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P. o. hisp. 67 2-4 jo hip. 673 - 4 Cervantes < 36638410160018 <36638410160018 Bayer. Staatsbibliothek 6 ! A > 9 6.hisp.67 5 - 4래 Cervante < 36638410160018 <36638410160018 Bayer. Staatsbibliothek f f 1 II020 .( DOUDYOL oO ENGENH OSO FIDALGO DOM QUIXOTE DE LA MANCHA , POR MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA , TRADUZIDO EM VULGAR. TOMO IV , LISBOA , NA TYPOGRAFIA ROLLANDIANA . I 7 9 4. Com licença da Real Meza da Commiſſao Geral ſobre . Exame, Confura dos Livros . OD POSLIOTHECA! TIT DVD130 RIBLIOTHEC TOGIA 090 HIDRAGENSISA 20 D For tarado este livro em papelaquae trocentos réis ; Meza 5 de Dezembro de 1794 hernit ** Com tres Rubricas. B O L J 3 :: -250 On 22 cs some O ENGENHOSO FIDALGO D. QUIXOTE DE LA MANCHA. 2192 2070274 : 19 PARTE SEGUNDA. 2:23 COEZS) IO so IC CAPITULO I. Do que o Cura , e a Barbeiro passårao coin D. Quixote acerca da sua en fermidade Corta Cide Hamete Benengeli na Se gundaParte desta Historia , e terceira sahi da de D.Quixote que o Cura , e o Barbei ro estiverao quasi hum'mez sem vello pa ra nað despertar -lhe a lembrança das cou sas passadas. Mas nem por isso deixárað de visitar a sua sobrinha , e ama , recom mendando -lhes que tivessem cuidado de o regalar , dando - lhe comidas confortativas para avigorar-lhe o coraçað , e o cerebro , donde , segundo as apparencias , procedia toda a sua desgraça .Disserað ellas sim o fazia ) , e faria ) com toda a vonta de, e cuidado possivel; porque nað deixa TOM. IV. A que as yao o hip.673 - 4 Cervante, 1 <36638410160018 <36638410160018 Bayer. Staatsbibliothek } 1 ර25 { 177-2.???["ය O ENGENH OSO FIDALGO DOM QUIXOTE DE LA MANCHA POR MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA , TRADUZIDO EM VULGAR. TOMO IV , LISBOA , NA TYPOGRAFIA ROLLANDIANA . I 7 9 4. Com licença da Real Meza da Commiſao Geral ſobre . Exame , « Cenfura dos Livros, OD IROLIOTHECA CHEC VOVOASLI GIA HIKICENSIS. Foi tatado este livro empapel a qua AUR ? trocentos réis ; Męza5 de Dezembro de Com tres Rubricàr. 1794 27 TDS 10 i Icons O ENGENHOSOFIDALGO D. QUIXOTE DE LA MANCHA. PARTE SEGUNDA. IC CAPITULO I. Do 'que o Cura, e. a Barbeiro passårao coin D. Quixote ácerca da sua en fermidade. Conta Cide Hamete Benengeli na Se gunda Parte desta Historia , e terceira sahi da de D.Quixote que o Cura , e o Barbei ro estiverao quasi hum'mez sem vello pa ra nað despertar-lhe a lembrança das cou sas passadas. Mas nem por isso deixárað de visitar a sua sobrinha , e ama , recom mendando -lhes que tivessem cuidado de o regalar , dando -lhe comidas confortativas para avigorar-lhe o coraçað , e o cerebro , donde, segundo as apparencias , procedia toda a sua desgraça.Disserað ellas que as sim o fazia ) , e faria ) com toda a vonta de , e cuidado possivel; porque nað deixa TOM . IV. A vað D. QUIXOTE DE LA MANCHA. vað de vêr que D. Quixote hia dando inos tras de estar ein séu perfeito juizo ; do que re ceberaõ ainbos grande conten tamento , por lhes parecer que tinhaó acertado em tello trazido encantado no carro , como fica dito no ultimo Capitulo da Primeira Parte desta tao grande , como individual Historia. Pe lo que determinárað visitallo , e experimentar a sua melhoria , ainda que a tinhaố quasi por impossivel ; e assentáraó de nao tocar-lhe ein ponto nenhum da Cavallaria andante , para nað expôllo aoperigo de descozer os da fe rida , que tað fresca estava. Visitáraó-o em fiin , eacháraó - o sentado na cama , vestido com humn collete de baeta verde ; e hum bar reteencarnado dos que se usao em Toledo. Tað secco estava , e taó descarnado , que parecia hum esqueleto . Forao bem recebidos delle , e perguntando-lhe pela sua saude , deo elle noticia de si , e della com muito juizo , e elegantes expressões. Depois de te ren conversado muiro tempo vieraó a tra tar do que chamaó razaố de Estado , ema neiras de governo , emendando este , e con demnando aquelle abuso , reformando huin costurne , e desterrando outro , fazendo - se Cada bum dos tres hum novo Legislator , huin AWOWA PARIBII: ON . ICT ham Liturgo moderno , ou-kum Solon flä mantelede talmaneira renovarao a Re publicaroque pareceó stellaposto n'huma dragoa , et convertidonn'outra. D.Quixore fallou com tanta discriçað em todas asma steriaseín que tocárað , que os dousex aminadores- crêraó indubitavelmente que estava de todo bom e em seu perfeito juk zo Acháraðse presentes á prática asobri nha , e a ama, enað se fartavao de dar gra ças a Deos de o vêr com tað bom enten dimento . Mudando porém o Cura do pro posito de nao tocar-lhe em cousasde Cd vatlarias , quiz fazer experienciase a saude de D. Quixote era falsa ou verdadeira ; e assim variando de humas 'para outras veio sa contar algumas novas , que tinhao vindo da Corre ', e entre outras disse que se tinha por cercoque o Turcobaixava con huma poderosa armada , e que não se sabia o seu designio , nemaondeviria descarregar tama nho nevoeiro , e que com estereceio , por ria do qual todos os annos nos toca a rea bate , quasi toda a Christandadeestava ette i armast, eSua Magastade rinha dado orden para fornecer-se as Cóstas de Napoles , Sicilia , e acHha de Malta . Sua Magesta 46 A i de 4 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. de , respondeo D.Quixote , procedeo , co mo prudentissimo Guerreiro, em fornecer os seus Estados coin tempo , para que nao o ache desapercebido o inimigo. Porém , quando se me pedisse conselho , dissera -lhe eu que usasse de huma precauçað , de que SuaMagestadea esta hora está muito alheio de pensar nella . Apenas o Cura ouvio isto: Deos, disse comsigo , te tenha da sua mao, pobre D.Quixote , pois me parece que te despenhas do altocume da tua loucura até o profundo abysmo da tua simplicidade. Mas o Barbeiro , que estava já no mesmo pensamento que o Cura , perguntou a D. Quixote , qual era a precauçað , que elle dizia que era bem que se tomasse ; pois po deria talvez ser do número daquellas ad vertencias impertinentes , que costumað fa zer aos Principes. A minha , Senhor raspa dor disse D.Quixote , será pertencente , e nao impertinente. Nao digo por isso , re plicou o Barbeiro , senað porque a experien cia tem mostrado , que todos, ou amaior parte dos arbitrios , que se daó a Sua Ma gestade , ou saố impossiveis, ou dispara tados , em damno de ElRei , ou do Reino. Pois o meu , tornou D. Quixote , nem he im PARTE II . CAP. I. 5 V. impossivel , nem disparatado , senað o mais facil , o mais justo , e o mais maneiro , e breve , que pode occorrer a qualquer, que arbitra. Já V. Mercê tarda em dizello , Se nhor D. Quixote , disse o Cura. Naš que ria , replicou o nosso Cavalleiro , dizello agora aqui , e que á manhã amanhecesse nos ouvidos dos Senhores Conselheiros , e por esta via tivesse outro as mercês , e premio do meu trabalho. Quanto a mim , disse o Barbeiro , dou minha palavra para aqui , e para diante de Deos, de nao dizero que Mercê disser a Rei , nem a Roque , nem a pessoa nenhuma da terra : juramento he es te ,que aprendi doRomance do Cura , que na Prefacçao descubrio ao Rei qual fora o ladrað , que lhe tinha roubado as cem do blas, e a sua mula , que andava tað bem . Nað sei dessas historias , disse D.Quixote ; porém sei que he bom esse juramento , e eu sei que o Senhor Barbeiro he homem de bem. Quando nað o fosse , disse o Cura , eu o abono , e fico por elle , que neste caso fallará tanto , como hum mudo , sob pena de pagar o julgado , e sentenciado. E quem fica por V. Merce , Senhor Cura ? pergun tou D. Quixote. A minha profissað , pon TES 6 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. pondeo o Cura ; que me obriga a guardar segredo. Bem está , disse D. Quixote ; tem Sua Magestade mais que mandar em virtu de de hum pregað publico , que se juntem n’hum dia aprazado na Corte todos os Car valleiros andantes andað ? que por Hespa. nha , dos quaes ainda quando só viessem meia duzia , tal poderia haver entre esses poucos ,que só bastasse para destruir todo o poder dos Turcos . Ouçað-me VV. Mera cés com attençao , e vað com o que eu lhe disser. He por ventura cousa nova desbara tar hum só Cavalleiro andante hum exerci to de duzentos mil homens , como se todos juntos tivessem huma só garganta,ou fos sem feitos de alfeniin ? Digao-meVV. Mer cês , quantas historias nað estað chêas destas maravilhas? Havia hoje de viver , fosse em má hora para mim , que nao quero dizer para outrem , o famoso Belianis , ou algum dos da inumeravel descendencia de Amadis de Gaula , se algum delles fora hoje vivo , e encarárá com o Turco , seguro -lhes que nao déra nada por este . Mas Deos porá os olhos no seu povo , e deparará algum , o qual ainda que nað seja tao affouto , e va lente , como os passados Cavalleiros andan tes , PARTE II. CA P. I. > tes , pelo menos nao lhes será inferior em coragem e valentia ; e Deos me entende nao digo mais. Triste de mim ! disse entao a sobrinha : a mim me inatem se meu tio naó quer outra vez tornar a ser Cavalleiro andante. Cavalleiro andante hei de morrer, tornou D. Quixote , e baixe ou suba o Tur co quando quizer , e com o maior poder , que lhe for possivel;pois outra vez digo que bem me entende Deos. Peço a VÝ. Mercês , disse . a este tempo o barbeiro , que me dem licença para contar brevemen te hum caso succedido em Sevilha ; que por vir demolde , tenho vontade de contallo. Derað D. Quixote , e o Cura licença , e qur vindo -os os demais com atençao , começou desta maneira. Na casa das loucos de Sevi lha estava hum homem , a quem şeus pa rentes recolliêrað nella por falta de juizo. Era graduado em Canones pela Universi dade deOssuna ; mas ainda que o fosse pela de Salamanca , na opiniao de muitos , nao deixara de ser louco. Passadosalguns annos, depois de estar recolhido entendeo este graduado que tinha cobrado a razao , e que estava em seu perfeito juizo . Com este pen samento escreveo ao Arcebispo , supplican do 8 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. e re do - lhe encarecidamente , e com expressões muito acertadas que o mandasse tirar da quella miseria , em que vivia , visto que pela misericordia de Deos tinha cobrado o juizo perdido ; mas que seus parentes , pa ra desfructar a parte da sua fazenda , o ti nhað alli mertido , e a pezar da verdade queriaó que elle fosse louco até á morte, Persuadido o Arcebispo das muitas cartas que lhe tinha escrito com tanto acordo discriçað , mandou hum Capellað seu a in formar -se do Reitor da casa , se era verda de o que aquelle Bacharel lhe dizia commendendo -lhe tambem que fallasse com o louco , e quando lhe parecesse que tinha juizo o soltasse , e pozesse em liberdade. Assim o fez o Capella ) , e foi - lhe ditopelo Reitor que aquelle homem estava ainda lou co ; pois ainda que fallava algumas vezes como pessoa de grande entendimento , no fim sahia com tantos disparates , que por seremmuitos , egrandes igualavað ás suas primeiras discrições , como sepodia expe rimentar fallando -lhe. Quiz o Capellao ex perimentallo e pondo -o com o louco , fallou com elle huma hora , e mais , e em todo este espaço nað disse razao alguma que des PÄRTÉ II. CA P. I. 9 ra que desconcertada fosse ; antes fallou com tanto siso , que o Capella ) se vio forçado a crêr que estava em seu juizo . Entre outras cou sas que lhe disse o louco foi que o Reitor The tinha odio por nao perder os presentes, com que os seus parentes o regalavao , pa dissesse que elle ainda estava louco, e tinha seus intervallos , e que o seu maior inimigo era a sua muita fazenda , pois os seus inimigos para desfrutalla davao - o por louco ,e duvidavao da mercê que Nos so Senhor lhe tinha feito de restituillo a seu perfeito juizo. Finalmente fallou de tal ma neira que fez suspeitoso o Reitor , os pa rentes ficarað tidos por avarentos , e des almados , e elle por tao discreto pellaó determinou levallo comsigo , para que o Arcebispo o visse e se certificasse per si mesmo da verdade. Nesta boa fé pe dioo Capellað ao Reitor que mandasse dar ao Graduado os vestidos , com que entrára para aquella casa ; e tornando-lhe o Reitor à dizer que visse o que fazia , porque cer tamente aquelle homem ainda estava dou do , nað valêraó de nada as suas precau ções , e advertencias para que deixasse de leyallo . Obedeceo o Reitor á ordem do Ar que o Ca Іо D. QUIXOTE DE LA MANCHA . a Arcebispo : derað ao Graduado os seus ves cidos , que erað novos , e decentes; e co mo elle se vio vestido no trajo de homem asisado , e despido do de louco , pedio ao Capellaó que por caridade lhe desse licença para ir despedir-se dosloucos seus compa nheiros. Disse-lhe o Capellaó que queria acompanhallo , e ver os loucos que havia na casa . Subíra ) com effeito , e com elles varias pessoas ', que se achárað presentes : e chegado que fosse o Graduado a huma grade , onde estava hum louco furioso , se bem que entað estava quieto , e socegado : Irmað , disse , veja se ordenaalguma cousa, que me vou para minha casa ; pois já Deos foi servido por sua infinita bondade, e mi sericordia de restituir - 01:e o meu juizo , sem que eu o merecesse. Já estou sao ; que par ra Deos nada he impossivel. Tenha grande esperança , e confiança nelle ; que pois me restituio ao meu primeiro estado , tambem o restituirá a V. Mercê , se nelle pozer a sua confiança. Nao me descuidarei deman dar -lhe alguns mimos , e coma em todo o caso ; pois deve saberque tenho para mim , como experimentado , que todas as nossas loucuras procedem de ter os estomagos va sios , PARTE II. CAP. I. II sios , e a cabeça chêa de ar . Esforce -se , esforce -se que o esmorecimento nos infor tunios apouquenta a saude , e traz comsigo a morte. Ouvio todas estas razões do Gra . dúado hum louco recolhido n'outra grade fronteira á do furioso : e levantando -se de huma esteira velha , onde estava deitado , e nû em pelle , perguntou em altas vozes quem era o que se hia sað , e em seu juizo. Eu irmaó , respondeo -lhe o Graduado sou o que me vou ; pois já nao tenho ne cessidade de estar aqui, de que dou infini tas graças aos Ceos , que tað grande mercê mefizerað . Vê o que dizes, meu Licencia do ; nao te engane o diabo , tornou o lou co : socega o pé , e deixa-te estar quieto em tua casa ; porque , sendo assim , forra rás a volta. Eu sei que estou bom , repli cou o Graduado , e nao será necessario tore nar a correr as estações. Tu bom ! disse o louco : o tempo o dirá , vai com. Deos ; mas eu te prometto pelo DeosJupiter , cu ja Magestade represento na terra , que só por este peccado , que hoje commette Şe vilha em tirarte desta casa , e crêr que es tás em teu juizo , tenho de dar-lhe tal cass . tigo , que fique memoria delle por todos os se I 2 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. , que se hað C r 16 seculos , amen . Nað sabes tu , meu Licen ciado das duzias, que o poderei fazer , pois como digo sou Jupiter tonante , que nestas mãos minhas tenho os raios abrazadores , com que posso , e costumo ameaçar , e des truir o mundo ? Poréin com huma só cousa quero castigar este ignorante povo , e he nað chover nelle , nem em todo o seu districto , e contorno tres annos inteiros de contar desde o dia e instante em que foi feito este ameaço. Tu livre , tu sao , tu.com juizo , e eu louco , e eu enfermo , e eu atado ? Tanta tençað tenho eu de cho ver , como tenho de enforcar-me. Estive rað os circunstantes attentos as vozes , razões do louco ; mas o nosso Graduado voltando- se para o Capella ) , e tomando lhe ambas as mãos : Nað se aſfija V. Mer cê , Senhor meu , disse ; nem faça caso do que este louco disse ; que se elle he Jupiter, e nao quizer chover , eu que sou Neptuno, o pai , e o Deos das aguas , choverei todas as vezes, que me parecer, e for necessario . Mas ainda assim , Senhor Neptuno , respondeo o Capellao , nao será razaõ que V.Mercê enoje o Senhor Jupiter , fique -se V. Mercê na sua casa , que quando houver maior com M moPARTE II. CAP. I. : 13 modidade, e mais vagar , voltaremos a bus callo. Rio - se o Reitor , e os que estavao presentes , de que ficou o Capellaõ hum pou co corrido. E tornando a despir o Gradua do , ficou este em casa , e acabou -se o con to . Pois este he o conto , Senhor Barbeiro , disse D. Quixote , que por vir aqui como de molde , nað podia deixar de contallo ? Ah ! Senhor rapista , Senhor rapista ? E quað cego he aquelle , que nao về por en tre humcrivo ? 'E he possivel que V. Mer cê nað saiba que as comparações , que se fazem de engenho a engenho , de valor a valor , de forinosura a formosura , e de des . cendencia a descendencia sað sempre odio sas , e mal recebidas ? Eu , Senhor Barbei ro , nað sou Neptuno o Deos das aguas , nem procuro que ninguem me tenha por, discreto , nað o sendo : só me canço por dar a entender ao mundo que erra em nað reno var o felicissimo tempo , em que campava a Ordem da Cavallaria andante. Poréinnao, he a nossa depravada idade merecedora de gozar tanto bem , como o que gozárað aquellas idades , em que os Cavalleirosan dantes tonnáraó a cargo , e sobre seus hoi bros a defensa dos Reinos , o amparo das don 14 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. > > donzellas , o soccorro dos ortãos , e pu pillos , o castigo dos soberbos , e o premio dos humildes.A maior parte dos Cavallei ros, que hoje ha , estimaó mais vestir -se de damascos , brocados e outras télas do que tomar huma malha , com que se armem . Nað ha já Cavalleiro , que durma nos campos , exposto ao rigor do tempo armado desdeospés até á cabeça. Já nað ha hum só , que sem tirar o pédo estrivo , arrimado á lança , procure descabeçar co mo diz o vulgo , o somno , da mesma ma neira que feziao os Cavalleiros andantes. Nenhum vemos hoje que sahindo deste bos que entre naquelle monte , e de lá passe a huma esteril , e deserta praia do mar , as mais das vezes procelloso , e empolado , e achando á bórda della hum pequeno ba tel sem remoš , véla , leme , nem enxarsia alguma com intrepido coraçað se lance a elle , entregando -se ás implacaveis ondas do mar profundo , que hora o levantað ao Ceo , hora o sepultaó no abysmo ; e elle posto o peito á incontrastavel borrasca , quando menos cuida , acha-se tres mil , e mais legoas distante do lugar , onde em bartara ; e saltando em terra remota , e nao PARTE II. CAP. I. 15 nao conhecida , acontecem -lhe cousasdi goas de escrever-se , nao em pergaminhos mas em laminas de bronze. Porém já hoje triunfa a preguiça da diligencia ; do traba Iho a ociosidade , da virtude o vicio , a ar rogancia da valentia , ę a theorica da prá tica das armas , que só vivêrað , e resplan decêra6 nas idades de ouro , e nos Caval-, leiros andantes. E senað digab -me , quem mais honesto , e mais valente , que o fa moso Amadis de Gaula ? Quem mais dis creto que Palmeirin de Inglaterra, mais - acommodado , é mais brandoe mais brando que Tirante o Branco , mais galanteador , que Lisarte da Grecia ? Quem mais crivado foi de fe ridas , e descarregou o golpe com mais vi gor , e mais vezes , do que D. Belianis ? Quem foi mais intrepido que Periaó de Gaula ,quem mais affouto nos perigos que Felix -Marte da Ircania , mais sincero que Esplandiað , mais resoluto que Cirongilio de Thracia , mais destemido que Rodamon re ? Quem mais prudente , que EIRei So brino , quem mais atrevido queReinaldos , quem mais invencivel que Roldað ; nem mais cortez , e mais galhardo que Rugero , do qual descendem hoje os Daques deFer rara , 16 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. e m V u i t o s , q u e p o d é r a a p o n t a r , S e n h o r C u rara , como quer Turpin na sua Cosmogra phia ? Todos estes Cavalleiros , e outros , , ra, fora6 Cavalleiros andantes , luz , e glo ria da Cavallaria . Destes , ou d'outros taes, como estes , quizera eu que fossem os do meu arbitrio ; que se o fossem , Sua Ma gestade se achára bem servido , forrára mui to gasto , e o Turco ficára puxando pelas barbas. Em minha casa pois quero ficar , porque nao me tira della o Capella ) ; e se Jupiter , como disse o Mestre Barbeiro nao chover , aqui estou eu , que choverei quando meparecer. Isto digo porque saiba o Senhor Vasilha que eu bem o entendo. Na verdade , Senhor D. Quixote , que nað o disse por tanto , e assim Deos me ajude , como foiboa a minha intençao , é nað tem V. Mercê de que se offenda. Se tenho , ou nao respondeo D. Quixote , eu o sei . Ain da bem , disse entað o Cura , que eu qua si que nað tenho até agora proferido pala vra ; mas nao quero ficar com hum escru pulo, que me i'oe a consciencia , e he pro cedido do que acaba de dizer agora o Se nhor D. Quixote. Para outras cousas mais, replicou este , tem o Senhor Cura licença ; 11 00 CE DT ro e 2 PARTE II. CAP. I. 17 .. era hum homem alto de corpo , alvo de e assim bem póde dizer qual he o seu es crupulo ; porque nað he elle cousa de tan to gosto , o trazer a consciencia com es crupulos. Pois já que V. Mercême dá o seu beneplacito , respondeo o Cura , di go que nao he outro o meu escrupulo senað quehe impossivel persuadir-me de que to dos esses Cavalleiros andantes , que V.Mer cê nomeou , Senhor D. Quixote , fossem creaturas real , e verdadeiramente de car ne , e osso no mundo : antes cuido que tu dohe ficçað fabulosa , e mentira , e sonhos contados por homens despertos , ou para melhor dizer , meio dormindo. Eis-ahi ou tro erro , tornou D. Quixote , em que tem ahido muitos , os quaesnao crêm que te nha havido taes Cavalleiros no mundo eu muitas vezes com diversas pessoas em varias occasiões tenho -me consumido por mostrar evidentemente ser isto engano commum em todos ; mas nem sempre con segui o que intentava , e só algumas vezes, sustentando - o com a verdade , e tað verda de que estou em dizer que commeus prom prios olhos vi a .,Amadis de Gaula , que > > e rosto , com bastante barba , ainda que ne Tom . IV. B gra , 18 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. > gra , o olhar meigo , e grave , de poucas palavras , tardo em irar-se , e prompto em depôr a ira . E da mesma maneira , que aca bo de delinear a Amadis de Gaula , pode ra , a meu ver , pintar , e descrever quan tos Cavalleiros andantes andao nas Histo rias do mundo , pela aprehensað, que te nho , de que forað como ellas o dizem ; e pelas façanhas, que fizerað , e condições de que forað dotados , pódem em boa fi losofia tirar-se suas feições , e côres , e es taturas. De que tamanho lhe parece , Se nhor D. Quixote , que seria o Gigante Morgante · Perguntou o Barbeiro. A res peito de Gigantes , respondeo D. Quixote , sað diversas as opiniões , se os tem havi do , ou nao no mundo. Porém a Escritura Sagrada ,, que de nenhuma maneira póde faltar á verdade , nos diz que os houve , contando -nos a historia daquelle grande Fi listeo Golias , que tinha sete covados e meio de altura ; que he grandeza desmesurada. Tambem naIlha de Sicilia se tem achado ossos de canellas , e espaduas tamanhas , que a sua grandeza inanifesta terem sido de Gigantes , tað altos como essas torres : ver dade esta que a Geometria incontestavel men PARTE II. CAP. I. 19 mente demostra . Todavia nao poderei di zer com certeza de que tamanho foi Mor gante , ainda que assento nað ter sido mui to alto. A raza ) , em que me fundo he ter achado na Historia , em que se faz parti cular mençað das suas façanhas, que muitas vezes dorinia debaixo de telha ; e como achava casa em que coubesse , claro está que nað era desmesurada a sua grandeza. Assiin he , disse o Cura , o qual gostando de ouvillo dizer tað grandes disparates , per guntou-lhe qual era o seu parecer acerca dos rostos de Reinaldos de Montalvað, de D. Roldað , e dos demais doze Pares de França , pois todos tinha5 sido Cavalleiros andantes. De Reinaldos me atrevo a dizer, respondeo D. Quixote , que tinha o rosto largo , e córado , os olhos vivos , e quasi á flor da testa , teimoso , e colerico em demasia , amigo de ladrões , e de gente perdida. De Roldao , ou Rolando , ou Orlan do ( pois com todos estes nomes fazem men çað delle as Historias ) sou de parecer , e affirmo , que foi de mediana estatura , lar go de hombros , as pernas hum pouco ars queadas , moreno de rosto , a barba ruiva, cabelludo de corpo , corpo , eoolhar ameaçador ; B ii fal 20 D. Quixote DE LA MANCHA. fallava pouco ,masmuito comedido , e bem creado. Se Roldað , nað foi mais bem pa recido , do que V. Mercê diz , respondeo o Cura , nað he maravilha que a Senhora Angelica a formosa , o despresasse , e dei Xasse pela gala ; brio , e donaire , que te ria o Mourosinho Barbiponente , a quem se rendeo ; e discreta andou em amar antes a brandura de Medóro , do que a aspereza de Roldað. Essa Angelica , Senhor Cura , res pondeo D. Quixote , foihumadonzella dis trahida , andareja , e alguma cousa incons tante , e taõ cheio deixou o mundo das suas inconsiderações, como da fama da sua for mosura . Desprezou mil Senhores , mil va lentes , e discretos e contentou-se com hum pagemzinho gentil , e aceado , sem mais riquezas , nem nome , do que aquelle, que lhe pôde dar de agradecido o ser cons tante na amizade que guardou ao seu amigo, o grande cantor da sua belleza , o famoso Ariosto , por nað atrever - se , ou naoquerer cantar o que a esta Senhora aconteceo de pois de ter-se tað indiscretament e rendido ; o que nao devia) de ser cousas demasiada mente honestas , deixou - a , onde disse : Y PARTE II. CAP. I. 21 Ycomo del Catay recibió el cetro , Quizá otro cantará con mejor pletro. E nað ha dúvida que isto foi , como profe cia , que os Poetas tambeni se chamað Vates , que quer dizer Vaticinadores. Està verdade he tað clara , que ca depois disso decantou hum Poeta da Andaluzia as suas lagrimas , e outro famoso , e unico Poeta Castelhano decantou a sua forinosura . Diga-me , Senhor D. Quixote , disse entað o Barbeiro , nað houve Poeta nenhum , que fizesse alguma satyra a essa Senhora Angelica , entre tantos que a louvárað. Nao duvido , respondeo D.Quixote , que se Sa cripante , e Roldað fossem Poetas , já me teriao dado á donzella o seu jubað ; porque he proprio , e natural dos Poetas despreza dos , e nao admittidos das suas damas , vin gar-se com satyras , e libellos ; vingança por certo indigna de hum peito generoso. Mas até agora nao chegou a minha noticia verso algum infamatorio contra a Senhora Angelica, que o mundo trouxe revolto. Mi lagre ! disse o Cura : e , ao mesmo tempo ouvírað que a ama , e a sobrinha, as quaes já se tinha) retirado da conversaçao , da vao 22 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. vað grandes vozes no pateo , e todos aco dirao ao ruido. CA P ) T U LO II. Em que se trata da notavel pendencia , que Sancho Panca teve com a sobrinha, e ama de D. Quixote , e de outras cousasgraciosas. A s vozes , que D. Quixote, o Cura, e o Barbeiro ouvirao , conta a Historia que erað da sobrinha , e ama , que forcejando Sancho Pança por entrar a vêr D. Quixote, e nað querendo ellas , defendia ) a porta , dizendo : Que quer ca este maldito ? Vá se daqui irmao , que V. Mercê he , e nao outro o que distrahe , e disinquieta a meu Amo , e o leva por esses caminhos. Ama de Satanaz , respondeo Sancho , o desin quietado , distrahido , e levado por esses caminhos sou eu , e nao teu Amo , que foi quem me levou por esses mundos , e vós outras enganais- vos em ametade do justo preço . O SenhorD. Quixote he quem com suas astuciaszinhas metirou de minha casa , promettendo-me huma Ilha , que até ago ra PARTE II . CA P. II . 23 > ra estou esperando. Más Ilhas te affoguem , amaldiçoado Sancho respondeo a sobri nha , que cousa sao Ilhas ? He alguma cou sa de comer, goloso , comilao da fortuna ? Nað he de comer , replicou Sancho , mas de governar , e reger , me lhor que quatro Cidades , e quatro Alcaidarias de Corte. Com tudo , não entrarà V.Mercê cá , disse a ama , senhor sacco de maldades , e cos tal de malicias : vá governar a sua casa , e lavrar as suas terras , e deixe-se de preten der Ilhas , nem llhotes. Grande gosto re cebiao o Cura , e o Barbeiro de ouvir o colloquio dos tres ; mas D. Quixote temen do que Sancho nað se desbocasse , e sa ; hisse com algum inontao de maliciosas ne cedades , é tocasse em alguns pontos , que nao estivessem bem a seu credito , chamou 0 , e fez , com que asduas se callassem e o deixassem entrar. Entrou Sancho , des pedirao-se o Cura , e o Barbeiro se m es peranças da saude de D. Quixote , vendo quað firmé estava em seus pensamentos des variados , e embebido na simplicidade de suas Cavallarias andantes, Pelo que disse o Cara ao Barbeiro : Vereis , compadre , que quando menos pensarmos , sahira outra vez 24 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. vez o nosso Fidalgo a dar volta á ribeira. Nað ponho dúvida , respondeo o Barbeiro ; mas nao me maravilho tanto da loucura do Cavalleiro , comoda simplicidade do cria do , o qual espera com tanta confiança a Ilha , que nem quantos desenganos imagi nar se pódem The sacaráð tal cousa dos miollos. Deos os remedêe , disse o Cura , e ponhamos-nos á mira , para ver em que pára a máquina de disparates deste Caval leiro , e seu escudeiro , pois parece que am bos forað feitos hum para o outro , e que as loucuras do Aino sem as do criado nað valiaõ nada. Assim he , disse o Barbeiro , e desejára eu agora saber de que estaráð tra tando os dous. Tenho por certo que a so brinha , e a ama de tudo nosfaráð scientes ; pois nað sao ellasde condiçao , que deixem de escutallo. Fechou-se entre tanto D. Qui xote com Sancho Pança no seu aposento , e estando sós , disse-lhe : Muito me peza , Sancho , que tenhas tu dito , e digas que eu fui o que te tirei das tuas casinhas , quan do sabes que eunao fiquei nas minhascasas, e que juntos sahimos , juntos fomos , ejun tos peregrinamos : a fortuna , e sorte de ambos foi a mesma. Se tu foste huma vez man PARTE II. CAP. II. 25 manteado , eu fui moído hum cento dellas, e nisto só te levo vantagem . Razao era que assim succedesse , respondeo Sancho ; pois segundo o que V. Mercê diz , mais anexas sað as desgraças aos Cavalleiros andantes , do que aos seus Escudeiros. Enganas-te , Sancho , disse D. Quixote ; que quando ca put dolet , & c. Naš entendo outra lingua senaõ a minha . Quero dizer que quando a cabeça doe , todos os membros doem ; e assim sendo eu teu Amo, sou cabeça tua , e tu es parte de mim , pois es meu criado : e por esta raza ) do mal , que eu padeço , ou padecer , justo he que te doas , assim coino eu do que tu sentires. Assim devia ser, disse Sancho ; mas quando a mim meman teava) , como a membro , estava a ininha cabeça por detraz do muro , vendo -me voar a esses ares , sem sentir dôr nenhuma , e visto que os membros estao obrigados a doer -se do mesmo mal da cabeça , havia de estar obrigada tambem a doer-se delles . O que tu queres dizer , Sancho , he que a mim nað me doía nada , quando teman teavao. Se tal he , ninguem to ouça dizer , nem o penses ; pois maior dôr sentia eu entao em ineu espirito , do que tu no teu cor 26 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. ( 11 > corpo.Porém deixemos por hora estas cousas de parte , pois tempo haverá em que trate mos dellas , e as apuremos , e dize-meSan cho , o que dizem de mim por esse lugar. Em que opinia ) me temo vulgo , os Fi dalgos, os Cavalleiros ? Que dizem da mi nha valentia , e façanhas , da minha corte zia ? Que fallað por ahi sobre a intençao em que estou de resuscitar , e renovar no mundo a Ordem da Cavallaria já esquecida nelle ? Em fim , Sancho , quero que me digas o que tens ouvido sobre isto ; e ha de ser sem augmentar ao bem , nem dipinuir ao inal cousa nenhuma ; porque de vassal los leaes he o dizer a verdade a seu Senhor, assim coino he em si mesma , sem desfigu ralla , e sem que a adulaçao a accrescente ou a diininua outro qualquer respeito vað . Tambem has de saber , meu Sancho , que se aos ouvidos dos Principes chegasse a ver dade nûa sem os enfeitesda lisonja , outros correria) os seculos , outras idades seriao com maior razað havidas por idades do fer ro , do que a nossa , a qual entendo que he de ouro , á vista das que proximamente as sim eraõ chamadas . Sirva-te isto , Sancho de advertencia , para que discretamente , e > cum PARTE II. CAP. II. 27 > com boa intençað me digas a verdade sobre tudo o que souberes ácerca do que te tenho perguntado. Isso farei eu de boa vontade , Senhor, respondeo Sancho , com a condi çað porém de que V. Mercê nað se ha de enfadar do que eu disser , pois quer que The mostre as cousas rúas , e sem mais ves tidos do que aquelles , com que chegárað á minha noticia. Nað me hei deenfadar , San cho , respondeo D. Quixote : bem pódes dizer livremente , e sem usar de rodeios. Seja pois a primeira cousa , disse Sancho que o Vulgo o tem a V. Mercê por gran dissimo louco , e a mim nao menos. Os Fi dalgos dizem que V.Mercê , sem encerrar se nos limites da Fidalguia , tomou o Dom, e metteo - se a Cavalleiro com quatro cepas, e duas jugadas de terra , é com hum trapo atraz , outro adiante. Quanto aos Cavallei. ros dizem estes que nao quereriaố que os Fidalgos se lhes opozessem , especialmen te os Fidalgos escudeiros, que daó com pós nos zapatos , e tomað os pontos ás meias pretas com seda verde. Isso nað se entende comigo , disse D. Quixote ; pois ando sem pre bem vestido , e nao remendado : roto , poderia ser ; e mais das armas , que do tem 28 D. QUIXOTE DE LA MANCHA . tempo. A respeito da valentia continuou Sancho , q cortesia , e façanhasdeV. Mer cê , e do seu intento , sað as opiniões diffe rentes. Huns dizem , he louco , mais he gracioso; outros he valente , mas desgraça do ; e alguns que he cortez , mas impor tuno ; e desta maneira discorrendo em tan tas cousas , que nem a V. Mercê , nem a mim , nos deixað osso sao. Adverte , San cho , tornou D. Quixote , que quando a vir tudé he eminente em summo gráo , logo he perseguida . Poucos , ou nenhum dos Va rões passados , deixáraó de ser calumniados pela malicia . Julio Cesar , que foi hum Ca bo deGuerra de grande valor , e affouteza, muito prudente, e valentissimo, teve quem o notasse de ambicioso , e lhe desse de ros to com o luxo nos vestidos , e costumes. Alexandre , que com suas acções façanho şas grangeou o sobrenome degrande, di zem que se dava com alguma demasia ao vinho. Do incansavel Hercules se conta que fora lascivo , emolle. De D. Galaor , irmao de Amadis de Gaula, murmurað que fora mais que demasiadamente brigoso , e que seu irmao chorava muito. Assim que , meu Sancho , entre tantas calumnias dos bons pó. PARTE II. CAP. II. 29 pódem passar as minhas , como nað sejað mais das que tens dito . Ahi he que está o ponto , disse Sancho. Dizem por ventura mais alguma cousa ? Perguntou D. Quixote. Ainda resta para esfollar o rabo : até aqui tudo he pao , e mel . Se V.Mercê quizer saber tudo a respeito das Caronicas , que lhe fazem , aqui lhe trarei no mesmo ins tante quem lhe conte tudo , sem faltar nem huma migalha ; pois esta noite chegou o fi lho de Bartholomeu Carrasco , que vem dos estudos de Salamanca , feito Bacharel ; e indo-lhe eu dar as boas vindas disse-me que andava já em livros a Historia de V.Mercê com o nome do Engenhoso Fidalgo D. Qui xote de la Mancha , e que atéa mimme mettiað nella com o meu proprio nome de Sancho Pança , e a Senhora Dulcinea de Toboso com outras cousas , que ambos pas sámos sós , de maneira quemebenzi mui tas vezes , espantado de ver como as pôde. saber o Historiador , que asescreveo, Af firino -te , Sancho , disse D. Quixote , que nað póde deixar de ser algum sabio Encan tador o que a nossa Historia escreveo ; pois para estes nað ha cousa encoberta , quan do querem escrevella . Coino era sabio , e En 30 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. Encantador ! disse Sancho Pança ; se o Au thor da Historia , segundo diz Sansað Car rasco , que assim se chaina o Bacharel que fallou comigo , he Cide Hamete Berengel la. Esse nome he de Mouro. Será , que eu nað duvido ; pois pela maior parte tenho ouvido dizer que os Mouros sað amigosde Berengellas. Olha que te enganas sem dú vida , meu Sancho no sobrenome desse Cide ,, que em Arabico quer dizer , Senhor. Poderá ser ; mas se V. Mercê quer que eu faça vir cá o tal Volandas , irei por elle. Dar-me-has nisso muito gosto ; pois me tem suspenso quanto me disseste , nem eu comerei bocado , que bem me saiba , em nað for informado de tudo. Eu vou por elle disse Sancho . E deixando o Amo , foi buscar o Bacharel , com o qual voltou dalli a pouco tempo , e entre os tres tiverað huma graciosissima conversa cao. quant o nað ? CA PARTE II. CA P. III. 31 CAPITULO III. Do ridiculo arazoamento , que tiverao D. Quixote , Sancho Pança , e o Ba charel Sansað Carrasc o. > ENSATIVO por extremo ficou D. Quixo te , esperando o Bacharel Carrasco de quem esperava ouvir novas de si mesmo , dadas ao prelo como Sancho lhe tinha dito. Nao podia persuadir-se de que tal Historia houvesse ; pois ainda nao estava enxuta a espada , tinta no sangue dos ini. migos , que matára , já queriaổ que an dassein estampadas as suas altas Cavalla rias . Todavia imaginou que algum sabio , amigo , ou inimigo , porarte de encanta mento as tinha dado à luz ; se amigo , pa ra engrandecellas , e exaltallas sobre as mais assignaladas de outro qualquer Cavalleiro andante ; e se inimigo para aniquilallas , e pôllas abaixo das mais vís , que se tives . sem escrito de algum vil escudeiro , ainda que , dizia elle comsigo , nunca se escurecê rab façanhas de Escudeiros. E quando fos se verdade que tal Historia houvesse , sen do 32 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. do de Cavalleiro andante , por força ha via de ser elegante , insigne , magnifica, e verdadeira. Com isto se consolou hum pou co ; mas desconsolou-o o pensar que o seu Author era Mouro , como se colhia do no me , que tinha , e que dos Mouros nað se podia esperar verdade , porque todos sao falladores , falsarios , e inventores de qui meras . Temia-se que nað tivesse tratado dos seus amores com alguma indecencia que redundasse em inenoscabo , e prejuizo da honestidade de sua amada Dulcinea de Toboso. Desejava que elle tivesse declara do qual era a sua fidelidade , e o decóro que sempre guardára , menos-prezando Rai nhas , Imperatrizes , e donzellas de todas as qualidades, assistindo sempre aos impul sos dos movimentos naturaes . Nestas , e outras muitas imaginações envolto , e em baraçado o acháraó Sancho , e Carrasco a quem D.Quixote recebeo com muita cor tezia . Era oBacharel ainda mava Sansað , de corpo nað muito grande ; que muito astucioso , de côr maci. lenta , mas de grande juizo : teria até vin te e quatro annos ; redondo da cara , nariz chato e bocca grande : signaes todos de que se cha se bem ser PARTE II. CAP. III. 33 ser de condiçað maliciosa e amigo de gracejar, como o mostrou , assim que vio a D.Quixote , ajoelhando diante delle , e pedindo -lhe as mãos para beijar : Senhor D. Quixote de la Mancha , disse , pelo ha bito de S. Pedro , que visto , ainda que nao tenha mais que as primeiras quatro ordens, he V. Mercè hum dos mais famosos Caval leiros andantes, que tem havido , e haverá em toda a redondeza da terra. Bem haja Cide Hamete Benengeli, que a Historia das vossas grandezas deixou escrita , e bem ha ja tambem o curioso , que teve o cuidado de fazellas trasladar do Arabico no nosso idioma Castelhano para universal enterte nimento de todos. " Pedio -lhe D. Quixote que se levantasse , e disse : Visto isso he certo haver Historia minha e ter sido Mouro , e sabio quem a compôz. Tað ter to he , Senhor, disse Sansað para mim harer hoje já impressos mais de doze mil livros da ral Historia ; e senao di ga-o Portugal , Barcelona , e Valença , on de se tem impresso , e até dizem que se es tá imprimi ndo em Antuerpia , e quer-me parecer que nao haverá Naçað , nem Idio ma , em que nao seja traduzida.Huma das Tom. IV. , que tenho C COU 34 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. cousas , disse entað D. Quixote , que mais deve contentar hum homem virtuoso, e emi Aente he vêr- se , em sua vida , bem estima do' , e reputado entre as Nações do mundo, impresso , e estampado o seu nome. Disse que bem estimado , e reputado , porque a nao ser assim " , nað ha morte que o iguale. Se isso está em boa fama e bom nome , tornou o Bacharel , só V. Mercê leva a pal ma a quantos Cavalleiros andantes ha ; por que o Mouro na sua lingua , e o Christað na sua tivérað o cuidado depintar-nos mui to ao vivo a galhardia de V. Mercê , sua grande affouteza em acommerter os perigos, a paciencianas adversidades, eo soffrimen to assiin nas desgraças , como nas feridas , a honestidade , epaciencia nos seus amores tao platonicos com a Senhora D. Dulcinea de Toboso. Nunca vi dar Dom á Senhora Dulcinea , minha Ama, dieze Sancho Pan ça : sempre ouvi nomealla a Senhora Dul cinea de Toboso , e já nesta parte erra a Historia . Nað heobjecçao de importancia essa , respondeo Carrasco. Nao por certo disse D. Quixote ; mas diga-me V. Merce, Senhor Bacharel , quaes saoentre as minhas facunhas as que mais se pondérað nessa His to / PARTE II. CAP. III. 35 toria ? Nisso , respondeo o Bacharel ha dif ferentes opiniões , assim como ha differen tes gostos. Huns dizem que a aventura dos moinhos de vento , que a V.Mercê se fi gurárað em Gigantes , e Briareos ; outros à dos moinhos depisao : este a descripcao dos dous exercitos, que depois parecêrað dous rebanhos de carneiros : aquelle encare ce a do morto , que levavao a enterrar a Segovia. Hun diz que a todas leva vanta gem a da liberdade dos Galés : outros que nenhuma iguala á dos dous Gigantes Bentos, com a pendencia do valeroso Biscainho. Diga-me , Senhor Bacharel , perguntou en tao Sancho , e nað faz mençað tambem a Historia da aventura dos Yanguezes quan do o nosso Rocinante teve vontade de fazer o papel de enamorado ? Nað ficou nada nó tinteiro ao sabio , respondeo Sansað ; tudo diz , e de tudo faz mençao , até das cabrio las , que o bom Sancho fez na manta . Na manta nað fiz eu cabriolas , disse Sancho ; no ar sim , e maior número do que eu qui zéra. Pelo que vejo ', tornou D. Quixote , nað ha Historia humana no mundo , que nað tenha seus defeitos , especialmente as que trataó de Cavallarias , as quae nunca Cü pó 36 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. pódem estar chêas de prosperos successos.* Todavia , instou o Bacharel , dizem alguns, que tem lido esta Historia , que folgaria) , se aos Authores della tivessem esquecido algumas das bordoadas sem número , que dérað no Senhor D. Quixote. Nisso diz a Historia verdade , acodio Sancho. Tambem podérað callar-se neste ponto por equidade, disse D.Quixote ; pois aquellas acções , que nem mudað , nem alterao a verdade da His toria , nað he necessario escrevellas , se hao de redundar em menos preço do Heróe da Historia. Por certo que Eneas nao foi tao piedoso , como Virgilio o pinta , nem Ulys ses tað prudente , como o descreveHome ro. Assim he , replicou Sansað ; mashuma cousa he escrever , como Poeta , e outra co mo Historiador. O Poeta pode contar , ou cantar as cousas , naó como forao como deviað ser , e o Historiador ha de escrever , nao como deviað ser , mas como forað ; sem áccrescentar , nem diminuir em nada a verdade. Como o Senhor Mouro , disse Sancho , assim se põe a dizer as ver dades , seguramente fará mençað das mi nhas bordoadas entre as de meu Amo ; por que nunca a elle lhe medírað as espaduas , que mas > PARTE II. CA P. III. 37 que nað me medissem tambem a mim todo o corpo. Porém nað he isto de admirar pois como diz o mesmo Senhor , meu Amo, da dor da cabeça haõ de participar os mem bros. Muito chocarreiro es , Sancho , disse D. Quixote : o certo he que nao te falta a memoria , quando a queres ter. Quando eu quizesse esquecer-me , tornou Sancho , das pancadas , que tenho levado , nað o con sentiriao as pizaduras , que ainda as tenho frescas nas costellas. Calla-te , disse D.Qui xote , e nao interrompas o Senhor Bacha rel , a quem rogo que vá continuando a dizer-meo que se diz de mim na Historia , de que tratamos. E de mim , replicou San cho ; que tambem dizem que sou huma das principaes presonages della . Persona gens, e nao presonages, amigo Sancho, dis se Sansao. Outro reprochador de voquiblos temos , disse Sancho ; pois se nisto con tinuað , nað acabaremos toda a vida. Má vida me dê Deos , Sancho , respondeo o Bacharel , senaõ es a segunda pessoa da His toria ; e ha tal , que estima mais ouvir -te fallar , do que ao maispintado de toda el la : posto que tambem ha quem diga que foste demasiadamente credulo em crêr que po 38 D . QU IX OT E DE LA MA NC HA . podia ser verdade o governo daquellá Ilha offerecida pelo Senhor D. Quixote , que presente está . Ainda o Sol da nos muros, disse D. Quixote , e quanto mais Sancho for entrando em annos , com a experiencia, que elles dao , tornar-se-ha mais idoneo , emais habil para governar , do que nao he agora. Por amor de Deos ! disse Sancho ; aIlha , Senhor , que eu nao governasse com os annos , que tenho , nao a governa rei com os de Mathusalem . O máo he estar a tal Ilha nao sei onde ; que nað me falta a mim cadencia para governalla. Encom menda tu o negocio a Deos , disse D. Qui xote , que tudo se fará , Sancho , melhor talvez do que cuidas ; que sem a vontade de Deos nada se move. Isso he certo , tor nou Sansao ; que se Deos quizer nað falta ráó a Sancho mil Ilhas para governar , quan to mais huma . Governadores tenho eu vis to por ahi, disse Sancho , que a meu vêr naochegað á sola do meu capato , e com tudo isso dao-lhes huma Senhoria , e se ser vem com prata . Esses nað sao Governado res de Ilhas , replicou Sansað , mas de ou tros governos de menos ponderaçao ; pois aquelles, que governað Ilhas , pelo menos hao PARTE II . CAP . III . 39 > haó de saber Grammatica. Com a Gramma me haveria eu bem , disse Sancho mas com a tica nað me metto , porque nao sei o que he. Porém deixando estas cousas de governo nas mãos de Deos , que me en caminhe para onde melhor o sirva , huma cousa direi eu , Senhor Bacharel Sansað Carrasco , e he que infinitamente gosto que o Author da Historia tenha fallado de mim de tal maneira que nað enfada o que de mim se conta ; pois á fé de bom Escudei ro que se demim tivera dito cousas , que nað sao muito de Christao velho como os surdos nos haviaõ de ouvir. Isso seria fazer milagres , replicou Sansað. Ou milagres , ou nað milagres , disse Sancho, veja cada hum como falla , oucomo escre ve daspessoas, e nao diga a troche moche o que lhe vein á imaginaçao. Hum dos de feitos , que põe a esta Historia disse o Bacharel , he introduzir nella o seu Author huma Novella intitulada o Curioso Imper tinente ; nao porque ella seja má , nem mal arrazoada , senao porque he impropria do lugar , e nao tem nada com a Historia do Senhor D. Quixote. Aposto eu disse San cho , que o maganað misturou alhos com bo 40 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. bogalhos ? Agora digo que nað foi sabio o que escreveo a minha Historia , disse D. Quixote , mas algum ignorante falla dor , que sem saber o que fazia se metteo a escrevella , sáhia o que sahir ; como fazia Orbaneja , pintor de Ubeda , que sendo lhe perguntado o que pintava , respondeo, o que sahir. Talvez pintava hum gallo de tal sorte , e tað mal parecido que era mise ter escrever-lhe em letras gothicas por bai xo : He bum Gallo. Tal deve de ser a mi nha Historia , que necessitará de Commen tario , para que a entendao. Isso nað , res pondeo Sansao ,porque he tað clara , que nað ha difficuldade nella : os meninos a tra zem entre mãos , lem-a os mocos , os ho mens a entendem , e os velhos a celebrao : em fim tað vulgar he , e tað sabida de todo o genero de pessoas, que apenas alguem vê hum cavallomagro , diz logo : Ahi vai o Rocinante. Todavia os quemais setem dado á leitura della sað os pages. Nao ha antecamara de Fidalgo , onde riað se veja hum D. Quixote. Se huns o largað , outros lançað mað delle , e todos o querem lêr. Em fim esta Historia he a que diverte com mais gosto , e menos prejuizo ago , que até PARTE II. CA P. III. 41 agora se tem visto ; porque em toda ella nað se descobre , nem por sombras , huma só palavra deshonesta , nemhum pensamen to que nað seja catholico. Quem escrevêra d'outra sorte, disse D.Quixote, nað escrevê ra verdades , senaõ mentiras , e os Histo riadores , que se valem de mentiras deviao de ser queimados , como os que fazem moeda falsa : nem eu sei que motivo teve o Authorpara valer-se de Novellas , e con tos estranhos , tendo tanto que escrever de mim. Sem dúvida quiz seguir o proverbio: de palha , e feno , & c. Pois o certo he que só em tratar dos meus pensamentos , sus piros, lagrimas , e bons desejos , e aconte cimentos , podéra fazer hum volume maior, ou tað grande , como o quepodemfazer to das as Obrasde Tostado. Com effeito , Se nhor Bacharel o que eu alcanço he que para compôr Historias quer que elles , e ellas sejað , he necessario grande juizo , e madura capacidade ; que o dizer graças , e escrever cousas , que di virtað he só para os grandes engenhos. A mais discreta figura dehumaComedia he a do Bobo ; porque nað o ha de ser o que quer dar a conhecer que he simples. A His e Livros , quaes to 42 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. rém , que toria he como cousa sagrada ; pois deve ser verdadeira , e onde está a verdade , está Deos em quanto verdade. Alguns ha po , que assim compõe , e larga de si os Livros , como se fossem bolinhos. Nað ha Livro tað máo , disse o Bacharel , que nao tenha alguma cousa boa . Nað ha dúvida , replicou D. Quixote ; porém muitas vezes acontece que os mesmos , que tinhao jus tamente grangeado grande fama por seus escritos ,tanto que os dao ao prélo , per dêrað - a de todo , ou de alguma maneira a manchárað. Nað he outra , tornou Sansao, a causa disso , senao que como as Obras im pressas sao vistas mais devagar , facilmen te se lhes descobre as faltas ; e tanto mais examinadas sað , quanto he maior a fama do que as compôz. Os homens fainosos por seus talentos , os grandes Poetas , os cele bres Historiadores , sempre , ou as mais das vezes saộ invejados daquelles , que fa zem gosto , e tomao por divertimento par ticular o ajuizar dos escritos alheios , sem os ter dado seus á luz pública. Isso nað he de admirar disse D. Quixote ; porque muitos Theologos ha , que nao sao bons para o Pulpito, e sa o optimos para conhe cer PARTE II. CA P. III. 43 cer das faltas , ou demasias dos que pré gað. Tudo isso assim he , Senhor D.Qui xote , disse Carrasco ; mas quizéra eu que Os taes censuradores fossem mais miseri, cordiosos , e menos escrupulosos , sem es tar reparando nos atomos do Sol clarissimo da Obra , de que murmurao ; que se ali quando bonus dormitat Homerus , razað he que considerem o miiitoque esteve desper to para dar a luz da sua Obra com a menor sombrapossivel : e pode serque o mesmo, que aelles lhes parece mal , fossem signaes, que ás vezes accrescentao a formosura do rosto a quem os tem . Pelo que grandissi mo heoperigo a que se expõe o que im prime hum Livro , sendo absolutamente im possivel que seja composto de tal maneira, que satisfaça , e contente a quantos o lerem . oque demim trata, disse D.Quixote ,a poucos terá contentado. Pelo contrario tornou Sansað , que como stultorum infi nitus est numerus , infinitos sao os que tem gostado da tal Historia : e alguns ha que taxao de defeituosa e mal intencionada a memoria do Author , pois se esquece de de clarar quem foi o ladrao que turtou o Ruço a Sancho , e só se infere * do escrito lhe > , que 44 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. The furtáraó , e dahi a pouco o vemos mon tado sobre o mesmojumento sem ter appa recido . Dizem tambem que se esqueceo de dizer o que fez Sancho daquelles cem es cudos , que achou na malazinha em Serra Morena , pois nunca mais falla nelles. Mui tos desejað saber o que fez delles ,e em qne os gastou , por ser hum dos pontos essen ciaes. Eu , Senhor Sansað , respondeo San cho , nao estou agora para metter -me em contas , nem contos ; porque tað fraco es tou do estomago , que senað tomo dous go les do velho , virei a parar na espinha. Em casa o tenho , que por mim espera : vou por elle , e tanto que acabarde jantar , vol tarei para dar satisfaçað a V.Mercê , ea todo o mundo , sobre o que quizerem per guntar -me , assim acerca da perda do ju mento , como da despeza dos cem escudos. E sem esperar resposta , nem dizer outra palavra ,foi-se para sua casa. Pedio D.Qui xote ao Bacharel que se deixasse ficar para fazer penitencia com elle . Acceitou o Ba charel o convite , e deixou-se ficar. O jan tar constou de dous pombinhos , mais do ordinario ; e em quanto comiaó conversá rað sobre Cavallarias , seguindo Sansað Car PARTE II. CAP. IV . 45 Carrasco nella o humor de D.Quixote. Fin do o banquete , dormíraó a sesta ; e voltan do depois Sancho renovou - se a conversaçao passada. CAPITULO IV. Em que Sancho Pança satisfaz ás dúvidas do Bacharel Sansaõ Carrasco , e d'ou tros successos dignos de contar se , e saber -se. TORNOU Sancho Pança á casa de D. Qui xote , e renovando -se a mesmaconversaç aó , respondeo ao Senhor Sansað que desejava saber quein , como , e quando lhe fora fur tado o seu jumento , dizendo : Namesma noite , que fugindo da Santa Irmandade , entramos em Serra Morena , depois da des aventurada aventura dos Galés , e da do de funto , que levavað para Segovia , meu Amo , e eu , metteino-nos por hum bos que , onde arrimado meu Amo á lança , e eu montado no meu ruco , moidos , e can çados das refregas passadas, pozemo-nos a dormir como se fora sobre quatro col chóes de pennas : especialmente eu , que dor 46 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. dormi huin somno tað pesado , que quem quer que foi teve vagar de chegar-se a mim, e suspender-me sobre quatro estacas , que póz aos quatro lados da albarda ; de ma neira que me deixou a cavallo sobre ella , e tirou o ruço debaixo de mim , sem que eu o sentisse . Isso he cousa facil , e nað acontecimento novo , disse D.Quixote , pois o mesmo aconteceo a Sacripante , quando achando-se ao cerco de Albraca , com essa mesma invençað , lhe sacou o cavallo de entre as pernas aquelle famoso ladraố , cha mado Brunélo. Amanheceo o dia , conti nuou Sancho , e apenas dei hum movimen to ao corpo , faltára ) as estacas , e dei hu ma grande quéda no chao. Procurei o ju mento, e nað o vî: vierað -me as lagrimas aos olhos , e fiz tal lamentaçaõ que se della nað faz mençao o Author da nossa Histo ria , bem pode crêr que nao tratou de hu ma cousa boa. Passados nao sei quantos dias , vindo com a Senhora PrincezaMico micoa , conheci o meu burro , e vinha mon tado nelle , em trajo de Sigano ; Gines de Passamonte , aquelle embusteiro , e gran dissimo velhaco , que eu e meu Amo ti rámos da cadêa . Nao está nisso o erro re> pli PARTE II. CA P. III. 47 an plicou Sansað , mas em dizer o Authorque hia Sancho montado no mesmo ruço , tes que elle apparecesse. A isso , disse San cho , nao sei eu responder , senaó que o Historiador se enganou ; se he que nao foi descuido do Impressor. Nað ha dúvida que assim he , tornou Sansað ; mas que foi fei to dos cem escudos ? Desfizerao -se. Gas tei -os eu , respondeo Sancho , em proveito meu , e de minha muiher , e filhos , e elles tem sido causa de que minha mulher leve com paciencia as caminhadas, e carreiras, que tenho dado em serviço de meu Amo o Senhor D. Quixote ; pois se no fim de tanto tempo voltára sem real , e sem burro para minha casa , negra ventura fora a minha. E se ha mais quesaber de mim , aqui estou , que responderei ao mesmo Rei em pessoa. È ninguem tem que metter-se em averiguar, se eu trouxe , ou nað trouxe , se gastei , ou nað gastei, pois se as bordoadas, que me đérað nestas viagens , se houvessem de pa gar a dinheiro , ainda que fossem taxadas a , quatro maravedis cada huma outros cem escudos me pagavao a metade. Metta cada hum a mað ein si , e nað se ponha a julgar o branco pelo negro , nein com nem 48 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. > o negro pelo branco ; que cada hum he co mo Deos o fez , e ainda muitas vezes peior. Eu terei cuidado , disse Carrasco , de ac cusar o Author da Historia , para que , havendo de reimprimilla nað se esqueça do : que o bom Sancho disse , pois lhe dará al guma valía mais , do que agora tem. Ha mais que emmendar nessa Historia , Senhor Bacharel ? Perguntou D. Quixote. Alguma haverá , respondeo Sansað , mas nenhuma tað importante , como as que ficaố ditas. E por ventura promette o Author segunda parte ? Promette ; porém diz elle que nao a tem achado , nem sabe quem a tenha , e desta inaneira estamos em dúvida , se sa hira , ou nao , assim por este motivo , co mo porque alguns dizem que segundas par tes nunca forao boas ; e outros D. Quixote assaz he o que está escrito : se bem que aquelles , que sao mais, jo viaes , que saturninos querem mais quixo tadas , e dizem que invista D. Quixote , falle Sancho Pança , seja o que for ; que com isso nos contentemos. E de que acor do está o Author ? Achado , que tenha a , Historia , que busca com extraordinarias diligencias , dalla á luz , levado mais do , que de in PARTE II. CA P. IV. 49 do que em . interesse , que disso se lhe segue , de algum outro louvor. No dinheiro , e in teresse he que o Senhor Author põe a mi ra ? disse Sancho : maravilha será , se acer tar ; porque nao fará outra cousa , senao fallar, e alivanhar como alfaiate vesperas dePascoa : e as obras, que se fa zem á pressa , nunca se acabaõ com a per feiçao , que se requer. Attenda esse se nhor Mouro ao que faz ; que eu , e meu Amo lhe daremos tanto que escrever sobre aventuras , e outros successos differentes que possa compôr nao digo huma , senaố hum cento de segundas partes. Sem dúvida, deve o homem de cuidar que adormecernos aqui entre as palavras : engana-se ; e metta-, se elle comnosco , verá para o que pres- . tamos. O que sei dizer he que se meu Amo tomára o meu conselho , andariamos a esta hora por esses campos desfazendo aggra vos , e reparando injustiças , como heuso , e costume entre os bons Cavalleiros andan tes. Ainda bem Sancho nao tinha acabado de dizer estas palavras , quando ouvio rin char Rocinante : o que D. Quixote tomou. por felicissimo agouro , e determinou fazer dahi a tres , ou quatro dias outra sahida. , Tom . IV. D E 50 D. QuixoTE DE LA MANCHA. E declarando o seu intento ao Bacharel , pedio -lhe conselho , por que parte começa ria a sua jornada . Meu parecer he , respon deo-lhe elle , que vá V.Mercê ao Reino de Arágað , e passé á Cidade de Saragoça , ende dahi a poucos dias se haó de fazer humas justas muito vistosas pela festa de S. Jorge , nas quaes poderá V.Mercê gran gear fama sobre todos os Cavalleiros Ara gonezes ; o que será o mesmo que grangeal la sobre todos os do mundo. Louvou -lhe depois disso ser honradissima a sua deter minaçað , e de muito valor ; e advertio -lhe que fosse mais attento em accommetter os perigos , visto que a sua vida nað era sua senao daquelles , que necessitavao della pa ra séu amparo , e soccorro nas desventuras. Disso heque eu , Senhor Sansao , arrene go , disse Sancho ; pois assim accominette ineu Amo a cem homens armados , como hum rapaz goloso a meia duzia de casta nhas . O certo he , Senhor Bacharel , que tempo ha de accommetter , e tempo de re tirar ; e ninguem está obrigado a fazer maisdoque póde. Quanto mais que tenho ouvido dizer , e a meu Amo mesmo , se bem me lembra , queentre os estremos de CO > PARTE II. CAP. IV. 51 cobarde , e temerario está o meio , que he a valentia ; e se isto assim he , nem quero que elle fuja sem ter de que , nem que ac commetta quando a victoria exceda ás suas forças. Sobre tudo aviso a meu Amo que havendo de levar-me comsigo , ha de ser com a condiçað de batalhar elle sempre só, e nao estar eu obrigado a outra cousa se nao a cuidar da sua pessoa no que toca ao seu aceio , e regalo ; pois nisso ninguem o servirá melhor que eu , nem com maior di ligencia. Mas cuidarque hei de metter mad á espada , bem que seja contra qualquer vil lao roim de cixó , e gabaó , he escusado ; porque eu , Senhor Sansao, nao pretendo ganhar fama de valente , mas do melhor e mais leal Escudeiro , que tem servido a Cavalleiro andante. E se meu Amo , o Se nhor D. Quixote , obrigado dos meus mui e bons serviços, quizer dar-me algu ma Ilha das muitas , que elle diz que se hao de encontrar por ahi , receberei nisso muita mercê ; e quando nað ma dê , crea tura sou , e nað ha de viver o homem n'ou tro , nem d'outro , senaõ de Deos : quana to mais que melhor me saberá o pao sem governo , do que sendo eu Governador. E D ii quem tos , 52 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. quem me diz a mim que nesses governos nað me tenha o diabo armado alguma zan gadilha , em que tropece , caia , e quebre. os queixos ? Sancho nasci , e Sancho pre tendo morrer. Mas senao obstante isso muito suavemente , e ás boas , sem muita fadiga , nem grande risco me deparasse o Ceo alguma Ilha , où outra cousa semelhan te , nað sou tað nescio que a desprezasse ; pois tambem se diz : Bom he sempre re ceber , e huin bom dia mette-se em casa. Tens dito , meu Sancho , como hum Ca thedratico , disse Sansað ; mas ainda as sim confia em Deos , e no Senhor D. Qui xote , que te ha de dar hum Reino , e nao huma Ilha. Tanto he o deinais como o de menos , respondeo Sancho ; se bem que huma cousa sei dizer ao Senhor Carrasco e he que nað deitará meu Amo o Reino que me der , em sacco roto ; pois bem me tenho tomado o pulso a mim mesino com saude me acho para reger Reinos , e governar Ilhas: o que já disse outras vezes a meu Amo. Huma cousa deves de adver tir , Sancho , e he , disse Sansað , que os offícios mudað os costumes , e poderia ser que vendo-te Governador , nao conheces e ses PARTE II . CAP. IV. 53 ses a mãi . , que te pario. Isso lá deve-se en tender , respondeo Sancho , com os que nas cêrað nas malvas , e nao com os que tem sobre a alma quatro dedos de enxundia de Christãos velhos , como eu os tenho. Nao recée V. Mercê que seja desagradecido com ninguem . Deos o permitta , disse entao D. Quixote , e elle dirá quando ha de vir o governo , que já me parece que o trago diante dos olhos. Pedio logo ao Bacharel que , se era Poeta , lhe fizesse mercê de. compôr alguns versos á despedida ., que pretendia fazer de sua amada Dulcinea de Toboso ; advertindo-lhe que 'no principio de cada verso havia de pôr huma letra do seu nome ; de maneira que no fim dos ver sos, juntando as primeiras letras , se lesse : Dulcinea del Toboso. Respondeo o Bacha rel que nað deixaria de coinpôr os versos que , posto que nað fosse dos fa ? mosos poetas , que havia em Hespanha , os quaes diziao que só erað tres e meio ; mas que huma difficuldade grande achava na sua composiçao , por serem dezasete as letras, que continha o nome. Porque se fa zia quatro quartetos de quatro versos , so brava-lhe huma letra , e se de cinco , a que cha The pedia , 54 D . QUIXO TE DE LA MANC HA . chamað redondilhas , faltavað tres ; porém que faria muito por embeber huma letra'o melhor que podesse , de maneira que nos quatro quartetos se incluisse o nome de Dulcinea del Toboso . Ha de serassim em todo o caso disse D. Quixote ; porque se o nome nað for patente , e manifesto , nað ha mulher que creia terem sido feitos a ella os versos. Nisto assentáraó , e em que a partida sería dahi a oito dias. Encarre gou D. Quixote ao Bacharel que a enco brisse , especialmente do Cura , e de Mes tre Nicoláo , e de sua sobrinha , e Ama , para que nao lhe estorvassem a sua vale rosa , e honrada determinaçao. Assim o prometteo Carrasco , e despedindo-se de D. Quixote , recommendou -lhe que de to dos os seus successos, felizes', ou infelizes , lhe desse aviso , tendo commodidade Sancho foi a darordem ao necessario para a suajornada. e СА . PARTE II . CAP. V. 55 CA P ] T U LO V. Da discreta , e graciosa prdtica , que se passou entre Sancho Pança , e sua mu Iber Theresa Panca , e de outros suc cessos dignos de feliz recordaçao. ENTRANDNTRANDO O Traductor desta Historia a escrever este quinto Capitulo , diz que o tem por apocrifo ; porque nelle falla San cho Pança em estilo differente daquelle que se podia esperar do seu curto engenho, é cousas diz tað subtîs , que nao julga ser possivelque elle as soubesse. Masnað quiz deixar de traduzillo para cumprir como que devia ,e assiin proseguio , dizendo : Chegou Sancho á sua casa tað alvoroça də , e alegre, que sua mulher , tanto que o vio , lheconheceo a alegria , por manei ja quese vio obrigada a perguntar-lhe : Que te isso Sancho , meu querido , que tað ale gre vens ? Mulher , respondeo elle , qui zera Deos , que eu folgaria de nað estartao contente , como mostro . Nao te entendo marido , replicou ella , nem sei o quequer res dizer nisso , que folgáras, se Deos qui: zé 56 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. 1 zéra , de nað estar contente ; pois ainda que mulher tonta , como sou , nao sei que haja quem receba gosto em nað tello. Mi nha Theresa , tornou-lhe Sancho , eu estou alegre , porque tenho determinado tornar a servir a meu Amo D. Quixote , o qual quer terceira vez sahir a buscar aventuras, e eu volto tambem com elle , porque as sim o quer a minha necessidade, com a esperança , que me alegra , de poder acha: outros cem escudos como os que estao já gastos ; posto que me entristece o ter de apartar -me de ti , e dos meus filhos ; e se Deos quizera dar-me que comer a'pé enxu to , e na minha casa , sem andar por ca minhos asperos , e encrusilhadas , pois o podia fazer com pouco custo , e só como seu querer , claro está que inais firme fora a minha alegria , e mais estimavel , visto ir misturada a que tenho com a tristeza , e magoa de deixar-te. Pelo que bem disse eu que folgára , se Deos quizera , de nað es tar contente. Olha , meu Sancho , depois que tefizeste membro de Cavalleiro andar te , fallas com taes rodeios de palavras , que nað ha quem te entenda. Bastante he que Deos me entenda , mulher ; pois elle tudo . en 1 PARTE II. CAP. V. 57 entende ; e fique isto aqui. Mas deves de ad vertir que te convem ter conta estes tres dias com o ruço ; de maneira que esteja prestes para tomar armas. Dobra -lhe a ra çao : vê se percisa de alguma cousa a albar da , e os demais aparelhos ; porque nað vamos a nenhum noivado , mas a rodear o mundo , e a ter dares , e tomares com Gi gantes , hydras , e monstruosos espectros , e a ouvir rugidos , e mugidos. Mas 'tudo isto nað sería nada , se nað tiveramos que entender com Yanguezes , e Mouros encan tados. Bem digo eu , marido , que os Es cudeiros andantes nao comem debalde o pað , e assim ficarei pedindo a Nosso Se nhor , que cedo te tire de tað má ventura. Digo -te, mulher , que senað pensára vêr me governador de huma Ilha antes de muito tempo , aqui cahiramorto. Isso nað, marido de ininha alma ; viva a gallinha , e viva com sua pevide : vive tu , e leve o diabo quantos governos ha no mundo. Sem governo sahistesdo ventre de tua mãi , sem governo tens até agora vivido , e sem go - verno iris , ou serás levado á sepultura , quando Deos for servido . Muitos ha no mundo , que vivem sem governo , e nem por 58- D. QUIXOTE DE LA MANCHA. > por isso deixaõ de viver , e ser contados entre a gente . A melhor mostarda domun do he a fome; é como esta nunca falta aos pobres , sempre comein com gosto. Vê po rém , meu Sancho , que nao te esqueças , se vieres por ventura com algum governo , de mim e de teus filhos. Has de advertir , que o nosso Sanchosinho , tem já quinze annos feitos, e he bem que vá á escola , se he que seu tio o Abbade quer admittillo á Igreja. Adverte tambem que Maria San cha nað morrerá se a casarmos ; pois já me vai parecendo que deseja tanto ter huin marido, como tu hum governo , e por fim melhor parece a filha mal casada , que bem abarraganada, Olha tu , se eu chegar a ter huin bom Governo , que dê alguma cousa , affirıno -te , mulher , que casarei tað bem Maria Sancha , que ninguem a nomêe se nao coin huma Serhoria. Isso nao Sant cho : has de casalla com hum homem igual a ella , que he o mais acertado ; porque se dos tamancos a metteres em chapins , e de saia parda de sarja a veludos , é saboianas de seda , e de huma Maricas , e de hum tû passar a hum dom , e a huma Senhoria , nað saberá ninguem da rapariga ; e a cada pas PARTE II. CAT. II. 59 passo cahirá em mil defeitos , mostrando o fio de sua grossa , e tapada têa. Calla-te , tolla , que tudo se vence em dous , ou tres annos de prática , e passados elles assen tar- lhe-ha bem a Senhoria , e gravidade ; ? quando assim nað seja , que importa isso ? seja ella Senhora , e venha o que vier. Nein fallar nisso he bom , Sancho : naó queiras hombrear com os maiores , e lembra-te do rifaó , que diz : Ao filho do teu visinho , limpa-lhe o nariz , e metteo em tua casa. Sería por ventura gentil cousa casar a nossa Maria com algum grande Conde , ou Can valleirote, que quando lhe desse na vonta de lhe cantasse a cantilena , descompondo -a de aldea , filha deste , e destoutra ? Nao nos meus dias , marido : nem eu criei para isso a minha filha . Traze tu dinheiro , e deixa o casalla por minha conta ; que ahi está Lopo Tocho , o filho de Joao Tocho , moço rolliço , e sað , e que nos conhece mos muito bem , o qual sei eu que nað olha com maos olhos para a rapariga , e com el he nosso igual , ficará ella bem ca sada , sempre a teremos á vista , e todos seremos huns , pais , e filhos netos genros, e a paz , e bençao de Deos andará le , que e en 60 D.QUIXOTE DE LA MANCHA. entre nós todos. Mas casalla tu agora nes sas Cortes , e nesses grandes palacios, on de nem a entendaó a ella , nem ella se en tenda com ninguem , isso he loucura . Vem cá besta , mulher de Barrabáz , porque queres tu agora , sem que nem para que estorvar -meque nao case aminha filha, com quem me dê neros , que tenhaõ huma Se nhoria > Olha , Theresa , sempre ouvi di zer aos mais velhos , que eu , que quem nað sabe aproveitar -se da ventura , quando chega , não tem de que queixar-se , se del le foge ; e por isso nao sería bein , que es tando -nos ella agora á porta , lha cerrasse mos. Deixemo -nos levar deste vento favo ravel , que hora nos sopra. ( Por este mo do de fallar , e pelo que mais abaixo diz Sancho tem o Trductor desta Historia por apocrifo este Capitulo. ) Nað te parece, tolleirona , proseguio Sancho bem dar com o ineu corpo em algum Go verno lucroso , que nos tire o pé do lodo, e casar Maria Sancha , com quem eu qui zer ? Verias entao como te chamavao a Se nhora D. Theresa Pança , e te sentavas na Igreja sobre alcatifas , almofadas , com in veja , e pezar das Fidalgas do nosso povo ? Qual , que será PARTE II. CAP. V. 61 3 Qual he melhor ? Estar sempre n’hum ser , sem crescer , nem mingoar , como figura de gêsso ? Nað fallemos mais nisso ; que Sanchinha ha de ser Condeça , por mais que tu me digas. Vê o que dizesdizes , marido pois teino que este Condado de minha filha ha de ser a sua perdiçao. Faze o que qui zeres ; que quer a faças Duqueza , quer Princeza , o que te sei dizer he que nad o será por vontade , nem consentimento meu. Sempre fui amiga da igualdade , e nað pos so vêr entonamentos mal fundados. The resa foi o nome , que me derað 'no baptis mo , limpo sem accrescimos nem guardapizas , e muito menos coin re quifes de Dons. Cascalho se chamou meu pai , e eu , por ser tua mulher , Theresa Pança , que em boa razað me devia cha mar Theresa Cascalho. Mas lá vað leis ; onde estað os Reis ; que eu com este nome me contento , semque me ponhaó em ci ma hum Dom , que pézetanto , que eu nað possa com elle. Nem eu quero dar que fal lar aos que me virem andar vestida á fi dalga , ou á governadora ; pois nað falta rá quem diga : Olhem como vai entona da a porqueira : hontem nað se fartava de e secco2 fiar 62 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. fiar estopa , e hia á Missa com a saia sobre a cabeça em lugar de manto e hoje vai já com guardapé ,broches e toda ento nada , como senaõ a conhecessemos. Em quanto Deos me conservar os meus sete , ou cinco sentidos , ou quantos tenho , nao pretendo dar occasiaó para ver -me ein tal aperto. Vai tu , Sancho , a ser Governador, ou o que quizeres na tua Ilha , e entona-te a teu gosto ; que nem eu , nem minha fi lha , por vida de meu pai , que nað dare mos hum passo fóra da nossa aldea : á mu lher honrada , perna quebrada , e em ca sa , e a donzella honesta , trabalhar he sua festa. Vai-te com o teu D. Quixote ás tuas aventuras , e deixa-nos com as nossas roins venturas , que Deos no -las melhorará , co mo sejamos bons : e eu por certo que nað sei quem lhe deo a elle o Dom , pois nað o tiverað seus pais , nem seus avós. Ago ra digo eu , replicou Sancho , que tens al gum duendo nesse corpo. Valha-te Deos , mulher ! que assim tens enfiado humas cou sas por outras sem ter pés , nem cabeça ! Que tem o Cascalho , os broches , os ri fãos , e o entonamento com o que eu di go ? Vem cá , mentecapta , e ignorante , > pois PARTE II. CAP. V. 63 pois assim te posso chamar, visto que nað entendes o que digo , e foges da tua ven tura ; se eu disséra que minha filha se des penhasse de huma torre , ou que se fosse por esse mundo , como quiz ir a Infanta D. Urraca , razaố tinhas para nao convir no meu gosto ; mas se de duas palhetadas, e em menos d'hum abrir , e fechar d’olhos ponho -te a tua filha com hum Dom , e com huma Senhoria ás cóstas , e a tiro de entre os colmos para collocalla debaixo de hum docel , e sobre mais almofadas de veludo do que quantas tiveraõ em toda a sua des cendencia os Mouros de Marrocos , por que nao has de consentir , e querer o qne eu quero ? Sabes porque , marido ? Por que diz o rifaó : Quem te cobre te desco bre. Todos passað de corrida os olhos pe lo pobre; mas ninguem passa pelo rico , que nao fite os olhos nelle ; e se este foi al gum dia pobre , nað ha quem nað murmu re , e diga mal e o peior he que huma vez quecomeçað nunca acabað os maldi zentes , que por essas ruas sao aos montes , como enxames de abelhas. Olha Theresa , ouve o que te quero agora dizer , pois tal vez que nunca o tenhas ouvido em todos os dias 64 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. dias de tua vida. Nada do que agora digo he meu : tudo quanto tenho de dizer-te sað sentenças do Padre Pregador , que a Quaresma passada prégou neste povo . E se bem ine lembro 'disse elle : Que todas as cousas presentes , que os olhos estao vendo , se nos apresentað á memoria , e nella estað , e perseverað muito melhor , e com mais vehemencia , do que as pas sadas. Donde vem , que quando vemos al guma pessoa ricamente vestida , e com gran de pompa acompanhada de criados, pare ce que por força nos move , e convida , a. que lhe tenhamos respeito ; posto que ame moria nos represente alguma baixeza , em que já a vimos ; que como esta ignorancia, ou seja de pobreza , ou de nascimento , he já passada , só vemos o que elle he , e nað o que era. E se aquelle ,a quem a fortuna tirou da sua baixeza , ( por estes mesmos termos se explicou o Padre ) para exalçal lo ao cume da prosperidade , for bem crea do , liberal , e cortez com todos , e nað entrar a contas com aquelles , que por an tiguidade sað nobres , tem por certo , mi nha Theresa , que nao haverá quem se lem bre do que foi, e que só reverencêem o que PARTE II, CAP. V. 65 que elle he , exceptuando os invejosos , de quem nao está segura a prospera fortuna. Nao te entendo , marido , faze tu o que quizeres , e nað me quebres mais a cabe ça com as tuas arengas, e rethoricas. E se estás revoluto a fazer o que dizes. Resolu to has de dizer , e nað revoluto. Nao te ponhas agora a argumentar comigo , mari do : eu fallo , como Deos he servido , e nað me metto em mais debuxos : e assim se estás teimoso em ter Governo , leva com tigo o teu filho Sancho , para que o vásjá ensinando a ter governo ; que bem he que os filhos herdem , e aprendað os officios de seus pais. Quando eu tiver Governo , man darei buscallo pela posta , e te remetterei dinheiro , que entañ nað me faltará ; pois nunca falta quem o empreste aos Governa dores , quando nað o tem . Mas veste - o de maneira , que disfarce o que he , e pareça o que ha de ser. Manda tu o dinheiro , que eu o vestirei , como hum palmito . E en taó , assentamos emque a nossa filha ha de ser Condeca ? No dia , em que a vir Con deça , farei conta que a enterro. E torno a dizer-te que faças o que for teu gosto ; pois com essa carga nascemos as mulheres , de Tom. IV . E se r 66 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. que seser obedientes a seus inaridos , bem jað huns potros. E dizendo isto começou a chorar com tantas véras , como se víra já morta , é enterrada a filha. Consolou - a Sancho , dizendo -lhe que quando a hou vesse de fazer Condeça , sería o inais tar de que podesse ser. Este o fim da sua con e Sancho voltou para D. Quixo te a dispor-se para a sua partida. CAPI T U LO VI. Do que passou D. Quixote coin sua sobri nha , e ama ; e he humdos impor tantes Capitulos de toda a His toria, EM quanto durou esta impertinenteprá tica de Sancho Pança com sua mulher Theo resa Cascalho , nað estavao ociosas a so brinha , e ama de D. Quixote , que por hum sem número de indicios hiao colligin do , que seu Tio , e Amo terceira vez que ria desgarrar- se , e tornar ao exercicio da sua , para ellas , mal andante Cavallaria. Procuravaó por todos os meios possiveis apartallo detað máo pensamento , mas tu do PARTE II. CA P. VI. 67 do era prégar no dezerto , e malhar em ferro frio. Todavia , entre outras muitas razões , que passárað com elle , disse-lhe a ama: Na verdade , Senhor , que se V, Mercê sahe de sua casa para andar por es. ses montes, e vales , como alma penando , a fim de buscar essas , que chamaó aven turas , e eu desventuras, voz em grita me queixarei a Deos , e a ElRei , para quepo nhao remedio a isso. Ama , respondeo D. Quixote , o que Deos responderá ás tuas queixas , nað sei eu , e tao pouco o que ha de responder Sua Magestade. O que sei he que se eu fora Rei , me escusára de respon der a tamanha infinidade de requerimentos importunos , como os que cada dia lhe fa zem ; que hum dos maiores trabalhos, que os Reis tem entre outros muitos , he a obri gaçaõ de ouvir a todos , e responder a to dos ; e assim nao queria eu que cousa mi nha lhe desse pesadumbre. Diga -nos V. Mercê , Senhor , na Corte de Sua Mages tade nao ha Cavalleiros. Muitos , e razag he que os haja para adorno da grandeza dos Principes , e ostentaçað da Magestade Real. Pois nað sería melhor que V. Mercê fosse hum dos que a pé quedo seryissem ao seu E i Rei , 68 D. QUIXOTE DE LA MANCHA. > Rei , e Senhor na Corte ? Olha tu , filha ; nem todos os Cavalleiros podem ser Corte zãos , e nem todos os Cortezãos pódem , nem devem ser Cavalleiros andantes. De to dos ha de haver no mundo ; e ainda que todos sejamos Cavalleiros , vai muita dif ferença de huns aos outros; porque os Cor tezãos sem sahir das suas pouzadas , nem arredar pé da Corte , passeao por todo o mundo , pondo os olhos n’hum Mappa , sem custar-lhes dinheiro , nem soffrer ca lores , frios , fomes , e sedes . Porém nós outros os verdadeiros Cavalleiros andantes , expostos ao Sol , ao frio , ao ar , ás incle mencias do Ceo , noite , e dia , a pé , e a cavallo , medimos toda a terra com os nos sos proprios pés , e nað só conhecemos os inimigos pintados , mas tambem em seu proprio ser , accommettendo-os em todo o trance , e em toda a occasiao , sem atten der
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