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1 A Reforma do Estado de 1995 e o Contexto Brasileiro Autoria: Leonardo José Andriolo Resumo O presente trabalho é um ensaio teórico, que tem por objetivo investigar em que medida a reforma do Estado de 1995 foi adequada ao contexto brasileiro. Num primeiro momento, o artigo aborda a influência determinante de modelos e teorias administrativas estrangeiras nas práticas e estudos organizacionais brasileiros. A reforma administrativa, ao se fundamentar no modelo internacional da Nova Gestão Pública, confirma essa influência. Por outro lado, a pequena relevância atribuída à dimensão cultural e política, combinada com a supervalorização da dimensão institucional-legal, teve como conseqüência a desconsideração de aspectos peculiares e significativos do contexto, condicionando os resultados de todo processo. O texto sugere que uma outra alternativa de reforma seria possível, tendo como centro as questões mais diretamente relacionadas com a realidade da administração pública brasileira. Introdução A influência determinante de modelos e teorias administrativas estrangeiras, principalmente provenientes dos Estados Unidos, nas práticas e estudos organizacionais brasileiros tem sido destacada por vários autores. Guerreiro Ramos (1983), por exemplo, observa que o fenômeno da mundialização favorece e estimula a imitação de modelos estrangeiros por parte dos países marginais do capitalismo. De acordo com este autor, os países em desenvolvimento adotam padrões estrangeiros com o intuito de poder articularem- se, por meio de uma aparente modernidade, com as sociedades mais desenvolvidas. Numa perspectiva histórica, Faoro (1989) destaca que os donos do poder na sociedade local sempre valorizaram os modos de vida dos países tidos como referência em cada época (Portugal, Grã-Bretanha, França), como forma de articulação com o mundo desenvolvido. Para Prestes Motta, Alcadipani e Bresler (2001), historicamente o brasileiro associa o ser moderno e de boa qualidade com o ser estrangeiro, sendo que essa valorização do estrangeiro, a que esses autores chamam de estrangeirismo, é um catalisador da adoção dos modelos oriundos do Primeiro Mundo. Serva (1990) acrescenta que a expressiva adesão a esses modelos fez com que adquirissem uma dimensão mitológica, uma vez que se acredita que sempre devem ser seguidos os modelos modernos vindos dos países desenvolvidos e que as organizações deles dependem para se desenvolverem. A administração pública brasileira é um campo em que também se observa, como norma, a implementação de modelos estrangeiros, quase sempre sem muita preocupação em adaptá-los às particularidades locais. E esta não é uma característica recente, haja vista que desde a sua formação, o Estado brasileiro teve como base os modelos europeus (Prestes Motta, Alcadipani e Bresler, 2001). Esse quadro não se altera nem com a independência política, porque, mesmo após tornar-se independente, o Brasil teve que adotar os modelos institucionais predominantes no mundo, o que teria sido uma forma de obter os requisitos necessários para sua evolução (Guerreiro Ramos, 1983). Faoro (1989) relata outro aspecto peculiar de nossa história ao apontar que as estruturas administrativas da colônia precederam a população e que o modelo de ação, tanto naquele período, como no Império e na República, era criar a realidade pela lei e pelo regulamento, na forma dos padrões europeus. A esse respeito, Machado-da-Silva, Guarido Filho, Nascimento e Oliveira (2001) afirmam que nas sociedades, como a brasileira, que são 2 altamente influenciadas por padrões estrangeiros, é mais fácil adotar uma estrutura formal mediante um ato legal do que institucionalizar o correspondente comportamento social. Esse processo é melhor compreendido quando analisado sob a ótica do formalismo, fenômeno conceituado por Guerreiro Ramos (1983) como sendo a discrepância entre a conduta concreta e a norma prescrita que se supõe que deva regulá-la. De acordo com Riggs (1968), o formalismo é uma das principais características funcionais das sociedades prismáticas, que são sociedades em transição, intermediárias entre as menos desenvolvidas e as mais avançadas. Riggs (1968) associa o formalismo à freqüente adoção, pelas sociedades prismáticas, de modelos e conceitos tomados das sociedades mais avançadas. Sander (1997) reforça esse argumento ao afirmar que a cópia de modelos estrangeiros produz discrepância entre os princípios do modelo adotado e os fatos que ocorrem na realidade, concluindo que a mimesis leva ao formalismo. Sobre a influência estrangeira na administração pública, Fischer (2003) constata que os administradores públicos brasileiros, desde sua origem, receberam formação e treinamento fundamentados em experiências consolidadas em países desenvolvidos, que se constituíram em mecanismo de reprodução ideológica. Podem ser citados como exemplos dessa influência a criação, em 1938, do Departamento Administrativo do Serviço Público, DASP, que teve como fundamento os conceitos da administração científica e o sistema meritocrático norte- americano, e a criação da Escola Nacional de Administração Pública, ENAP, na década de 80, inspirada na ENA - École Nationale d’Administration - da França. Assim, observa-se que no contexto da administração pública a busca por modelos estrangeiros, supostamente já provados e consagrados, tem sido uma característica histórica do Estado brasileiro. Nesse sentido, a fundamentação da Reforma do Estado de 1995 em concepções e modelos estrangeiros, notadamente os relativos à Nova Gestão Pública (NGP), pode ser vista como um procedimento coerente com o histórico da evolução da gestão pública brasileira. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo investigar, tendo como fonte primária os documentos-base da reforma do estado e como dados secundários pesquisas realizadas por outros pesquisadores, as seguintes hipóteses: a) a Reforma do Estado de 1995 se deu basicamente pela implementação de um modelo tido como bem-sucedido em países desenvolvidos, com adaptações meramente operacionais à realidade brasileira; b) em razão de fundamentarem-se num modelo estrangeiro, as bases principais da Reforma não são representativas do contexto da administração pública brasileira; e c) por tratar-se da aplicação de modelo estrangeiro não adequado ao contexto, os resultados produzidos pela Reforma têm menor possibilidade de solucionar os reais problemas do Estado brasileiro. A Nova Gestão Pública No contexto internacional, identificam-se duas gerações distintas de propostas de reforma do Estado. A primeira geração tem início na Grã-Bretanha e Estados Unidos, a partir da eleição dos governos conservadores, mais especificamente a primeira-ministra inglesa Margareth Thatcher e o presidente americano Ronald Reagan. Os principais objetivos das reformas, naquele momento, era o corte de custos e o aumento da eficiência do setor público. São adotadas políticas direcionadas ao ajuste fiscal, através do corte nos gastos públicos, reformas tributárias, liberalização econômica, desregulamentação e privatizações. Essas reformas foram conduzidas com base no conceito do Estado mínimo. A segunda geração das reformas do Estado se desenvolve nos anos 90 e incorpora novas propostas, como o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado, a melhoria da qualidade dos serviços públicos e o fortalecimento da accountability. 3 Abrucio (1997) desenvolveu uma tipologia, a partir da experiência anglo-americana, que permite uma compreensão mais clara dos movimentos de reforma. De acordo com Abrucio (1997), o primeiro modelo é o gerencialismo puro, que corresponde à primeira etapa da experiência na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, sendo direcionado à redução de custos e ao aumento da eficiência e produtividade. Seguindo uma linha evolutiva, o segundo modelo é o consumerism, que tem como principal política a flexibilidade de gestão,a melhoria da qualidade dos serviços e a prioridade no atendimento às demandas do consumidor. Nessa perspectiva, o cidadão é visto como cliente. Por fim, o terceiro modelo da tipologia de Abrucio (1997) é o Public Service Oriented, que se fundamenta nos temas do republicanismo e da democracia, utilizando-se de conceitos como accountability, transparência, participação, política, eqüidade e justiça. O conceito de cidadão também evolui de um referencial individual para um sentido coletivo, de exercício da cidadania. O autor, contudo, observa que o Public Service Oriented está mais próximo de ser uma tendência que traz novos temas para a discussão e questiona antigos pressupostos do que um modelo teórico acabado. O gerencialismo puro corresponde basicamente à primeira geração de reformas, enquanto que o consumerism e o Public Service Oriented estão identificados com a segunda geração, assim como a teoria de “reinvenção do governo”, aplicada nos Estados Unidos, durante o governo de Bill Clinton. Para Osborne e Gaebler (1997), teóricos do “reinventando o governo”, não necessitamos de mais ou menos governo: precisamos de um governo melhor. Relegam, dessa forma, a concepção do Estado mínimo e apostam na melhoria da atividade governamental. O o consumerism, o Public Service Oriented e o “reinventando o governo” inserem- se no movimento denominado Nova Gestão Pública (New Public Management), que pode ser descrito como o conjunto de discussões relativas à transição de um paradigma burocrático de administração pública para um novo paradigma gerencial, que incorpore instrumentos gerenciais utilizados com êxito nas organizações privadas que operam no mercado (Fleury, 2001). Hood (1991) aponta alguns fatores que propiciaram o surgimento da NGP: necessidade de reduzir os gastos governamentais e de limitar a expansão do número de servidores; o culto ao cargo de gerente; o desenvolvimento da tecnologia da informação, permitindo novos padrões de prestação de serviços; uma agenda internacional voltada para a discussão do gerenciamento público. Um outro fator que favoreceu a formação de uma nova concepção de gestão pública seria a incapacidade de o paradigma burocrático oferecer soluções aos cada vez mais complexos problemas de gerenciamento dos serviços públicos. Longe se ser um conjunto teoricamente consistente de idéias e conceitos (Wollmann, 2004), a NGP é uma estrutura complexa de experiências e teorias. Para Fischer (2003), é uma confluência de teorias e de práticas gerenciais, micro e macro-escalares, que incorpora experiências internacionais, como as da Inglaterra, Estados Unidos e Nova Zelândia, e propostas de agências internacionais. Esse conjunto teórico heterogêneo por vezes contempla conceitos contraditórios. De um lado, ancorada no paradigma gerencial, a NGP tende a transferir responsabilidades e recursos às unidades administrativas, promovendo a autonomia e a descentralização. Por outro lado, a influência do neo-institucionalismo e sua suposição de que as burocracias tendem a expandir-se e a buscar seus próprios interesses leva à adoção de maior controle político externo, com implicações centralizadoras (Wollmann, 2004). Armstrong (1998) reúne os principais conceitos da NGP em oito elementos, cuja preponderância varia de acordo com o contexto em que cada reforma se realiza: 4 a) redução de custos e busca de maior transparência na alocação de recursos; b) divisão das organizações burocráticas tradicionais em agências separadas, cuja relação com o Estado se dá através de contratos; c) separação entre comprador e fornecedor de serviços públicos; d) introdução de mecanismos de mercado e quase-mercado; e) descentralização da autoridade gerencial; f) introdução de sistemas de gestão por desempenho; g) mudança das políticas de pessoal, alterando a condição de estabilidade de emprego e estabelecendo critérios de desempenho; e h) aumento da ênfase na qualidade do serviço e na satisfação do consumidor. Bases da Reforma do Estado de 1995 Na análise da primeira hipótese, verifica-se que, seguindo a tendência histórica, a reforma do Estado iniciada em 1995 adota o que chama de paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado no modelo internacional denominado Nova Gestão Pública, que tem como premissa central a transição de um paradigma burocrático de administração pública para um novo paradigma gerencial. Dentro desta perspectiva, o Plano diretor da reforma do aparelho do Estado define como objetivos globais: - aumentar a capacidade administrativa de governar com efetividade e eficiência, voltando a ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos; - limitar a ação do Estado àquelas funções que lhe são próprias; - transferir da União para os estados e municípios as ações de caráter local; e - transferir parcialmente da União para os estados as ações de caráter regional. Na exposição no Senado sobre a reforma da administração pública, o Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado define dois objetivos: a curto prazo, facilitar o ajuste fiscal, particularmente nos Estados e Municípios; e, a médio prazo, tornar mais eficiente e moderna a administração pública, voltando-a para o atendimento dos cidadãos (Bresser Pereira, 1997). A estratégia de implantação foi concebida a partir de três dimensões: a institucional- legal, que trata da reforma do sistema jurídico e das relações de propriedade; a cultural, centrada na transição de uma cultura burocrática para uma cultura gerencial; e a relativa ao aperfeiçoamento da administração burocrática vigente com a introdução da administração gerencial. A proposta de reforma do aparelho do Estado considera a existência de quatro setores dentro do Estado, sendo que, para cada qual, foram formulados objetivos específicos: (1) o núcleo estratégico do Estado, responsável pela formulação das Leis e definição e cobrança do cumprimento das políticas públicas. A proposta previa o fortalecimento do setor, mantendo as características básicas da administração burocrática e incorporando novos instrumentos, como os contratos de gestão; (2) as atividades exclusivas de Estado, onde se exerce o poder de regulamentar, fiscalizar e fomentar. Neste setor, o objetivo era introduzir as Agências como novo modelo institucional, na forma de Agências Executivas e Agências Reguladoras, assimilando novos instrumentos e mecanismos de gestão, por meio da introdução da avaliação de desempenho, do controle por resultados, da focalização da satisfação do usuário e do controle de custos; (3) os serviços não-exclusivos ou competitivos, representados por instituições que não possuem o poder do Estado, mas onde este se faz presente porque os serviços envolvem direitos fundamentais, como os da educação e da saúde. A estratégia para este setor foi de “publicizar” as atividades não-exclusivas de Estado, disseminando-se as organizações sociais, como forma de propriedade pública não-estatal, sendo administradas pela sociedade, mediante conselhos, e recebendo o aporte de recursos orçamentários do Estado; e 5 (4) a produção de bens e serviços para o mercado, que corresponde à área de atuação das empresas estatais do segmento produtivo ou do mercado financeiro. Em relação a este setor, foi definido que a produção deve, em princípio, ser realizada pelo setor privado, com base no pressuposto de que as empresas serão mais eficientes se controladas pelo mercado e administradas privadamente, cabendo ao Estado um papel regulador e transferidor de recursos. Marini (2003) observa que as principais iniciativas da Reforma foram orientadas para: a revisão do marco legal (reforma constitucional e da legislação corrente); a proposição de novos modelos organizacionais (agências reguladoras, executivas e organizações sociais); a adoção de instrumentos gerenciais (contratos de gestão, programas de qualidade na administração pública); e a valorização dos servidores integrantesdas carreiras estratégicas (nova política de recursos humanos, revisão da política de remuneração e intensificação da capacitação de funcionários). O que se observa é que as principais diretrizes da Reforma do Estado estão em consonância com os conceitos básicos que orientam a NGP. Adotando-se os elementos propostos por Armstrong (1998) para caracterizar o novo gerencialismo, verifica-se que todos os oito elementos estão presentes na reforma brasileira. Alguns de forma central, como por exemplo, a divisão das organizações burocráticas tradicionais em agências separadas, a introdução de sistemas de gestão por desempenho, a mudança das políticas de pessoal e a introdução de mecanismos de mercado e quase-mercado. Outros de forma implícita, como a redução de custos e a separação entre comprador e fornecedor de serviços públicos. A influência dos conceitos e teorias da NGP é assumida de forma clara pelo principal protagonista da reforma, o Ministro da Administração e Reforma do Estado, Bresser Pereira (2000, p. 11), que declarou que, quando foi convidado para o cargo: “Já tinha algumas idéias a respeito, já que orientara alunos e presidira a comissão que reformulou a pós-graduação em administração pública na Fundação Getulio Vargas/SP. Conhecia muito bem a administração pública burocrática, conhecia a teoria e a prática da administração de empresas e tinha uma idéia da administração, que eu chamaria um pouco adiante de “gerencial”, através da leitura do livro de Osborne e Gaebler (1992), Reinventando o governo. Mas precisava conhecer muito mais a respeito das novas idéias. E foi o que fiz, viajando para a Inglaterra logo no início do governo e começando a tomar conhecimento da bibliografia que recentemente havia-se desenvolvido, principalmente naquele país, a respeito do assunto.” (grifo no original) Em seguida, o Ministro relata que elaborou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e a emenda constitucional da reforma administrativa, tomando como base as experiências recentes em países da OCDE, principalmente o Reino Unido (Bresser Pereira, 2001). Peci e Cavalcanti (2001), ao analisarem a criação das agências reguladoras, registram que a reforma brasileira foi inspirada em experiências internacionais, prescindindo de uma discussão anterior sobre o modelo de regulação. Primeiro foram encaminhados os projetos de lei e só depois foram discutidos os conceitos básicos do modelo. Na verdade, o fato de, na reforma do Estado, ser adotado um modelo estrangeiro apenas confirma uma tendência histórica de se buscar nos países do primeiro mundo as soluções para os problemas locais. Uma das explicações para esse fenômeno é a tendência, apontada por Prestes Motta, Alcadipani e Bresler (2001), de os gestores no Brasil valorizarem de forma exagerada os modelos organizacionais, metodologias e teorias geradas em outros países, havendo pouca preocupação com a adequação desses modelos ao nosso contexto. E esta não é uma prática isolada do Brasil, mas se repete em outros países em desenvolvimento. Varas (2005) constata que a justificativa para implementar as reformas do setor público, em especial na América Latina, é a conveniência de incrementar a legitimidade 6 do sistema. Outra justificativa é de ordem financeira e se origina em grande parte da necessidade de implementar o chamado “Consenso de Washington”, resultado da pressão de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Com relação à importação, pelos países latino-americanos, de políticas públicas formuladas nos países do primeiro mundo, Casals (1998) observa que esse procedimento tradicional tem como pressuposto um alinhamento com os novos movimentos políticos mundiais e uma necessidade de inserção entre as ditas nações desenvolvidas, chegando à mesma conclusão que Guerreiro Ramos (1983) havia expressado com relação às sociedades em vias de desenvolvimento. Essa reprodução de modelos, que leva a uma convergência das formas organizacionais, encontra uma explicação teórica na teoria institucional, através do conceito de isomorfismo institucional. DiMaggio e Powell (1983) propõem que a convergência ocorre por meio de três mecanismos: o isomorfismo coercitivo, que ocorre quando uma organização adota uma nova forma por pressão de que alguma autoridade dominante; o isomorfismo por mimetismo, que acontece quando, sob condições de incerteza decorrente de problemas tecnológicos, objetivos conflitantes e exigências ambientais, uma organização copia o que foi feito por organizações com maior status; e o isomorfismo normativo, que ocorre quando um órgão profissional decreta a forma como determinados processos devem ser organizados. O caso das reforma administrativa brasileira pode ser explicado pelo isomorfismo por mimetismo. Segundo Pollitt (2002), copiar um modelo aparentemente bem-sucedido ajuda a conferir legitimidade, mesmo que o desempenho não melhore. Observa o autor, no entanto, que os mecanismos isomórficos não envolvem simples cópia voluntária, uma busca visando ao melhor desempenho. Os atores que importam a tecnologia podem não agir de forma totalmente racional, em vista de que outros fatores interferem no processo, como, por exemplo, a existência de pressão sobre o governo importador, a necessidade de obter uma forma garantida de legitimar a reforma ou a consolidação de algumas tecnologias como norma em importantes redes internacionais (Pollitt, 2002). Condicionantes da implantação da Reforma: a questão da cultura O ambiente em que a reforma administrativa ocorre envolve um alto grau de consenso internacional em torno de dois aspectos: a premência de reformar o Estado e a superioridade da administração gerencial em relação ao modelo burocrático. Fleury (1996) observa uma surpreendente unanimidade internacional em relação à necessidade de reforma do Estado, com o objetivo de melhorar seu desempenho, reduzir seu tamanho e torná-lo socialmente mais responsável. No debate internacional sobre administração pública, é considerado um fato incontestável que o modelo burocrático, nas bases definidas por Weber, não consegue mais responder às demandas da sociedade contemporânea (Abrucio, 1997). Quanto ao segundo aspecto, a administração gerencial, representada pela NGP, tem sido referenciada com uma conotação mítica, como sendo uma base teórica de tal forma evidente que se sustenta pelo simples enunciado, sem necessidade de submeter-se a testes científicos. Pollitt e Bouckaert (2002) chegam a compará-la a uma espécie de religião, um sistema de crenças baseado na fé, com os seus elementos característicos: missionários usando símbolos, provérbios e histórias, traduzidas para adaptar-se localmente às percepções dos grupos dominantes. Nesse mesmo sentido, Beckett (2000) visualiza a NGP e, mais precisamente a expressão de que “o governo deve funcionar como um negócio”, como uma espécie de mantra, que, de tanto ser repetido, acaba sendo assumido como uma verdade definitiva. Religião ou mantra, o fato é que a nova gestão pública tem palavras de ordem positivas e é detentora de uma retórica de alto poder mobilizador (Fischer, 2003). Essa crença na capacidade de a administração gerencial solucionar os problemas da administração pública brasileira está subjacente nos documentos que fundamentam a reforma. 7 Em vários momentos a administração gerencial é tratada como forma superior de gestão, que anularia as formas anteriores, ou para usar a expressão de Carvalho (1999, p. 10), seria “o bálsamo redentor contra a rigidez burocrática e o patrimonialismo que caracterizam a administração pública brasileira”. Mas afinal, esta imagem atribuída à NGP corresponde efetivamente à realidade, ou é resultado de uma eficaz estratégia de marketing internacional? Na verdade, são raros os estudos científicos que tem como objeto a avaliação dos resultados produzidos pela NGP. Esse fato deve-se principalmente às dificuldadesmetodológicas para definir uma pesquisa com estas características. Para Pollitt e Bouckaert (2002), um estudo para avaliar o impacto de uma reforma necessita que se estabeleça um parâmetro de comparação. Esse parâmetro seria um cenário que indicaria o que teria acontecido se a reforma não fosse implementada, ou seja um contrafactual. Ocorre que definir cenários futuros convincentes não é uma tarefa simples. Por outro lado, os impactos finais de uma reforma são muito difíceis de serem mensurados e encerram outro problema metodológico: como determinar se os resultados são conseqüência da reforma ou de outras variáveis intervenientes? Por conta dessas dificuldades metodológicas, os estudos científicos ficam devendo uma resposta mais conclusiva sobre a avaliação dos resultados da NGP. Se o sucesso da Nova Gestão Pública não se origina da comprovação científica de sua eficácia, resta atribuí-lo à sua retórica com alto poder de persuasão e à propaganda promovida pelos Estados protagonistas, diretamente interessados na disseminação de suas teorias. Desconsiderando a ausência de estudos definitivos sobre os resultados da NGP e admitindo, por hipótese, que efetivamente esse tipo de reforma produziu impactos positivos nos países em que foi implantada, restam outras questões importantes a serem discutidas: existe uma fórmula única, que serve para todos os casos? É viável transplantar tecnologias administrativas sem uma profunda adequação ao contexto? O modelo que foi bem sucedido na Inglaterra, Estados Unidos ou Nova Zelândia, repetirá o sucesso num país com características totalmente diferentes? Parece evidente que importar uma tecnologia de gestão, para ser implantada em um contexto completamente diverso, acarreta alguns riscos. Ela poderá fracassar, ou ser implementada de forma ineficaz, se for inconsistente com os principais valores culturais do contexto local (Lachman, Nedd e Hinings apud Lynn e Stein, 2001). Em administração pública, como na administração em geral, não há soluções generalizáveis. Um modelo bem sucedido num país, pode malograr se implantado em outro. Muitas vezes, não dá o mesmo resultado nem dentro de um mesmo país, observa Marini (2003). Assim, não existem tecnologias genéricas que possam ser transplantadas de um local para outro, em qualquer lugar do mundo, com a certeza de que elas sempre apresentarão os resultados esperados (Pollitt, 2002). Pollitt (2004), além de refutar a idéia de uma melhor prática válida para qualquer circunstância – one best way, entende que, na transferência de um sistema de administração ou de uma técnica, que devem ser considerados, como fatores fundamentais, a cultura nacional e organizacional; a estrutura do sistema político; as estratégias administrativas e a complexidade das tarefas principais. Nesse mesmo sentido, Rezende (2002) observa que os projetos de reforma que não levam em conta as particularidades dos sistemas burocráticos e administrativos tendem a apresentarem resultados pouco efetivos. Martins (1997) apresenta outros aspectos que considera essenciais ao sucesso de uma reforma do Estado, mas novamente é salientada a necessidade de adequação cultural: “qualquer tentativa de reforma das estruturas do Estado, para que possa ser bem sucedida, deve levar em consideração pelo menos três aspectos: em primeiro lugar, a cultura política 8 particular sob a qual a administração pública evoluiu em cada país; em segundo lugar, os processos que levaram (tradicionalmente ou recentemente) às disfunções do serviço público; e em terceiro lugar, a localização dos principais gargalos da administração pública.” (p. 14) A questão da cultura política e institucional também é central para a Organisation de Coopération et de Développement Economiques (2004), que afirma que a mudança da estrutura das organizações é extremamente dependente do contexto. E de todas as dimensões que compõem a gestão, a informal, constituída pelos interesses, valores e atitudes dos indivíduos, importa mais que os sistemas formalizados. Argyriades (2004) observa que as perspectivas uniformes e o pensamento unidimensional conduziram a um enfoque de reforma do Estado em que se privilegiam apenas os fatores administrativos e econômicos. As intervenções, contudo, ocorrem em sistemas sociais complexos, onde se encontra oposição de interesses e conflitos, reduzindo a capacidade de prever e controlar a conduta. Pollitt (2002) resume bem esse quadro ao salientar que a implementação de uma reforma na gestão pública deve combinar pelo menos três elementos: a especialização em gestão técnica, o conhecimento funcional e a atenção ao contexto local. Em relação especificamente à NGP, é possível que essas técnicas funcionem conforme esperado, mas somente se forem adequadas para a função e para o contexto administrativo e cultural. Na análise da segunda hipótese referente à reforma administrativa, observa-se que foi atribuída pouca importância ao contexto cultural e político da administração pública brasileira. A análise dos documentos-base da reforma indica que foi supervalorizada a dimensão institucional-legal, enquanto que a dimensão cultural foi tratada de forma superficial. Com isso, aspectos peculiares e significativos da administração pública brasileira foram desconsiderados no processo. O Plano Diretor da Reforma não desconsidera a questão da cultura, definindo que a reforma do aparelho do Estado é concebida a partir de três dimensões, sendo uma delas cultural, centrada na transição de uma cultura burocrática para uma cultura gerencial. A citação da dimensão cultural, no entanto, parece ter mais uma função decorativa do que a de estabelecer uma efetiva estratégia de ação, visto que o Plano Diretor é minucioso na explanação da dimensão institucional-legal, citando as emendas constitucionais que deverão ser aprovadas, a legislação infra-constitucional que precisará ser revista, os projetos básicos a serem encaminhados, enquanto a dimensão cultural é tratada de forma superficial e genérica, informando-se que “viabilizará a operacionalização da cultura gerencial centrada em resultados através da efetiva parceria com a sociedade, e da cooperação entre administradores e funcionários” (p. 29). Para Bresser-Pereira (2000, p. 18), “a dimensão cultural da reforma significa, de um lado, sepultar de vez o patrimonialismo e, de outro, transitar da cultura burocrática para a gerencial”. O que certamente revela uma boa intenção, mas está longe de representar uma ação concreta. Além disso, transformar administradores públicos burocráticos em gerentes é uma mudança bem mais complexa do que transparece no Plano Diretor da Reforma. Como observa Junquilho (2004, p. 139), “os gerentes agem condicionados por certos traços da cultura brasileira que restringem e facilitam as suas ações ao mesmo tempo, configurando um certo perfil gerencial, deixando claro que qualquer mudança nesse perfil envolve uma reconstrução social de significados das ações no seio das organizações do setor público”. Ainda conforme Junquilho (2004), a administração pública gerencial, como um ideal a ser buscado, não deve ser vista apenas pelo aspecto objetivo das práticas de gestão, mas também deve ser considerado o campo da subjetividade, ou sejam, as experiências reais do trabalho no setor público, onde os administradores têm suas práticas sociais apoiadas, no seu dia-a-dia, em traços culturais. A reforma administrativa, contudo, não contemplou uma 9 reflexão sobre essas práticas gerenciais, desprezando a dimensão cultural que, neste caso, constituiria uma barreira à transformação de “burocratas” em “gerentes”. O Plano Diretor da Reforma, ao priorizar o conteúdo técnico e institucional, deixando a dimensão cultural como mera figuração, deixou de considerar adequadamente o contexto brasileiro, as peculiaridades e as características mais essenciais da nossa administração pública. Uma dessas característicascentrais que identificam a cultura política brasileira é a herança colonial patrimonialista. Nem as profundas mudanças econômicas e sociais que ocorreram no país amenizaram o favoritismo e o clientelismo como características culturais, que moldaram a organização da administração pública, a percepção que a sociedade tem do Estado e a predisposição de aceitar essas práticas como normais (Martins, 1997). Para Lustosa da Costa (2005), esse conjunto de peculiaridades, formado pelo patrimonialismo, personalismo, mandonismo, clientelismo, cartorialismo e autoritarismo, constitui modos de ser, proceder ou pensar que caracterizam as nossas instituições e as relações sociais e políticas e é uma das principais causas da pouca efetividade da ação pública. O autor entende que esta é uma questão central por tratar-se “de uma série de aspectos diversificados, complexos e inter-relacionados da realidade brasileira que condicionam o funcionamento do Estado e a ação e o desenvolvimento da Administração Pública brasileira e continuam a desafiar os cientistas sociais” (p. 5). O Plano Diretor da Reforma trata do tema “patrimonialismo”, mas o faz numa perspectiva mundial, sem particularizar o fenômeno no contexto brasileiro, e considera que a administração pública patrimonialista, a burocrática e a gerencial se sucedem no tempo, sem que, no entanto, qualquer uma delas seja inteiramente abandonada. Essa abordagem em linha seqüencial, supõe que um sistema substitui o antecessor, sendo que os elementos dos sistemas anteriores que persistem tendem a desaparecer dentro do processo natural de desenvolvimento da sociedade. Nesta lógica de pensamento, uma forma mais moderna de administração, no caso entendida como a gerencial, substituirá automaticamente as formas anteriores. Pesquisadores, contudo, têm observado que a administração pública brasileira foi se expandindo por camadas, e não pela substituição dos sistemas anteriores. Foi o que aconteceu com a administração patrimonial, que predominou durante o período da República Velha, sobre a qual foi acrescentada a camada da administração burocrática na década de 30 (Fleury, 1997). Esse mecanismo tem também funcionado nas reformas administrativas mais recentes. De acordo com Martins (1997), quando surge a necessidade de uma burocracia com aptidões diferentes, esta é acrescida como uma nova camada às já existentes, evitando, assim, mudanças estruturais que prejudiquem interesses políticos ou corporativos. Lessa (2003), sem abandonar a metáfora das camadas arqueológicas, observa que não se trata apenas de superposição de sistemas, mas também de articulação e de desenvolvimento combinado. Nunes (2003), que estabeleceu um modelo para definir as relações entre a sociedade e o Estado no Brasil a partir de quatro padrões institucionalizados de relações ou quatro gramáticas, o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos, observou que o clientelismo (que é uma das representações do patrimonialismo) se manteve forte nos períodos democráticos, não esmoreceu no período de autoritarismo, não se abalou com a industrialização, nem com a abertura política. Nunes (2003) constata, ainda, que as instituições formais do Estado foram impregnadas pelos procedimentos clientelistas, de modo que também os procedimentos burocráticos acabam dependendo de favores de patronagem, concluindo que “a burocracia apóia a operação do clientelismo e suplementa o sistema partidário” (p. 33). A reforma administrativa releva a forte presença do patrimonialismo na cultura social e política do País. Bresser Pereira (2000) chegou a afirmar que “a cultura patrimonialista já não existe no Brasil, porque só existe como prática, não como valor” (p. 18). Em seguida, 10 reconhece que “esta afirmação, entretanto, é imprecisa, já que as práticas fazem também parte da cultura” (Bresser Pereira, 2000, p. 18). Ora, não se poderia esperar que os partidos políticos defendessem o patrimonialismo como programa doutrinário, ou que os governantes o referissem em seus programas de governo. O que importa, contudo, é que as práticas políticas têm sido fortemente marcadas pelo patrimonialismo, ainda que oficialmente seja condenado, o que acaba sendo uma manifestação do formalismo, visto que os comportamentos e as ações não correspondem às regras formais e aos documentos oficiais. Essa situação também pode ser abordada a partir da análise dos objetivos operacionais e objetivos oficiais, conforme propõe Perrow (apud Marinho, 1990). Os objetivos oficiais são representados pelos propósitos gerais da organização tal como existem nos relatórios oficiais, enquanto que os objetivos operacionais são os que dizem o que a organização está efetivamente tentando fazer, independentemente do que é oficialmente declarado como sendo os seus fins. O formalismo é encontrado na medida em que os objetivos oficiais (a dimensão formal) não coincidem com os objetivos operacionais (a dimensão real). Em outra simplificação da realidade nacional, a reforma administrativa assume um dos pressupostos centrais da NGP, o de que o modelo burocrático tradicional, em vista de seu esgotamento, deve ceder lugar à administração gerencial. Essa assertiva pode ter sido válida, por exemplo, para a Grã-Bretanha, que, antes da reforma gerencialista, apresentava um modelo burocrático muito próximo ao weberiano. Já no caso brasileiro, a burocracia estatal teve um desenvolvimento peculiar. A burocracia tem seu início na década de 30, com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público, DASP, para ser um agente modernizador dos processos administrativos, seguindo os padrões burocráticos. A modernização do DASP, contudo, convivia com os expedientes clientelistas utilizados pelo Estado Intervencionista da era Vargas. Na década de 50, quando se consolida uma elite desenvolvimentista, interessada na industrialização do País, Nunes (2003) observa que não havia interesse do sistema partidário e da burocracia tradicional em implementar uma estratégia de desenvolvimento nacional. A saída encontrada foi criar agências especiais para cuidar desse projeto, insuladas, ou seja, situadas fora do controle do Congresso e dos partidos políticos. Assim, formou-se um cenário constituído pelo clientelismo em certas arenas políticas, pelo insulamento burocrático de outras e pela estrutura corporativista. Essa configuração não se alterou de forma significativa nas décadas seguintes, de forma que a burocracia brasileira apresenta duas faces. Temos uma elite burocrática, que se desenvolveu nas agências insuladas, e para a qual foram adotados acessos mediante concurso, carreiras, promoção baseada em critérios de mérito e salários adequados e, ao mesmo tempo, um quadro de servidores de baixa qualificação, onde a norma de admissão era a indicação clientelista, o critério de promoção baseado na antiguidade e não no mérito e os salários baixos (Martins, 1997). Dessa forma, excluindo-se essa burocracia insulada, a administração pública em geral está longe de apresentar as características básicas do modelo weberiano, como a impessoalidade, o profissionalismo e a meritocracia. Assim, a proposta de substituição da administração burocrática está um tanto fora do contexto, visto que, salvo em alguns setores, esse modelo sequer chegou a ser concretizado. Deve ser considerado, ainda, que boa parte da elite burocrática se encontrava em empresas estatais que foram privatizadas no processo de reforma e, portanto, não fazem mais parte da administração pública. Por outro lado, a premissa de que a administração gerencial é uma forma de gestão qualitativamente superior à burocracia merece uma melhor avaliação. Gurgel Junior e Vieira (2002) analisam a implantação de um programa de renovação organizacional no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, coerente com as proposições da reforma do 11 Estado, fundamentado no paradigmaadministrativo tecnológico-empreendedor, como forma de superar o modelo burocrático da administração pública, com base na adoção de práticas administrativas flexíveis, descentralizadas e informatizadas. No estudo de caso, os autores concluem que “a proposta é incompatível com a natureza jurídica atual da organização e apresenta forte tendência ao distanciamento da missão da instituição no âmbito do ensino e da assistência à saúde” (p. 548) e que a diretriz mercadológica do programa não se coaduna com as funções sociais das organizações hospitalares públicas. Em suma, percebe-se que o contexto brasileiro não foi adequadamente considerado quando da formulação e implantação da reforma administrativa. O modelo tomado como referência propunha soluções universais, mas demasiadamente simplistas, para serem aplicadas a uma realidade complexa, com múltiplos aspectos inter-relacionados e por vezes contraditórios. Heisler (1995), além de observar a “fundamentação de proposições em condições ou requisitos inexistentes na realidade brasileira” (p. 13), aponta ainda o caráter voluntarista da reforma, com supervalorização da vontade dos governantes e condutores do processo e, ao mesmo tempo, uma subestimação dos interesses dos grupos hegemônicos no sistema político- administrativo. Convém ressaltar que o sucesso da implantação do modelo gerencial depende menos da vontade de seus protagonistas que das condições sociais. Quanto à terceira hipótese, referente aos resultados obtidos pela reforma administrativa, uma boa fonte para a análise foi um artigo do ministro Bresser Pereira, onde considera que a reforma é um projeto bem-sucedido, principalmente em termos de definição institucional, haja vista que as principais mudanças legais previstas foram transformadas em leis (Bresser Pereira, 2000). Essa constatação é um indicativo de que o formalismo, de acordo com a concepção de Riggs (1968) e Guerreiro Ramos (1983), foi uma das características da reforma, haja vista que as normas são mudadas, mas os comportamentos sociais persistem, criando uma distância entre o que a lei prevê e o que realmente ocorre. Outra evidência de que o formalismo esteve presente na reforma é que o modelo se resumiu a uma estrutura formal, baseando-se mais na dimensão técnica que nos aspectos sócio-culturais (Fleury, 1996). Registra-se que as características formalistas da reforma já haviam sido constatadas também por outros pesquisadores (Machado-da-Silva, Guarido Filho, Nascimento e Oliveira, 2001). Dentro dessa perspectiva, verifica-se que a reforma se concentrou na dimensão institucional-legal, enquanto que os problemas que condicionam a efetividade da administração pública se encontram na esfera cultural-política. É importante considerar que para Guerreiro Ramos (1983), o formalismo não é uma característica bizarra, um fato estranho que se encontra nas sociedades em desenvolvimento, mas uma estratégia dessas sociedades que tem o objetivo de superar a fase em que se encontram. Nesse sentido, o formalismo resulta da pressão da sociedade mundial, que, dada uma determinada relação centro-periferia, leva a sociedade periférica a ser compulsoriamente receptiva. No entanto, a presença do formalismo parece confirmar que as bases teóricas da reforma não estão em perfeita consonância com a realidade brasileira e, que, por isso, os reais problemas do Estado brasileiro continuam sem uma efetiva solução. Conclusão Um aspecto relevante da reforma é que ela foi concebida como um processo invertido: primeiro foi escolhida a solução, materializada na teoria da NGP, e depois foi dada atenção para o problema, com vistas também a justificar e legitimar a solução desejada. A ordem natural seria identificar e diagnosticar os problemas para então discutir possíveis soluções, que poderiam ser oriundas de outras experiências internacionais ou geradas internamente. 12 Há, no entanto, várias razões para justificar o modelo de reforma implantado no Brasil: a) praticamente todas as mudanças sofridas pela administração pública brasileira foram conseqüência da influencia de padrões estrangeiros. A reforma administrativa apenas repetiu uma prática histórica de buscar no exterior a solução para problemas internos; b) adotar um modelo consagrado garante legitimidade para a reforma e diminui a resistência à sua implantação; c) a opção por um modelo internacionalmente bem conceituado permite que o país adquira um novo status perante os países desenvolvidos. Além disso, dava ao Brasil “a oportunidade de participar desse grande movimento de reforma e constituir-se no primeiro país em desenvolvimento a fazê-lo” (Bresser-Pereira, 2000, p. 11); d) sempre se poderá alegar que a reforma foi bem sucedida, visto que a legislação que lhe dá base foi aprovada e as novas instituições (organizações sociais, agências executivas e agências reguladoras) estão em funcionamento; e e) se nem todos objetivos previstos foram alcançados, a culpa pode ser atribuída aos interesses corporativistas, à cultura burocrática e às pressões clientelistas. Na verdade, essa opção por um modelo específico condicionou todo o processo da reforma. O debate em torno da proposta foi conduzido de forma unilateral e teve como principal objetivo legitimá-la. As peculiaridades da administração pública brasileira foram levadas em conta para os ajustes de operacionalização do arcabouço de práticas e teorias, mas não se constituíram nos elementos fundamentais da formulação da reforma. Por outro lado, a questão cultural, embora tratada de forma explícita no plano diretor da reforma, foi relegada na condução do processo. As ações do MARE estiveram direcionadas prioritariamente para a aprovação das emendas constitucionais e da legislação infra- constitucional que permitiriam a implantação da reforma. Uma outra alternativa teria sido pensar a reforma a partir do contexto da administração pública brasileira, considerando seus anacronismos, vulnerabilidades, assimetrias, deficiências e, porque não, também suas virtudes, para então serem apresentadas as propostas de mudança. Assim, teríamos um processo cujo foco central é a realidade brasileira, com o seu conjunto de peculiaridades, e não as proposições de um modelo fabricado alhures. Para isso seria preciso investir na construção de condições locais para planejar e implantar as reformas e também para acompanhar sua evolução e avaliar os resultados. Isso implicaria, como destacou Guerreiro Ramos (1966), em desenvolver capacidades para refletir nossa realidade, deixando de adotar mimeticamente a produção teórica externa, que seria um subsídio a mais a ser considerado, mas não teria o status de um modelo a ser imitado. Para gerar uma reforma centrada no contexto brasileiro, é essencial que ela seja construída através de um consenso social, como parte de um processo de redefinição das relações entre o Estado e a sociedade, tendo, como resultado, o redesenho das estruturas institucionais para viabilizar a atuação do Estado no novo cenário (Fleury, 1997). Ainda de acordo com Fleury (1996, 1997), a reforma administrativa não deve restringir-se às necessidades técnico-administrativos, mas precisa contemplar os aspectos relativos à cultura política, considerando a questão do reordenamento das relações de poder. Deve ser considerado também que o modelo gerencial não é a única proposta de mudança factível. Paula (2005), por exemplo, aponta, como uma alternativa ao gerencialismo, a construção da administração pública societal, que consiste numa proposta que tem como base um novo modelo de desenvolvimento, a concepção participativa e deliberativa de democracia, a reinvenção político-institucional e a renovação do perfil dos administradores públicos. 13 Ao buscar um modelo internacional e enfatizar a dimensão institucional, talvez na expectativa de que fosse suficiente para mudar a cultura política e administrativa, a reforma do Estado de 1995desperdiçou uma excelente oportunidade para formular uma proposta de mudança centrada no contexto brasileiro. É verdade que esta maneira de conduzir a reforma iria de encontro à tendência hoje predominante no mundo globalizado da gestão, que, como observa Pollitt (2002), pressupõe que a melhor solução sempre está com alguém lá fora, precisamos somente encontrá-lo, o que faz com que a transferência de tecnologia de gestão de um país para outro seja um grande negócio. Referências Bibliográficas ABRUCIO, Fernando Luiz. O impacto do modelo gerencial na Administração Pública. Cadernos ENAP; n. 10, 1997. ARGYRIADES, Demetrios. Resistencia al cambio. Algunas observaciones críticas sobre discursos contemporáneos respecto a la reforma administrativa. In: Anais IX Foro de Investigación. México, outubro, 2004. ARMSTRONG, Anona. A comparative analysis: New Public Management - the way ahead? Australian Journal of Public Administration, v. 57, n. 2, 1998, p. 12-24. BECKETT, Julia. The "government should run like a business" mantra. 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