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Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 nonada@uniritter.edu.br Laureate International Universities Brasil Reck Maggi, Noeli; Santos de Morales, Renata A LINGUAGEM E O PENSAMENTO: FUNÇÃO SEMIÓTICA E RELAÇÕES COM A APRENDIZAGEM Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 28, mayo, 2017, pp. 25-37 Laureate International Universities Porto Alegre, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454262003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto http://www.redalyc.org/revista.oa?id=5124 http://www.redalyc.org/revista.oa?id=5124 http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454262003 http://www.redalyc.org/comocitar.oa?id=512454262003 http://www.redalyc.org/fasciculo.oa?id=5124&numero=54262 http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454262003 http://www.redalyc.org/revista.oa?id=5124 http://www.redalyc.org A LINGUAGEM E O PENSAMENTO: FUNÇÃO SEMIÓTICA E RELAÇÕES COM A APRENDIZAGEM LANGUAGE AND THOUGHT: THE SEMIOTIC FUNCTION AND LEARNING Noeli Reck Maggi1 Renata Santos de Morales2 RESUMO: O texto apresenta reflexões sobre processos de aprendizagem, o desenvolvimento do pensamento e a função semiótica a partir dos estudos de Jean Piaget e de Lev Vigotsky. São abordados conceitos e princípios que explicam a origem, o papel e a relação entre pensamento e linguagem e a influência desses elementos na aprendizagem. Uma proposta de atividade de ensino da língua inglesa mostra como o professor pode utilizar a mediação semiótica com vistas à aprendizagem. Palavras-chave: linguagem, função semiótica, aprendizagem. ABSTRACT: This study presents considerations on learning processes, the development of thought and the semiotic function based on theories proposed by Jean Piaget and Lev Vygotsky. Concepts and principles that explain the origin, the role and the relationship between thought and language are presented, and the influence of these elements in learning. An activity is proposed for teaching English as a second language, which exemplifies how the teacher can use semiotic mediation directed to learning. Keywords: language, semiotic function, learning. Considerações iniciais Os processos de aprendizagem, na perspectiva sociointeracionista, são desencadeados a partir de atividades educativas significativas e pertinentes, em que os sujeitos interagem entre si e com o professor. Tais processos são facilitados pela mediação docente em momentos de trabalho escolar, ao utilizar ferramentas que evocam a função semiótica dos sujeitos a favor do aprendizado. Esta mediação semiótica intensifica os sentidos e significados internalizados pelos sujeitos em seus momentos de interação e de aprendizagem. (VYGOTSKY, 2007). A linguagem, que se desenvolve por meio da função semiótica, é tanto uma forma que o sujeito tem de acessar a cultura, quanto condição 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Formação Psicanalítica pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Professora Titular do Centro Universitário Ritter dos Reis, onde desempenha atividades de ensino e pesquisa na graduação e pós-graduação em Educação e Letras. Membro do Comitê de Ética e Lider do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação Cultura e Sociedade/CNPq. E-mail: nrmaggi@uniritter.edu.br. 2 Mestre em Letras pelo Centro Universitário Ritter dos Reis e doutoranda na mesma instituição. Membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação Cultura e Sociedade/CNPq, do UniRitter. E-mail: re.morales@icloud.com. Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 26 para que ele atribua sentido aos signos que constituem sua realidade. Progressivamente, o ser humano, inserido em um contexto sociohistórico internaliza as formas de funcionamento da sua cultura, seus códigos e princípios e se apropria da linguagem própria de seu contexto. Esta internalização representa a passagem da condição biológica do ser à sua condição cultural e ocorre pela mediação. Além disto, os sujeitos são dotados de comportamentos motivacionais e emocionais e estão sempre em relação com seus pares, o que os auxilia na construção de identidades e consequentemente, nos processos de aprendizagem. As funções mentais superiores como a linguagem juntamente com a memória, o pensamento e a atenção se consolidam no decorrer deste processo, segundo Vigotski (2007). São vários os instrumentos de mediação que fortalecem a interação entre os pares como a fala, os desenhos, os mapas e diagramas, as obras de arte, a música e as dramatizações teatrais e que viabilizam a internalização e apropriação da experiência. Todas estas formas de mediação podem ser implementadas pelos professores, em sala de aula, de forma a incentivar o desenvolvimento dos sujeitos. Neste artigo propomos uma reflexão sobre a aquisição da linguagem, o desenvolvimento do pensamento e a função semiótica a partir dos referenciais teóricos de Jean Piaget e de Lev Vigotsky. Com Piaget, o foco é como as crianças elaboram a função semiótica desde um ponto de vista psicogenético. De forma a complementar à proposta de Piaget, observaremos a interação entre linguagem e pensamento a partir da teoria vigotskiana, assim explorando conceitos e princípios que explicam a origem, o papel e a relação entre pensamento e linguagem como também a influência desses elementos na aprendizagem. Por fim, refletiremos sobre a mediação semiótica e a função do professor a partir da apresentação de uma proposta de atividade de ensino da língua inglesa. A proposta da atividade exemplifica o modo como o professor utiliza dispositivos semióticos de mediação com vistas à aprendizagem. Como as crianças elaboram a função semiótica do ponto de vista psicogenético Jean Piaget (1971) afirma que a linguagem é um dos aspectos da função semiótica. A linguagem depende da função semiótica, ou seja, da capacidade que a criança adquire, aproximadamente aos dezoito meses, de distinguir o significado do significante. A organização das representações envolvendo noções de espaço, tempo e causalidade no percurso das ações também é condição necessária para que o sujeito possa construir um discurso a partir de ações que expliquem certa lógica ou modo de se relacionar com a realidade. A função semiótica possibilita que o sujeito represente suas experiências por meio de fantasias, imagens, situações que se articulam com personagens e acontecimentos figurados em tempos e espaços construídos pelas suas ações. Inicialmente, essa construção ocorre Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 27 em função de experiências com objetos presentes e ao alcance do campo visual. Num segundo momento, as representações são construídas na ausência ou presença de objetos, por imitação e reprodução que podem manifestar-se por meio de gestos, grafismos ou fala. Após, em um terceiro momento, a função semiótica pode ser construída pela imagem mental, que funciona na ausência do objeto e pela reprodução interiorizada. A função semiótica exerce um papel operativo quando atinge formas de conhecimento mais elaboradas, ou seja, os objetos e acontecimentos sofrem transformações em função da coordenação das ações do próprio sujeito. Nesse sentido, o conhecimento se constitui para além do nível figurativo de modo que a função semiótica ou simbólica ocorre não somente sobre o objeto a ser conhecido, mas a partir da coordenação de ações e operações em nível mental. O aspectofigurativo e operativo, na constituição da função semiótica e mental se fortalecem, de modo que esses processos paralelos são contínuos e respondem aos questionamentos sobre a construção do pensamento e conhecimento, segundo Piaget. A imagem mental, imprescindível na constituição da função simbólica, não se reduz ao prolongamento das percepções, mas supõe uma reconstrução ativa do que foi internalizado em esquemas anteriores. Em todo o processo de desenvolvimento cognitivo, a ação do sujeito está presente desde os movimentos sensório-motores até os movimentos operatórios concretos e abstratos. Portanto, a forma como o sujeito percebe e interpreta a realidade supõe o modo como age, como lê e se relaciona com os elementos do mundo. Esse princípio teórico originado nas pesquisas de Jean Piaget (1971) informa aos adultos de modo geral e educadores no sentido específico de que a criança necessita agir sobre os objetos, pessoas, situações para assimilar a realidade, transformando-a em esquemas mentais próprios. É através da ação ativa da criança, pressupondo interação, que ela vai construindo e reconstruindo os esquemas mentais incluindo aí a função semiótica. No início do desenvolvimento, desde os primeiros meses de vida, a criança prende-se à realidade através de imagens que se sustentam a partir da atividade sensorial, presente e atuante no momento em que se encontra diante dos objetos, pessoas, situações. Aos poucos, essas imagens são interiorizadas e transformadas em esquemas mentais que permitem a imitação; inicialmente diante dos objetos e mais tarde na ausência desses porque já existe a capacidade de transformar as operações interiorizadas. A linguagem possibilita à criança evocar situações distantes no tempo e no espaço e isso reforça o que foi explicitado nos parágrafos anteriores: os esquemas sensórios e motores sustentados pela percepção reorganizam-se em esquemas intuitivos e pré-lógicos por força da ação da criança sobre os objetos. É necessário compreender o que resultou das pesquisas de Piaget quando diz que a linguagem auxilia no processo de desenvolvimento, embora não o determine. Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 28 Quando se compara uma criança de 2-3 anos, na posse das expressões verbais elementares, a um bebê de 8 a 10 meses, cujas únicas formas de inteligência são ainda de natureza senso- motora, ou seja, tendo apenas como instrumentos as percepções e movimentos, parece evidente à primeira vista que a linguagem modificou, profundamente, esta inteligência ativa, acrescentando-lhe o pensamento. (PIAGET, 1971, p. 83). A busca de explicação para os aspectos evolutivos do desenvolvimento da criança situando um ou outro elemento como o fator responsável direto pelas mudanças comportamentais é bastante recorrente nos estudos que envolvem o psiquismo. Segundo Piaget (1971, p. 84), a linguagem é uma função que desencadeia novas aquisições, é “constituída por um sistema de signos arbitrários e convencionais” de modo “interindividual”. A linguagem é mais um recurso que a criança dispõe para se comunicar e atender suas necessidades, embora não seja a fonte do seu pensamento; desenvolve-se de modo quase paralelo à formação de símbolos evidenciados no jogo faz-de-conta, nas dramatizações e nas brincadeiras de modo geral. Tanto os signos arbitrários quanto os convencionais enriquecem os esquemas representativos da criança possibilitando-lhe dar sentido próprio aos personagens, aos papéis e demais situações do cotidiano. A imaginação e invenção nas expressões afetivas e cognitivas da criança fazem par com os esquemas representativos individuais. Embora a linguagem e o pensamento sejam sistemas paralelos, na perspectiva psicogenética uma representação ligada a símbolos lúdicos ou expressa através de gestos imitativos pode ocorrer independente da linguagem. Isso significa que a situação é evocada a partir de uma lembrança. O conceito de simbolismo não se reduz à ideia de jogo simbólico uma vez que a imitação de um objeto ou situação na ausência dos elementos que o compõem também é uma forma de representação. Não se trata de uma cópia do modelo, mas de uma representação de esquemas individuais interiorizados. A imagem pode ser concebida como imitação interiorizada: a imagem sonora é apenas a imitação interior do som correspondente e a imagem visual é o produto de imitação do objeto e da pessoa, seja pelo corpo inteiro, seja por movimentos oculares, quando se trata de forma de pequenas dimensões. [...] Os símbolos individuais [...] são derivados da imitação. (PIAGET, 1971, p. 85). A imitação é um termo intermediário entre as condutas senso- motoras e as condutas representativas. Essas são independentes da linguagem, se bem que sirvam para sua aquisição. Assim, a função simbólica inclui signos verbais e não verbais contemplando também, nesse espectro, a Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 29 origem do pensamento. Piaget (1971, p.85-86) sustenta que as representações fazem parte da função simbólica e que “o próprio da função simbólica consiste numa diferenciação dos significantes (signos e símbolos) e dos significados (objetos ou acontecimentos, uns e outros esquemáticos ou conceitualizados)”. Os significantes permitem evocar os significados em função das representações constituídas nos esquemas mentais da criança e dos sujeitos em geral. Enquanto a linguagem explica as aquisições linguísticas, o pensamento engloba os esquemas representativos sensório- motores e operatórios. As estruturas do pensamento são complementadas e enriquecidas pela linguagem. A linguagem, portanto, é condição necessária, mas não suficiente para a construção das operações lógicas. Ela é necessária, pois sem o sistema de expressão simbólica que constitui a linguagem, as operações permanecem no estado de ações sucessivas, sem jamais se integrar em sistemas simultâneos ou que contivessem, ao mesmo tempo, um conjunto de transformações solidárias. Por outro lado, sem a linguagem, as operações permaneceriam individuais e ignorariam, em conseqüência, esta regularização que resulta da troca interindividual e da cooperação. (PIAGET, 1971, p. 92). Como alicerce dos esquemas e do funcionamento simbólico e como reguladora das relações sociais, a linguagem recebe grande contribuição do pensamento. São funções mentais que ocorrem em ciclos diferentes, complementares e que se desenvolvem por meio de ações recíprocas. São ambas dependentes da inteligência e desenvolvem-se independentes da capacidade intelectual. O processo de pensamento segundo Vigotsky A pluralidade do pensamento está presente quando há um sistema diferenciado entre o imaginário e o simbólico, entre o sincretismo e a generalização, entre o sonho e a realidade. Assim diz Vigotsky (2005) quando se refere ao processo em que estão implicados tanto os conceitos espontâneos quanto os científicos, que embora complementem e fortaleçam a compreensão do sujeito também se diferenciam tanto na origem quanto na funcionalidade para a vida de cada sujeito. A possibilidade de diferenciação e de tomada de consciência no uso de uma palavra pode representar um ato de generalização que vai evoluindo de acordo com as experiências ativas do ser humano ao longo do seu processo evolutivo: enquanto criança, adolescente ou adulto. Trata-se de um processo dinâmico, cada vez mais complexo e que representa a construção de generalizações e de formação de conceitos. A medida de generalidade determina não apenas a equivalência de conceitos, mas também todas as operações intelectuais Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relaçõescom a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 30 possíveis com um determinado conceito. Todas as operações intelectuais − comparações, julgamentos, conclusões − exigem um certo movimento dentro da rede de coordenadas. [...] Por exemplo, à medida que se atingem níveis mais elevados de generalidade, fica mais fácil para a criança lembrar-se de pensamentos, independentemente das palavras. (VIGOTSKI, 2005, p. 141). Agregada à formação dos conceitos, outras funções se desenvolvem simultaneamente como “atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar” (VIGOTSKY, 2005, p. 104). É uma inquietação entre profissionais das áreas da comunicação, letras e educação compreenderem como se dá a leitura e entendimento das pessoas que convivem com os códigos, com os signos linguísticos presentes na cultura e que necessitam interpretá-los para se situarem e conviverem socialmente. O ser humano constrói ideias e conceitos de modo espontâneo desde o seu nascimento e estes fazem parte de sua vida. A sistematização dessas aprendizagens, que já aconteceram de modo quase natural a partir da convivência com o outro, passa a tomar novos sentidos na escola. O aprendizado de conceitos científicos é influenciado pelas aprendizagens espontâneas já pertencentes ao repertório social e cultural do sujeito, embora não entre em conflito com estas experiências. O que a escola, como instituição formal de aprendizado, propõe é sistematizar o conhecimento através da mediação entre o objeto de conhecimento e o sujeito oportunizando o manuseio ou apropriação de instrumentos materiais e virtuais, concretos e abstratos. Conceitos aprendidos de modo sistematizado e de modo espontâneo relacionam-se e influenciam-se constantemente, fazem parte de um único processo. No dizer de Vigotsky (2005, p. 107) a aprendizagem, além de ser uma fonte de conceitos que se aprende na escola, também se constitui numa força que impulsiona e determina o destino de todo o desenvolvimento mental. O distanciamento da leitura concreta e imediata da realidade para uma aproximação com a imaginação criadora possibilita-nos compreender as propriedades do pensamento. Linguagem e pensamento: funções psicológicas complementares no processo de aprendizagem A aprendizagem tem uma dimensão lógica e uma dimensão simbólica. Foi em Freud que Piaget buscou apoio para falar do pensamento inconsciente, também denominado por ele de pensamento autístico. Na dimensão simbólica, há um predomínio do princípio do prazer, com um funcionamento psíquico atemporal e intolerante às contradições que a realidade impõe. Paralelamente ao funcionamento inconsciente, desenvolve-se o pensamento lógico, sustentado pelo princípio da realidade, Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 31 em busca de compreensão dos fatos e de comunicação entre os pares (FREITAG, 1986). Na dimensão simbólica, o ser humano expressa suas representações mentais mais singulares, que por vezes são estranhas à lógica da realidade. As crianças se confortam em expressar brincadeiras, atividades lúdicas, argumentações que parecem arbitrárias ao que se coloca como realidade concreta. Por outro lado, embora a criatividade infantil se manifeste por conta da função simbólica, também é regulada pelo pensamento lógico, concreto e formal, ou seja, com expressiva coerência frente aos dados da realidade. Como no processo de desenvolvimento as funções psíquicas são dinâmicas e complementares em sua funcionalidade, o sujeito transita entre o pensamento simbólico e o lógico. A linguagem representada pelo desenho, pela fala, pelo corpo, oportuniza para a criança novas formas de relação e de apropriação das ocorrências no cotidiano. “A internalização do comportamento através da representação, facilitada pela linguagem, acelera o ritmo com que as experiências podem ocorrer” (WADSWORTH, 1992, p. 69). Embora as crianças se comuniquem de modo egocêntrico, a linguagem falada fortalece o conhecimento social e, neste sentido, as relações interpessoais, as trocas entre pares, o uso de dispositivos culturais são elementos importantes e necessários à aprendizagem e ao desenvolvimento numa perspectiva sociocultural. A convivência com modelos é necessária, uma vez que a aquisição da linguagem não é um processo natural e espontâneo, mas construído e aprendido. Também na perspectiva psicogenética, o prazer de falar e de expressar pensamento e sentimento tem relação com o “valor adaptativo” decorrente desse funcionamento. A oportunidade de comunicação e de fazer-se entender pelo outro, como também revelar o que percebe e sente no momento fortalece sua segurança de que ela terá um meio próprio de garantir o atendimento às suas necessidades. A linguagem representa grande valor adaptativo e meio de a criança sentir-se inserida e participante do processo de relação com o entorno e especialmente confiante para a aprendizagem. Trata-se de uma função psicológica que é adquirida como outras funções; é aprendida na relação experimentada, vivenciada e constantemente reconstruída no modo de articular e revelar seu pensamento e expectativas frente à realidade. Inicialmente, o domínio dos códigos linguísticos exige esforço e constante refinamento das expressões e formas de construir o pensamento para adaptação às regras do que é convencionado no cotidiano das relações. Nos dois primeiros anos de vida, é possível acompanhar a gênese do comportamento inteligente e também o surgimento da linguagem. Enquanto Piaget (1971) demonstra que a capacidade do ser humano para pensar aparece antes do desenvolvimento da linguagem, Vigotsky (2005, p.6) afirma que “a função primordial da fala é a comunicação, o intercâmbio Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 32 social”, ou seja, a verdadeira comunicação humana implica em compreender a realidade, conceitualizá-la e desenvolver um pensamento generalizante diante dos fatos. O que temos na afirmativa de Piaget é o argumento de que a representação interna construída pelo sujeito desde as primeiras relações estabelecidas com o ambiente aumenta o poder do pensamento de modo intensivo e emergente. A imagem interiorizada pode ser uma forma de linguagem, entretanto os objetos acompanhados de sentido vão dar corpo à linguagem falada. Um ato sensório-motor é restrito e limitado ao que o sujeito consegue perceber, realizar e responder em função de sua percepção e mobilidade. Esquemas funcionais em desenvolvimento estão associados a respostas lentas em função das construções iniciais físicas e sensoriais. A linguagem falada permite a representação de objetos, pessoas e ações de modo rápido e superposto. O sujeito expressa seu desejo e este pode estar dirigido a mais de uma pessoa e também pode falar de uma situação ampliando a adaptação para além da atividade presente. A simultaneidade de representações no uso de um signo linguístico permite ao sujeito reelaborar e locomover-se diante de seus esquemas físicos e mentais de modo flexível e organizado, diante de uma lógica que lhe é própria. A linguagem como forma de representação de objetos, de experiência e de eventos, libera o pensamento da ação direta, concreta e presente (WADSWORTH, 1992). A epistemologia genética coloca sua ênfase no desenvolvimento de esquemas mentais para o sujeito representar a realidade e, a partir desta experiência interiorizada, construir e fazer uso da linguagem falada. Assim, o desenvolvimento das operações mentais é condição para a aquisição da linguagem e não o inverso. Quando a linguagem se desenvolve, ocorre um desenvolvimento paralelo das habilidades conceituais quea linguagem favorece, provavelmente porque a linguagem e representação permitem a ocorrência mais rápida da atividade conceitual do que permitem as operações sensório-motoras. O desenvolvimento da linguagem é visto como facilitador do desenvolvimento cognitivo (como no caso das crianças surdas), mas não como um pré-requisito nem como uma condição necessária para que ele ocorra. (WADSWORTH, 1992, p. 74) Na concepção da psicogênese do pensamento, quando o sujeito constrói o conhecimento físico e o lógico-matemático não necessita do papel direto da linguagem, enquanto que na construção do conhecimento social a linguagem exerce um papel básico e fundamental para a interação e comunicação entre os pares. A relação entre linguagem e pensamento e as possíveis implicações no desenvolvimento realçam a ideia de complementação no exercício das funções mentais. Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 33 A função semiótica e a mediação do professor: uma proposta de atividade para o ensino de inglês or meio de dispositivos materiais e psicolo gicos, representados por instrumentos, signos e si mbolos, o ser humano interage de modo a promover signicado e sentido no dinamismo da ac a o compartilhada. om o apoio de pesquisa teo rica e empi rica, na perspectiva de Vigotski e Piaget, propomos uma atividade que considera a ac a o mediada no ensino de li ngua como um modo de criac a o e de apropriac a o de sistemas semio ticos para traduzir a realidade e ter acesso ao campo das significações com o uso da linguagem. A atividade envolve o ensino do vocabulário básico sobre brinquedos em inglês possibilitando a compreensão do significado da palavra a partir dos aspectos figurativos, ou seja, com o uso de imagens associando-as ao nome do objeto. Os dispositivos de mediação utilizados pelo professor evocam situações experimentadas no cotidiano do sujeito de modo a facilitar a compreensão e a possibilidade de associação do nome ao objeto em estudo. Na perspectiva de Vigotsky (2005), essa associação se faz presente a partir do significado e do sentido atribuídos ao objeto. A atividade é apropriada para crianças que estão em um nível iniciante de aprendizado do idioma. As palavras selecionadas podem ser de livre escolha do professor, desde que pertencentes à categoria brinquedos e que façam parte, preferencialmente, do contexto sócio-histórico cultural do grupo de aprendizes. Algumas palavras que podem fazer parte do grupo léxico desta atividade são: car, doll, ball, robot, teddy bear, train, kite. As etapas para a realização da atividade são as seguintes: 1. Mostrar figuras dos brinquedos aos alunos, ou, preferencialmente, mostrar os próprios brinquedos (realia3) e solicitar que verbalizem sobre as figuras, nomeando-as e falando sobre as características que elas têm em comum. A resposta esperada é que após o manuseio e compreensão do seu uso as crianças verbalizem que todas as figuras fazem parte da categoria brinquedos. 2. Mostrar as imagens uma a uma e perguntar se os alunos sabem o que é. A pergunta What’s this? poderá ser utilizada para conduzir esta etapa. Alguns alunos poderão já conhecer o vocabulário, auxiliando os outros. Quando os alunos não souberem a palavra, o professor poderá falar a palavra de forma clara, e sugerir que os alunos repitam. Nesta etapa, as crianças têm a oportunidade de não somente compreender o significado da palavra emitida e repetida uma vez que já está associada a uma exploração prévia, mas também ir construindo o sentido simbólico da palavra, do que ela representa. 3 Realia é o termo utilizado em ensino da língua inglesa que denota o uso de objetos da vida real em sala de aula. Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 34 3. Repetir a atividade anterior, mostrando as figuras para que os alunos repitam as palavras correspondentes pode ser uma forma de retomar o uso da fala associada ao pensamento. Essa etapa pode ser repetida algumas vezes para que os alunos se familiarizem com as palavras novas e para que compreendam que a imagem e os signos que constituem a palavra aproximam um determinado objeto com a contextualização construída a partir da experiência de cada um. As figuras podem ser afixadas ao quadro ou a um mural para que os alunos tenham a referência visual. O que fora referido como figurativo, ou por meio de imagem, pode agora estar imerso na compreensão do vocabulário com um pensamento generalizante: brinquedos para atividades de rua, coletivos, etc. 4. Nesta etapa, os alunos desenham os brinquedos na medida em que o professor for falando a palavra correspondente. Uma folha em branco é distribuída com lápis de cor e demais possibilidades de pintura para que os alunos realizem a tarefa. A verbalização sobre a experiência especialmente utilizando o vocabulário em inglês realça a criatividade e a possibilidade de ampliação de outras palavras que possam estar associadas à imagem desenhada. 5. Aqui, os alunos poderão desenhar o seu brinquedo favorito, ainda que não faça parte da lista de palavras da aula. Cada aluno poderá apresentar seu desenho, falar sobre ele, dizer o que lembrou enquanto desenhava e escrevia. 6. Nos casos em que os brinquedos estejam disponíveis (realia), para finalizar a atividade o professor poderá disponibilizá-los para que os alunos brinquem por alguns minutos, incentivando o uso do vocabulário trabalhado. A atividade sugerida acima parece recriar o processo de desenvolvimento da função semiótica descrito por Piaget, em que experiências são representadas a partir de imagens e fantasias, ou situações construídas pelo sujeito por meio de suas ações. Tal como descrito pelo teórico, o primeiro momento ocorre a partir de objetos presentes e visíveis. No primeiro passo da atividade proposta, sugere-se que sejam apresentados aos alunos imagens dos brinquedos ou os brinquedos em si, e os objetos são disponibilizados ao alcance dos alunos. Segundo Piaget, num segundo momento o sujeito constrói representações ainda que os objetos não estejam presentes, por imitação, gestos, grafismos ou pela fala. Neste sentido, a quarta etapa da atividade, em que o professor cita o nome dos brinquedos para que os alunos façam a representação em forma de desenho, possibilita que o aluno represente os objetos ainda que eles estejam ausentes. Ainda, o terceiro momento de desenvolvimento da função semiótica diz respeito à possibilidade de reproduzir o objeto com base na imagem mental construída pelo sujeito, na ausência do objeto. Neste caso, a etapa Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 35 cinco da atividade proposta desempenha esse papel, já que aos alunos é dada a oportunidade de desenharem seus brinquedos preferidos, ainda que a imagem ou objeto não estejam presentes. Para Vigostky, por sua vez, as vivências sociais e culturais abastecem a aprendizagem do sujeito. As experiências de sala de aula vêm a consolidar ou sistematizar os conhecimentos por via da mediação entre o que se propõe ao aluno como aprendizado e o que há à sua disposição no seu dia-a-dia. O jogo e o brinquedo constituem um modo de tematizar situações da vida real. Assim, ao propor o trabalho para ensinar vocabulário sobre brinquedos aos alunos, na língua inglesa, o professor poderá contar com o contexto sócio-histórico cultural dos alunos. Por exemplo, isso se configura na primeira e na quinta etapa da atividade proposta. A última etapa da atividade, em que sugerimos que as crianças possam brincarcom os objetos utilizados durante a aula, está contemplada tanto em Piaget quanto em Vigotsky. Sabemos que, para Piaget, é importante que o sujeito tenha a possibilidade de agir sobre os objetos para que crie seus próprios esquemas mentais acerca da realidade. Para Vigotsky, a ação ativa dos alunos, com possível interação entre os componentes do grupo, é importante. As brincadeiras, em geral, contribuem para que os esquemas individuais de representação se alinhem com as situações vividas no cotidiano. Através da linguagem, a criança consegue atribuir sentido às brincadeiras e transpor o aprendizado para sua realidade. O brincar é condição para que o sujeito transite do imaginário ao simbólico, pois oportuniza que o sujeito vivencie a transição dialética entre a fantasia e a realidade, o prazer e o desprazer, o mundo interno e o mundo externo. Nas atividades lúdicas, a criança expressa e reelabora suas percepções de mundo, além de assumir papel na socialização e na criatividade. A inteligência criativa do ser humano possibilita interpretar e dar sentido às imagens, mensagens e normas da sociedade. Enquanto brinca, a criança tem a possibilidade de dramatizar suas relações, faz do brinquedo a representação do seu pensamento na medida em que atribui significado e sentido à experiência vivida. Em todas as etapas da atividade, a função semiótica está presente e a aprendizagem construída nesta experiência poderá ser ampliada para outras situações de mediação docente. Considerações finais Enquanto Piaget diz que a linguagem é um dos aspectos da função semiótica, Vigotsky a situa como uma função determinante das funções mentais superiores e para a capacidade de o sujeito pensar. A aquisição da linguagem é uma construção do sujeito a partir de sua estrutura psicogenética na interação com o meio físico e social. O nascimento do sujeito é marcado por manifestações que anunciam a sua capacidade de Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 36 reconstrução de signos linguísticos e de conversações cada vez mais complexas de modo que a função psicológica de pensar e de falar integram- se em esquemas de ação refinados e diferenciados. Se nos primórdios do desenvolvimento o sujeito ainda não dispõe de recursos para obter resultado imediato e preciso sobre o que o seu psiquismo está demandando, as estruturas previamente programadas se manifestam em modalidades de ação que são reveladoras desta necessidade. E assim a aprendizagem vai dando contorno à apropriação do conhecimento pela criança desde o seu desenvolvimento inicial, mediada pelos recursos disponíveis no ambiente físico e social. Inicialmente, o sujeito se comporta apreendendo a realidade de modo arbitrário e efêmero uma vez que não abrange a reflexão e a contradição entre ideias e acontecimentos. Prevalece a indiferenciação e o pensamento realista com uma acentuada dose de intuição. O olhar sobre os objetos e as palavras para nomeá-los permanecem no âmbito da irreversibilidade para designá-los de diferentes modos, uma vez que o significante permanece indiferenciado do significado. Se o objeto já nasceu com o nome, não há flexibilidade de pensamento e essa perspectiva abre espaço para pensar a função docente com a possibilidade de mediação através de dispositivos que ilustrem o deslocamento do olhar e da forma de pensar. Parece pouco claro o papel da interação que nos toma por inteiro. O tempo todo deparamo-nos com a aprendizagem contínua na medida em que o próprio sujeito anuncia seu grau de (in)compreensão. Um objeto pode ser pensado de diferentes formas dependendo de onde é identificado e nomeado. Dizer que formiga se escreve com reduzido número de letras ou que retirando o “ma” da palavra mala é retirada a sua alça pode revelar a compreensão da criança sobre a escrita formal e também evocar o deslocamento de olhar do seu interlocutor. Tomada de consciência do ponto de vista de Piaget (1973) e pensamento voluntário e consciente segundo Vigotsky (2007) indicam que a linguagem e o pensamento se abastecem e fundem-se em tempos diferentes segundo esses autores. Por fim, podemos observar, a partir da proposta de atividade apresentada neste estudo, que as teorias de Piaget e de Vigostky convergem e complementam-se em sala de aula no campo da função semiótica. Referências DELVAL, Juan. Da ação direta à ação imediata: a representação. In: DELVAL, Juan. Crescer e pensar: a construção do conhecimento na escola. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. FREITAG, Bárbara. Sociedade e consciência: um estudo piagetiano na favela e na escola. 2. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986. Morales, R. S.; Maggi, N. R. A linguagem e o pensamento: função semiótica e relações com a aprendizagem. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 25-37. 37 PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Tradução Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. PIAGET, Jean. A linguagem e o pensamento do ponto de vista genético. In: PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 4. ed. Tradução Maria Alice Magalhães D’Amorim; aulo Sérgio Lima Silva. Rio de Janeiro: Forense, 1971. PIAGET, Jean. O tempo e o desenvolvimento intelectual da criança. In: PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. Rio de Janeiro: Forense, 1973. RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zélia. Psicologia e Epistemologia Genética de Jean Piaget. São Paulo: E.P.U., 1988. VYGOTSKI, Lev. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo, revisão técnica de José Cipolla Neto, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. VYGOTSKI, Lev. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. WADSWORTH, Barry. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget. São Paulo: Pioneira, 1992. Recebido em 16 de março de 2017. Aceito em 12 de abril de 2017.
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