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A lógica química da vida Ricardo Vieira Professor de Bioquímica – Universidade Federal do Pará E‐mail: jrvieira@ufpa.br ma das questões mais antigas da ciência é como as células funcio‐ nam?; como, dentre tantas alterna‐ tivas metabólicas, elas “escolhem” uma como principal?; por que a célula “prefere” sintetizar uma molécula em de‐ trimento de outra?; por que células de um único organismo possuem metabolismo tão distinto? Questões como essas são fundamentais para orientar os estudos destinados a desvendar os mistérios do metabolismo celular, apesar de demonstrar um antropocentrismo típico em “hu‐ manizar” as “preferências” por esta ou aquela via por ser a “melhor”, a que trás “mais vantagens”. É lógico que a célula não tem como “esco‐ lher” o que vai fazer baseada em “preferências” ou em “desejos”. Ao contrário, a célula não tem escolhas! As leis básicas da química e termodinâ‐ mica dão o ritmo às suas atividades metabólicas e a vida passa a ser um equilíbrio dinâmico das reações metabólicas que garantem sua persistência em um ambiente geralmente hostil e que permite a vida desde que sejam cumpridas regras quími‐ cas universais. Após séculos de desenvolvimento científi‐ co, pode‐se concluir com segurança que os fenô‐ menos bioquímicos são regidos pelas mesmas regras que regem todas as reações químicas. Não há evidências de uma força externa ao ambiente celular que “conduza” a vida em um sentido es‐ pecífico que não àquele que rege qualquer outra molécula e isto é válido para todos os seres vivos, sem “privilégios” para nenhum em especial. Paradoxalmente, a “persistência” da vida em ir contra as leis da termodinâmica que de‐ monstram que o caos rege o espontâneo, as células “insistem” em sintetizar moléculas complexas contra as correntes caudalosas da termodinâmica, conservando energia ao invés de dispersá‐la para o meio. Enquanto que as leis do universo indicam que é “mais fácil” ser aniquilada, a célula “insiste” em “viver”. O que é a vida, então, se não uma “tentativa desesperada de não morrer”? Dentro desse contexto, esse artigo almeja apresentar os mecanismos básicos de manutenção desse equilíbrio dinâmico dos processos celulares responsáveis por uma lógica longe de ser incerta, a vida. Metabolismo O termo tem origem do grego metabolé (mudança, troca) + ismos (ação) e indica o conjunto de transformações químicas de um organismo para a formação, desenvolvimento e produção da energia necessária para manter a vida. As reações metabólicas podem ser de duas categorias: síntese e degradação. Quando moléculas simples se organizam em moléculas mais complexas, há o fenômeno de síntese ou anabolismo, termo que deriva do grego anabolé (demora) o que lembra o caráter de retardar a morte das células. De fato, em reações anabólicas são sintetizadas as moléculas que garantem o armazenamento de energia para as reações celula‐ res futuras. No entanto, para que ocorram reações anabólicas, é necessária a existência de energia disponível para a síntese que é garantida pelas reações do catabolismo celular, termo que deriva do grego katabolé (ação de atirar de cima para baixo) e sugere a propriedade de decréscimo e‐ nergético típico das reações de degradação de moléculas complexas. Moléculas que são degradadas liberam a energia existente em suas ligações químicas e essa energia é usada para sintetizar outras moléculas. Assim, as reações catabólicas e anabólicas se aco‐ plam, uma fornecendo a energia que será utiliza‐ da pela outra. Dentro do ponto de vista energético, a manutenção da energia celular é essencial para que haja sempre uma quantidade de energia dis‐ ponível para a síntese de biomoléculas. A energia liberada por uma reação quími‐ ca não é criada, mas já existia antes e estava arma‐ zenada nos substratos sob outra forma; essa ener‐ gia também não se perde, mas permanece no sis‐ tema armazenada nos produtos, sob outra forma. As moléculas complexas sintetizadas na célula são, portanto, verdadeiras “baterias” que armaze‐ U A lógica da vida Ricardo Vieira 2 nam energia vital que é liberada para as reações de síntese no momento de sua degradação. Essa “cumplicidade” entre reações catabó‐ licas e anabólicas é a essência da regulação dos complexos processos que mantém a vida (Figura 1) No interior das molé‐ culas complexas, existe um emaranhado de ligações químicas que se mantém com a manutenção de um estado energético alto em virtude do complicado arranjo entre os átomos no que diz respeito à ordenação dos elétrons nas ligações químicas. No entan‐ to, para que haja a desorga‐ nização da estrutura molecu‐ lar é necessário que seja irra‐ diada energia sobre a molé‐ cula (energia de ativação). A quantidade de e‐ nergia necessária para levar a molécula a uma situação de máxima instabilidade (estado de ativação) varia em cada tipo de molécula. De uma maneira geral, quanto maior a presença de elementos que confiram instabilidade à molécula (p.ex.: presença de átomos de alta ele‐ tronegatividade), menos energia de ativação será necessário para induzir o estado de ativação. Uma vez atingido o estado de ativação, a molécula complexa se desorganiza, ligações quí‐ micas se desfazem e moléculas mais simples pas‐ sam a ser formadas utilizando menos energia que antes e o excesso de energia passa a ser liberada para o meio externo. Assim, o nível energético das novas moléculas se mantém mais baixo do que a molécula original. Como o meio passa a ter um nível energético maior, esse tipo de reação é tipicamente descrito como exotérmica. De maneira inversa, nas reações endotér‐ micas as moléculas dos substratos absorvem e‐ nergia do meio externo até atingirem um estado de ativação e se organizarem em um novo arranjo mais complexo do que o anterior. A diferença básica está no fato que parte da energia de ativa‐ ção fica acumulada nas moléculas que passam, portanto, a serem mais energéticas e menos está‐ veis do que as originais. Como todas as atividades biológicas de‐ pendem de gasto de energia, as reações anabólicas garantem as moléculas a serem catabolizadas de acordo com as necessidades da célula. Os dilemas biológicos da termodinâmica Entropia e entalpia O estudo da termodinâmica (do grego therme, calor + dynamis, energia) aborda os efeitos da energia sobre a matéria. Nos sistemas biológicos, a energia de ati‐ vação das reações geralmente é o calor, com e‐ xemplares exceções como a fotossíntese onde a energia luminosa desencadeia o processo de sín‐ tese da glicose nos vegetais. A energia armazenada nas moléculas é denominada de conteúdo de calor ou entalpia (H) (do grego enthalpein, aquecer) . Dessa forma, em reações exotérmicas (catabólicas) há a queda da entalpia das moléculas com produtos menos energéticos que os substratos e, de maneira inver‐ sa, nas reações endotérmicas a entalpia aumenta. Como o calor é espontaneamente trans‐ mitido de um corpo mais quente para outro mais frio e o aumento da temperatura leva a um estado mais desorganizado das moléculas, pode‐se con‐ cluir que as reações onde há o aumento da ental‐ Figura 1 – Síntese e degradação de moléculas absorvem ou geram e‐ nergia. Essa energia é compartilhada nas reações anabólicas e catabólicasdo metabolismo celular. A lógica da vida Ricardo Vieira 3 Figura 2 – Variação de energia livre (∆G) em uma reação exergônica. Como os produtos são menos energéticos (energia livre menor) que os subs‐ tratos, ∆G assume valores negativos. A energia gasta na ativação das moléculas (∆GAt) é devolvida ao meio que recebe energia adicional da reação (aumento da entropia). pia das moléculas (reações exotérmicas, catabóli‐ cas) são favoráveis àquelas que os produtos são mais energéticos (reações endotérmicas, anabóli‐ cas). O grau de desordem de um sistema é de‐ nominado entropia (S) (do grego em, dentro de + trope, curva) e, portanto, varia de maneira inversa a entalpia. Portanto, uma reação espontânea é aquela que possui uma variação entálpica e entrópica favorável (os produtos são menos energéticos e a desordem do meio aumenta). De maneira inversa, se as condições de entalpia e entropia forem des‐ favoráveis, a reação é não‐espontânea. O conceito de ener‐ gia livre No entanto, resta o problema da energia da ati‐ vação que precisa estar dis‐ ponível antes do início de qualquer reação seja exo ou endotérmica. É essa energia que se torna fundamental para os organismos vivos pois depende não das molé‐ culas, mas do meio ambiente. Dessa forma, surge um terceiro conceito de ener‐ gia que é o mais importante em bioquímica tendo em vista que as células não su‐ portam uma variação de temperatura muito alta em virtude de sua composição frágil. De uma maneira geral, acima de 50oC, a maioria das proteínas é desnaturada a ponto de comprometer a sobrevivência da célula, apesar das inevitáveis exceções como, por exemplo, a bactéria Thermus aquaticus cujas proteínas resistem a mais de 90oC. Essa energia que precisa estar disponível para que as reações tenham início é denominada de energia livre (G) e foi postulada por J. Willard Gibbs, em 1878, e revela o verdadeiro critério para que as reações sejam espontâneas ou não. De uma maneira geral, se a reação for fa‐ vor favorável entalpicamente (exotérmica), mas não entropicamente ela só será espontânea se o meio estiver em temperaturas abaixo da variação entrópica pois somente assim haverá desorgani‐ zação expressiva. De maneira inversa, se a reação não for favorável entalpicamente (endotérmica), mas sim entropicamente (a temperatura do meio é alta a ponto de garantir um certo grau de desordem), a reação poderá ser espontânea em temperaturas acima da variação entrópica pois assegura que a absorção de energia não diminuirá o grau de de‐ sorganização de maneira significativa. Essas condições de variação de energia livre (∆G) são as que caracterizam a espontanei‐ dade de uma reação biológica (Figura 2). As reações espontâneas possuem valores de ∆G negativos indicando que as condições pro‐ pícias de entropia e entalpia estão adequadas a temperatura do meio que fornece a energia neces‐ sária para que a reação se inicie (∆GAt). Ao final do processo, a energia gasta na ativação dos subs‐ tratos é devolvida ao meio a energia própria da molécula (entalpia) é adicionada ao meio que aumenta, portanto, a entropia. As reações não espontâneas são possíveis desde que haja energia livre no meio suficiente para garantir o estado de alta entropia ao final da reação, mesmo que a molécula absorva parte de dessa energia (Figura 3). O ∆G dessas reações é positivo indicando que os produtos possuem um nível energético maior (entalpia) que os substratos. A entropia ao A lógica da vida Ricardo Vieira 4 Figura 3 – Variação de energia livre (∆G) em uma reação endergônica. Como os produtos são mais energéticos (energia livre maior) que os substratos, ∆G assume valores positivos. A reação só ocorre se houver energia de ativação (∆GAt) disponível para os substratos atingirem o estado de transição que garantam um certo grau de desordem (entropia). Essas reações, aparentemente contra as leis da termodinâmica, são possíveis graças à energia livre do sistema celular e produzem moléculas instá‐ veis que serão espontaneamente degradadas, posteriormente. final da reação continua alta em virtude da ener‐ gia livre disponível no meio no início da reação. Os termos reação exergônica e endergô‐ nica (do grego ergon, trabalho) são preferenciais a exotérmica e endotérmica pois indicam a variação de energia livre e sugerem que a energia envolvi‐ da nas reações catabólicas e anabólicas são desti‐ nadas a um trabalho celular e não somente a vari‐ ações de temperatura no interior da célula. A vida, então, vai contra as leis da termodinâmica? O fato de as reações de síntese não serem espontâneas termodinamicamente não significa que não ocorram. Havendo condições adequadas de energia livre, a reação ocorrerá apesar de os produtos serem de maior entalpia, aparentemente contra as leis da termodinâmica. Os estudos da termodinâmica são feitos em sistemas fechados que atingem o equilíbrio após as reações permitindo uma determinação precisa dos fatores energéticos envolvidos. A vida, no entanto, ocorre em um sistema aberto (a célula) e, portanto, nunca atinge o equi‐ líbrio. Os seres vivos conso‐ mem nutrientes, degradam moléculas, sintetizam outras novas, geram calor e trabalho. Usualmente, considera‐ se como a primeira lei da ter‐ modinâmica a observação u‐ niversal de que a energia é conservada nos processos químicos de qualquer nature‐ za. Isso também é observado nas reações bioquímicas pois a energia liberada nas reações catabólicas é absorvida nas re‐ ações anabólicas. Paradoxalmente, esse intricado processo de reações acoplado produz um certo grau de organização momen‐ tânea que garante a vida. Se as condições que garantem essa malha de reações é alterada de maneira significativa o sistema tenderá ao equilíbrio tal qual nos sistemas fechados, o que significa a perda das condições típicas do sistema celular, ou seja, a morte. A segunda lei da termodinâmica indica que os processos espontâneos induzem a desor‐ dem (aumento da entalpia). Isso é possível em organismos vivos desde que o grau de a ordena‐ ção típico da vida (anabolismo) é garantido graças a uma desordem maior devido às reações catabó‐ licas associadas. Uma conclusão típica é de que deve haver uma preponderância de reações cata‐ bólicas o que, para as células, representaria a morte. Resta à vida manter‐se dentro de condições favoráveis de variações de energia livre para man‐ ter‐se a favor da segunda lei. Na verdade, esse fenômeno chamado vida não é perceptível somente nas reações celulares, mas em toda a biosfera onde se percebe que há uma interação entre os diversos processos bioló‐ gicos favorecendo um estado de equilíbrio carac‐ terizado por uma variação constante no fluxo energético. TM Lenton em 1998 chega a concluir que a Terra é um organismo em virtude das comple‐ xas interações entre os seres vivos. Segundo esse pensamento, denominada hipótese Gaia (em alusão à entidade mítica grega representante da A lógica da vida Ricardo Vieira 5 Terra), nosso planeta sobrevive graças ao equilí‐ brio entre as reações metabólicas de todos os seres vivos diretamente ligado ao mundo inorgânico que fornece substratos básicos impossíveisde serem sintetizados nos seres vivos. Dessa forma, a morte de Gaia é somente uma questão de tempo, assim como para todo ser vivo. Sobreviver, portanto, é a essência da vida. Lutar contra as correntes da termodinâmica e, eventualmente, perder, é a lógica das moléculas. Mas ainda persiste a questão: como a célu‐ la “sabe” que “precisa” sobreviver? Como saber o que é “bom” ou o que é “ruim” para a vida? Al‐ gumas perguntas podem ser respondidas enten‐ dendo a regulação das reações biológicas A toda poderosa regula‐ ção enzimática A compreensão de que a energia livre é um regulador da espontaneidade de uma reação bioquímica, leva a um problema prático essencial para a manutenção da vida: qual é a variação má‐ xima de energia que uma célula pode suportar? Sabe‐se que temperatura acima de 50oC destrói a maioria dos seres vivos pelo simples fato de as proteínas serem desnaturadas e perderem suas funções de maneira irreversível. Temperaturas mais amenas (entre 35 e 37oC) são propícias às reações químicas da maio‐ ria dos seres vivos. De maneira contrária, baixas temperaturas ambientes podem não ser um impe‐ dimento à vida quando houver formas de manter o ambiente intracelular dentro dos limites aceitá‐ veis de temperatura. De fato, observa‐se um nú‐ mero muito maior de organismos vivendo em condições térmicas baixas do que em altas tempe‐ raturas. No entanto, quase todas as reações bioló‐ gicas possuem um nível de energia livre compatí‐ vel com a fisiologia celular, porém, paradoxal‐ mente altos níveis de energia ativação livre são necessários para que as reações ocorram. Isto a maioria das células não suporta. Como a energia de ativação não implica na energia total envolvida pela molécula após sua síntese ou degradação (ver Figuras 3 e 4) resta como opção o desenvolvimento de mecanismos que diminuam essa energia de ativação como uma maneira de possibilitar as reações químicas dentro dos limites suportáveis pela célula além de ser uma ação extremamente “econômica” para a célu‐ la, já que poupa a necessidade da célula de de‐ gradar uma quantidade grande de substratos para obter a energia necessária para iniciar as reações. A diminuição da energia de ativação é obtida sobre a ação de catalisadores. Os catalisa‐ dores químicos (p.ex.: íons metálicos) geralmente requerem altas temperaturas e pressão e pH ex‐ tremos, condições inviáveis para a célula. Na Terra primitiva, provavelmente a ca‐ tálise química providenciada pelos elementos químicos disponíveis na argila daquele ambiente a as condições extremas de temperatura e pressão devem ter sido essenciais para as primeiras rea‐ ções químicas. Hoje em dia, entretanto, são as enzimas que proporcionam esse estado de baixa energia de ativação necessário para que a célula tenha a “chance” de sobreviver (Figura 4). As enzimas proporcionam essa baixa e‐ nergia pois possuem em seu sítio ativo compo‐ nentes que reagem com os substratos converten‐ do‐os nas moléculas do estado de transição por desestabilizar sua estrutura molecular graças a ações químicas (p.ex.: oxidação, redução, hidróli‐ se, conjugação) que necessitam de menos energia de ativação do que a reação não catalisada. Desta forma, a reação enzimática é fun‐ damental para a célula, pois aumenta a velocida‐ de da reação e permite que ela aconteça sem uma quantidade de energia proibitiva para a fisiologia celular. Um fato interessante é que as reações que precisam de uma variação muito grande de ener‐ gia de ativação, freqüentemente acontecem com a Figura 4 – A reação catalisada requer baixos níveis de ener‐ gia livre porém o ∆G permanece o mesmo. A lógica da vida Ricardo Vieira 6 Figura 5 – A cinética enzimática de duas reações onde enzimas diferentes competem por um mesmo substrato. A via principal (a mais rápida) é a que apresen‐ ta maior constante de equilíbrio (K). ação de várias enzimas em seqüência estabelecen‐ do uma verdadeira “rota” ou “via” metabólica que precisa ser cumprida para que a reação final ocorra (p.ex.: a conversão de glicose em CO2 e H2O ocorre com a ação sucessiva de mais de 20 enzimas). Neste ponto, surge uma nova peculiari‐ dade para as reações celulares: os compostos in‐ termediários da via metabólica podem ser “desvi‐ ados” do produto final caso haja a presença de enzimas que possam competir pelos substratos. Dessa maneira, a via metabólica principal será definida pela velocidade enzimática, com a aquela que possuir maior velocidade definindo o destino da maioria das moléculas. Para entender esse fenômeno, considere uma via metabólica onde um substrato A pode ser convertido nos produtos B ou C de acordo com a ação das enzimas E1 ou E2 (Figura 5). A via prin‐ cipal será definida pela velocidade enzimática, uma vez que é a que consegue gerar mais produ‐ tos na unidade de tempo. Dessa forma, quando há várias opções metabólicas, a célula “segue” para aquela que possui as enzimas mais rápidas. Um fato adicional torna essa propriedade enzimática fundamental para a célula: as enzimas podem ter sua velocidade aumentada ou diminu‐ ída desde que mudem algumas condições do meio (p.ex.: pH, temperatura, pressão) ou haja alguma mudança estrutural na enzima. Como as condições de pH, temperatura e pressão são extremamente rígidas para a célula, tais variações são menos freqüentes do que as modificações estruturais. Os principais mecanismos de aceleração (estímulo, indução) ou diminuição (inibição) de uma via metabólica correspondem aos mecanis‐ mos de regulação enzimática: 1. Regulação alostérica (do grego alos, outros + stereo, lugar): enzimas que possuem um “outro” sítio de ligação diferente do sítio catalítico. Esse sítio alostérico se liga com o produto da reação metabólica ou um dos produtos da via. Um regu‐ lador alostérico por um mecanismo de feedback positivo ou negativo, pode acelerar ou inibir uma via metabólica até o momento em que o efetor ou inibidor não for degradado. 2. Regulação hormonal: a ação química não ocorre diretamente pela ação do hormônio sobre a enzi‐ ma, mas por meio da ação de sinalização celular específica para cada tipo de hormônio. Esse tipo de regulação é típica de organismos multice‐ lulares pois envolve complexos mecanismos de detecção na “necessidade” da liberação do hormônio que age à distância da célula produtora. Geralmente requer um organizado sistema circulató‐ rio e mecanismos fisiológicos complexos de regulação. Em condições nor‐ mais, a maioria dos animais possui três momentos metabó‐ licos distintos regulados por hormônios: pós‐alimentar (in‐ sulina), jejum (glucagon) e du‐ rante os exercícios físicos (epi‐ nefrina e cortisol). Mesmo que a produção desses hormônios não seja controlada voluntariamente as condições fisiológicas que permitem a produção desses hormônios são reguladas por atitudes voluntárias (comer ou não comer; praticar ou não exercícios físicos). Desta forma, a célula “sabe” qual via metabólica realizar de acordo com o hormônio presente que irá proporcionar o aumento ou a diminuição da velocidade de enzimas nas vias metabólicas. Algumas situações patológicas po‐ dem, “confundir” a célula e leva‐la a uma via metabólica inadequada como no caso de pacientesA lógica da vida Ricardo Vieira 7 portadores de diabetes mellitus do tipo 1 que não produzem insulina o que faz com que a célula “aja” de acordo com o metabolismo de jejum, uma vez que o hormônio típico da alimentação não está presente. Epinefrina, cortisol e glucagon são hor‐ mônios que possuem mecanismos fisiológicos de ação e regulação bastante distintos, porém estimu‐ lam e inibem as mesmas enzimas o que faz com que as vias metabólicas do jejum e do exercício físico possuam grandes similaridades. De uma maneira geral, no metabolismo pós‐alimentar a célula entra em um estado anabó‐ lico intenso com a insulina acelerando as vias de síntese e inibindo as vias catabólicas. De maneira inversa, glucagon, cortisol e epinefrina são hor‐ mônios catabólicos por excelência, inibindo as enzimas anabólicas estimuladas pela insulina e acelerando as enzimas catabólicas inibidas pela insulina. Nesse jogo de competição, esses hormô‐ nios possuem papel chave na regulação metabóli‐ ca dos animais. Vegetais e invertebrados também possuem hormônios, porém de natureza diferente dos presentes nos animais, mas que guardam as mesmas funções básicas: regular vias metabólicas. Seleção natural Como vimos, o cumprimento das leis químicas universais pela célula leva um estranho equilíbrio químico onde as reações catabólicas sempre preponderam, levando a célula inexora‐ velmente à morte. De fato, “aprender” a não morrer é o se‐ gredo da vida. A partir do momento em que se estabelece mecanismos de acelerar ou inibir enzi‐ mas quando houver o risco de morte é a estratégia utilizada por todos os seres vivos. Assim, quando se estuda o metabolismo dos seres vivos, percebe‐se que o acúmulo de produto final todas as vias metabólicas levam a um grau maior ou menor de risco para a fisiologia da célula. De acordo com a tolerância celular pelo acúmulo do produto, aquela via metabólica man‐ tém‐se como principal até o momento em que está em risco a viabilidade da célula, quando devem entrar em ação os reguladores naturais. Os medicamentos são substâncias que inibem ou aceleram reações enzimáticas e, portan‐ to, funcionam como reguladores artificiais do metabolismo, estratégia utilizada pelas ciências médicas para combater efeitos nocivos de algu‐ mas vias metabólicas. Mas como a célula “aprendeu” a acionar esses mecanismos reguladores? Essa é a pergunta crucial para entender a regulação metabólica e a resposta não é tão evidente. A resposta talvez esteja na seleção natural que ocorreu nas primei‐ ras linhagens celulares da Terra há milhões de anos. Deve ter havido muitas alternativas metabó‐ licas de regulação nas células primordiais, porém aquelas que não conseguiam deter o catabolismo excessivo naturalmente induzido pelas leis impla‐ cáveis da termodinâmica simplesmente morriam e não deixavam descendentes. Somente aquelas células que possuíam al‐ ternativas de desvio metabólico que garantiam a mudança das vias metabólicas quando algum produto se acumulasse em excesso conseguiram se manter e deixar descendentes. Isso deve ser verdade, pois todas os seres vivos, sem exceção, possuem mecanismos semelhantes de feedback que garantem o não acúmulo de moléculas danosas à fisiologia celular. A via principal do metabolismo (portanto a mais rápida) de qualquer ser vivo é a via ener‐ gética, onde a glicose é convertida em moléculas mais simples (ácido láctico ou gás carbônico água) com a energia da sua degradação aproveitada para a síntese de ATP. Dessa forma, a síntese de ATP corresponde ao marco da degradação de compostos energéticos. Sem dúvida, desviar da síntese de ATP (a reação endotérmica acoplada à exotérmica degra‐ dação de glicose) foi o segredo das células para se adaptar às condições peculiares do metabolismo. De fato, dentre os seres vivos atuais não há melhores ou piores, mas uns mais adaptados que outros. Evolução biológica significa adapta‐ ção às adversidades. As moléculas também estão sujeitas a essas adversidades. Leitura recomendada LENTON TM. Gaia and natural selection. Nature, 394, 439 – 447, 1998. FUTUYMA DJ. Biologia Evolutiva. Sociedade Brasileira de Genéti- ca/CNPq. São Paulo, 1993. VIDEIRA AAP & EL-HANI CN. (Eds.) O que é vida? Para entender a biologia do século XXI. Faperj/Editora Relume Dumará. Rio de Ja- neiro, 2000. VIEIRA JRS. Fundamentos de Bioquímica. Texto didático. Cap. 5, 9 e 10., Universidade Federal do Pará, 2003. VOET D, VOET JG, PRATT CW. Fundamentos de Bioquímica. Artmed, Porto Alegre, 2000.
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