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MEDITAÇÕES METAFÍSICAS A obra, de 1941, contém a concepção epistemológica e metafísica cartesiana e deve ser considerada como o ponto central de toda sua produção filosófica. Brevemente mencionado na Quarta Parte do Discurso, o conteúdo das Meditações visa, a partir da dúvida metódica, descobrir a verdade sobre o mundo e estabelecer um método seguro para descobrir essa verdade, partindo daquilo que é mais simples e evidente até o mais complexo e obscuro. I. PRIMEIRA MEDITAÇÃO: DAS COISAS QUE SE PODEM COLOCAR EM DÚVIDA Primeiramente, é preciso averiguar se aqueles conhecimentos adquiridos ao longo de nossa vida, através da repetição e da tradição possuem fundamento seguro. Esses conhecimentos, à época de Descartes, advinham do sistema aristotélico, aceito pelas autoridades escolásticas e que baseava o conhecimento nos dados dos sentidos, isto é, um sistema filosófico baseado na experiência. Descartes sabia que haviam ocasiões em que os sentidos nos enganavam a cerca dos objetos externos. Por exemplo, um objeto muito distante daquele que o observa, poderá parecer menor do que realmente é. Lembremos que o século XVII foi marcado por um intenso processo de ruptura devido às descobertas de Copérnico e Galileu. Para nós, situados na Terra, esta parece estar parada, ser plana e o centro em torno do qual gira todo o universo. Essa é a conclusão dos sentidos, aquela em que chegou Aristóteles. A descoberta de que a terra se move, que é redonda e que não é o centro do universo, vai de encontro com aquilo que é evidenciado com muito clareza e obviedade pelos sentidos. Descartes, num primeiro momento, rejeitará totalmente qualquer dado apresentado pelos sentidos, não porque tivesse a certeza de que todos eram enganosos, mas porque esse passo era necessário se quisesse chegar a algum conhecimento verdadeiro sobre a realidade. Se existem experiências verdadeiras, antes será preciso que elas sejam provadas, que se apresentem de tal modo que não seja possível pô-las em dúvida. Para chegar a esse ponto, antes é necessário saber se é possível alguma experiência indubitável. Desse modo, a dúvida dos sentidos deve assumir um caráter generalizante. Não se trata mais de duvidar apenas daquelas experiências que não se apresentam a nós de forma clara e imediata (um objeto visto a uma grande distância, por exemplo), mas também daqueles dados que se apresentam a nós imediatamente como verdadeiros e certos. Levanto minha mão e observo a sua palma, observo cinco dedos, observo que ela se conecta a um braço. Vejo que possuo um corpo, que este encontra-se sentado, que ocupa um espaço e que está rodeado por outros objetos que aparecem a mim como indubitavelmente existentes. Ouço sons vindos do lado de fora de meu quarto e identifico como sons de automóveis. Todas essas coisas posso perceber através de meus sentidos e poderia parecer loucura propor que nada disso existe ou que existe de modo distinto daquele que percebo. Então, devo de imediato concluir que existem dados dos sentidos verdadeiros e indubitáveis a partir dessas constatações? Para que se coloque todas essas coisas em dúvida, basta lembrarmos que durante o sono representamos essas mesmas coisas sem que elas sejam de fato verdadeiras e que, sonhando, geralmente não nos damos conta de que os objetos que a nós se apresentam não são reais. Portanto, mesmo que nossas experiências se apresentem a nós como claras e óbvias, existe a possibilidade de serem representações de um sonho, do qual não nos damos conta que estamos. Assim, Descartes supõe que a realidade é um sonho. Entretanto, mesmo nos sonhos, certos aspectos fundamentais são preservados. Os objetos representados nos sonhos são “como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro(Meditações, I, § 6)”, isto é, não sonhamos com objetos que não observamos em vigília. Independentemente de quão bizarro seja o sonho, sempre haverão formas, extensões, movimentos, sons etc. Portanto, mesmo que estejamos sonhando, as representações que fazemos devem corresponder a objetos existentes. Resta agora saber em que cenário esses aspectos fundamentais podem ser colocados em dúvida. Descarte suporá que existe um ser muito poderoso, uma espécie de Deus maligno e enganador que faz com que nossas mentes não sejam capazes de encontrar a verdade em nenhum aspecto, isto é, que sempre que se adicione 2+3 encontremos o resultado 5, quando na verdade o resultado correto é outro que não nos é acessível. Chega-se a tal ponto que tudo o que existe pode ser colocado em dúvida: as opiniões, os sentidos e até mesmo os raciocínios. Descartes encontra-se agora num estado de ceticismo absoluto, porém, não pretende permanecer nele. O próximo passo consistirá na substituição da dúvida por alguma verdade tão clara e distinta a ponto de não haver nenhum cenário em que sua falsidade seja admitida. II. SEGUNDA MEDITAÇÃO: DA NATUREZA DO ESPÍRITO HUMANO E DE COMO ELE É MAIS FÁCIL DE CONHECER DO QUE O CORPO A primeira verdade que Descartes descobre é a sua própria existência. Evidentemente, mesmo que eu não conheça verdade alguma ou que duvide de tudo, devo necessariamente existir, pois o ato de adquirir um conhecimento, quer seja ele verdadeiro ou falso, pressupõe um sujeito que sabe ou que não sabe. Nem mesmo a hipótese do Deus enganador é capaz de provar que não existe o sujeito do conhecimento. Não se pode enganar quem não existe. Portanto, pelo simples fato de que penso, duvido e me engano, posso estar certo de que existo – penso, logo existo. Mas se é certo que eu existo, isso não se deve a qualquer atributo corpóreo, e sim por que penso. Lembremos que, fora a certeza de que existo, todas as outras coisas ainda estão desacreditadas. Se sei que existo, isso se deve ao fato de que estou pensando e não porque possuo um corpo, posto que esse ainda sim pode ser falso, sou, portanto, um ser pensante – res cogitans. Por conhecer antes o pensamento do que o corpo, Descartes admite que a alma é mais fácil de se conhecer que o corpo, pois aquela se apresenta ao espírito com tanta clareza e distinção que em cenário algum é possível colocá-la em dúvida. III. TERCEIRA MEDITAÇÃO: DE DEUS; QUE ELE EXISTE Na terceira meditação, Descartes buscará eliminar a hipótese da existência de um Deus enganador, pois isso se faz necessário para que a clareza e a distinção possam ser adotados como critério de conhecimento. Como vimos, se há um Deus enganador, então não temos como saber se o mais simples raciocínio matemático não é uma ilusão provocada em nosso espírito por um artífice maligno que nos controla. A constatação “penso, logo existo” é tão clara e distinta que não é possível imaginar qualquer cenário em que ela seja falsa. Essa clareza e distinção devem ser os critérios para o conhecimento verdadeiro, deve-se, portanto, generalizar esse critério. Isso apenas poderá ser feito se refutarmos o argumento do Deus enganador, de modo que isso só poderá ser feito a partir da análise da única coisa que conhecemos até o momento: o ser pensante. De fato, aos objetos externos, nesse ponto, não podemos atribuir o valor de verdade. Entretanto, as ideias que deles formo existem em meu espírito de maneira clara e distinta. Quais são os gêneros do pensamento? Os pensamentos que podemos chamar de ideias são como imagens ou representações das coisas. Estas existem dentro de mim, independentemente de seu valor de verdade, “quer eu imagine uma cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra(Meditações, III, § 7)”. Há pensamentos que são vontades ou afecções: temo algo, desejo algo, afirmo algo, nego algo etc. Esse tipo de pensamento também está isento de qualquer investigação a cerca de seu valor verdade, pois se temo algo ou quero algo, quer esse algo exista ou não, é sempre verdadeque temo e que quero. Resta um último modo de pensamento, os juízos. Em relação a eles, devemos nos acautelar, pois através deles, as ideias que estão no espírito se relacionam com os objetos externos, que foram postos em dúvida. Devemos então investigar de que modo ideias e objetos se relacionam de modo que dessa relação surja semelhança. Sobre os tipos de ideias que temos, Descartes diz: “(…) umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se chama uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que não o obtenho em outra parte senão em minha própria natureza; mas se ouço agora algum ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até o presente julguei que estes sentimentos procediam de algumas coisas que existem fora de mim; e enfim parece-me que as sereias, os hipogrifos e todas as outras quimeras semelhantes são ficções e invenções de meu espírito(Meditações, III, § 10)”. Assim, há três tipos de ideias: inatas, externas e inventadas. As ideias externas e inventadas são as representações que fazemos dos objetos. Isso acontece por duas razões: 1) a natureza nos inclina a relacionar uma ideia a um objeto fora de nós; 2) isso não depende de nossa vontade. Quanto a essas duas razões, Descartes afirma que a semelhança estabelecida entre objeto e ideia não vem a nós pela “luz natural”, do mesmo modo que vem a proposição “penso, logo existo”, pois caso viesse, não haveria como pô-la em dúvida. Vem de uma inclinação da natureza, por isso, não há como admiti-las como critério referente a verdade e a falsidade, posto que os objetos externos não aparecem ainda com suficiente clareza e distinção e que os sentidos podem nos enganar. Contudo, considerando as representações, não sob seu aspecto formal e subjetivo como meras ideias presentes no espírito, mas como imagens de coisas, percebe-se facilmente que elas se distinguem umas das outras quanto ao seu conteúdo. Tem-se, portanto, que as representações tomadas como atos do ser pensante existem indistintamente, por outro lado, distinguem-se entre si quando em relação aos seus conteúdos são comparadas. Desse modo, uma ideia particular deve ser o efeito de uma causa particular que deve possuir alguma realidade objetiva. A razão, ou a “luz natural” mostra que não pode haver mais realidade no efeito do que na causa, do mesmo modo que o nada não pode produzir qualquer coisa. Para descobrir alguma coisa existente, além do ser pensante, basta que se encontre uma ideia que não pode ter sido causada pelo próprio ser pensante. Quanto a ideia que tem das coisas corporais, Descartes não consegue encontrar para elas nenhuma causa que não participe dele enquanto ser pensante. “Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou uma coisa que é por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substância, embora eu conceba de fato que sou uma coisa pensante e não extensa, e que a pedra, ao contrário, é uma coisa extensa e não pensante, e que, assim, entre essas duas concepções há uma notável diferença, elas parecem, todavia, concordar na medida em que representam substâncias. Da mesma maneira, quando penso que sou agora e me lembro, além disso, de ter sido outrora e concebo mui diversos pensamentos, cujo número conheço, então adquiro em mim as ideias da duração e do número que, em seguida, posso transferir a todas as outras coisas que quiser(Meditações, III, § 20)”. E diz o mesmo a cerca das qualidades formais de todas as coisas corpóreas, como a extensão, a figura, a situação e o movimento de lugar “(…) é verdade que elas não estão formalmente em mim, posto que sou apenas uma coisa que pensa; mas, já que são somente certos modos da substância, e como que as vestes sob as quais a substância corporal nos aparece, e que sou, eu mesmo, uma substância, parece que elas podem estar contidas em mim eminentemente(Meditações, III, § 21)”. De todas as ideias que possui, Descartes encontra uma, a qual não poderia ter sido causada por ele mesmo, a ideia de um Deus que é substância perfeita, infinita, eterna, imutável, independente, onipotente, onisciente e que é responsável pela criação de todas as outras coisas que existem no mundo. A causa da ideia de Deus, isto é, a realidade objetiva de Deus, deve necessariamente existir fora do sujeito, pois esse, apesar de ser uma substância e ser capaz de formar a ideia de substância por si próprio, por ser imperfeito, não possui em si o atributo da perfeição ilimitada que há na substância divina. Esse atributo, portanto, deve existir fora do sujeito, logo Deus existe. IV – QUARTA MEDITAÇÃO: DO VERDADEIRO E DO FALSO Assim, a existência de Deus é provada como algo necessário. Além disso, agora Descartes pode descartar a hipótese de um Deus enganador, salvando consequentemente os aspectos mais fundamentais da realidade. Isso porque todo engano depende da imperfeição e se Deus é substância perfeita, a Ele não pode ser atribuído nenhum engano. Ocorre que todo engano advém da própria incompletude do espírito humano e não do fato de Deus querer que nos enganemos. “Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim(Meditações, IV, § 7)” Entretanto, essa explicação não é suficiente, pois se o erro fosse simplesmente a negação metafísica de uma perfeição que cabe unicamente a Deus, como poderia ocorrer a obtenção de conhecimento? O erro, deve portanto, advir de alguma privação. Por que ocorre essa privação? Para Descartes, o erro ocorre devido a duas causas: a faculdade de conhecer e o poder de escolher, ou o entendimento e a vontade. Enquanto o entendimento concebe as ideias, sem dizer nada a respeito da sua verdade ou falsidade, a vontade é o poder de discernir entre o certo e o errado. Essas duas faculdades são perfeitas por cumprirem o propósito de Deus, porém se distinguem na medida em que o entendimento humano é finito e limitado e a vontade infinita e ilimitada. Dessa disparidade nasce o erro, pois: “(…) sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque(Meditações, IV, § 10)”. Assim, nosso entendimento não concebe todas as ideias, por isso é limitado. Por sua vez, nossa vontade não encontra limites e se estende até aquilo que não é acessível ao entendimento, gerando o erro. V – QUINTA MEDITAÇÃO – DA ESSÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS; E NOVAMENTE, DE DEUS, QUE ELE EXISTE A esse ponto, Descartes já sabe que existe, que Deus existe e que o critério de clareza e distinção define o conhecimento verdadeiro. O próximo passo será averiguar o que se pode conhecer a respeito das coisas materiais. A primeira coisa que ele faz é se voltar para as ideias que existem em seu pensamento a cerca das coisas materiais, a fim de descobrir quais delas são claras e quais são confusas. Então, pensando a cerca de certas propriedades como quantidade, largura, profundidade e extensão, percebe que essas propriedades parecem já existir em seu espírito e não devem sua existência à experiência sensorial. A natureza dessas propriedades não deixa de ser verdadeira e imutável mesmo que não exista nenhum objeto que corresponda a elas fora do pensamento. Por exemplo: “(…) quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento,tal figura, e que nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver certa natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito(Meditações, V, § 5)”. Mas não seria absurdo objetar que a ideia de triângulo tenha entrada em nosso espírito através dos sentidos, pois nos deparamos com objetos triangulares frequentemente. Entretanto, o espírito é capaz de formar a ideia de figuras que nunca viu. Isso porque no espírito existem as ideias das propriedades citadas acima e elas nos aparecem de modo tão claro e distinto que não há como negar que sejam verdadeiras. Logo, os objetos da Aritmética e da Geometria devem existir, pois as ideias que formo deles são sempre claras e distintas. A partir da constatação de que as ideias que forma dos entes matemáticos são inseparáveis de sua existência, Descartes afirma que a essência de Deus que se encontra em seu espírito é inseparável de sua existência, posto que se concebo Deus como infinito e perfeito, sua existência é inseparável de sua essência. VI – MEDITAÇÃO SEXTA – DA EXISTÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS E DA DISTINÇÃO REAL ENTRE ALMA E CORPO DO HOMEM Na última Meditação, Descartes investigará as coisas materiais. Sabe de antemão que elas podem existir, pois são concebidas clara e distintamente como objetos de demonstrações da Geometria, e também porque Deus, em sua perfeição, é capaz de produzir qualquer coisa desde que não apresente contradição lógica. Mas como se percebe as coisas materiais? Descartes chama a atenção ao fato de que sua imaginação as concebe. A imaginação é diferente da intelecção. Por exemplo, é possível supor um triângulo quer pensando em suas propriedades racionais (que possui três lados, por exemplo), quer imaginando sua figura. Algo diferente ocorre com um quilógono (figura de mil lados), posso supor racionalmente suas propriedades, mas a imaginação não é capaz de produzir sua imagem com clareza. Assim, a imaginação encontra-se em nós de forma bastante limitada em relação a nossa intelecção. A imaginação, parece não ser essencial ao espírito, mas vir de fora dele. Se existem corpos e coisas exteriores ao espírito, elas devem se apresentar aos sentidos que, por sua vez, as reportam à imaginação. Desse modo, Descartes conclui que as coisas sensíveis devem existir, porém não com necessidade, tal como o cogito ou Deus, mas como contingência e em separado da alma, que é a sua essência.
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