés de tratar a imagem como ilustração, devemos considerá- la uma fonte que complementa o texto, assim como o texto é fonte que completa a imagem. Por meio das imagens, o historiador pode ter acesso a informações que não teria por outro meio. Muitas vezes, uma imagem guarda detalhes em sua composição que não encontramos em textos. Estes mesmos detalhes servem ao historiador como verdadeiras pistas para a compreensão do passado. Este, aliás, é o princípio do método iconográfi co (o qual vimos Ao invés de tratar a imagem como ilustração, devemos considerá-la uma fonte que complementa o texto, assim como o texto é fonte que completa a imagem. 49 HISTORIOGRAFIA E IMAGEM 49 Capítulo 2 anteriormente) que busca, da mesma maneira que um detetive, compor uma cena a partir de indícios. A diferença é que o historiador busca desvendar um contexto, e o detetive, um crime. É importante frisar também que o método de análise da imagem depende, por um lado, das escolhas que o historiador-leitor faz, e por outro, das próprias informações disponíveis sobre a imagem em estudo. Enquanto a iconografi a, a semiótica e a psicanálise dão ênfase à leitura dos conteúdos, a história social da arte e as teorias da recepção abriram o caminho para analisar os aspectos mercadológicos ligados à imagem. Cabe então a você decidir a maneira de ler a imagem, que não exclui a utilização de diferentes enfoques teóricos. REFERÊNCIAS BURKE, Peter. 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