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A lógica química da vida 
Ricardo Vieira  
Professor de Bioquímica – Universidade Federal do Pará  
E‐mail: jrvieira@ufpa.br 
 
ma  das  questões mais  antigas  da 
ciência  é  como  as  células  funcio‐
nam?; como, dentre tantas alterna‐
tivas metabólicas, elas “escolhem” 
uma  como  principal?;  por  que  a 
célula  “prefere”  sintetizar  uma molécula  em  de‐
trimento de outra?; por que  células de um único 
organismo possuem metabolismo tão distinto? 
Questões  como  essas  são  fundamentais 
para  orientar  os  estudos destinados  a desvendar 
os  mistérios  do  metabolismo  celular,  apesar  de 
demonstrar um  antropocentrismo  típico  em  “hu‐
manizar” as “preferências” por esta ou aquela via 
por ser a “melhor”, a que trás “mais vantagens”. 
É lógico que a célula não tem como “esco‐
lher”  o  que  vai  fazer  baseada  em  “preferências” 
ou  em  “desejos”. Ao  contrário,  a  célula  não  tem 
escolhas! As  leis básicas da química e  termodinâ‐
mica dão o ritmo às suas atividades metabólicas e 
a  vida  passa  a  ser  um  equilíbrio  dinâmico  das 
reações metabólicas que garantem sua persistência 
em um ambiente geralmente hostil e que permite 
a vida desde que sejam cumpridas  regras quími‐
cas universais.  
Após séculos de desenvolvimento científi‐
co, pode‐se  concluir  com  segurança que os  fenô‐
menos  bioquímicos  são  regidos  pelas  mesmas 
regras que regem  todas as reações químicas. Não 
há  evidências de uma  força  externa  ao  ambiente 
celular que “conduza” a vida em um  sentido es‐
pecífico que não  àquele que  rege qualquer outra 
molécula e isto é válido para todos os seres vivos, 
sem “privilégios” para nenhum em especial. 
Paradoxalmente, a “persistência” da vida 
em  ir  contra  as  leis  da  termodinâmica  que  de‐
monstram que o caos rege o espontâneo, as células 
“insistem”  em  sintetizar  moléculas  complexas 
contra as correntes caudalosas da termodinâmica, 
conservando energia ao  invés de dispersá‐la para 
o meio. Enquanto que as leis do universo indicam 
que é “mais fácil” ser aniquilada, a célula “insiste” 
em  “viver”.  O  que  é  a  vida,  então,  se  não  uma 
“tentativa desesperada de não morrer”? 
Dentro desse  contexto,  esse artigo  almeja 
apresentar os mecanismos básicos de manutenção 
desse equilíbrio dinâmico dos processos celulares 
responsáveis por uma lógica longe de ser incerta, 
a vida. 
 
Metabolismo 
 
  O  termo  tem  origem  do  grego  metabolé 
(mudança, troca) + ismos (ação) e indica o conjunto 
de  transformações  químicas  de  um  organismo 
para a formação, desenvolvimento e produção da 
energia necessária para manter a vida.  
  As  reações  metabólicas  podem  ser  de 
duas  categorias:  síntese  e  degradação.  Quando 
moléculas  simples  se  organizam  em  moléculas 
mais  complexas,  há  o  fenômeno  de  síntese  ou 
anabolismo,  termo  que  deriva  do  grego  anabolé 
(demora)  o  que  lembra  o  caráter  de  retardar  a 
morte das células. De fato, em reações anabólicas 
são  sintetizadas  as  moléculas  que  garantem  o 
armazenamento de energia para as reações celula‐
res futuras.  
  No  entanto,  para  que  ocorram  reações 
anabólicas,  é  necessária  a  existência  de  energia 
disponível  para  a  síntese  que  é  garantida  pelas 
reações do catabolismo celular, termo que deriva 
do  grego  katabolé  (ação  de  atirar  de  cima  para 
baixo)  e  sugere  a  propriedade  de  decréscimo  e‐
nergético  típico  das  reações  de  degradação  de 
moléculas complexas.  
Moléculas que  são degradadas  liberam  a 
energia existente em suas ligações químicas e essa 
energia é usada para sintetizar outras moléculas. 
Assim, as reações catabólicas e anabólicas se aco‐
plam, uma fornecendo a energia que será utiliza‐
da pela outra. 
  Dentro  do  ponto  de  vista  energético,  a 
manutenção  da  energia  celular  é  essencial  para 
que haja sempre uma quantidade de energia dis‐
ponível para a síntese de biomoléculas.  
A energia liberada por uma reação quími‐
ca não é criada, mas já existia antes e estava arma‐
zenada nos substratos sob outra forma; essa ener‐
gia também não se perde, mas permanece no sis‐
tema armazenada nos produtos, sob outra forma. 
As  moléculas  complexas  sintetizadas  na  célula 
são, portanto, verdadeiras “baterias” que armaze‐
U
A lógica da vida 
Ricardo Vieira 
2
nam  energia vital que  é  liberada para  as  reações 
de síntese no momento de sua degradação. 
Essa “cumplicidade” entre reações catabó‐
licas  e  anabólicas  é  a  essência  da  regulação  dos 
complexos processos que mantém a vida  (Figura 
1) 
No interior das molé‐
culas  complexas,  existe  um 
emaranhado  de  ligações 
químicas que se mantém com 
a manutenção  de  um  estado 
energético alto em virtude do 
complicado  arranjo  entre  os 
átomos no que diz respeito à 
ordenação  dos  elétrons  nas 
ligações químicas. No  entan‐
to,  para  que  haja  a  desorga‐
nização da estrutura molecu‐
lar é necessário que seja  irra‐
diada  energia  sobre  a  molé‐
cula (energia de ativação).  
A  quantidade  de  e‐
nergia necessária para levar a 
molécula  a  uma  situação  de 
máxima instabilidade (estado 
de  ativação)  varia  em  cada 
tipo de molécula.  
De  uma  maneira  geral,  quanto  maior  a 
presença de elementos que confiram instabilidade 
à molécula (p.ex.: presença de átomos de alta ele‐
tronegatividade), menos  energia de ativação  será 
necessário para induzir o estado de ativação.  
Uma vez atingido o estado de ativação, a 
molécula  complexa  se  desorganiza,  ligações  quí‐
micas se  desfazem e moléculas mais simples pas‐
sam a ser formadas utilizando menos energia que 
antes e o excesso de energia passa a  ser  liberada 
para  o  meio  externo.  Assim,    o  nível  energético 
das  novas   moléculas  se mantém mais  baixo  do 
que a molécula original. Como o meio passa a ter 
um nível  energético maior,  esse  tipo de  reação  é 
tipicamente descrito como exotérmica. 
De maneira  inversa, nas  reações endotér‐
micas  as  moléculas  dos  substratos  absorvem  e‐
nergia do meio  externo  até  atingirem um  estado 
de ativação e se organizarem em um novo arranjo 
mais  complexo  do  que  o  anterior.  A  diferença 
básica está no  fato que parte da energia de ativa‐
ção  fica  acumulada  nas  moléculas  que  passam, 
portanto, a serem mais energéticas e menos está‐
veis do que as originais. 
Como  todas  as  atividades  biológicas  de‐
pendem de gasto de energia, as reações anabólicas 
garantem  as moléculas  a  serem  catabolizadas de 
acordo com as necessidades da célula. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os dilemas biológicos 
da termodinâmica 
 
Entropia e entalpia 
O  estudo  da  termodinâmica  (do  grego 
therme, calor + dynamis, energia) aborda os efeitos 
da energia sobre a matéria.  
Nos sistemas biológicos, a energia de ati‐
vação  das  reações  geralmente  é  o  calor,  com  e‐
xemplares  exceções  como  a  fotossíntese  onde  a 
energia  luminosa desencadeia o processo de  sín‐
tese da glicose nos  vegetais. 
A  energia  armazenada  nas  moléculas  é 
denominada  de  conteúdo  de  calor  ou  entalpia 
(H)  (do grego  enthalpein, aquecer)  . Dessa  forma, 
em  reações  exotérmicas  (catabólicas)  há  a  queda 
da  entalpia  das  moléculas  com  produtos  menos 
energéticos que os substratos e, de maneira inver‐
sa, nas reações endotérmicas a entalpia aumenta.  
Como  o  calor  é  espontaneamente  trans‐
mitido de um corpo mais quente para outro mais 
frio e o aumento da temperatura leva a um estado 
mais desorganizado das moléculas, pode‐se  con‐
cluir que as reações onde há o aumento da ental‐
 
 
Figura 1 –   Síntese  e  degradação  de moléculas  absorvem  ou  geram  e‐
nergia. Essa energia é compartilhada nas reações anabólicas 
e catabólicasdo metabolismo celular. 
A lógica da vida 
Ricardo Vieira 
3
 
Figura 2 –   Variação de energia livre (∆G) em uma reação exergônica. Como os 
produtos são menos energéticos  (energia  livre menor) que os subs‐
tratos, ∆G assume valores negativos. A energia gasta na ativação das 
moléculas  (∆GAt) é devolvida ao meio que  recebe energia adicional 
da reação (aumento da entropia).  
pia das moléculas  (reações  exotérmicas,  catabóli‐
cas)  são  favoráveis  àquelas  que  os  produtos  são 
mais  energéticos  (reações  endotérmicas,  anabóli‐
cas).  
O grau de desordem de um sistema é de‐
nominado entropia (S) (do grego em, dentro de + 
trope, curva) e, portanto, varia de maneira inversa 
a entalpia. 
Portanto, uma reação espontânea é aquela 
que  possui  uma  variação  entálpica  e  entrópica 
favorável (os produtos são menos energéticos e a 
desordem do meio aumenta). De maneira inversa, 
se  as condições de entalpia e entropia forem des‐
favoráveis, a reação é não‐espontânea. 
 
O  conceito  de  ener‐
gia livre 
No  entanto,  resta  o 
problema  da  energia  da  ati‐
vação  que  precisa  estar  dis‐
ponível  antes  do  início  de 
qualquer  reação  seja  exo  ou 
endotérmica.  É  essa  energia 
que  se  torna  fundamental 
para  os  organismos  vivos 
pois  depende  não  das molé‐
culas, mas do meio ambiente. 
Dessa  forma,  surge 
um terceiro conceito de ener‐
gia  que  é  o mais  importante 
em  bioquímica  tendo  em 
vista  que  as  células  não  su‐
portam  uma  variação  de 
temperatura  muito  alta  em 
virtude  de  sua  composição 
frágil.  
De uma maneira geral, acima de  50oC,  a 
maioria  das  proteínas  é  desnaturada  a  ponto  de 
comprometer  a  sobrevivência  da  célula,  apesar 
das  inevitáveis  exceções  como,  por  exemplo,  a 
bactéria Thermus aquaticus cujas proteínas resistem 
a mais de 90oC. 
Essa energia que precisa estar disponível 
para que as  reações  tenham  início é denominada 
de energia livre (G) e foi postulada por J. Willard 
Gibbs, em 1878, e revela o verdadeiro critério para 
que as reações sejam espontâneas ou não. 
De uma maneira geral, se a reação for fa‐
vor  favorável  entalpicamente  (exotérmica),  mas 
não  entropicamente  ela  só  será  espontânea  se  o 
meio estiver em  temperaturas abaixo da variação 
entrópica  pois  somente  assim  haverá  desorgani‐
zação expressiva.  
De maneira  inversa,  se  a  reação  não  for 
favorável entalpicamente  (endotérmica), mas sim 
entropicamente  (a  temperatura  do meio  é  alta  a 
ponto de garantir um certo grau de desordem), a 
reação  poderá  ser  espontânea  em  temperaturas 
acima da variação  entrópica pois assegura que a 
absorção de energia não diminuirá o grau de de‐
sorganização de maneira significativa. 
Essas  condições  de  variação  de  energia 
livre  (∆G)  são  as que  caracterizam  a  espontanei‐
dade de uma reação biológica (Figura 2).  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
As  reações  espontâneas possuem valores 
de ∆G negativos indicando que as condições pro‐
pícias  de  entropia  e  entalpia  estão  adequadas  a 
temperatura do meio que fornece a energia neces‐
sária para que  a  reação  se  inicie  (∆GAt). Ao  final 
do processo, a energia gasta na ativação dos subs‐
tratos  é devolvida  ao meio  a  energia própria da 
molécula  (entalpia)  é  adicionada  ao  meio  que 
aumenta, portanto, a entropia. 
  As reações não espontâneas são possíveis 
desde  que  haja  energia  livre  no  meio  suficiente 
para garantir o estado de alta entropia ao final da 
reação, mesmo que  a molécula  absorva parte de 
dessa energia (Figura 3). 
  O ∆G dessas reações é positivo indicando 
que  os  produtos  possuem  um  nível  energético 
maior  (entalpia) que os substratos. A entropia ao 
A lógica da vida 
Ricardo Vieira 
4
 
Figura 3 –   Variação de energia  livre  (∆G) em uma  reação endergônica. Como os 
produtos são mais energéticos (energia  livre maior) que os substratos, 
∆G assume valores positivos. A reação só ocorre se houver energia de 
ativação  (∆GAt)  disponível  para  os  substratos  atingirem  o  estado  de 
transição que garantam um  certo grau de desordem  (entropia). Essas 
reações, aparentemente contra as  leis da termodinâmica, são possíveis 
graças à energia  livre do sistema celular e produzem moléculas  instá‐
veis que serão espontaneamente degradadas, posteriormente. 
final da reação continua alta em virtude da ener‐
gia livre disponível no meio no início da reação. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   Os  termos  reação exergônica  e endergô‐
nica (do grego ergon, trabalho) são preferenciais a 
exotérmica e endotérmica pois indicam a variação 
de energia livre e sugerem que a energia envolvi‐
da nas  reações catabólicas e anabólicas são desti‐
nadas a um trabalho celular e não somente a vari‐
ações de temperatura no interior da célula. 
 
A vida, então, vai contra as leis da 
termodinâmica? 
  O fato de as reações de síntese não serem 
espontâneas  termodinamicamente  não  significa 
que não ocorram. Havendo condições adequadas 
de  energia  livre,  a  reação  ocorrerá  apesar  de  os 
produtos serem de maior entalpia, aparentemente 
contra as leis da termodinâmica. 
  Os  estudos  da  termodinâmica  são  feitos 
em  sistemas  fechados  que  atingem  o  equilíbrio 
após  as  reações  permitindo  uma  determinação 
precisa dos fatores energéticos envolvidos.  
A vida, no entanto, ocorre em um sistema 
aberto (a célula) e, portanto, nunca atinge o equi‐
líbrio.  
Os  seres  vivos  conso‐
mem  nutrientes,  degradam 
moléculas,  sintetizam  outras 
novas, geram calor e trabalho. 
Usualmente,  considera‐
se como a primeira  lei da  ter‐
modinâmica  a  observação  u‐
niversal  de  que  a  energia  é 
conservada  nos  processos 
químicos  de  qualquer  nature‐
za.  Isso  também  é  observado 
nas reações bioquímicas pois a 
energia  liberada  nas  reações 
catabólicas é absorvida nas  re‐
ações anabólicas. 
Paradoxalmente,  esse 
intricado  processo  de  reações 
acoplado  produz  um  certo 
grau  de  organização  momen‐
tânea que garante a vida.  Se as 
condições  que  garantem  essa 
malha de reações é alterada de 
maneira significativa o sistema 
tenderá  ao  equilíbrio  tal  qual 
nos  sistemas  fechados,  o  que 
significa a perda das condições 
típicas  do  sistema  celular,  ou 
seja, a morte. 
  A  segunda  lei  da  termodinâmica  indica 
que  os  processos  espontâneos  induzem  a  desor‐
dem  (aumento  da  entalpia).  Isso  é  possível  em 
organismos vivos desde que o grau de a ordena‐
ção típico da vida (anabolismo) é garantido graças 
a uma desordem maior devido às reações catabó‐
licas  associadas.  Uma  conclusão  típica  é  de  que 
deve haver uma preponderância de reações cata‐
bólicas  o  que,  para    as  células,  representaria  a 
morte. Resta à vida manter‐se dentro de condições 
favoráveis de variações de energia livre para man‐
ter‐se a favor da segunda lei.  
  Na verdade, esse fenômeno chamado vida 
não  é  perceptível  somente  nas  reações  celulares, 
mas  em  toda  a  biosfera  onde  se percebe  que  há 
uma  interação  entre os diversos processos bioló‐
gicos  favorecendo um estado de equilíbrio carac‐
terizado  por  uma  variação  constante  no  fluxo 
energético.  
TM Lenton em 1998 chega a concluir que 
a Terra é um organismo em virtude das comple‐
xas  interações entre os seres vivos. Segundo esse 
pensamento,  denominada  hipótese  Gaia  (em 
alusão  à  entidade mítica  grega  representante  da 
A lógica da vida 
Ricardo Vieira 
5
Terra),  nosso  planeta  sobrevive  graças  ao  equilí‐
brio entre as reações metabólicas de todos os seres 
vivos  diretamente  ligado  ao  mundo  inorgânico 
que  fornece  substratos  básicos  impossíveisde 
serem sintetizados nos seres vivos. Dessa forma, a 
morte de Gaia é somente uma questão de  tempo, 
assim como para todo ser vivo. 
  Sobreviver, portanto, é a essência da vida. 
Lutar  contra  as  correntes  da  termodinâmica  e, 
eventualmente, perder, é a lógica das moléculas.  
  Mas ainda persiste a questão: como a célu‐
la “sabe” que “precisa” sobreviver? Como saber o 
que é “bom” ou o que é “ruim” para a vida? Al‐
gumas  perguntas  podem  ser  respondidas  enten‐
dendo a regulação das reações biológicas 
 
A toda poderosa regula‐
ção enzimática 
 
A  compreensão de  que  a  energia  livre  é 
um  regulador da  espontaneidade de uma  reação 
bioquímica,  leva a um problema prático essencial 
para a manutenção da vida: qual é a variação má‐
xima  de  energia  que  uma  célula  pode  suportar? 
Sabe‐se que  temperatura acima de 50oC destrói a 
maioria  dos  seres  vivos  pelo  simples  fato  de  as 
proteínas  serem  desnaturadas  e  perderem  suas 
funções de maneira irreversível. 
Temperaturas  mais  amenas  (entre  35  e 
37oC) são propícias às  reações químicas da maio‐
ria dos  seres vivos. De maneira  contrária, baixas 
temperaturas ambientes podem não ser um impe‐
dimento à vida quando houver formas de manter 
o ambiente  intracelular dentro dos  limites aceitá‐
veis de  temperatura. De  fato, observa‐se um nú‐
mero  muito  maior  de  organismos  vivendo  em 
condições térmicas baixas do que em altas tempe‐
raturas. 
No entanto, quase todas as reações bioló‐
gicas possuem um nível de energia livre compatí‐
vel  com  a  fisiologia  celular,  porém,  paradoxal‐
mente  altos  níveis  de  energia  ativação  livre  são 
necessários  para  que  as  reações  ocorram.  Isto  a 
maioria das células não suporta. 
Como  a  energia de  ativação não  implica 
na energia total envolvida pela molécula após sua 
síntese  ou  degradação  (ver  Figuras  3  e  4)  resta 
como  opção  o  desenvolvimento  de  mecanismos 
que diminuam essa energia de ativação como uma 
maneira de possibilitar as reações químicas dentro 
dos  limites  suportáveis  pela  célula  além  de  ser 
uma ação extremamente “econômica” para a célu‐
la,  já  que  poupa  a  necessidade  da  célula  de  de‐
gradar uma quantidade grande de substratos para 
obter a energia necessária para iniciar as reações. 
A  diminuição  da  energia  de  ativação  é 
obtida  sobre a ação de catalisadores. Os catalisa‐
dores químicos  (p.ex.:  íons metálicos) geralmente 
requerem   altas  temperaturas e pressão e pH ex‐
tremos, condições inviáveis para a célula.  
Na Terra primitiva, provavelmente a  ca‐
tálise  química  providenciada  pelos  elementos 
químicos disponíveis na argila daquele ambiente 
a as condições extremas de temperatura e pressão 
devem  ter  sido  essenciais para  as primeiras  rea‐
ções  químicas.  Hoje  em  dia,  entretanto,  são  as 
enzimas que proporcionam  esse  estado de baixa 
energia de  ativação necessário para  que  a  célula 
tenha a “chance” de sobreviver (Figura 4). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  As  enzimas  proporcionam  essa  baixa  e‐
nergia  pois  possuem  em  seu  sítio  ativo  compo‐
nentes que  reagem  com os  substratos  converten‐
do‐os  nas moléculas  do  estado  de  transição  por 
desestabilizar  sua  estrutura  molecular  graças  a 
ações químicas  (p.ex.: oxidação,  redução, hidróli‐
se, conjugação) que necessitam de menos energia 
de ativação do que a reação não catalisada. 
  Desta  forma,  a  reação  enzimática  é  fun‐
damental para a célula, pois aumenta a velocida‐
de da reação e permite que ela aconteça sem uma 
quantidade de energia proibitiva para a fisiologia 
celular.  
  Um fato interessante é que as reações que 
precisam de uma variação muito grande de ener‐
gia de ativação, freqüentemente acontecem com a 
 
Figura 4 –   A reação catalisada requer baixos níveis de ener‐
gia livre porém o ∆G permanece o mesmo. 
A lógica da vida 
Ricardo Vieira 
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Figura 5 –   A cinética enzimática de duas reações onde enzimas diferentes competem 
por um mesmo substrato. A via principal (a mais rápida) é a que apresen‐
ta maior constante de equilíbrio (K). 
ação de várias enzimas em seqüência estabelecen‐
do  uma  verdadeira  “rota”  ou  “via”  metabólica 
que precisa ser cumprida para que a  reação  final 
ocorra  (p.ex.:  a  conversão  de  glicose  em  CO2  e 
H2O  ocorre  com  a  ação  sucessiva de mais de  20 
enzimas). 
  Neste  ponto,  surge  uma  nova  peculiari‐
dade para  as  reações  celulares:  os  compostos  in‐
termediários da via metabólica podem ser “desvi‐
ados”  do  produto  final  caso  haja  a  presença  de 
enzimas que possam competir pelos substratos. 
  Dessa maneira, a via metabólica principal 
será  definida  pela  velocidade  enzimática,  com  a 
aquela que possuir maior velocidade definindo o 
destino da maioria das moléculas. 
  Para  entender  esse  fenômeno,  considere 
uma via metabólica onde um substrato A pode ser 
convertido nos produtos B ou C de acordo com a 
ação das enzimas E1 ou E2 (Figura 5). A via prin‐
cipal  será  definida  pela  velocidade  enzimática, 
uma vez que é a que consegue gerar mais produ‐
tos na unidade de tempo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  Dessa  forma,  quando  há  várias  opções 
metabólicas,  a  célula  “segue”  para  aquela  que 
possui as enzimas mais rápidas. 
  Um fato adicional torna essa propriedade 
enzimática fundamental para a célula: as enzimas 
podem ter sua velocidade aumentada ou diminu‐
ída desde que mudem algumas condições do meio 
(p.ex.: pH,  temperatura, pressão) ou haja alguma 
mudança estrutural na enzima. 
  Como as condições de pH,  temperatura e 
pressão  são  extremamente  rígidas  para  a  célula, 
tais  variações  são  menos  freqüentes  do  que  as 
modificações estruturais. 
  Os  principais  mecanismos  de  aceleração 
(estímulo,  indução)  ou  diminuição  (inibição)  de 
uma via metabólica    correspondem aos mecanis‐
mos de regulação enzimática: 
 
1.  Regulação  alostérica  (do  grego  alos,  outros  + 
stereo,  lugar):  enzimas  que  possuem  um  “outro” 
sítio de  ligação diferente do  sítio  catalítico. Esse 
sítio  alostérico  se  liga  com  o  produto  da  reação 
metabólica ou um dos produtos da via. Um regu‐
lador  alostérico  por  um  mecanismo  de  feedback 
positivo ou negativo, pode acelerar ou inibir uma 
via metabólica até o momento em que o efetor ou 
inibidor não for degradado.  
 
2. Regulação hormonal: a ação química não ocorre 
diretamente pela ação do hormônio sobre a enzi‐
ma, mas por meio da ação de sinalização celular 
específica para cada tipo de hormônio.  
Esse tipo de regulação 
é típica de organismos multice‐
lulares pois envolve complexos 
mecanismos  de  detecção  na 
“necessidade” da  liberação do 
hormônio  que  age  à  distância 
da célula produtora.  
Geralmente requer um 
organizado  sistema  circulató‐
rio  e  mecanismos  fisiológicos 
complexos de regulação. 
Em  condições  nor‐
mais,  a  maioria  dos  animais 
possui  três momentos metabó‐
licos  distintos  regulados  por 
hormônios:  pós‐alimentar  (in‐
sulina), jejum (glucagon) e du‐
rante os exercícios físicos (epi‐
nefrina e cortisol).  
  Mesmo que a produção desses hormônios 
não seja controlada voluntariamente as condições 
fisiológicas  que  permitem  a  produção  desses 
hormônios são reguladas por atitudes voluntárias 
(comer ou não  comer; praticar ou não  exercícios 
físicos).    Desta  forma,  a  célula  “sabe”  qual  via 
metabólica  realizar  de  acordo  com  o  hormônio 
presente  que  irá  proporcionar  o  aumento  ou  a 
diminuição  da  velocidade  de  enzimas  nas  vias 
metabólicas.  Algumas  situações  patológicas  po‐
dem,  “confundir”  a  célula  e  leva‐la  a  uma  via 
metabólica inadequada como no caso de pacientesA lógica da vida 
Ricardo Vieira 
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portadores de diabetes mellitus do tipo 1 que não 
produzem  insulina  o  que  faz  com  que  a  célula 
“aja” de acordo com o metabolismo de jejum, uma 
vez  que  o  hormônio  típico  da  alimentação  não 
está presente. 
  Epinefrina,  cortisol  e  glucagon  são  hor‐
mônios que possuem mecanismos  fisiológicos de 
ação e regulação bastante distintos, porém estimu‐
lam  e  inibem as mesmas  enzimas o que  faz  com 
que  as  vias metabólicas  do  jejum  e  do  exercício 
físico possuam grandes similaridades. 
  De  uma  maneira  geral,  no  metabolismo 
pós‐alimentar a célula entra em um estado anabó‐
lico  intenso com a  insulina acelerando as vias de 
síntese e  inibindo as vias catabólicas. De maneira 
inversa,  glucagon,  cortisol  e  epinefrina  são  hor‐
mônios  catabólicos  por  excelência,  inibindo  as 
enzimas  anabólicas  estimuladas  pela  insulina  e 
acelerando  as  enzimas  catabólicas  inibidas  pela 
insulina. 
  Nesse  jogo  de  competição,  esses  hormô‐
nios possuem papel chave na regulação metabóli‐
ca dos animais. Vegetais  e  invertebrados  também 
possuem hormônios, porém de natureza diferente 
dos presentes nos  animais, mas que guardam  as 
mesmas funções básicas: regular vias metabólicas. 
 
 
Seleção natural 
 
  Como  vimos,  o  cumprimento  das  leis 
químicas universais pela célula  leva um estranho 
equilíbrio  químico  onde  as  reações  catabólicas 
sempre  preponderam,  levando  a  célula  inexora‐
velmente à morte. 
  De  fato, “aprender” a não morrer é o  se‐
gredo da  vida. A  partir do momento  em  que  se 
estabelece mecanismos de acelerar ou  inibir enzi‐
mas quando houver o risco de morte é a estratégia 
utilizada por todos os seres vivos. 
  Assim,  quando  se  estuda  o metabolismo 
dos  seres  vivos,  percebe‐se  que  o  acúmulo  de 
produto  final  todas  as  vias metabólicas  levam  a 
um grau maior ou menor de risco para a fisiologia 
da célula. De acordo com a tolerância celular pelo 
acúmulo do produto, aquela via metabólica man‐
tém‐se como principal até o momento em que está 
em  risco  a  viabilidade  da  célula,  quando  devem 
entrar em ação os reguladores naturais. 
  Os  medicamentos  são  substâncias  que 
inibem ou aceleram reações enzimáticas e, portan‐
to,  funcionam  como  reguladores  artificiais  do 
metabolismo,  estratégia  utilizada  pelas  ciências 
médicas  para  combater  efeitos  nocivos  de  algu‐
mas vias metabólicas. 
  Mas  como a célula “aprendeu” a acionar 
esses mecanismos reguladores? Essa é a pergunta 
crucial para entender a  regulação metabólica  e a 
resposta  não  é  tão  evidente.  A  resposta  talvez 
esteja na seleção natural que ocorreu nas primei‐
ras  linhagens  celulares  da  Terra  há  milhões  de 
anos. Deve ter havido muitas alternativas metabó‐
licas de regulação nas células primordiais, porém 
aquelas que não conseguiam deter o catabolismo 
excessivo naturalmente induzido pelas leis impla‐
cáveis da  termodinâmica  simplesmente morriam 
e não deixavam descendentes.  
Somente aquelas células que possuíam al‐
ternativas de desvio metabólico que garantiam a 
mudança  das  vias  metabólicas  quando  algum 
produto  se  acumulasse  em  excesso  conseguiram 
se  manter  e  deixar  descendentes.  Isso  deve  ser 
verdade, pois  todas os  seres vivos,  sem  exceção, 
possuem mecanismos semelhantes de feedback que 
garantem o não acúmulo de moléculas danosas à 
fisiologia celular. 
A via principal do metabolismo (portanto 
a mais rápida) de qualquer ser vivo é a via ener‐
gética, onde a glicose é convertida em moléculas 
mais simples (ácido láctico ou gás carbônico água) 
com  a  energia  da  sua  degradação  aproveitada 
para a síntese de ATP. Dessa  forma, a síntese de 
ATP  corresponde  ao  marco  da  degradação  de 
compostos energéticos.  
Sem dúvida, desviar da síntese de ATP (a 
reação endotérmica acoplada à exotérmica degra‐
dação de glicose) foi o segredo das células para se 
adaptar às condições peculiares do metabolismo. 
De  fato, dentre os  seres vivos  atuais não 
há melhores ou piores, mas uns mais  adaptados 
que  outros.  Evolução  biológica  significa  adapta‐
ção às adversidades. As moléculas  também estão 
sujeitas a essas adversidades.  
 
 
Leitura recomendada 
 
LENTON TM. Gaia and natural selection. Nature, 394, 439 – 447, 1998. 
FUTUYMA DJ. Biologia Evolutiva. Sociedade Brasileira de Genéti-
ca/CNPq. São Paulo, 1993. 
VIDEIRA AAP & EL-HANI CN. (Eds.) O que é vida? Para entender a 
biologia do século XXI. Faperj/Editora Relume Dumará. Rio de Ja-
neiro, 2000. 
VIEIRA JRS. Fundamentos de Bioquímica. Texto didático. Cap. 5, 9 e 10., 
Universidade Federal do Pará, 2003. 
VOET D, VOET JG, PRATT CW. Fundamentos de Bioquímica. Artmed, 
Porto Alegre, 2000.

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