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revista ex-isto no. 1 | p. 1 Revista ex-isto Há pouco mais de dois anos surgiu a ideia de criar uma revista sobre existencialismo, fenomenologia, filosofia e psicologia, relacionando com a história, as artes e a vida. Contudo, para colocá-la em prática, foi preciso tempo e amadurecimento dessa proposta, assim como somar interessados em difundir tais temáticas. Enfim, aqui estamos com o primeiro número da revista ex-isto em formato digital. Bruno Carrasco, novembro de 2020. Conteúdo Não há fatos, apenas interpretações | p. 2 O dia em que procurei um terapeuta existencial | p. 5 Existencialismo: doutrina de ação | p. 7 Essência, existência, gênero | p. 11 Um “demônio” trágico | p. 15 A era da estupidez, George Christian | p. 17 Cotidiano, Guto Nunes | p. 18 Livro: O ser e o nada | p. 19 Filme: A primeira noite de tranquilidade | p. 20 O que é o esperanto? | p. 21 Fundamentos da psicoterapia fenomenológico existencial | p. 22 O que é 'ex-isto'? | p. 34 _____________________________________________ Imagem da capa: Lago antes do nascer do sol, Ferdinand Hodler, 1918. _________________________________________________ Carrasco, Bruno Barbedo, 1982-, Revista ex-isto: existencialismo, filosofia, psicologia e artes / Bruno Carrasco (organizador). no. 1. Pouso Alegre, MG: ex-isto, 2020. _________________________________________________ Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional. nov.2020 | ex-isto.com https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 2 Filosofia Não há fatos, apenas interpretações O que Nietzsche quis dizer com "Não há fatos, apenas interpretações"? Muitos são aqueles que criticam essa sentença, defendendo os fatos como inquestionáveis, criticando e classificando esta ideia como absurda e sem sentido, enquanto outros a enaltecem enquanto característica da filosofia pós-moderna. (Friedrich Nietzsche) Em ambos os casos, a própria frase gera diferentes interpretações e posicionamentos, portanto podemos começar seu entendimento partindo dela mesma, do modo como ela é interpretada, pois essa mesma citação não é um fato, que possui um entendimento igual para todos, mas sim entendida por meio de diversas interpretações. Para entendê-la, penso ser importante conhecer um pouco a respeito da filosofia nietzschiana, em especial o modo como esse pensador entende o conhecimento e a verdade. Para Nietzsche, a verdade e o conhecimento não correspondem a algo único, acabado ou absoluto, mas sim como elementos determinados por interesses e perspectivas distintas. Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche considera sempre determinado por certa perspectiva, seja individual, seja sócio culturalmente determinada. (Oswaldo Giacoia, em 'Nietzsche', 2000) Granier (2009) apresenta como características da filosofia nietzschiana o perspectivismo e o pluralismo. Nesse sentido, um fato nunca é entendido como algo independente da perspectiva de quem o observa, ou seja, os fatos são sempre observados e interpretados por um viés e por valores específicos. Deste modo, coexistem diferentes interpretações e pontos de vista sobre um mesmo fato. De acordo com Giacoia (2006), o perspectivismo entende que todo conhecimento depende sempre de condicionamentos subjetivos, históricos, sociais, econômicos, culturais e psicológicos, que determinam a valoração e implicam uma perspectiva específica, de nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 3 modo que não há conhecimento absoluto, neutro ou objetivo. O pluralismo corresponde às tendências filosóficas que constatam a coexistência de variados princípios que constituem as coisas e a realidade, tendendo assim a acolher os diferentes pontos de vista, distintas formas de valoração, experiências culturais, convicções ou visões de mundo. O pluralismo Nietzschiano é uma determinação primordial da realidade, (...). Não existe conhecimento a não ser interpretativo, e não existe interpretação a não ser no plural. (Jean Granier, em 'Nietzsche', 2009) Harari (2015) comenta que até a década de 1940 não havia um crime de "estupro da esposa", pois a mulher era entendida como um "objeto" que pertencia ao homem: ao pai, ao irmão ou ao marido. Seu "uso" era um direito desses homens. Hoje entendemos essa antiga prática como absurda e abusiva, portanto o entendimento sobre as relações sexuais e o respeito ao corpo se transformou de acordo com a época e contexto. Agora, analisemos outra frase de Nietzsche: "não há fatos, apenas interpretações". Ele não está proferindo uma verdade absoluta com essa frase, pois não é essa a intenção de sua filosofia. Além disso, podemos aplicar essa sentença a ela mesma, de modo que a própria frase se apresenta como uma interpretação, e não como uma verdade. Em sua frase, o próprio filósofo se coloca neste sentido, ou seja, ele não apresenta a sua filosofia como uma verdade absoluta, mas como uma possibilidade, um caminho. Examinemos, então, essa frase contextualizada em seu fragmento póstumo: Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações. (Friedrich Nietzsche, KSA XII, 7 [60]) Positivismo é uma tendência de filosofia que se mantêm apenas nos fatos enquanto observáveis e mensuráveis. Mas, para Nietzsche, um fato nunca é observado apenas enquanto fato, por ser sempre interpretado e valorado. Não é possível entender as coisas "em si". Enquanto o positivismo se detêm aos fatos, o filósofo vai declarar que o entendimento de um fato é resultante de uma interpretação. Seu entendimento apresenta que os fatos são sempre tomados por uma perspectiva específica, e esse entendimento propõe um inacabamento à filosofia, pois todo entendimento e nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 4 interpretação se dá, inevitavelmente, dependendo de um momento histórico, de condições, interesses, situações e circunstâncias específicas, tal como comenta em 'Humano, demasiado humano': Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos (...) Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser (...) tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. (Nietzsche em 'Humano, demasiado humano',aforismo 2) O conhecimento e a verdade não correspondem a algo dado, mas criado, inventado e recheado de interpretações. Apesar de conhecermos o mundo de um modo, ele pode ser sempre interpretado de outro modo, pois não há um sentido por detrás das coisas, mas inúmeros sentidos e perspectivas possíveis. Como crítico da metafísica, Nietzsche entende que o conhecimento e a verdade não correspondem a algo dado, a um fato. A verdade, para o filósofo, é algo criado, inventado e recheado de interpretações. O mundo e as coisas podem sempre ser interpretados de outro modo, pois não há um sentido por detrás das coisas, mas inúmeros sentidos e perspectivas possíveis. Nosso conhecimento de mundo está sempre relacionado aos nossos impulsos e intenções, por isso mesmo Nietzsche coloca em questão a vontade de verdade, entendendo que interpretamos o mundo a partir de nossos impulsos e necessidades diversas, onde cada impulso opera com um desejo de domínio, buscando impor sua perspectiva como norma sobre os outros, onde não há verdades absolutas. Para ele [Nietzsche], o conhecimento não passa de uma interpretação, de uma atribuição de sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Ora, o conferir sentidos é, também, o conferir valores, ou seja, os sentidos são atribuídos a partir de uma determinada escala de valores que se quer promover. (Aranha; Martins, em 'Filosofando', 1993) Referências: ARANHA; MARTINS. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea. São Paulo: Publifolha, 2006. GRANIER, Jean. Nietzsche. Porto Alegre: L&PM, 2009. HARARI, Yuval. Sapiens - uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Companhia das Letras, 2005. Por Bruno Carrasco, terapeuta dos afetos, estudioso de filosofia e psicologia, em favor da ampliação de possibilidades de escolhas e do cuidado de si. www.fb.com/brunodevir www.instagram.com/brunodevir nov.2020 | ex-isto.com http://www.fb.com/brunodevir http://www.instagram.com/brunodevir http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 5 Psicologia O dia em que procurei um terapeuta existencial Aconteceu quando eu ainda era um estudante de psicologia, que como outros passou boa parte da graduação pensando não precisar da tão falada psicoterapia, mas com a realidade dos atendimentos chegando tão rápido, decidi ir e falar de uma ou outra coisa que me incomodava, “bobagem sabe”, “coisa do dia a dia”, “coisas que todo mundo vive”. Então foi assim, escolhi um profissional que já conhecia, sabia ser alguém sério, marquei a sessão e fui, chegando lá não sabia muito bem o que dizer, na sala de espera já me perguntava se realmente tinha sido uma boa ideia, por que afinal “eu não precisava, era só pela faculdade mesmo”. Deu o horário, o terapeuta me acompanhou até o consultório, eu escolhi uma poltrona e me sentei, e aí, a partir desse momento comecei uma das melhores experiências da minha vida. Conversei por uma hora com outra pessoa que realmente me ouviu, que estava atento a cada palavra, que demonstrou profundo interesse por cada banalidade ou “besteira” que eu contava e que fui percebendo não ser tão banal assim, e que nem era tanta “besteira”, que ali haviam coisas importantes que precisavam sair de dentro do meu imaginário, que precisavam ser ditas em voz alta, não para o psicólogo, mas para mim mesmo. Ao contrário do que eu esperava, não houveram muitas perguntas, mesmo estudando psicologia, eu ainda carregava o estereótipo das mídias de que o terapeuta vai te aplicar “zilhões” de perguntas, de que ele iria querer invadir meus mais profundos segredos e que de alguma forma poderia até mesmo saber se eu estivesse mentindo em algum momento, mas não as poucas perguntas que vieram foram simples, diretas e cirúrgicas, e talvez nem fossem bem perguntas, era o famoso “fale mais sobre isso” ou “como é isso pra você”, mas foi tão bem aplicado, que me levava a pensar nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 6 em respostas e relacionar vivências e sentimentos que eu nunca havia considerado, que talvez nunca tivesse de alguma forma relacionado. Logo nessa primeira sessão, passei a compreender que força e coragem frente a vida não tinham nada a ver com aguentar tudo calado, ou suportar a dor sem demonstrar, mas sim tem relação com compreender, ter a real bravura de encarar-se, de sentir de verdade e saber o motivo do que se sente, de avaliar as escolhas, boas e ruins e lidar de verdade com a responsabilidade, e não com viver a famosa má-fé de “está tudo bem”, logo de cara aprendi a importância que meus sentimentos e emoções tinham e quando eles precisavam ser demonstrados e expostos, assim como passei a pensar que haviam momentos que eram só meus, e tudo bem. Passei a me aceitar melhor, fisicamente e emocionalmente, e a não esperar tanto o julgamento dos demais sobre a vida, mas sim ter a minha percepção e criar consciência desta. Quando a sessão acabou, eu saí do prédio e senti algo inédito, uma profunda leveza, um alívio enorme, como se existisse um peso invisível sob meus ombros que tinha finalmente sido aliviado. O que quero dizer aqui é que com um terapeuta existencial, encontrei empatia e acolhimento, encontrei realmente um espaço meu que não simplesmente me ligou a uma pessoa que tinha técnicas de psicologia para aplicar em mim, mas que me colocou realmente em contato comigo mesmo. Deixo este relato, pois tenho a esperança de que por aí tem uma outra pessoa nesse ponto crítico de ir ou não a terapia, e espero que essa vivência possa auxiliar na sua escolha. Por Patricio Lauro, psicólogo existencial, professor, responsável pelo podcast ‘Sessão Brainstorming’, amante da filosofia, espírito livre. www.fb.com/patriciopsi www.instagram.com/patriciolaurom www.youtube.com/sessaobrainstorming Ser-com: um casal de psicólogos falando sobre psicologia, relações e a vida. www.instagram.com/sercompsi nov.2020 | ex-isto.com https://www.facebook.com/patriciopsi/ https://www.instagram.com/patriciolaurom/ https://www.youtube.com/sessaobrainstorming https://www.instagram.com/sercompsi/ http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 7 Existencialismo Existencialismo: doutrinade ação Como estudante de Psicologia, buscava uma vertente que viesse de encontro com minhas ideias e percepções de indivíduo e de mundo para o atendimento clínico futuro. Quando, brevemente, tive contato com o conceito de que “o homem é o único responsável por seu caminho” e li, pela primeira vez, Jean Paul Sartre sentenciar que “não importa o que a vida fez de ti, e sim o que você faz com o que a vida fez de você”, percebi que havia encontrado algo que, finalmente, fazia sentido. Era o Existencialismo. A escola ou doutrina existencialista surge entre os séculos XIX e XX na Europa e tem entre seus principais expoentes Søren Kierkegaard, Martin Heidegger e Jean Paul Sartre. Cada qual a sua maneira, esses pensadores refletem acerca de temas comuns, tais como liberdade, escolha, responsabilidade, angústia e finitude. E colocam o homem como o centro de sua experiência de vida, em outras palavras, como o autor de seu próprio destino. “A existência precede a essência” Contrariando a ideia cartesiana que separa o corpo e a mente, para os filósofos do Existencialismo, corpo e mente são indissociáveis. Além disso, estudiosos existencialistas colocam que, antes de nascer, o homem é “nada” e, somente a partir do momento em que se coloca no mundo, em contato com outros homens e na ocasião de suas primeiras escolhas, é que esse homem se torna um indivíduo capaz de construir sua essência (valores, ideais, projetos). O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência (SARTRE, p. 10, 2014). Melhor explicando, a essência do homem se dá a partir de seu nascimento e das escolhas que faz ao longo de seu projeto de vida, até a morte. Essa essência, portanto, não vem pronta, é mutável e se constitui ao longo da existência/experiência de cada indivíduo, em conformidade com suas escolhas. Ainda de acordo com Sartre em seu manifesto em defesa do Existencialismo – O Existencialismo é um Humanismo – “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam” (p. 10, 2014). nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 8 Liberdade x responsabilidade O ser é livre para escolher o seu caminho. Suas escolhas são realizadas a todo momento e, ainda que o indivíduo imagine “não escolher”, estará realizando a escolha de “se levar pela multidão”, deixar que outros escolham para si. Contudo, essa liberdade acarreta sempre a responsabilidade pelos resultados – positivos ou negativos – de cada uma dessas escolhas. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é e de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens (SARTRE, p. 11, 2014). O sujeito pode, por exemplo, escolher deixar um emprego de prestígio e com bom salário por não suportar as regras e a rotina do dia a dia. Porém, terá de lidar com as consequências de ficar sem o dinheiro, de precisar buscar um novo emprego, da frustração da família com sua decisão etc. Ou ele pode, de outra forma, continuar nesse emprego que não lhe traz felicidade, mas que paga as contas, traz alegria para a família e prestígio social. Seja qual for a decisão, o sujeito sempre terá de fazer escolhas na vida, das mais simples às mais complexas. E se responsabilizar por cada uma delas, sabendo que as consequências refletem não apenas em sua vida, mas em toda a sociedade. Ainda de acordo com Jean-Paul Sartre, Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira (p. 12, 2014). Angústia e má-fé A responsabilidade por cada escolha feita é imensa e, como vimos, não é possível deixar de escolher, a partir do momento em que o homem nasce no mundo, até o momento em que deixa de existir. O sentimento que acompanha essas escolhas é a angústia. Angústia, desamparo, desespero são termos bastante presentes nos estudos do Existencialismo. Pois não é possível estar no mundo escolhendo a si mesmo e aos outros homens sem deparar com esses afetos. Para Sartre, “o homem é angústia” (p. 13, 2014). E para compreender a nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 9 angústia na concepção existencialista, o pensador propõe o seguinte: O homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que estas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombrose respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma espécie de má fé (p. 14, 2014). Diferentemente da ideia do senso-comum, para o pensamento existencialista a má-fé acontece quando um homem “mente para si mesmo”, não reconhecendo sua liberdade de fazer escolhas e se autodeterminar. Tentando mascarar sua angústia por ter de escolher a todo momento, o indivíduo abre mão de sua autenticidade, de uma vida autêntica, passando a viver escolhas de outros – vivendo de maneira inautêntica, fingindo crer que as escolhas já estão postas, sendo impossível, assim, de serem transformadas. O indivíduo que se submete às regras e normas sociais, sem questioná-las ou mesmo sem acreditar no que vive; aquele Homem que mente para si mesmo, seria o indivíduo que vive na má-fé existencialista. Cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. (...) Veremos que esse tipo de angústia – a que o existencialismo descreve – se explica também por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha. Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação (SARTRE, p. 14-16, 2014). “Doutrina de ação” Posso finalizar o texto com a afirmação sartreana de que, acima de tudo, o Existencialismo é uma “doutrina de ação” (p. 48, 2014). Pois se trata de colocar o sujeito como centro do seu universo, um “universo humano” ou “universo da subjetividade humana” (p. 46, 2014), em que a relação dialética de ser-no-mundo (in Ser e Tempo, HEIDEGGER, 1927), em que o homem existe, nasce no mundo e, só depois, constrói sua subjetividade, sua essência, por meio de escolhas que transformam não apenas a si, mas a todos em determinado local, determinada época e contexto histórico, gera responsabilidade e uma angústia propulsora de ações e mudanças significativas tanto individualmente, como coletivamente. Por perseguir “objetivos transcendentes é que ele (o homem) nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 10 pode existir; sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro dessa superação” (SARTRE, p. 47, 2014). Ainda sobre o caráter humanista do Existencialismo, que coloca o Homem como único legislador de si: ...recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação, determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente como ser humano (p. 47, 2014). A transcendência do homem existencialista reside no seu esforço de superação de vida – nas escolhas ininterruptas objetivando romper barreiras, explorar possibilidades para alcançar sua subjetividade mais autêntica, alterando a si próprio, ao outro e à sociedade. Referências: REYNOLDS, J. Existencialismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Série Pensamento Moderno). SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. 4a ed. São Paulo: Vozes, 2014. Jean-Paul Sartre (1905-1980) Por Luana Muñoz de Oliveira Orlandi, jornalista e estudante de psicologia. E-mail: luana_orlandi@uol.com.br nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 11 Gênero Essência, existência, gênero Aristóteles defendia que compreender a verdadeira causa de um evento era intuir sua essência, especificidade e necessidade. Outro filósofo que corroborou com as idéias de Aristóteles foi o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716). Para ele, o mundo foi criado para um determinado fim. Tudo o que existe tem uma causa final que define o seu propósito e a sua existência. Nada acontece sem uma razão profunda suficiente. Agir para um fim e, em relação a este, avaliar os próprios meios é típico da natureza humana. Conforme a hipótese finalista, a natureza também seria movida por análogo critério de intencionalidade. O cristianismo fez do finalismo sinônimo de providência divina. Influenciada pelo pensamento essencialista e finalista, as questões de gênero foram sendo construídas pelas normas religiosas, médicas, políticas e jurídicas. Portanto, o raciocínio estabelecido foi o seguinte: aquele que é definido como homem biológico foi feito com um pênis. Depois foi dotado de uma “essência masculina”. Sua finalidade é buscar uma mulher biológica que foi feita com uma vagina e dotada de uma “essência feminina”. A partir desse encontro, os dois estabelecerão uma relação complementar e serão os responsáveis pela perpetuação da espécie humana (Abbagnano, 2007; Chauí, 2003; Nicola, 2005 apud Antunes, 2017). Além de garantirem a continuidade da vida, estarão cumprindo com as normas religiosas e mandamentos sociais estabelecidos. Aristóteles ainda dizia que tudo é composto de uma substância, o termo significa literalmente o que está por baixo de. Não possui uma existência acidental e eventual. Ela existe para si. Tem vida própria e goza de determinadas propriedades possuindo apenas uma essência. Substância e essência coincidem. Nesse caso podemos pensar na “essência masculina” e na “essência feminina”. Essas, por sua vez, são compostas de comportamentos normatizados e específicos para cada gênero em questão. Tal forma de raciocinar ficou conhecida na filosofia como essencialismo. As essências são produzidas através de respostas dadas à seguinte pergunta: o que é isto ou aquilo? Quando se pergunta, por exemplo, o que é o gênero, a mulher, o homem, o idoso ou a travesti, está se perguntando pela definição desses entes. Para Aristóteles pode-se descrever a essência como aquilo que permanece e se conserva imutável, apesar da mutação aparente. Definir a essência da vida é mais difícildo que definir a essência de um triângulo, por exemplo. Em oposição ao essencialismo, há outra corrente na filosofia denominada de existencialismo. nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 12 Essa linha de pensamento diz que o ser humano não é um conjunto de teorias. Há uma preocupação com o sentido ou o objetivo das vidas humanas, mais que com verdades científicas ou metafísicas sobre o universo. Assim, o existencialismo foi influenciado pela fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl (1859- 1938). Tal pensamento dizia que a experiência interior ou subjetiva é considerada mais importante do que a verdade “objetiva”. O existencialismo diz que o homem não foi planejado por alguém para uma finalidade, como os objetos que o próprio homem cria. O homem se faz em sua própria existência. Não havendo tal essência, todos são iguais e igualmente livres para se fazerem em relação a determinado contexto. Afirma o primado da existência sobre a essência. Não há afirmações gerais e verdadeiras sobre o que os homens devem ser. Um de seus principais representantes é o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) que leva esse indeterminismo às suas mais radicais consequências. Para Aristóteles, e muitos outros filósofos, a essência de ser humano era ser racional. Mas para Sartre, a pessoa deve produzir sua própria essência. A existência precede a essência. Como seres conscientes, estamos sempre querendo preencher o “vir a ser” que na realidade é a verdadeira “essência” do nosso ser consciente. Queremos nos transformar em coisas em vez de permanecer perpetuamente num estado em que as possibilidades estão sempre irrealizadas. Para Sartre só nos tornamos algo acabado quando morremos. O homem passa toda sua existência em um processo de devir. Estamos sempre abertos às novas possibilidades de reinvenção partindo de um determinado contexto existencial possível. Sartre chamou isso de facticidade. Ela diz respeito às resistências e objetos que a liberdade necessariamente se defronta quando cria nova situação. Como exemplo de facticidade, podemos pensar no sexo biológico, família, país, cidade, cultura, época e condição socioeconômica que nascemos. As condições impostas pela facticidade conjugadas ao significado dado pela liberdade se combinam para criar uma nova situação. Sartre defende que não importa o que foi feito do indivíduo, e sim o que o indivíduo faz com aquilo que foi feito dele. A resistência é intrínseca à liberdade e ao humano. Travestis nasceram biologicamente homens. Podemos pensar que esse fato remete à facticidade ou àquilo que foi feito delas. Alteram seus corpos com signos considerados culturalmente próprios do feminino. Esse fato remete à liberdade ou ao que fazem com aquilo que foi feito delas. No entender de Sartre estamos condenados à liberdade. Cada ato contribui para definir como nos apresentamos ao mundo. Em qualquer momento podemos começar a agir de modo diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 13 uma possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha. Temos o poder de nos transformar indefinidamente, tendo sempre como ponto de partida, nossa facticidade. Não há nenhuma “essência” determinada que oriente a priori o comportamento de ninguém. Porém, há o que Sartre chama “projeto original”. Como uma pessoa é uma unidade, e não apenas um amontoado de desejos ou hábitos sem relação, deve haver para cada uma delas uma escolha fundamental por um papel ou script de vida, o qual dá o significado de qualquer aspecto específico de seu comportamento. Essa escolha nem sempre acontece de forma consciente. Saber sobre o “projeto original” de alguém demanda cuidadosa análise de sua trajetória existencial. Sartre acreditava que não há nenhum deus e, portanto, não há qualquer plano divino que determine o que deve acontecer. Não há um sentido ou propósito último inerente à vida humana. Logo ela é absurda. Isto significa que o indivíduo foi jogado de fato na existência sem nenhuma razão real para ser. Simplesmente descobrimos que existimos e temos então que decidir o que fazer de nós mesmos. O homem não é mais do que aquilo que ele faz de si mesmo. Se não há nenhum deus, não há nenhum padrão objetivo de valores. Consequentemente, devemos estabelecer ou inventar, a partir da liberdade e facticidade nossos próprios valores particulares. Tal é o primeiro princípio do existencialismo ateu de Sartre. Sem diretrizes absolutas, nós devemos sofrer a agonia de nossa tomada de decisão e a angústia de suas consequências. A angústia é, então, a consciência da própria liberdade e a consciência da imprevisibilidade última do nosso comportamento. Sartre define como “má fé” a tentativa de fugir da angústia fingindo que não somos livres. Tentamos nos convencer que as nossas atitudes e ações são determinadas pela nossa personalidade, horóscopo, situação ou por qualquer outra coisa fora de nós mesmos. Segundo Sartre, nenhum motivo ou resolução passada determina o que fazemos agora. Cada momento requer uma escolha nova ou renovada. Mesmo que não fizermos nada, uma escolha já está sendo realizada: o não agir. Negar a liberdade é uma tomada de posição covarde, a fim de fugir da angústia da escolha, e achar o repouso e a segurança na confortável ilusão de ser uma essência acabada. Portanto, o existencialismo se contrapõe ao essencialismo, à medida que defende que não somos determinados. Para essa corrente filosófica, podemos nos reinventar a cada momento. Inicialmente, as ideias essencialistas se tornaram mais expressivas que as ideias existencialistas (Perdigão, 1995; Sartre, 2005 apud Antunes, 2017). Portanto, as primeiras influenciaram mais as ciências biológicas do que as ciências humanas. Logo, para as ciências médicas e biológicas, assim como todos os entes, homens e mulheres nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 14 também possuem uma essência e finalidade que serão manifestadas ao longo da vida. Os estudos queer se propõem a compreender as práticas sociais que organizam a sociedade como um todo através da “sexualização”, “heterossexualização”, “homossexualização” de corpos desejos, atos, identidades, relações sociais, conhecimentos,cultura e instituições sociais. Interrogação dos processos sociais normatizadores que criam classificações gerando a ilusão de que existem sujeitos estáveis, identidades naturais e comportamentos regulares (Seidman apud Miskolci, 2009 apud Antunes, 2017). Para Miskolci (2009) apud Antunes, (2017), a matriz essencializadora e hierarquizadora criada pela sociedade seria formada pela conexão entre etnia e sexualidade. Nela há um nó que evidencia o mesmo processo normatizador que acaba criando seres considerados mais humanos e menos humanos (seres abjetos). Os seres humanos só se tornam viáveis através de categorias socialmente reconhecidas. Portanto, segundo tal matriz essencializadora, travestis idosas, são consideradas abjetas e invisíveis, justamente por não corresponderem a nenhuma categoria considerada viável e às normas estipuladas. A teoria queer desafia a sociologia a não estudar mais aqueles que rompem as normas, nem os processos sociais que os criaram como desviantes. Ao invés disso, insiste em focar nos processos normatizadores marcados pela produção simultânea do hegemônico e do subalterno. Tais estudos se preocupam em criticar os processos normatizadores. Portanto, segundo Pelúcio (2009) apud Antunes, (2017) os estudos queer, procuram desvelar mecanismos de naturalização e essencialização dos termos e relações por eles significados. Referência Bibliográfica: ANTUNES, P. P. S. Homofobia internalizada: o preconceito do homossexual contra si mesmo. São Paulo: Annablume, 2017. Disponível em PDF: https://tede2.pucsp.br/browse?type=author& value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sa mmarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gks WiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI Por Pedro Sammarco, psicólogo clínico graduado pelo Mackenzie, com formação em Gestalt-Terapia pelo Sedes Sapientiae, especialização em Sexualidade Humana pela USP, mestrado em Gerontologia e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. É autor dos livros "Travestis envelhecem" e "Homofobia internalizada: o preconceito do homossexual contra si mesmo", publicados pela editora Annablume. www.instagram.com/pedrosammarco www.fb.com/pedrosammarcopsicologo nov.2020 | ex-isto.com https://tede2.pucsp.br/browse?type=author&value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sammarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gksWiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI https://tede2.pucsp.br/browse?type=author&value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sammarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gksWiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI https://tede2.pucsp.br/browse?type=author&value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sammarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gksWiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI https://tede2.pucsp.br/browse?type=author&value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sammarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gksWiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI https://www.instagram.com/pedrosammarco/ https://www.facebook.com/pedrosammarcopsicologo http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 15 Literatura Um “demônio” trágico A literatura russa nos legou grandes escritores, dentre tantos deles Fiódor Dostoiéviski (1821-1881) se destaca como um dos mais densos filosoficamente e psicologicamente. Em sua obra “Os demônios” encontram-se diversos personagens, um deles me recordou o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), o personagem Aleksiei Kiríllov incorpora o apolíneo e o dionisíaco da filosofia de Nietzsche e nos remonta a uma tragédia grega antiga do período pré-socrático. Fiódor Dostoiévski O personagem de Kiríllov é belo porque trágico, trágico à la Sófocles (497-405 a.C.). Kiríllov é um personagem febril, que se consome em seus pensamentos, num raciocínio constante sobre suas ideias que o levará a um destino trágico. Kiríllov quer provar que Deus morreu! Grande missão este personagem se impõe! Mas como, como provar a morte de Deus? Em seu estado febril Kiríllov decide que está disposto a levar às últimas consequências para tentar provar a inexistência desse “ser”, deus. Kiríllov raciocina: “...se crê, crê que não crê. Mas se não crê, então crê que não crê.” Não há saída, para Kiŕillov é impossível deixar de acreditar em algo, mesmo não crendo em nada se crê sempre em algo, constata. A “salvação” para seus dilemas, e seu trunfo enquanto herói, é se matar por um ideal, matar-se em defesa do Ateísmo, que ele diz ninguém ainda o ter feito, ninguém se matou em defesa da “não-crença” e ele seria o primeiro! Grande constatação! Matando a si ele demonstra a todos que quem tem o poder sobre a vida, é ele, e não Deus. Kiríllov almeja a independência de sua existência, sem submissão a nada transcendente. nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 16 Esse “herói trágico moderno” - assim como nas tragédias gregas antigas - vence todas as circunstâncias colocadas pela sua razão pela tragicidade de seu ato, o suicídio. Seu ato é dionisíaco, pois é a desintegração do “eu”, um somar com a natureza, e também apolíneo por ser um ato individual (principium individuationis) mesmo que para dar término da própria vida culminando numa tragédia. Como afirma Roberto Machado em seu livro Nietzsche e a verdade: Para o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. (pág.38) Kiríllov vence, por matar a si mesmo em defesa de uma ideia, um herói trágico que num ato de autoconsciência encontra uma forma de anunciar ao mundo que não é um deus o mantenedor da vida, do mundo, o homem tem poder sobre si mesmo de dar cabo à sua vida justificado pela “razão”, e nisso encontra sua consolação. Eis a estranha consolação que proporciona a tragédia: a certeza de que existe um prazer superior a que acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da consciência; pela destruição dos valores apolíneos. (pág. 40 – Roberto Machado em Nietzsche e a verdade). Fica aqui o convite à leitura desta obra literária excepcional. Lembrando que as melhores traduções de Dostoiévski no Brasil são da editora 34, em especial dos tradutores Boris Shnaiderman e Paulo Bezerra. Por João Marcos, proprietário do Sebo São Darwin, tatuador, interessado em literatura, filosofia e história. Sebo São Darwin: www.facebook.com/saodarwin www.instagram.com/sebo_sao_darwin Tatuaisô: www.instagram.com/tatuaiso www.facebook.com/tatuaiso nov.2020 | ex-isto.com https://www.facebook.com/saodarwin/ https://www.instagram.com/sebo_sao_darwin/ https://www.instagram.com/tatuaiso/ https://www.facebook.com/tatuaiso/ http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 17 Galeria Independente George Christian George Christian é compositor, multiinstrumentista e cantor, residenteem Salvador (BA), fortemente engajado na produção e difusão de sua música independente por distintos meios online, tendo produzido diversos EPs e álbuns lançados, utilizando como principal instrumento o violão elétrico, juntamente com explorações instrumentais. Também atua como compositor de trilhas sonoras, tendo em seu currículo os filmes "Imagens", de Luiz Rosemberg Filho, e a série "No Icons" (inédito), de Alexandre Guena. Seus trabalhos trafegam nos campos tanto da música experimental, quanto da música de concerto, realizando esporádicas performances ao vivo. A Era da Estupidez Seu álbum mais recente, 'A Era da Estupidez', é o álbum mais progressivo em sua discografia. Trata-se de um trabalho conceitual em que se observa, paradoxalmente, uma narrativa que se inicia como um lamento solitário e vai se desdobrando num cataclisma ultra psicodélico de timbragens ao observar a estupidez no mundo. O compositor se assume solista e multiinstrumentista, onde o corpo da improvisação e da composição espontânea percorre contornos mais estruturados e desafiadores. Das dores secretamente autobiográficas às dores do mundo ao redor. O álbum é um manifesto contra uma época de retrocessos éticos e um elogio à loucura criativa. Link para escutar o disco: hamfuggirecords.bandcamp.com/album/ a-era-da-estupidez George Christian: georgechristianmusic.wixsite.com instagram.com/gc.soundartifacts fb.com/georgechristianmusic nov.2020 | ex-isto.com https://hamfuggirecords.bandcamp.com/album/a-era-da-estupidez https://hamfuggirecords.bandcamp.com/album/a-era-da-estupidez http://georgechristianmusic.wixsite.com/site http://www.instagram.com/gc.soundartifacts http://www.facebook.com/georgechristianmusic http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 18 cotidiano / junho 2020 pastel seco em papel kraft Galeria Independente é um projeto do ex-isto que visa divulgar artistas que produzem um trabalho autoral, de caráter inventivo, crítico e/ou libertário, que se relacione (de alguma maneira) com as temáticas do existencialismo, fenomenologia, filosofia contemporânea ou psicologia. Guto Nunes instagram.com/gggguto/ O intuito desta galeria é gerar visibilidade de artistas pouco conhecidos pelos meios midiáticos de massa, que atuam principalmente de maneira independente, seja na música, pintura, escultura, literatura, fotografia, cinema, dança, teatro, história em quadrinhos ou arte digital. nov.2020 | ex-isto.com http://www.instagram.com/gggguto/ http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 19 Livro O ser e o nada - Jean-Paul Sartre “O Ser e o Nada” do filósofo francês Jean-Paul Sartre é um grande clássico do existencialismo, publicado pela renomada Editora Vozes. Neste livro encontramos reflexões sobre a consciência, percepção, autoilusão, existência e o livre-arbítrio. Um livro robusto e de linguagem complexa, porém indispensável para os interessados dessa corrente de pensamento. Influenciado fortemente por filósofos como Martin Heidegger e Edmund Husserl no uso do método fenomenológico como ótica para explorar o ser (ontologia), nosso autor configura uma relação entre consciência e mundo de maneira posicional, pois, consciência é sempre consciência de algo e o método fenomenológico é justamente aquele que busca o fenômeno como ele aparece. A aparência não é mera ilusão que esconde a essência de algo, ao contrário, a essência mesma é uma aparição. Podemos rastrear também sua dívida com Kierkegaard, quando o filósofo francês escreve sobre a condição da humanidade como radicalmente livre e a relação dessa liberdade com a angústia. O ser não é pré-determinado, sua essência é uma construção, onde nos autoafirmamos através de nossas ações (escolhas), somos condenados a sermos livres e por isso somos obrigados a escolher, agir, a não escolha também é uma escolha onde somos totalmente responsáveis. Já a angústia jaz da liberdade, “um sentimento inevitável de profunda e total responsabilidade por nossas próprias escolhas e ações”. Constantemente tentamos fugir da responsabilidade, e essa tentativa foi o que Sartre chamou de má-fé, aqui concentra-se as temáticas do engano de si. A mentira implica que o mentiroso está completamente a par da verdade, não é um ignorante ou vítima de um erro, mas sim tem uma consciência cínica incoerente com suas palavras. A mentira também pressupõe o “outro”, o enganado. Já a má-fé compartilha muitos aspectos da mentira, porém, não pressupõe o outro: sendo assim uma mentira para si mesmo. A má-fé é uma “desagregação íntima no seio do ser”. Por Kaíque Jeordhanne, bacharel em Ciências Ambientais, idealizador do projeto Ler e Despertar, onde faz resenhas e oferece dicas de livros. www.instagram.com/leredespertar nov.2020 | ex-isto.com https://www.instagram.com/leredespertar/ http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 20 Filme A primeira noite de tranquilidade Valério Zurlini foi um diretor de destaque no cinema italiano nas décadas de 50 a 70, mas de alguma forma, no âmbito internacional, seu nome ganhou menor repercussão que o de outros cineastas. Talvez obscurecido pela fenomenal repercussão que outros cineastas do período alcançaram – Fellini, Visconti, Antonioni... Mas certamente não por conta de seu cinema ser algo inferior. Zurlini dirigiu poucos filmes, mas alguns deles, como “A primeira noite de tranquilidade”, revelam seu talento para retratar o estado de espírito de personagens imersos em crises existenciais e situações limites. “A primeira noite de tranquilidade” remete a uma passagem da obra de Goethe, que ao final do filme irá revelar seu caráter trágico. A história é centrada no personagem de Daniele (Alain Delon), um professor de literatura de meia idade que fracassou em se mostrar a altura das expectativas de sua família burguesa. Um Delon derrotado, com olheiras e eterno semblante de quem passou a noite em alguma festa decadente entrega uma atuação lapidar. Daniele parece ir de cidade a cidade, de emprego a emprego, sem qualquer desejo de chegar a algo ou algum lugar. Seu currículo é cheio de espaços vazios, e Daniele não está minimamente interessado em explicar tais ausências, assim como também parece ter pouco interesse por sua namorada deprimida. Numa Rimini poética e melancólica – Zurlini oferece belos takes da cidade no outono, período em que transcorre a história – Daniele tem sua existência maquinal e indiferente agitada por um sentimento que há tempos não o movia;o desejo. Ele é despertado por outra personagem que parece viver um impasse tão grande quanto o de Daniele. A bela e triste Vanina, a aluna adolescente que demonstra interesse por suas aulas. Daniele irá, é claro, se apaixonar por Vanina. Mas para além da diferença de idade e das relações sociais que irão obstruir os planos de Daniele, há também o fato de Vanina ser amante de um rapaz envolvido com a máfia local e de ter um passado tão complicado quanto o de Daniele. O filme se constrói pela força de seus personagens. Além de Daniele e Vanina, outras figuras interessantes habitam essa história onde parece que ninguém vai conseguir o mínimo de satisfação em suas complicadas existências. O filme lida com várias das questões centrais ao existencialismo – angústia, solidão, liberdade, singularidades que ora aproximam, ora afastam os indivíduos. “A primeira noite de tranquilidade” versa sobre um mundo onde impera a falta de sentido e sobre o quanto nossas vidas são um tanto quanto absurdas. Por Graziela Maria Lisboa Pinheiro, estudante de psicologia, mestre e doutora em letras, graduada em comunicação social e cinema. nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 21 Diversos O que é o esperanto? Em poucas palavras, o esperanto é uma língua planejada criada na intenção de facilitar a comunicação entre pessoas que falam línguas diferentes. A base do esperanto foi iniciada pelo médico e filólogo polonês Dr. Lázaro Zamenhof, em 1887. Desde então, o projeto de língua planejada transformou-se em uma língua viva, com cultura própria, mas internacional, tendo até mesmo falantes nativos. Hoje podemos também dizer que o esperanto é muito mais que apenas uma língua inventada, atualmente, é uma cultura rica e diversa que reúne pessoas de várias partes do mundo, essa cultura se mostra através de músicas, filmes, redes sociais, literatura, teatro e outras manifestações artísticas. O esperanto não pertence a nenhuma nação e pertence a todos aqueles que, de alguma maneira, têm contato com essa ferramenta extremamente eficaz de comunicação transnacional. Essa língua é culturalmente cosmopolita, aquele está inserido na comunidade esperantista, na maioria das vezes, também tem interesse por um mundo sem fronteiras e, principalmente, sem barreiras linguísticas. O livre contato e a facilidade desta comunicação fluida, possibilita aos usuários do esperanto total acesso às mais diversas culturas. Tendo como princípio fundamental à neutralidade, o esperantista se assume como um cidadão do mundo, totalmente integrado às interações transnacionais. O falante do esperanto tem a oportunidade de se inserir em qualquer grupo social, não impondo, de maneira alguma, sua língua nacional, dessa forma, tais indivíduos atingem uma aquisição cultural plenamente efetiva. Tolerância, respeito e cordialidade são alguns dos principais valores cultivados no meio esperantista. Será um grande prazer poder mostrar um pouco deste universo cultural para você leitor da revista ex-isto. Por Fábio Silva, licenciado em Letras pela UFLA, pós-graduado em linguística aplicada à educação pela Faveni, membro da Liga Internacional de Professores Esperantistas e é diretor da Embaixada do Esperanto de Pouso Alegre. www.linguainternacional.org www.facebook.com/ambasadejo www.instagram.com/esperanton nov.2020 | ex-isto.com https://linguainternacional.org/ https://www.facebook.com/ambasadejo https://www.instagram.com/esperanton/ http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 22 Artigo Fundamentos da psicoterapia fenomenológico existencial Bruno Carrasco Resumo: Este artigo tem como intuito apresentar os embasamentos filosóficos e metodológicos da psicoterapia fenomenológico existencial: a filosofia existencialista e o método fenomenológico, destacando sua particularidade no modo de encarar a existência humana e de proceder o processo psicoterapêutico. O existencialismo oferece um olhar sobre a condição humana enquanto algo não definido, livre e responsável por suas escolhas, e em constante transformação, que se constitui em seu existir concreto por meio de sua experiência singular, no mundo, em constante relação com as pessoas, objetos, espaços e consigo mesmo. A atitude fenomenológica dispõe uma abertura para as singularidades da existência em seus modos próprios de se manifestar, buscando compreender as distintas características, interesses e desinteresses de cada indivíduo, evitando pressuposições ou conceitos prévios sobre a pessoa, captando o modo como esta se revela a cada encontro. Palavras-chave: Psicoterapia, Existencialismo, Fenomenologia, Psicologia. Introdução O presente trabalho pretende oferecer uma breve introdução sobre os fundamentos filosóficos da psicoterapia fenomenológico existencial, expondo seus norteamentos teóricos, iniciando com a filosofia existencialista e seu entendimento sobre a existência humana, e o método fenomenológico, que indica atitudes e disposições para se aproximar da existência em seus distintos modos de se expressar. Existencialismo é uma filosofia contemporânea que encara a existência a partir de sua manifestação concreta, singular e afetiva, entendendo o ser humano livre para fazer escolhas e responsável por elas, sempre aberto a novas possibilidades. A fenomenologia se apresenta como uma atitude para se aproximar das singularidades, do modo como cada um se apresenta. O intuito desta pesquisa é explorar os pressupostos filosóficos e as teorias que servem de embasamento para a prática da psicoterapia fenomenológico existencial. Pretende-se, portanto, apresentar algumas questões do existencialismo e da fenomenologia com relação ao entendimento de ser humano, e sobre o modo como proceder a análise da existência humana, de acordo com estas vertentes. nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 23 A psicoterapia fenomenológico existencial dispõe uma maneira específica de encarar a existência humana, entendendo esta como um processo e não como algo fixo, mas sempre aberto à transformações, sendo constantemente afetada pela relação com as outras pessoas, objetos e espaços, aberta a novos entendimentos de mundo e de si. O método fenomenológico possibilita uma aproximação das singularidades e da relação afetiva da pessoa com o mundo, com os outros e consigo mesma, compreendendo seus modos de ser e suas vivências no mundo. Este trabalho se inicia com a descrição dos fundamentosteóricos, filosóficos e conceituais da psicoterapia fenomenológico existencial, com a pretensão de oferecer uma introdução sobre esta vertente de psicoterapia, que por ser pouco conhecida, acaba sendo erroneamente confundida com outras tendências como a Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, a Gestalt-Terapia, de Fritz Perls, ou a Psicoterapia Existencial Humanista, de Rollo May. Para a pesquisa foram utilizados alguns dos livros mais destacados publicados sobre existencialismo e fenomenologia, juntamente com artigos sobre os temas abordados. Essa necessidade de voltar aos fundamentos possui justamente o intuito de oferecer um breve entendimento introdutório sobre as bases para que se possa compreender melhor sua proposta psicoterapêutica na prática. 1. Existencialismo O termo ‘existencialismo’ é resultante da soma da palavra ‘existência’ com o sufixo ‘ismo’. Segundo Penha (2014, p.11), a palavra ‘existência’ é uma derivação do verbo existir, que se origina do latim existere, cujo significado corresponde a “sair de uma casa, um domínio, um esconderijo. Mas precisamente: existência, na origem, é sinônimo de mostrar-se, exibir-se, movimento para fora”. O existencialismo enquanto vertente de filosofia possui influências de diversos filósofos, entre eles Sören Kierkegaard (1813-1855), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1889-1976), e outros que contrariam boa parte das bases da filosofia ocidental desde a Antiguidade até a Idade Moderna. Porém, foi por meio do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) que esta filosofia se tornou popular. Sartre se assumiu enquanto existencialista e destacou o existencialismo como uma filosofia do engajamento e da ação, evidenciando a responsabilidade de cada pessoa por sua existência. Reynolds (2014) destaca entre os temas fundamentais tratados pelos existencialistas: a liberdade, a morte, a finitude, a experiência fenomenológica, a angústia, a náusea, o tédio, a autenticidade e a responsabilidade. Segundo ele, eventos como a Segunda Guerra Mundial e a ocupação alemã na França, possibilitaram um maior questionamento sobre questões como a nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 24 liberdade, a responsabilidade e a morte. Segundo Penha (2014), o existencialismo foi a corrente filosófica mais discutida entre as décadas de 1940 e 1950. No livro ‘O existencialismo é um humanismo’, Sartre cita sua célebre frase “a existência precede a essência” (2014, p.18), argumentando que este é o primeiro princípio do existencialismo, complementando que “o homem nada é além do que ele se faz” (2014, p.19). Segundo ele, não há nenhuma definição prévia sobre o ser humano com relação aos seus modos de ser, de se relacionar e de se colocar no mundo. Cada pessoa se constrói na prática da vida concreta, na relação com outras pessoas e por meio das escolhas que faz. Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um Deus para concebê-la. (SARTRE, 2014, p.19) O conceito essência, segundo a tradição filosófica, refere-se àquilo que seria previamente determinado, que caracterizaria algo ou um ser antes mesmo de sua existência concreta. Neste sentido, a existência seria resultante desta essência. A filosofia existencialista se contrapõe a esta vertente essencialista, entendendo a existência como resultante da própria existência concreta, e não de uma essência. Foulquié (1975) apresenta o existencialismo partindo de sua diferença para com o essencialismo. Para ele, até o século XIX o pensamento essencialista prevalecia, e a filosofia não questionava o primado da essência sobre a existência, ou seja, partiam do entendimento de que toda existência era fruto de uma essência previamente definida. Seja no mundo das ideias de Platão, como nas categorias em Aristóteles, ambos no século IV a.C., nas essências da escolástica, na segunda metade da Idade Média, e nas ideias inatas de René Descartes, no século XVII, todas estas filosofias priorizavam as essências em detrimento da existência. Uma tendência muito presente na filosofia ocidental, desde Aristóteles, que inclusive foi utilizada pela ciência moderna, é olhar para as coisas partindo das categorias que são estabelecidas sobre elas de acordo com suas semelhanças com relação a outras coisas, e que inclusive as discrimina por suas diferenças. Essa tendência de encarar as coisas partindo de suas categorias prévias, ao invés das experiências sobre as coisas, nos dificultou a captação das distintas particularidades sobre o que percebemos, ou seja, de suas distinções e singularidades. O existencialismo surge, pois, como uma teoria que afirma o primado ou a prioridade da existência. Mas em relação a que afirma este primado ou prioridade? Em relação à essência. (FOULQUIÉ, 1975, 7p.) nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 25 Para a filosofia essencialista, a essência corresponderia a algo universal contendo todas as características de um ser, enquanto que a existência seria apenas uma disposição para transformar em ato tal essência, portanto uma mera efetivação das essências prévias. O existencialismo, pelo contrário, considera a existência como prioridade, ao invés da essência. Neste sentido, a existência não é uma efetivação de uma essência previamente definida, mas uma condição que constitui justamente os modos de ser e as características mais próprias de cada pessoa, na relação com as outras pessoas e com o mundo. Como indica a própria palavra, o existencialismo caracteriza-se sobretudo pela tendência de colocar o acento na existência. O existencialista desinteressa-se das essências, dos possíveis, das noções abstratas: situa-se nas antípodas do espírito matemático; seu interesse dirige-se ao que existe, ou melhor, à existência daquilo que existe. (FOULQUIÉ, 1975, 37p.) Segundo Foulquié (1975), o existencialismo também se coloca contrário ao racionalismo e ao positivismo, que priorizaram a razão e a objetividade, respectivamente, em detrimento da experiência. Contrariando essas teorias sobre a existência humana,a filosofia existencialista parte do entendimento de que é impossível fixar regras prévias para a existência e para os modos de ser de cada indivíduo, buscando olhar para as diferenças ao invés das teorias ou generalizações. No existencialismo, a existência é concebida como um privilégio do ser humano, não sendo algo pronto ou previamente determinado, tal como entendiam os filósofos essencialistas, mas como um constante vir-a-ser, em permanente transformação. Por não ser definida previamente, a existência humana é livre para fazer escolhas, pois para existir precisamos, necessariamente, escolher. Não escolhemos como e onde nascer, mas podemos escolher o que fazer diante das circunstâncias em que estamos inseridos. É por meio da relação que estabelecemos com os lugares, com os objetos e com as pessoas, juntamente com as escolhas que fazemos, que constituímos nosso modo de existir. (...) eu sou bonito ou feio, filho de proletário ou de ilustre ascendência, chove ou faz calor… diante destes fatos sou impotente. Mas sou senhor de minha atitude à respeito destas maneiras de ser, independentes de mim: posso orgulhar-me ou envergonhar-me delas, aceitá-las ou insurgir-me contra elas. Eu não as escolho, mas escolho a forma como as considero, ou, no dizer dos existencialistas, eu as assumo. (FOULQUIÉ, 1975, 46p.) Essa liberdade de fazer escolhas, segundo o entendimento existencialista, não consiste em vivenciar momentos do modo como desejamos ou esperamos, mas escolher o que fazer diante das distintas situações e adversidades que atravessamos. Para a filosofia existencialista, todos somos livres para fazer escolhas e direcionar a nossa existência a todo nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 26 momento, de acordo com nossas condições e possibilidades. Porém, não temos nenhuma garantia sobre o que pode acontecer por conta de um caminho que escolhemos seguir, de modo que toda escolha é um risco, e isso nos gera uma sensação de angústia. Por não termos uma essência que nos defina ou que nos constitua previamente, somos nós os únicos responsáveis pelas escolhas que fazemos. Isso nos torna responsáveis por nossa existência, pela pessoa que nos tornamos. A cada escolha que fazemos, a cada momento que escolhemos, estamos escolhendo a nós mesmos, a pessoa que estamos sendo. Mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência. (SARTRE, 2014, 20p.) Toda pessoa pode, em certo sentido, e de acordo com suas condições e circunstâncias externas, escolher o que fazer de si mesma, a todo momento de sua existência. O que não é possível, segundo Sartre (2014), é não escolher. É neste sentido que ele declara que “o homem está condenado a ser livre” (Sartre, 2014, 24p.), ou seja, a liberdade não é uma opção, mas uma condição da existência humana. Enquanto condição implica em estarmos sempre escolhendo o que vamos fazer de nossa existência. Como não há uma essência prévia que determine nossa existência e nossos modos de viver, não há também nenhum sentido previamente estabelecido sobre como viver a vida. Essa constatação pode parecer angustiante, mas é também libertadora. Para o existencialismo, o sentido da vida pode ser acolhido, abraçado ou criado. Sem a orientação de regras universais de moralidade, da natureza humana ou de um Deus cognoscível, que emitiu certos mandamentos indiscutíveis (e várias teologias podem acordar com isso), devemos dotar o mundo de significado e somente nós podemos fazer isso. Devemos realizar este ato de fé: criar o significado em que buscamos viver. (REYNOLDS, 2014, 17p.) A escolha que cada um faz sobre sua existência é acompanhada, segundo Kierkegaard, pelo temor e por uma falta de tranquilidade, pois apesar de todas as nossas avaliações e deduções racionais sobre o que iremos escolher, nunca teremos certeza de que uma de nossas escolhas será como desejamos ou esperamos, ou mesmo que será melhor do que aquela que não escolhemos. Neste sentido, toda escolha que fizermos será sempre um risco, e cada escolha implica na negação das outras possibilidades de escolha. Tanto em Kierkegaard quanto em Sartre, a angústia consiste numa espécie de medo de si, do que pode ser feito diante de uma escolha, e da dificuldade de se escolher, ao perceber-se o único responsável por sua escolha, portanto também responsável por sua existência. nov.2020 | ex-isto.com http://www.ex-isto.com/ revista ex-isto no. 1 | p. 27 2. Fenomenologia O termo ‘fenomenologia’ foi utilizado por diversos autores, com intenções distintas. Etimologicamente significa o estudo ou a ciência dos fenômenos, sendo os fenômenos aquilo que aparece. Do modo como hoje entendemos, essa temática começa a aparecer entre o final do século XIX e início do século XX, com o filósofo e matemático alemão Edmund Husserl (1859-1938), sendo continuada e transformada por filósofos como Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), entre outros. Apesar de autores anteriores a Husserl terem utilizado este termo, como Hegel (1770-1831) ou Kant (1724-1804), é com Husserl que a fenomenologia segue um novo caminho, que irá influenciar a filosofia, a psicologia e o modo de se fazer ciências humanas no século XX em diante, entendendo que “o sentido do ser e o do fenômeno não podem ser dissociados” (Dartigues, 2008, 11p.). Partindo de um questionamento sobre a ciência positivista e a filosofia idealista, criticando o uso do método das ciências naturais na psicologia e nas ciências humanas, a fenomenologia aparece como um contraponto e uma nova perspectiva de se fazer ciência, contrariando o entendimento objetivista e as teorizações metafísicas, propondo encarar as coisas tal como aparecem, retornando ao mundo da vida. Entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas deve, pois, existir uma terceira via, aquela que antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade ou, como diz Husserl, das “coisas mesmas”. (DARTIGUES, 2008, 18p.) A fenomenologia é uma atitude que busca encarar o fenômeno do modo como este se mostra por si mesmo, libertado
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