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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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SUMÁRIO
1 - HERMENÊUTICA – GENERALIDADES ............................................................................ 5
1.1. SOBRE A LINGUAGEM DA BÍBLIA ......................................................................................... 7
1.2. A REGRA FUNDAMENTAL DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA ............................................................ 9
2 - HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA ..................................................................... 13
2.1. HERMENÊUTICA ENTRE OS JUDEUS ................................................................................... 13
2.2. HERMENÊUTICA CRISTÃ .................................................................................................. 18
2.3. PERÍODO PATRÍSTICO ..................................................................................................... 22
2.4. OS PAIS LATINOS .......................................................................................................... 26
2.5. PERÍODO MEDIEVAL ...................................................................................................... 27
2.6. PERÍODO RENASCENTISTA ............................................................................................... 28
2.7. PERÍODO MODERNO ...................................................................................................... 31
2.8. A HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA ................................................................................... 34
3 - PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA ............................................................... 41
3.1. PRINCÍPIO DA CRENÇA NA AUTORIDADE DAS ESCRITURAS ...................................................... 42
3.2. PRINCÍPIO DO SENTIDO USUAL E ORDINÁRIO DAS PALAVRAS .................................................. 42
3.3. PRINCÍPIO DA ANÁLISE À LUZ DO CONTEXTO ....................................................................... 45
3.4. PRINCÍPIO DO DESÍGNIO ................................................................................................. 48
3.5. PRINCÍPIO DAS PASSAGENS PARALELAS .............................................................................. 52
3.6. PRINCÍPIO DA ANÁLISE EXPERIENCIAL À LUZ DAS ESCRITURAS ................................................. 59
4 - FIGURAS DE RETÓRICA ............................................................................................ 61
4.1. METÁFORA .................................................................................................................. 61
4.2. SINÉDOQUE .................................................................................................................. 62
4.3. METONÍMIA ................................................................................................................. 62
4.4. PROSOPOPÉIA ............................................................................................................... 63
4.5. IRONIA ........................................................................................................................ 63
4.6. HIPÉRBOLE ................................................................................................................... 64
4.7. ALEGORIA .................................................................................................................... 64
4.8. FÁBULA ....................................................................................................................... 65
4.9. ENIGMA ...................................................................................................................... 65
4.10. TIPO ........................................................................................................................... 65
4.11. SÍMBOLO ..................................................................................................................... 66
4.12. PARÁBOLA ................................................................................................................... 67
4.13. SÍMILE ......................................................................................................................... 68
4.14. INTERROGAÇÃO ............................................................................................................ 70
4.15. APÓSTROFE .................................................................................................................. 71
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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4.16. ANTÍTESE ..................................................................................................................... 72
4.17. CLÍMAX OU GRADAÇÃO .................................................................................................. 73
4.18. PROVÉRBIO .................................................................................................................. 75
4.19. ADVERTÊNCIAS ............................................................................................................. 76
4.20. ACRÓSTICO .................................................................................................................. 77
4.21. PARADOXO .................................................................................................................. 78
5 - HEBRAÍSMOS ............................................................................................................ 82
6 - PARTES BÁSICAS DA HERMENÊUTICA BÍBLICA ........................................................... 88
6.1. NOEMÁTICA ................................................................................................................. 88
6.2. HEURÍSTICA .................................................................................................................. 96
6.3. PROFORÍSTICA .............................................................................................................. 97
7 - DESAFIOS DA HERMENÊUTICA PARA OS NOSSOS DIAS ............................................ 100
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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AULA
01
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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1 - HERMENÊUTICA – GENERALIDADES
A palavra “Hermenêutica” vem do termo grego “hermeneúo” que significa
“interpretar”. A Hermenêutica é a disciplina que ensina as regras para interpretar um livro,
um texto, e, nesse caso especial, o texto bíblico. Em uma outra definição, J. Severino
Croatto diz que “ Hermenêutica é a ciência da compreensão do sentido que o homem traz
para sua vida prática interpretando a mesma através da palavra, de um texto ou de outras
práticas... Toda ação humana se converte em sinal que precisa ser decodificado; com
maior razão se é o próprio Deus quem confere um sentido aos acontecimentos.” Para Paul
Ricoeur “ A hermenêutica é a teoria das operações de compreensão em sua relação com a
interpretação dos textos.”
A Hermenêutica abarca, de forma especial, as regras de interpretação que procedem
do estudo das características da linguagem humana em geral e de toda a classe de escritos
humanos, tanto profanos quanto sagrados. Toda linguagem humana tem seu próprio gênio
e idiossincrasias que não conseguemser definidos em uma tradução literal para outra
língua. São modismos, provérbios, idiotismos, peculiaridades gramaticais, referências a
costumes locais, os quais poderiam causar problemas de interpretação para aqueles que
procuram entender o significado original que o autor quis comunicar, lendo agora em
outro idioma. O problema aumenta com relação aos textos bíblicos, visto que o tempo que
nos separa dos escritos originais é grande e só há algumas décadas é que os judeus
recuperaram seu idioma a nível nacional com a instalação do novo Estado de Israel. Assim,
por muitos séculos o hebraico foi uma língua morta, embora preservada nos círculos
rabínicos graças ao desenvolvimento do texto massorético. Isto torna as ferramentas da
hermenêutica ainda mais importantes e necessárias. Ainda sobre essa vertente, Paul
Ricoeur identificou três necessidades do estudo hermenêutico, salientando assim a sua
importância:
A palavra que em princípio foi “pregada”, “falada” e, desde então, enquadrada em
formas conceptuais, se transformou, por sua vez, em letra, texto, o que limita-se
agora ao processo de canonização. Os cristãos possuem então não um testamento,
mas dois testamentos para interpretar. O desafio agora é o do retorno à “palavra”
que está antes do texto.
Existe uma distância cultural (já abordada acima) entre a época das escrituras e a
nossa época. Uma das funções da hermenêutica consiste em vencer essa distância
cultural para permitir a manifestação na cultura presente daquilo que foi dito em
outra cultura e que não é mais do nosso tempo.
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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Depois da influência do Racionalismo e do movimento de crítica bíblica o que ficou
do texto bíblico foi um sentido de profano ou de um texto qualquer. Entretanto,
para o cristão a Bíblia tem um valor particular e o desafio do pós-modernismo é o
de compreender e aplicar aquilo que se constitui em “proclamação” a partir de um
texto que teve suas passagens dissecadas através do método crítico.
Acrescente-se a isto o fato de que os dias hodiernos apresentam como característica
a proliferação de “teologias” de pouca profundidade, nas quais o texto bíblico deixa de ser
o ponto de partida e se torna um mero instrumento de confirmação de idéias
preestabelecidas, gerando uma distorção da mensagem do texto pelo desprezo ao
contexto. As partes básicas da Hermenêutica (No cap.IV, estudaremos mais detidamente
cada uma destas partes) são:
Noemática (do grego noema, “ pensamento”, “sentido”) – constitui-se no estudo
dos diversos significados com que o pensamento bíblico é expresso;
Heurística (do grego heurisko, “achar”, “encontrar”) – é a parte que estuda as
ferramentas que serão utilizadas para o encontro dos diversos significados da
escritura;
Proforística (do latim profero, “tirar”, “apresentar”) – é o modo de expor os
significados contidos na Bíblia.
Filosoficamente, a Hermenêutica se desenvolveu a partir de três momentos: A
compreensão (subtilitas intelligendi), a interpretação (subtilitas explicandi) e a aplicação
(subtilitas applicandi). A expressão “subtilitas” denota que se trata muito mais de um saber
fazer (know how) que de um método propriamente, o que demandaria não apenas um
conhecimento teórico, mas também uma habilidade especial.
Embora estes três conceitos tenham surgido e se desenvolvido progressivamente,
hoje são vistos como complementares, estando claro que os dois primeiros são interativos
e interdependentes. De acordo com Gadamer: “A interpretação não é um ato
complementar e posterior à compreensão, mas compreender é sempre interpretar e,
consequentemente, a interpretação é a forma explícita da compreensão”. Embora distinta
destes dois elementos, a aplicação é vista hoje como tão imprescindível à Hermenêutica
quanto a interpretação e a compreensão. Isto adquire significado ainda maior quando se
refere ao estudo das Escrituras onde, muito mais do que um documento a ser dissecado,
encontramos uma mensagem a ser transmitida.
É importante também que se faça a distinção entre Hermenêutica e Exegese:
Enquanto a primeira é uma ciência que, conforme já foi visto, inclui todo o processo que
vai da leitura à aplicação, a exegese consiste na utilização prática de ferramentas da
Hermenêutica para o resgate do mundo original do texto. Segundo Croatto, “ ...a exegese
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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...procura identificar o sentido do texto, perquirindo o que há ‘por trás’ ( autor, tradições,
figuras literárias anteriores ), enquanto que a hermenêutica soma a compreensão do
sentido que está ‘adiante’ do texto”.5
A partir de então, deve-se examinar a história da interpretação bíblica a partir dos
primórdios do rabinismo. Para tanto, deve-se levar em consideração raízes históricas
fundamentais encontradas em Platão e em Heráclito. O primeiro, cerca de 428 AC, em
Atenas, partiu do conceito de “Mundo das Idéias”, a partir do qual elaborou o conceito de
símbolo e mito. Verdades espirituais eram representadas por alegorias, figuras muito
utilizadas também no texto sagrado. Heráclito de Éfeso, entre 540 e 480 AC, estabeleceu o
conceito de “huponóia” (sentido mais profundo), cujo objetivo inicial era abordar as obras
de Homero, fugindo das implicações óbvias de se interpretar literalmente o que ele
escreveu acerca dos deuses gregos (A Odisséia; Ilíada). Observa-se então que a
preocupação hermenêutica é antiga. Veremos então como essas raízes históricas
encontram eco nos caminhos percorridos pelas hermenêuticas judaica e cristã.
1.1. Sobre a Linguagem da Bíblia
Segundo o testemunho da própria Escritura Sagrada, ela foi divinamente inspirada,
"útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim
de que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente habilitado para toda boa obra".
Em uma palavra, a Escritura tem por objetivo fazer o homem "sábio para a salvação pela fé
em Cristo Jesus" (2 Tim. 3:15, 16).
Por isso esperamos, e esperamos com razão, que a Bíblia fale com simplicidade e
clareza.
Efetivamente, lendo, por exemplo, o Novo Testamento, encontramos a cada passo
em suas páginas os grandes princípios e deveres cristãos expressos em linguagem simples
e clara, evidente e palpável. Em cada página ressalta a espiritualidade e santidade de Deus,
ao mesmo tempo que a espiritualidade e o fervor demandam sua adoração. Em todas as
partes nos é pintada a queda e corrupção do homem e a conseqüente necessidade de
arrependimento e conversão. Em todas as partes é proclamada a remissão do pecado em
nome de Cristo e a salvação por seus méritos a vida eterna pela fé em Jesus, e, ao mesmo
tempo, a morte eterna pela falta de fé no Salvador. A cada passo aparecem os deveres
cristãos em todas as circunstâncias da vida e as promessas de ajuda do Espírito de Deus no
combate contra a corrupção e o pecado. Estas verdades brilham como a luz do dia, de
sorte que nem o leitor mais superficial e indiferente deixará de vê-las.
Porém, que sucede? O mesmo que em outros livros. No mais simples livro de escola
primária, que se ocupa tão-somente de coisas terrenas, encontram-se, por exemplo,
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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palavras e passagens que o homem não compreende sem estudos. Seria, pois, estranho
encontrar palavras e passagens de difícil compreensão nas Escrituras Sagradas, que em
linguagem humana tratam de coisas divinas, espirituaise eternas? Se numa província da
Espanha se usam figuras ou modos de expressar-se que em outra não se compreendem
sem interpretação, seria estranho encontrar tais figuras e expressões nas Escrituras, que
foram escritas em países distantes e todos diferentes ao nosso? Se todo o escrito antigo
oferece pontos obscuros, acaso seria estranho que os tivesse um livro inspirado por Deus a
seus servos em diferentes épocas, faz já centenas e milhares de anos? Nada mais natural
que contenham as Escrituras pontos obscuros, palavras e passagens que requerem estudo
e cuidadosa interpretação.
Recordemos aqui que unicamente em tais casos de dificuldade, e não quanto ao
simples e claro, precisamos dos conselhos da hermenêutica para que resulte frutífero
nosso estudo e correta nossa interpretação.
Pois bem; suponhamos que nos vem um documento, testamento ou legado que nos
interessa vivamente e que representa uma grande fortuna, porém em cujos detalhes
ocorrem algumas palavras e expressões de difícil compreensão. Como e de que maneira
faríamos para conseguir o verdadeiro significado de tal documento? Seguramente
pediríamos, em primeiro lugar, explicação a seu autor, se isso fosse possível.
Porém se prometesse esclarecer-nos contanto que trabalhássemos, esquadrinhando-
o nós mesmos, o mais natural e acertado seria, sem dúvida, ler e reler o documento,
tomando suas palavras e frases no sentido usual e comum. Quanto às palavras obscuras
buscaríamos, naturalmente, seu significado e aclaração, em primeiro lugar, pelas palavras
próximas ou contíguas às obscuras, isto é, pelo conjunto da frase em que ocorrem.
Porém, se ainda ficássemos sem luz, procuraríamos a clareza pelo contexto, quer
dizer, pelas frases anteriores e seguintes ao ponto obscuro, ou seja pelo fio ou tecido
imediato a narração em que se encontra,
Se não bastasse o contexto, consultaríamos todo o parágrafo ou passagem, fixando-
nos no objetivo, intento ou fim a que se dirige a passagem.
E se ainda não obtivéssemos a clareza desejada, buscaríamos luz em outras partes do
documento, para ver se haveria parágrafos ou frases semelhantes, porém mais explícitas,
que se ocupassem do mesmo assunto que a expressão obscura que nos causa
perplexidade.
Em resumo, e de qualquer forma, procederíamos de maneira que o próprio
documento fosse seu intérprete, já que, levando-o a este ou àquele advogado,
contrariaríamos a vontade do generoso autor e, afinal, correríamos o risco de interessada
e pouco escrupulosa interpretação.
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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Tratando-se da interpretação da Sagrada Escritura, do duplo Testamento de Nosso
Senhor, o procedimento indicado, além de ser o mais natural e simples, é o mais acertado
o seguro, como a seguir veremos.
1.2. A Regra Fundamental da Interpretação Bíblica
Pelo dito anteriormente, foi-nos possível ver como é apropriado e mais conveniente,
que em qualquer documento de importância em que se encontrem pontos obscuros se
procure que ele seja seu próprio intérprete. Quanto à Bíblia, o procedimento sugerido não
só é conveniente e muito factível, mas absolutamente necessário e indispensável.
O quanto sabemos, o primeiro intérprete da Palavra de Deus foi o diabo, dando à
palavra divina um sentido que ela não tinha, falseando astutamente a verdade. Mais tarde,
o mesmo inimigo, falseia o sentido da Palavra escrita, truncando-a, isto é, citando a parte
que lhe convinha e omitindo a outra.
Os imitadores, conscientes e inconscientes, têm perpetuado este procedimento
enganando à humanidade com falsas interpretações das Escrituras. Vítimas, pois, de tais
enganos e de tão estupendos erros, que têm resultado em hecatombes e cataclismos,
devemos já conhecer o suficiente dessa interpretação particular. E a ninguém deve parecer
estranho que insistamos em que a primeira e fundamental regra da correta interpretação
bíblica deve ser a já indicada, a saber: A Escritura explicada pela Escritura, ou seja: a Bíblia,
sua própria intérprete.
Ignorando ou violando este princípio simples e racional, temos encontrado, como
dissemos, aparente apoio nas Escrituras a muitos e funestos erros. Fixando-se em palavras
e versículos arrancados de seu conjunto e não permitindo à Escritura explicar-se a si
mesma, encontraram os judeus aparente apoio nela para rejeitar a Cristo. Procedendo do
mesmo modo, encontram os papistas aparente apoio na Bíblia para o erro do papado e
das matanças com ele relacionadas, para não falar da Santa Inquisição e outros erros do
mesmo estilo. Atuando assim, acham aparente apoio os espíritas para sua errônea
encarnação; os comunistas, para sua repartição dos bens; os incrédulos zombadores, para
as contradições; os russelitas para seus erros blasfemos. e, finalmente, os Wilson e
Roosevelt, ara seu militarismo. Se tivessem a sensatez de permitir h Bíblia que se
explicasse a si mesma, evitariam erros funestos.
Graças ao abuso apontado ouvimos dizer que com a Bíblia se prova o que se quer. A
má vontade, a incredulidade, a preguiça em seu estudo; o apego a idéias falsas e
mundanas, e a ignorância de toda regra de interpretação, provará o que se queira com a
Bíblia; porém jamais provará a Bíblia o que os homens tão mal dispostos querem.
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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Tampouco provará nenhum douto de verdade, nem crentes humildes, qualquer coisa com
a Escritura.
Ao contrário, porque o discípulo humilde e douto na Palavra sabe que "a lei do
Senhor é perfeita" e que não há erro na Palavra, mas no homem, ele sabe que não se tira e
se põe, ou se acrescenta e se suprime impunemente à Palavra, segundo o estilo satânico,
porquanto Deus, mediante seu servo, fez constar: "Se alguém lhes fizer qualquer
acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro; e se alguém tirar
qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da
vida." Não, certamente a revelação divina, qual Lei perfeita, "é inspirada por Deus e útil
para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que
o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra"; tal
revelação, dissemos, não se presta impunemente a tal abuso.
Em vista de tais afirmativas e destas e outras restrições, é evidente que carece
absolutamente de sanção divina a interpretação particular do papismo que concede
autoridade superior à Palavra mesma, à interpretação dos "pais" da Igreja docente ou da
infalibilidade papal, como carece também de dita sanção a idéia da interpretação
individual do protestantismo. "Nenhuma profecia da Escritura provam de particular
elucidação", disse Pedro; e Jesus nos exorta a examinar as Escrituras para achar a verdade,
e não a interpretar as Escrituras para estabelecer a verdade a nosso arbítrio.
Nada de estranho tem, pois, que nos eminentes escritores da antiguidade
encontremos afirmações como estas: As Escrituras são seu melhor intérprete.
Compreenderás a Palavra de Deus melhor que de outro modo, comparando uma parte
com outra, comparando o espiritual com o espiritual (1 Cor. 2:13). O que equivale a usar a
Escritura de tal modo que venha a ser ela seu próprio intérprete.
Se por uma parte, arrancando versículos de seu conjunto e citando frases soltas em
apoio de idéias preconcebidas, é possível construir doutrinas chamadas bíblicas, que não
são ensinos das Escrituras, mas antes "doutrinas de demônios"; por outra parte,
explicando a Escritura pela Escritura, usando a Bíblia como intérprete de si mesma, não só
se adquire o verdadeiro sentido daspalavras e textos determinados, mas também a
certeza de todas as doutrinas cristãs, quanto à fé e à moral. Tenha-se sempre presente que
não se pode considerar de todo bíblica uma doutrina antes de resumir e encerrar tudo
quanto a Escritura diz da mesma. Um dever tampouco é de todo bíblico se não abarca e
resume todos os ensinos, prescrições e reservas que contam a Palavra de Deus em relação
ao mesmo. Aqui cabe bem a lei: "Não se pronuncia sentença antes de haver ouvido as
partes." Porém cometem o delito de falhar antes de haver examinado as partes todos
aqueles que estabelecem doutrinas sobre palavras ou versículos extraídos do conjunto,
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sem permitir à Escritura explicar-se a si mesma. Igual falta cometem os que do mesmo
modo procedem e falam de contradições e ensinos imorais.
Por conseguinte, é de suma necessidade observar a referida regra das regras, a saber:
A Bíblia é seu próprio intérprete, se não quisermos incorrer em erros e atrair sobre nós a
maldição que a própria Escritura pronuncia contra os falsificadores da Palavra. Dissemos
"regra das regras", porque desta, que é fundamental, se desprendem outras várias que,
como veremos, dela nascem naturalmente.
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02
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2 - HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO
BÍBLICA
2.1. Hermenêutica Entre os Judeus
Provavelmente, um dos primeiros empreendimentos do uso da Hermenêutica entre
os judeus venha da época de Esdras, conforme lido em Ne.8:1-8, onde consta uma menção
especial à leitura da Torah nunca dantes vista entre os judeus. Deve-se levar em
consideração que a extrema preocupação com a leitura da Torah deu-se após ou a partir
do exílio babilônico, por conta do sentimento de culpa nutrido pelos movimentos
deuteronomista e sacerdotal, levando assim à mente da comunidade que o exílio era o
castigo de Javé ao povo desobediente à sua Palavra. A idéia de reunir pessoas em grupos
nesse período culminou mais tarde no projeto de sinagoga judaica (Ez.3:15;8:1;14:1;20:1).
Júlio Trebolle Barrera levanta alguns fatores que contribuíram para o nascimento e
desenvolvimento da interpretação bíblica no judaísmo a partir das épocas persa e
helenística6. Em primeiro lugar ressalta que o desenvolvimento do cânon hebraico
(Tanach) exigiu que os escritos mais tardios (literaturas sapiencial, apocalíptica e apócrifa)
representassem uma espécie de interpretação e de reescritura de textos e tradições de
épocas anteriores. Aliás, isso já era uma prática dentro do próprio texto canônico
(comparar o Decálogo em Ex.20, Dt.5 e Jr.17:21-22; ver também a promessa incondicional
a Davi que o seu reino será eterno em II Sm.7:12-16 e I Rs.2:1-9, verificando-se como
diferencial o cumprimento da Torah). Em segundo lugar, para manter vigentes as leis e
instituições do povo judeu e para manter a própria identidade e esperança nas difíceis
situações de cada época, era necessária uma releitura e uma nova compreensão dos
velhos textos legais e das tradições históricas de Israel. Por fim, a necessidade de traduzir
os textos sagrados hebraicos para a língua aramaica falada na Palestina e na diáspora
judaica oriental e também para o grego, falado por muitos judeus na diáspora ocidental,
obrigava a um grande esforço de interpretação ou de atualização dos textos hebraicos.
Continuando nesse processo histórico, no século III AC aparece a Septuaginta (LXX),
primeira tradução escrita do AT, que tem sido também considerada uma obra de caráter
interpretativo do mesmo. Justamente por conta desse aspecto tem sido objeto de diversas
críticas, sendo que as mais freqüentes apontam para a helenização do texto hebraico.
Barrera aponta a tradução de Gn.1:2 “deserto e vazio”, helenizado para “invisível e
desorganizado”.
Já Hans W.Wolff, em sua Antropologia do AT, aponta que a LXX descaracterizou o
sentido de alguns termos designadores da antropologia judaica tais como “Nephesh”
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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(“goela” traduzida por “alma”) e “Ruach” (“vento”, traduzido por “espírito”), dando um
outro sentido ao leitor moderno que encontra os termos helenizados nas traduções atuais
que seguem o texto da LXX 8. Outro fator é o da eliminação de antropomorfismos e
antropopatismos. Por exemplo, em Dt.32:10, falando da relação entre Javé e seu povo, o
texto hebraico oferece a expressão: “como a menina dos seus olhos”, enquanto que a
versão grega omite o pronome “seus” (“...como a menina de um olho” ).
Se na LXX a interpretação helenística estava embutida na tradução, nos Targumim a
interpretação se localizava na fronteira entre a tradução e o comentário. Em estudos
introdutórios já foi visto que o Targum evoluiu com a diminuição do uso do hebraico como
língua corrente e a necessidade de se traduzir o texto nas sinagogas para o dialeto
aramaico da região. Acontece que o Targum é um jogo entre tradução e interpretação que
pode acontecer de duas formas: parafraseando uma tradução literal ou convertendo a
própria tradução numa paráfrase verdadeira. A primeira forma é a mais primitiva e
corresponde à fase oral dos Targumim (tradução-comentário); a segunda corresponde ao
período de escritura quando apareceram Targumim famosos tais como o “ONKELOS” e o
“NEOPHYTI”. Abaixo, um exemplo de paráfrase extraído do Targum “NEOPHYTI”:
Gn.3:15 : “Inimizade colocarei entre ti e a mulher, entre tua prole e a dela, e
ocorrerá que quando os seus filhos guardarem a Torah e colocarem em prática os
mandamentos, eles apontarão, esmagarão a cabeça e te matarão; quando, porém,
abandonarem os mandamentos da Torah, tu apontarás e ferirás seu calcanhar e o
farás adoecer; somente o filho dela terá cura e tu, serpente, não terás remédio,
pois eles estarão prontos a reconciliar-se no futuro, no dia do Rei Messias”.
Provavelmente, os intérpretes já enfrentavam problemas tais como a explicação de
termos difíceis, a necessidade de eliminação de antropomorfismos, a atualização de
termos relativos a lugares, povos e instituições, entre outras dificuldades. A isso soma-se o
próprio desenvolvimento teológico influenciando a tradução, como foi visto na paráfrase
de Gênesis acima transcrita, onde o fator determinante é a preocupação com a
observância da Torah.
A. Hermenêutica Judaico-helenística. A interpretação utilizada pelos judeus da
diáspora difere bastante daquela utilizada pelos judeus palestinos, cuja interpretação era
centrada na prática da Torah. Para os judeus da diáspora helenística, o Pentateuco tinha se
convertido num corpo legislativo, baseado numa determinada concepção da divindade
mais próxima da razão filosófica do que da revelação do Sinai. Esta concepção divina é
demonstrada através das freqüentes referências ao Logos e a conceitos tais como
causalidade, destino, imortalidade, etc. Assim os mandamentos bíblicos capacitavam o
indivíduo para o triunfo sobre suas paixões, libertando a alma da escravidão do corpo,
podendo assim prosseguir na busca da vida eterna no reino do imaterial. Por essa razão,
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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alegorizava-se o Pentateuco, transformando-se o Deus bíblico em razão pura e
transcendente, totalmente espiritual e livre de paixões ( daí a ausência de
antropomorfismos e antropopatismos na LXX).
Um outro fator determinante na hermenêutica judaico-helenística foi a influência do
Gnosticismo. A salvação na história dá lugar à salvação pela gnose, obtida pela revelação
sobrenatural dispensada unicamente aos iniciados. Os sinais externos e visíveis do
judaísmo ( circuncisão, leis alimentares e higiênicas ) dão lugar à busca pelo conhecimento
pleno e verdadeiro. Dois representantes desta tendência merecem destaque: Fílon de
Alexandria e Flávio Josefo.
Fílon, ao mesmo tempo exegeta e filósofo, se caracterizou pelo uso constante de
alegorias para interpretar a Torah. Seus estudos eram centrados na lei de Moisés e na
sabedoria, com uma adaptação da filosofia platônica, apresentando Moisés mais como um
filósofo que como um legislador. Os temas por ele desenvolvidos são mais antropológicos,
cosmológicos e psicológicos. Assim, o templo simboliza o mundo(DE ESPECIALIBUS
LEGIDUS 1:66); as quatro cores das vestimentas do Sumo Sacerdote são símbolos dos
quatro elementos naturais (DE VITA MOSIS 2:88); Adão é o símbolo da inteligência, Eva da
sensibilidade, e os animais, das paixões (LEGUM ALLEGORIA 2:8-9, 24, 35–38). Um outro
exemplo de interpretação alegórica é o texto da escada de Jacó (Gn.28:12), que significa
para Fílon o ar suspenso entre o céu e terra e também a alma situada entre a sensibilidade
e o intelecto. O fundamento filosófico para esta hermenêutica está no pensamento
platônico, que reza que ninguém deve acreditar em algo que seja indigno de Deus. Assim,
quando Fílon encontrava no texto bíblico algo que contrariava sua lógica recorria à
interpretação alegórica para explicar o texto. Segundo Battista Mondim, Fílon foi o
primeiro a procurar uma síntese entre as Escrituras e Platão.
Flávio Josefo é conhecido como historiador judeu no primeiro século d.C. e, apesar de
receber esta designação, demonstra agir hermeneuticamente com relação aos textos
bíblicos. Dentro de seu projeto de apresentar a história dos judeus ao público greco-
romano a partir de uma retórica helenística, ele resume, sistematiza, amplia e dramatiza as
narrações bíblicas. Por exemplo, no prólogo de “Antigüidades”, Josefo se aproxima de Fílon
(OPIFICIO MUNDI) explicando o fato da narração sobre a criação preceder o relato da
entrega da Torah: a ordem dos relatos tem por objetivo preparar a obediência daqueles
que vão receber a Torah. Da mesma forma, Flávio Josefo e Fílon interpretam
alegoricamente a tríplice divisão do Tabernáculo: terra, mar e céus.
B. Hermenêutica Rabínica. Para uma compreensão mais adequada do rabinismo, é
necessário conhecer primeiro os conceitos básicos da interpretação escriturística a partir
do período persa:
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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MIDRASH (comentário, investigação) – é a prática da exposição exegética das
Escrituras, com finalidade homilética e hagádica. É a ponte que liga a escritura à literatura
rabínica. Apresenta-se em três classes: Halakah, Hagadah e Pesher.
HALAKAH (caminhar, guiar) – representa o desenvolvimento da legislação mosaica
específica, contendo leis não existentes no texto canônico (ex: 39 tipos de trabalho e
outras atividades cujo exercício era proibido no sábado). No próprio texto canônico temos
um exemplo de Halakah na proibição do casamento de judeus com mulheres estrangeiras
(Esdras capítulos 8 e 10). A Halakah pretenda governar todos os âmbitos da vida de um
judeu, desde o amanhecer até o anoitecer, desde o nascimento até a morte. Deu origem
ao legalismo judaico.
HAGADAH (narração) – representa a tendência hermenêutica mais livre e edificante,
a qual abrange todas as partes não legalistas da Escritura, caracterizando-se mais
ilustrativa e menos exegética. Por meio de aperfeiçoamento das narrativas e profecias
bíblicas, fomentava-se a fé e a esperança judaicas.
PESHER (interpretação, comentário) – se propõe a atualizar os oráculos proféticos,
ligando eventos ou personagens do passado a semelhantes eventos e personagens do
presente, dando-lhes um sentido de cumprimento.
MISHNAH (repetição) – constitui-se no resultado escrito da evolução da Halakah, ou
seja, gerações de intérpretes identificados com os fariseus desde 150 AC desenvolveram
leis orais codificando-as por volta de 180 DC . É a primeira coleção oficial de doutrina
judaica pós bíblica de caráter predominantemente jurídico, constando de 73 tratados
distribuídos em seis divisões, escritos em hebraico. Evoluiu para a GUEMARA.
GUEMARA (complemento) – Por volta de 550 DC os rabinos elaboraram um
comentário complementar à MISHNAH em aramaico como um tipo de suplemento em
duas versões: a Guemara Palestinense e a Guemara Babilônica, esta última, a mais
completa.
TALMUD (doutrina, ensino) – O Talmud é o resultado final do desenvolvimento da
MISHNAH e da GUEMARA, cujo trabalho ficou pronto por volta do final do século IV d.C. É
toda uma síntese de tradições, leis bíblicas, comentários sobre a Torah, resultantes do
processo hermenêutico iniciado pela MIDRASH.
As Escolas de Hillel e Shammay – Através do conhecimento prévio da
hermenêutica judaico-helenística dos conceitos básicos da hermenêutica rabínica,
pode-se entender melhor as interpretações de Hillel e Shammay. Hillel, vindo da
Babilônia e de uma cultura helenística no primeiro século a.C., deu pouco ou quase
nenhum valor ao fervor apocalíptico e ao messianismo radical de caráter político
desenvolvido entre os zelotes. Assim, todo o seu ensino vinha mais da dedução
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racional que da tradição, servindo-se do jogo de pergunta e resposta próprio do
método socrático. Criou sete regras de interpretação, as quais dão ênfase ao
estudo exegético das escrituras, deixando de lado a tradição oral. Dentre essas
regras, destacam-se: uso do contexto, dedução do especial para o geral
(implicações gerais deduzidas de uma passagem), inferência por analogia (palavras
que têm significação idêntica poderão ser tratadas igualmente, mesmo que
estejam ligadas a declarações muito diferentes), uso comparativo de outras
passagens. Percebe-se, então, que Hillel tinha a preocupação sempre nova de
atualizar a Torah para os judeus das diversas situações (diáspora, palestinos), o
que lhe valeu a acusação de modificador da Torah e de criador de novas leis
(Taqqanot). A sua forma de interpretação estava mais afinada com a Halakah,
momento em que convertia usos e costumes próprios do seu relativismo,
conferindo-lhes valor sagrado.
Shammay, um outro importante rabino, mais fechado e conservador, e seguidor da
tradição, demonstra, em determinados momentos, ser mais aberto e flexível que
Hillel na interpretação da Torah. Não aceitando o influxo do contexto e das
exigências da modernidade sobre o texto bíblico, demonstra, segundo A.
Guttmann (citado por Barrera), a “preocupação em salvaguardar os princípios
fundamentais e não tanto uma intransigência absoluta na aplicação prática da
lei.”11 Por exemplo, na interpretação do texto de Dt.24:1, sobre o divórcio, o
termo “coisa vergonhosa”, com relação à mulher como motivo fundamental para o
divórcio significava para Hillel qualquer coisa que desagradasse ao marido
(infidelidade, uma palavra mal dirigida, o encontro de uma mulher mais agradável,
etc.) enquanto que para Shammay representavaapenas a infidelidade conjugal.
Apesar das grandes discussões e acusações, o debate rabínico estava sempre
inacabado e aberto a reconsiderações, correspondendo mais ao estilo dialógico, o
que permitia que opiniões contrárias pudessem ser consideradas igualmente
verdadeiras e dignas de inspiração. Talvez seja este o motivo por que a teologia
judaica nunca tenha chegado a assumir o caráter de dogma, a não ser em
momentos em que se viu na tarefa de defender-se de algumas ameaças tais como
o Gnosticismo, momento em que fez afirmações sobre o monoteísmo e sobre a
bondade da criação.
Judeus Caraítas – Caraítas ou “beni mikra” (filhos da leitura), oriundos do século IX
d.C., cuja seita representa uma reação contra a influência do maometismo no
rabinismo judeu e na tradição, defendendo a escritura como única autoridade em
matéria de fé, aplicando nos seus estudos métodos de investigação gramatical e
lexicográfica, chegando à produção de comentários escritos. Graças a isso, foram
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apelidados de “os protestantes dentre os judeus”. A palavra que os designa (
caraítas ) vem do nome da cidade onde se originou o movimento: Qayrawan, no
Egito. Do ponto de vista hermenêutico são eles os que mais se aproximam dos
essênios, defendendo o princípio da primazia da lei escrita, a ênfase na esperança
messiânico-apocalíptica, e determinadas práticas, tais como: a celebração da festa
de Pentecostes, a monogamia e rituais de sepultamento dentro da liturgia de
Qumram. Provavelmente os caraítas descendem de uma ala conservadora dos
saduceus, os zadoquitas. Estudos e descobertas arqueológicas recentes mostram
que os zadoquitas também habitaram o mosteiro de Qumram. A reação dos
rabinos ao movimento caraíta culminou na conclusão do texto massorético.
Judeus Cabalistas – A palavra Qabbalah significa recepção e designa o conjunto de
doutrinas judaicas de caráter esotérico, místico e mágico. O movimento teve sua
origem na Espanha e na Alemanha por volta do século XIII, como uma reação
contra a filosofia racionalista. Os cabalistas conferiam valor sobrenatural a cada
palavra, letra ou mesmo sinal do texto massorético, fazendo combinações
numéricas, superposições e substituições de letras e sinais, na busca de sentidos
ocultos.
2.2. Hermenêutica Cristã
Como ponto de partida para o estudo da hermenêutica cristã, deve-se levar em
consideração que o cânon do AT ainda não se encontrava cristalizado quando os livros do
NT estavam sendo escritos. De acordo com Barrera, os primeiros cristãos utilizaram os
princípios e métodos da exegese judaica com uma única diferença: a leitura cristológica do
AT. A seguir, algumas das características dessa leitura:
A. Seleção temática de passagens do AT. Para desenvolver o tema “Cristo-Pedra” (I
Pd 2:6; Ef 2:20; Mt 21:42; At 4:11), a igreja editou os textos de Is 28:16; Sl 118:22 e Is 8:14.
Essa técnica é denominada de “testimonia”. Essa prática não foi exclusiva da igreja cristã.
Em Qumram há um manuscrito repleto desta prática (4QTest); um destes testimonia edita
as passagens de Dt 5:28s; 18:18s; Nm 24:15s e Dt 33:8-11:
“Um profeta suscitarei para eles do meio de seus irmãos, como a ti, e porei minhas
palavras na sua boca. E ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar. Eu mesmo pedirei
contas a quem não escutar as palavras que ele pronunciar em meu nome. E pronunciou
sua mensagem e disse: Oráculo de Balaão, filho de Peor, oráculo do homem de olhar
penetrante, oráculo de quem ouve as palavras de Deus e conhece os pensamentos do
altíssimo, que vê as visões do poderoso, cai em êxtase e tem os olhos abertos. Vejo-a mas
não é agora, contemplo mas não está perto: uma estrela se levanta de Jacó e um cetro se
eleva de Israel, quebra as têmporas de Moab e o crânio de todos os filhos de Set.”
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B. Perspectiva Escatológica. A redenção de Deus realiza-se na história, donde vem a
idéia de que a geração presente se encontra às portas da consumação final dessa história
de salvação iniciada e concluída por Jesus. Essa divisão da história (sem o cristocentrismo)
é compartilhada por cristãos e judeus Qumramitas.
C. Leitura Tipológica. Há a compreensão dos elementos do AT como tipos dos
elementos que se apresentam no novo pacto. Por exemplo, a criação e a salvação (o
segundo Adão) e a aliança através do novo êxodo. Um outro bom exemplo é a leitura que
o livro de Hebreus faz do AT.
D. Princípio da Personalidade Corporativa (Corporate Personality). Essa realidade na
comunidade de israelitas no AT é transposta para a igreja cristã na sua auto-interpretação
como “corpo de Cristo”(Rm.15; I Cor.12:12-31). Os estudos na área de Antropologia do AT
feitos por Weler Robinson no início do Século XX mostram com mais detalhes que no AT o
indivíduo inteiro está na comunidade e a comunidade inteira está no indivíduo, ou seja
uma figura individual pode englobar todas que com ela se relacionam. Essa concepção
permite a Paulo falar da existência de todos os homens “em Adão”, ou dos israelitas “em
Abraão”. .
E. Jesus e o AT. A primeira coisa a ser trabalhada nesta matéria é o entendimento da
escolha textual pela qual Jesus citou o AT visto que em sua época eram conhecidos o texto
grego da LXX e o texto hebraico palestinense. Na maior parte das vezes o texto que está
nos lábios de Jesus corresponde ao da LXX (Mt.15:8-9; Mc.7:6-7 comparado a Is.29:13);
outras vezes corresponde ao texto hebraico (Mt.11:10 e Lc.7:27 comparado a Ml.3:1 e
Is.40:3); outras vezes não corresponde a qualquer texto conhecido (Lc.4:18-19 comparado
a Is.61:1-2, no qual omite e acrescenta termos). Esse tipo de ocorrência levantou a atenção
para uma questão há muito discutida mas que conta com poucas evidências. Como se
sabe, Jesus, os discípulos e a Igreja palestinense falavam aramaico, mas os evangelhos
foram escritos em grego. A existência de inúmeros aramaísmos no texto grego é um forte
indício de que um texto primitivo aramaico contendo os “Logia” de Jesus teria sido
traduzido para o grego, utilizando assim preferencialmente passagens do AT oriundas do
texto da LXX. Entretanto, é muito provável também que o próprio Jesus tenha modificado
ou selecionado partes do texto (conforme visto em Lc.4:18s), o que poderia explicar a falta
de relação com a LXX ou com o texto hebraico.
No que diz respeito à sua visão do AT, Jesus considerou as escrituras inspiradas, sem
no entanto aceitar a idéia do ditado verbal, conforme fica claro em Mc. 12:36: “Davi
mesmo disse no Espírito Santo...” ( as palavras são de Davi, ainda que inspiradas pelo
Espírito Santo ). Além disso, deu ao texto diferentes graus de valorização, na medida em
que ajuizou a permanência do casamento, estabelecida em Gn. 2:24, superior à lei,
permitindo o divórcio (Dt. 24: 1- 4), conforme Mateus 19.
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A partir desta compreensão de sua relação com o AT, é possível estabelecer a forma
da hermenêutica de Jesus. Houve momentos em que Jesus modificou o texto para que a
profecia tivesse sentido em sua pessoa. Por exemplo, comparar Mt.26:31 e Mc.14:27 com
Zc.13:7; em outros momentos Jesus utilizou a forma “Pesher” (relação de um texto do AT
com acontecimentos ou personagens da época escatológica que o intérprete crê estar
vivendo) conforme formulação em Lc.4:21. Nas questões de ordem moral e religiosa Jesus
foi categórico ao usara forma literal da letra do texto (como em Mt.15:4 e Mc.7:10) mas
também, em outros momentos, utilizou a “Midrash” (a expressão “quanto mais” em
Mt.7:11; Lc.11:13; típica de Hillel).
Jesus criticou duramente a tradição (conforme visto nos “logia” – sermão do monte)
mas, em outros momentos, não hesitou em usar ensinamentos do rabinismo que viriam a
constar no Talmud , aplicando-os dentro de sua visão “antropo-teocêntrica” , conforme
Mt. 7:12 . Essa maneira flexível de Jesus usar as Escrituras permite-lhe também, ao mexer
com a tradição mais antiga, construir uma seqüência lógica de argumentos a partir da
própria história judaica para apoiar o seu ensinamento, como em Mt. 12:1-8, na questão
do “Sábado”.
Jesus estabelece ainda, no sermão da montanha, que suas leis iam além das leis do
AT. Enquanto que os fariseus e escribas interpretavam as leis como proibitivas de ações
externas, Jesus buscava um sentido mais profundo, que refletisse as atitudes do coração.
Por exemplo, não bastava retrair-se do adultério ou do crime; o homem deve retrair-se da
cobiça e da raiva.
De acordo com Viertel, “Jesus usou algumas formas de expressão dos rabinos, mas o
conteúdo dos seus ensinos era diferente. Ele engrandeceu a presença do Reino de Deus
em vez da lei. Ele identificou-se como o cumprimento da profecia ao invés de apontar a
vinda do Messias. Ele interpretou o Velho Testamento à luz de uma nova era que raiava,
em vez de enfatizar a interpretação de sentenças, cláusulas, frases e até mesmo palavras
simples, independentemente do contexto ou da ocasião histórica”.13 O fundamental nesse
estudo é ver que se a Igreja cristã primitiva construiu uma hermenêutica cristocêntrica,
esta nasceu também graças ao uso que o próprio Jesus fez das Escrituras.
F. Paulo como Intérprete. Dentro do estudo da Hermenêutica paulina vale ressaltar
algumas de suas características:
Paulo usa com muita freqüência o texto do AT quando escreve para comunidades
de origem judaica (Rm., Gálatas e I/II Co.), mas não o utiliza quando escreve a
comunidades com predominância gentílica (Colossenses, Filipenses e I/II
Tessalonicenses), o que torna Paulo um exegeta por excelência. Fato mais
interessante é que das 93 citações que faz do texto do AT, modifica o texto em 52
casos (ex.: comparar Rm.9:17 com Ex.9:16). Seria, como dizem alguns14, uma
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evidência de que Paulo citava textos de memória, ou que era influenciado pela sua
tradição rabínico-midráxica ?
Como Hillel, procurou adaptar o texto bíblico aos problemas de seu tempo,
contextualizando-o (comparar Rm.9:25 com Os.2:21-23).
Paulo busca elementos de diversas correntes religiosas e filosóficas do seu tempo,
dialogando com as mesmas e dando-lhes roupagem cristocêntrica. Abaixo, eis
algumas dessas correntes:
G. Essênios. Todos os homens pecaram (Rm.3:23 comparado a I Qh.1:22 ou a
Ec.7:20). O texto de I Qh.1:22 é parte da coleção de Hinos ou hodayôt encontrados nas
descobertas do Mar Morto15. O homem não pode obter o perdão de Deus pelas obras ou
pelo cumprimento da Torah (Gl.2:16 comparado a I Qh.4:30).
H. Rabinismo. Em I Cor.10:1-4, ao relacionar o batismo cristão com a passagem do
Mar Vermelho, Paulo alude a textos rabínicos da Gemara Babilônica que justificam o
batismo de prosélitos à luz do Êxodo.
I. Fílon. Tal qual Fílon, Paulo apela para a retórica grega (At.19:8; 28:23) e
moderadamente para o uso alegórico (I Cor.9:9-10; Gl.4:21-31).
J. Doutrina Cristã. Sem dúvidas que um dos méritos de Paulo está no fato que ele é
um dos responsáveis pela sistematização da doutrina cristã, a partir do que outros, como
Agostinho, fundamentam suas interpretações, as quais até hoje são tidas pela igreja cristã
(tanto católica quanto protestante) como inspiradas, visto que muito daquilo que se tem
como “doutrina bíblica” passa pelo filtro patrístico.
Paulo lançou mão da tipologia para estabelecer a relação entre o AT e Cristo ( o servo
sofredor, de Isaías 53, representa Cristo; as promessas de Deus a Abraão e seus
descendentes tornaram-se as promessas de Deus aos crentes em Cristo, que são o novo
Israel ). Em outro texto, Adão é considerado como um “ tipo de um que devia vir ” ( Rm.
5:14 ). Sua interpretação do AT é cristocêntrica: Cristo é o cumprimento do AT.
Paulo utiliza a alegoria com um aspecto distintivo em relação aos gregos e rabinos.
Enquanto aqueles buscavam a alegoria ou para explicar mitos sobre os deuses ou para dar
sentido a algo que contraria sua lógica ( concepção do “indigno de Deus” em Platão ), e
estes usavam as alegorias na busca dos significados ocultos, Paulo encontra nos relatos do
A.T. fatos que, sem perder sua veracidade histórica, possuem um sentido espiritual que
será encontrado por meio da alegoria ( exemplo disso é a interpretação da história de Agar
e Sara, aplicada a Israel escravo e livre, em Gl. 4:22-26 ).
Em Paulo temos o fundamento do conceito de AT , embora a concepção canônica de
A . T. só seja estabelecida após a consolidação dos 27 livros do NT. Isto fica evidente em
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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sua declaração de que as escrituras permaneceram encobertas até que o véu foi removido
por Cristo ( II Cor. 3: 13 – 15 ).
2.3. Período Patrístico
Após o período apostólico, entram em cena os herdeiros e continuadores da tradição
apostólica, conhecidos historicamente como os pais da Igreja. Estes se notabilizaram a
partir do 2º século da era cristã.
A. A Hermenêutica no 2º Século. Este período caracterizou-se, na história da Igreja,
por um grande conflito: a falta de consenso quanto à aceitação do AT como um livro
cristão. Por um lado, havia o desenvolvimento da cultura helenizada como forma e
expressão legítima da fé cristã e até mesmo a rejeição do AT ( como se vê no pensamento
de Marcião, em 144 d.C.). Por outro lado, a não interpretação cristológica do texto vetero-
testamentário, sendo ele valorizado como escritura única da Igreja, como se vê no
ebionismo, que leva a Igreja à assimilação das práticas legalistas do judaísmo.
Provavelmente nesta época, surgiu o último texto do NT, a 2ª Epístola de Pedro. Nele, é
interessante notar a inclusão das cartas de Paulo com escritura ( 3:16 ), o que pode ter tido
a finalidade de enfocar a relação entre o Antigo e o NT ( tão presente nos escritos paulinos
). Embora o conflito judaico-cristão remonte aos primeiros tempos da Igreja ( At 15; Rm 14;
Gálatas ), é no segundo século e, principalmente a partir de Marcião, que ganha dimensão
de debate sistematizado e confronto escrito. Quando Marcião rejeita o AT, ele o faz
porque sua interpretação do texto é literal. Da mesma forma, Clemente Romano, nem
chega a utilizar a interpretação tipológica, como fazia o apóstolo Paulo, optando também
pelo literalismo. Esta interpretação literal do AT torna as leis de Israel vazias e sem
aplicação para os tempos modernos.
Esta rejeição do AT também foi forte entre os gnósticos. Valentino aplica a passagem
de Jo. 10:8 aos profetas: “ Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e assaltantes”;
Ptolomeu, mais moderado, divide o Pentateuco em três partes, quanto a sua origem: a
primeira parte devida a Deus ( o decálogo ), a segunda atribuída a Moisés ( as leis do
Deuteronômio ) e a última atribuída aos anciãos ( as leis ritualísticas, de pureza e da guerra
santa ). Em sua carta a Flora, condena essas últimas, as quais conduzem o homem ao mal
e, reduz o valor das leis ritualísticas ao tempo para o qual foram escritas. Quanto aos
nomes de Deus encontrados no AT ( Elohim, El Shaddai, JavéTsevaoth ), os gnósticos os
interpretam como referindo-se a deuses distintos, subordinados ao Deus Pai desconhecido
( o criador ).
Diante das tendências marcionitas e gnósticas, a alternativa para a Igreja cristã
quanto à utilização do AT foi a leitura tipológica. Para Justino, o mártir ( em DIÁLOGO COM
TRIFON e APOLOGIAS ), em dura crítica a Marcião, a lei é “ tipos ” da realidade futura de
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Cristo e da igreja. Já a carta de Barnabé é rica em alegorias do AT: os sete dias da criação
simbolizam os seis mil anos de duração do mundo, sendo o sábado símbolo do descanso
escatológico. O autor dessa epístola ensina que o judaísmo cumpriu a sua missão e que a
igreja é herdeira de suas prerrogativas e livros sagrados. Também emprega a GEMATRIA,
método no qual as letras das palavras eram convertidas em valores numéricos para uma
aplicação escatológica.
Outro pai apostólico, Irineu de Lyon, no final do 2º século, assume um tipo de
“exegese de situação” contra o gnosticismo. Se, diante dos judeus, Irineu tende a ser
literalista na interpretação cristológica das profecias e alegórico na interpretação da lei e
história de Israel, diante dos gnósticos ele é alegórico na interpretação cristológica do AT
para poder uni-lo ao NT e tornar Cristo relevante.
Concluindo, pode-se afirmar que a grande questão hermenêutica do cristianismo no
2º século dizia respeito à aceitação do A T e mesmo à sua incorporação ao cânon, questão
que voltou a ecoar muitas vezes ao longo da história do cristianismo. A aceitação do AT
pelos cristãos não teve um propósito meramente apologético (apontar provas a favor do
NT) mas resultou da visão do AT como canal de interpretação da morte e ressurreição de
Cristo. De fato, a Igreja se apropriou do AT, interpretando-o como promessa e profecia do
Novo.
É interessante perceber o paralelo existente entre a concepção judaica da relação
Torah-Profetas e a visão cristã da relação Antigo-NTs. A idéia rabínica concebia a Escritura
como Lei e os profetas como intérpretes da lei (razão pela qual Jesus justifica sua atitude
liberal em relação ao sábado citando a postura de Davi em I Sm 21:7 ). Semelhantemente,
os cristãos vêem o NT como interpretação do Antigo. Nota-se um indício desta percepção
até mesmo na ordem dos livros no AT: enquanto na Bíblia judaica a Torah é seguida dos
profetas (NeVI’IM) e escritos (KETUBHIM), na Bíblia cristã, os profetas vêm depois da Torah
e dos Escritos, numa ratificação de sua relação com o NT, onde se verifica seu
cumprimento.
Esta visão remonta ao início do cristianismo, cuja hermenêutica já se caracterizava
por este elemento diferencial (veja-se a hermenêutica de Jesus e de Paulo). É, porém, no
segundo século, com o desenvolvimento de alguns questionamentos e dentro do processo
de definição do cânon, que estes conceitos voltam à tona. Outra idéia presente na visão
cristã do A T é sua interpretação tipológica, a partir da visão do N T como cumprimento do
A T.
B. A Hermenêutica no 3º Século. Até o que se tem visto até agora, o problema
hermenêutico do segundo século tem sido a leitura do AT e sua interpretação como livro
cristão, problema esse que a Igreja resolveu através da apropriação das escrituras judaicas
e de suas profecias. Entretanto, a partir do Século III levanta-se uma outra questão que é o
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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problema hermenêutico da interpretação bíblica em si mesma caracterizada na luta entre
o literalismo e o simbolismo e notabilizada através da escola alexandrina, com Clemente e
Orígenes, os quais exaltaram a postura hermenêutica de Fílon, no extremo uso da alegoria,
em função do conceito platônico do “indigno de Deus”.
O primeiro a enfatizar essa linha hermenêutica foi Clemente de Alexandria (150 – 215
d.C.). Para ele existe um sentido oculto de face cristológica em cada palavra ou até mesmo
cada sinal gráfico do texto sagrado. É essa linguagem misteriosa que precisa ser
decodificada através da alegoria. Compreende, entretanto, que as escrituras têm diversos
sentidos: literal e teológico, profético e tipológico, filosófico e psicológico e, finalmente,
um sentido místico. Como exemplo do sentido místico, Clemente dizia que a figura da
mulher de Lot era símbolo do apego às coisas terrenas que impediam a alma de
reconhecer a verdade16. Insistia ainda que a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro
discípulo, mas a escondia de outros, pois o objetivo de Deus era ocultar a verdade17.
Um outro pai eclesiástico da época, Orígenes, se notabilizou por ser o mais erudito de
seu tempo. Valeu-se do princípio da racionalidade para interpretar passagens bíblicas que,
muitas vezes parecem inacreditáveis, como por exemplo as narrativas de Gênesis (onde
existem muitos antropomorfismos e relatos míticos da criação), as quais eram
interpretadas por muitos de forma literal. Para Orígenes esses eram os mais simples, que
não tinham a capacidade intelectual de compreender o sentido espiritual escondido no
texto bíblico através de suas metáforas, símbolos e alegorias. Orígenes crê, no entanto,
que existem passagens das escrituras com características literais mas que todas as
passagens das escrituras possuem uma vertente espiritual e que a única maneira de se
reconhecer o mistério escondido ou a mensagem espiritual é através do uso do método
alegórico de interpretação. Orígenes adaptou a tricotomia platônica à interpretação das
escrituras, seguindo os passos de Fílon e de Clemente, através da seguinte divisão:
Sentido Corpóreo (somatikon) – carne – interpretação literal – para principiantes.
Sentido Psíquico (psiquikon) – alma – para os que já fizeram algum progresso.
Sentido Espiritual (pneumatikon)– espírito – interpretação alegórica – para os
perfeitos, os que são espirituais.
O valor de Orígenes para o seu tempo está no fato que ele elevou a fé cristã ante as
críticas externas, as quais enfatizavam a imoralidade do AT bem como a falta de uma
explicação lógica e racional da fé em Cristo. Pode-se dizer que ele conseguiu o respeito de
não cristãos do seu tempo.
C. A Reação do Literalismo-Histórico do Século IV. Se em Alexandria houve uma
grande ênfase da interpretação alegórica das escrituras, em Antioquia, a partir do quarto
século houve o rechaço desta tendência e a valorização gramatical e histórica com o
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retorno da interpretação literal. Essa maneira dentro da igreja síria de interpretar o texto
foi grandemente influenciada por exegetas judeus locais e teve como principais expoentes
Deodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Teodoro, por exemplo,
excluiu do cânon livros tais como Jó, Crônicas, Esdras, Neemias e Cânticos, por não
encontrar neles elementos proféticos, messiânicos ou históricos. Alguns dos princípios
defendidos pela escola antioquena foram os seguintes:
Abordagem Gramático-Histórica, com ênfase na literalidade textual; ressaltavam a
historicidade da narrativa e procuravam, em seguida, descobrir o sentido teológico
da mesma. Assim, Adão era realmente Adão e o paraíso era realmente o paraíso,
contrariando assim o conceito platônico do “Indigno de Deus”. Contra os
alexandrinos, Teodoro pergunta: “Desde que não há acontecimentos reais, visto
que Adão não foi realmente desobediente, como então entrou a morte no mundo
e qual o significado de nossa salvação?”
Com alguma cauteladefendiam que algumas passagens podem conter um sentido
metafórico, típico, mas de forma diferente do pensamento alexandrino. Por
exemplo, em Gl. 4:21-31 o apóstolo Paulo usa o termo “alegoria” para falar dos
dois pactos simbolizados em Sara e Agar. No entendimento dos antioquenos,
apesar de Paulo usar o termo, a sua forma de interpretar foi diferente, ou seja, ele
não esvaziou o sentido histórico de Sara e de Agar, mas fez analogias e pontes de
ligação com o seu tempo.
Conceito de “theoria” (“observar”, “contemplar”) em oposição à “alegoria”. Nesse
conceito estuda-se o estado mental dos profetas quando recebiam suas visões.
Para os antioquenos, os profetas, ao receberem suas visões, não viam o futuro,
mas o presente, sendo que essa visão era um canal condutor de uma tipologia
futura ou ainda de acontecimentos messiânicos. O diferencial aqui é que essa
tipologia é considerada a partir do profeta e não de quem o interpreta.
Buscavam determinar a intenção do autor do texto, pela atenção ao sentido
histórico das palavras em seu contexto original.
No final do quinto século, a escola antioquena entrou em decadência, depois de
perseguições e contradições internas, como por exemplo, Nestor, considerado herege pela
sua doutrina das duas naturezas de Cristo. Entretanto, ainda hoje percebe-se uma
influência dos princípios da escola de Antioquia nos modelos ortodoxos da interpretação
bíblica na igreja cristã.
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2.4. Os Pais Latinos
A Hermenêutica nos Séculos IV e V d.C. Se do lado oriental a hermenêutica foi
direcionada para a vertente especulativa, na igreja ocidental a preocupação hermenêutica
atingiu questões relacionadas à prática diária dos cristãos, envolvendo a ética e
estabelecendo a partir de então o cânon como regra de fé (“regula fidei”). Essa foi a
principal preocupação dos pais latinos nos Séculos IV e V d.C., assim chamados por
escreverem em latim. Os mais influentes teólogos dessa tendência foram Jerônimo (347-
420 d.C. - Palestina), Ticônio (400 d.C. – norte da África) e Agostinho (354-430 d.C. -
Hiponna, África). Torna-se importante estabelecer uma diferença entre os dois mais
notáveis: Jerônimo era conhecedor das línguas bíblicas, o que lhe permitiu ser mais
exegeta, produzindo trabalhos e comentários com notas históricas e lingüísticas,
culminando na formação do seu mais famoso trabalho, a Vulgata. Agostinho, ao contrário,
não conhecia o hebraico e entendia o grego com dificuldades. Notabilizou-se, não como
exegeta, mas como sistematizador de doutrinas cristãs. Abaixo, características
fundamentais da hermenêutica dos pais latinos:
Usavam com mais freqüência a interpretação literal. Jerônimo, no início de sua
vida eclesiológica, adotava prioritariamente a postura alegórica alexandrina, mas
influenciado por rabinos palestinenses, converteu-se ao método literal. Agostinho,
em sua interpretação do Gênesis busca uma linha histórico-literal.
Com base nessa idéia os pais latinos preocuparam-se com o contexto histórico da
passagem. O ambiente do autor original com seus traços lingüisticos e culturais
devia ser levado em consideração pelo intérprete, antes de poder aplicar o texto
às questões diárias de sua época.
Apesar da ênfase na interpretação literal também alegorizavam o AT. Aqui há uma
semelhança com os antioquenos na medida em que consideravam a existência de
um sentido oculto na passagem sem desmerecer sua historicidade, e uma outra
semelhança com os alexandrinos, no momento em que se alegorizava quando a
passagem parecia contrária a Deus ou à moral cristã (dessa forma procedeu
Agostinho em seu comentário ao pedido de Deus para Abraão sacrificar Isac em
Gn.22). Esse é o reflexo da convicção antiga que o NT está oculto no AT e que este
é iluminado por aquele.
A preocupação com questões eclesiológicas de caráter jurídico ou prático numa
época em que a igreja cristã estava se estabelecendo como religião oficial do
império romano. A tendência aqui é a de “fechar” uma interpretação única como
sendo oficial, baseada inclusive na tradição de intérpretes anteriores que
pensavam da mesma forma que eles (isso foi muito comum em Jerônimo). Ora, a
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partir dessa época, o elemento dogmático começa a desenvolver-se na igreja.
Agostinho deu grande contribuição com a sistematização de doutrinas, tais como a
da Trindade, que até hoje são assimiladas pela cristandade tanto católica quanto
protestante, com atribuição de valor inspirativo.
Ora, do que se pode perceber das tendências hermenêuticas dos cristãos do período
patrístico, extrai-se o grande conflito entre o literal e o simbólico, apesar de que cada
extremo sempre permitia de alguma forma a possibilidade para outra interpretação ainda
que de forma diminuta. A apropriação do AT pelos cristãos trouxe consigo grandes
questões hermenêuticas que se arrastaram nos séculos seguintes. Aliás, o apóstolo Paulo
já falava do problema da oposição entre a “letra e o espírito”, em Gl.3:6, problema
existente ainda nos dias hodiernos.
2.5. Período Medieval
A partir do trabalho hermenêutico de Agostinho, iniciou-se um novo período,
marcado pela ortodoxia e pelo pouco desenvolvimento da hermenêutica. Prevaleceu,
neste período, a concepção de que a interpretação da Bíblia teria que se adaptar à tradição
eclesiástica, o que levou a uma ênfase à interpretação alegórica, ao aspecto prático e à
fidelidade aos dogmas da igreja. Isto limitou até mesmo a produção literária de textos
interpretativos da Bíblia além de impedir o surgimento de qualquer contribuição nova; o
trabalho dos intérpretes consistia em repetir os dogmas já estabelecidos pela igreja. Este
dogmatismo chegou ao extremo de estabelecer como única tradução considerável o texto
da Vulgata.
Depois de um período de quase nenhuma produção nesta área, o final do século XI e
o século XII já apresentam o início de certo entusiasmo quanto ao estudo das Escrituras.
Nesta fase, diversos comentários surgiram que, embora de pouca inovação teológica,
representaram uma boa contribuição ao estudo da Bíblia. É, porém, a partir do século XIII,
com o escolasticismo, que significativas construções teológicas começam a surgir. Vale a
pena lembrar que o movimento conhecido como escolástica deriva seu nome do
surgimento de escolas de teologia nas catedrais, onde se estudava a Bíblia mais
academicamente.
As produções deste período apresentavam como características: a riqueza de
detalhes, a pouca profundidade nos aspectos histórico e filológico, e um grande valor
doutrinal, como reflexo de seu direcionamento. A Bíblia era considerada um livro cheio de
mistérios, só podendo ser entendida misticamente. Essa orientação para a leitura
espiritual da Bíblia conduz para o fato de que a exegese não é tanto uma investigação
sobre o significado de palavras, senão a busca de um sentido para a vida. Por isso, a leitura
medieval atualiza imediatamente o texto em estudo, passando a seu valor dogmático sem
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considerar, necessariamente, seu contexto original, ou o sentido que dele se depreenderia.
Uma outra tendência dessa hermenêutica é considerar que se uma passagem do NT
interpretava um texto do AT como prefiguração de Cristo, apenas este sentido era
considerado verdadeiro, rejeitando-se a idéia original do texto ( por exemplo, o texto de
Oséias11:1, aplicado em Mt. 2:15 em relação a Cristo, é visto na interpretação dogmática
medieval sem que se considere a possibilidade de o profeta estar originalmente se
referindo ao povo de Israel ). Preservavam, também, a concepção agostiniana dos quatro
sentidos da Bíblia: literal ( histórico ), alegórico ( cristológico ), tropológico ( moral ) e
anagógico (escatológico ).
Entre os expoentes do período escolástico, vale a pena destacar o trabalho de Tomás
de Aquino, cujos comentários nasceram de seu trabalho como mestre. Em seu trabalho
exegético, admite a existência de apenas dois sentidos no texto bíblico: o literal, ou
histórico, e o espiritual, ou alegórico. Quanto à questão da multiplicidade do sentido
literal, já presente em Agostinho, Tomás de Aquino parece rejeitar essa possibilidade,
admitindo muito mais facilmente a multiplicidade do sentido espiritual. De acordo com seu
modo de ver, o texto do AT já prefigurava Cristo, sendo, portanto a interpretação alegórica
a única forma de encontrar o sentido desejado, uma vez que na concepção original do
texto já estava presente o sentido tipológico. Esta preocupação com a interpretação
alegórica não impediu, no entanto, sua preocupação com a busca do sentido literal como
parte do processo de interpretação.
No período da Idade Média houve, portanto, algum avanço quanto à preocupação
com o estudo literal-histórico, embora a limitação imposta pelo dogmatismo e o interesse
meramente doutrinal abrissem pouco espaço ao avanço teológico. Houve, inclusive, uma
significativa contribuição dos filólogos, principalmente nos séculos XIII e XIV. Esta
preocupação, no entanto, começou a decair, lentamente, no final do século XV, quando a
interpretação místico-alegórica levou a um descuido do trabalho exegético. Somente no
século XVI, a exegese propriamente dita, começa a ganhar um novo espaço.
2.6. Período Renascentista
Depois do longo período medieval, onde a reflexão hermenêutica foi tolhida e
limitada para dar lugar ao dogma e ao monopólio da igreja, os séculos XV e XVI assistem ao
retorno da preocupação com os textos originais própria do espírito renascentista. Este
movimento, de caráter humanista, originou-se na Itália e estendeu-se por toda a Europa,
caracterizando-se principalmente por uma volta aos clássicos da antigüidade greco-
romana e, do ponto de vista religioso, por uma volta à patrística. Este tipo de postura
trouxe de partida três conseqüências rápidas: primeiro, a preocupação com os textos
hebraico e grego provocou o surgimento da crítica textual, notabilizando-se aí Johan
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Reuchlin ( aprox. 1518 ), com a publicação da primeira gramática e dicionário da língua
hebraica, e Erasmo de Roterdã ( aprox. 1530 ), com a publicação do NT grego com notas
explicativas; segundo, a diluição dos múltiplos sentidos da Bíblia em um único sentido, o
gramático histórico; terceiro, as traduções antigas, como a LXX e a Vulgata, têm o
monopólio ameaçado pelo surgimento de novas versões, mais relacionadas aos textos
originais.
A nova tendência da crítica textual representa, na verdade, uma influência do
renascimento cultural sobre a hermenêutica bíblica. Aqui a idéia é que os escritores
bíblicos poderiam ser lidos da mesma forma que qualquer outra obra de caráter profano,
sendo submetidos aos métodos críticos como defendia Hugo de Groot, calvinista holandês
( 1583 – 1645 ). Baruc Spinoza ( 1632 – 1677 ) já negava a autoria mosaica do pentateuco e
falava em compilação, interpolação e erros de cópia. Esta leitura da Bíblia, que mais tarde
vai influenciar a hermenêutica moderna, foi rejeitada pelos reformadores graças à sua
ênfase na infalibilidade das Escrituras.
A. Hermenêutica da Reforma. É neste momento e contexto histórico que desponta o
trabalho hermenêutico dos reformadores. Notabilizaram-se, nesse aspecto, Melanchton,
Lutero e Calvino, este último considerado o maior exegeta da Reforma, principalmente em
função de sua coerência entre as convicções doutrinárias e a postura prática. Embora
apresentassem algumas diferenças quanto à interpretação de determinados textos, sua
hermenêutica trazia alguns princípios comuns:
A interpretação das Escrituras não deve ser monopólio da igreja e seu colegiado
Em lugar disso, é estabelecido o princípio de que a Bíblia é interpretada pela
própria Bíblia; Lutero declara que “ se são obscuras num lugar são claras em
outros” . Isto indica a tentativa de harmonização de passagens difíceis.
As Escrituras são inspiradas e, por isso, infalíveis; concepção que reforçou a tese da
inerrância do texto bíblico. Por isso, não podem receber o tratamento crítico como
se fossem um livro qualquer sobre religião.
Se as Escrituras são inspiradas, para entendê-las o homem não pode prescindir da
iluminação do Espírito Santo por causa do estado de cegueira espiritual resultante
da queda.
Os reformadores reconhecem também ao lado da natureza divina das Escrituras
uma face humana, a qual obriga o indivíduo a estudá-las e pesquisá-las,
principalmente no que diz respeito a alguns textos obscuros que necessitam de
uma maior atenção para serem interpretados. Mais uma vez, alude-se aqui ao
princípio de que a Bíblia é interpretada pela própria Bíblia, o que requer do
exegeta um conhecimento mais amplo e profundo de todo o texto.
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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O estudo das Escrituras remete o indivíduo à procura da intenção do autor original,
o que significava geralmente o sentido literal da passagem, a menos que o próprio
autor indicasse o contrário. Essa tendência indica que o método hermenêutico da
Reforma dá ênfase ao sentido literal, gramático-histórico, o que não significa que
não existam passagens com sentido figurado. Entretanto para uma passagem
requerer uma interpretação simbólica ela deve ter um influxo do seu próprio
contexto, ou de um outro texto da Bíblia que indique claramente esse sentido.
O princípio da interpretação da escritura pela própria Escritura e a compreensão da
necessidade de harmonização de passagens, levaram Lutero, inclusive a questionar o
cânon estabelecido, ao considerar a carta de Tiago como “epístola de palha”, não
merecendo seu lugar na Bíblia, por apresentar uma teologia das boas obras incongruente
com a mensagem paulina da justificação pela fé ( pedra de toque da teologia reformada ).
O interessante aqui é perceber um princípio hermenêutico visto como regra para o
questionamento do próprio cânon, o que deixa em aberto a questão: a que escritura
exatamente Lutero se referia, ao considerá-la infalível: ao cânon já estabelecido ou a um
novo cânon?
Apesar da rejeição ao monopólio da igreja e da tradição na interpretação bíblica na
proposta hermenêutica dos reformadores, a história apresenta um curioso paradoxo, pois
uma vez ocorrida a reforma e a oficialização de seus conceitos em alguns Estados
europeus, voltou-se ao escolasticismo medieval, e o confessionalismo e a imposição de
limites doutrinários à liberdade de investigação mais uma vez esteve presente. Neste
período, conhecido como pós-reforma, verificou-se a tentativa de sufocar qualquer
interpretação que fosse diferente da dos mentores reformistas. Esta postura, em
combinação com o fracionamento do protestantismo, fez com que a hermenêutica
passasse a ser usada mais uma vez como um instrumento a serviço do dogmatismo.
Berkhof define assim esse fato: “A exegese se tornou serva da dogmática, e degenerou em
mera busca de textos-provas”.
B. Confessionalismo. Surge justamente da reintrodução do escolasticismo cristãomedieval dentro da academia pós-reformista, com ênfase ao sobrenaturalismo e à
inspiração verbal das escrituras. Primeiro porque a falta de um intérprete único e infalível
da Bíblia (posição até então ocupada pela igreja ) possibilitou o surgimento de inúmeras
interpretações diferentes dentro do protestantismo. A partir da controvérsia, nasceu a
tendência à sistematização e ao dogmatismo, como reação de defesa de cada movimento.
C. Puritanismo. Este movimento teve sua origem na insatisfação com a reforma
(considerada incompleta ), principalmente na Inglaterra. Ali, como a história registra, os
aspectos políticos foram muito mais decisivos que os doutrinários no rompimento com o
catolicismo romano. De fato, Henrique VIII não deixou de ser católico em suas convicções.
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Por isso, a gênese do movimento puritano ocorreu ainda no século XVI, embora seu auge
tenha ocorrido no século XVII. Em vários aspectos, a hermenêutica puritana se
assemelhava aos pressupostos da reforma: a rejeição da tradição, a aceitação da escritura
como única verdade válida e a interpretação cristológica do A.T. Mas a ênfase principal da
interpretação puritana era a prática da Escritura; a "consciência puritana" era sua
característica mais marcante.
"Eles eram escrupulosos em seu desejo de saber qual era a verdade, não
simplesmente para que tivessem um conhecimento teórico sobre ela, mas a fim de que a
levassem a cabo e a pusessem em prática a qualquer custo ".21 A partir desta postura, as
doutrinas mais enfatizadas eram a da Graça e a Teologia Pastoral.
Forneceram uma grande produção de comentários e textos de interpretação, embora
não consistissem num grupo coeso em suas idéias. O problema é que sua interpretação era
também controlada pela posição teológica, o que relembra os sérios problemas da
hermenêutica na Idade Média. Em síntese, pode-se citar as principais características de sua
postura:
Valorização da Escritura;
Rejeição da tradição;
Uso da alegoria;
Interpretação cristológica;
Papel da iluminação na interpretação da Escritura;
Valorização do sentido literal como o sentido básico;
Aplicação das Escrituras nas experiências do dia-a-dia.
2.7. Período Moderno
O período moderno, caracterizado pelo surgimento do Iluminismo, movimento
surgido no início do século XVIII 22, tem na verdade seus antecedentes no Racionalismo do
século XVII. Este, por sua vez, representa o desenvolvimento do Renascimento Cultural.
Como o próprio nome indica, o Racionalismo abandonou a idéia do sobrenatural, optando
pelo uso exclusivo da razão, a partir do que se rejeita qualquer possibilidade de
interferência divina na história, a qual passa a ser vista sob o prisma do secularismo onde a
autonomia humana é priorizada e a revelação e a ação divina são anuladas. A tendência
natural desta postura de ordem primariamente filosófica é o esvaziamento do sagrado
dentro da Bíblia; milagres e manifestações especiais de Deus (teofanias, epifanias) são
desacreditados como eventos históricos.
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Como tentativa de unir a religião à razão, surge na Inglaterra o Deísmo, que foi
representado, na França pelo filósofo Voltaire. Seu pressuposto básico é que Deus, ao criar
o mundo e o ser humano, os entregou à sua própria sorte. Assim, o conhecimento de Deus
só é possível a partir do próprio homem, através do uso da razão e da filosofia. O texto
bíblico tem sua autenticidade questionada e a autoria mosaica do pentateuco é posta
abaixo (Spinoza, em 1670, e Richard Simon, em 1712). John Semler (1780), considerado
como o mais autêntico autor do racionalismo bíblico,23 principalmente por tê-lo elevado à
categoria de sistema, negou a inspiração da Bíblia e a origem divina da Escritura,
considerando-a como um livro humano cheio de erros e que, por isso, deveria ser
submetido aos métodos humanos de interpretação. De acordo com Semler, Cristo teria
sido um homem comum, que soube se aproveitar da expectativa messiânica do seu tempo
para apresentar-se como Messias; os evangelhos seriam lendas que, posteriormente,
idealizaram a figura histórica de Jesus. Que valor teria então a Bíblia na ótica do
racionalismo ? Segundo o mesmo John Semler, o valor primordial da Bíblia é o do
aperfeiçoamento moral do ser humano, e os livros que possuem essa característica devem
ser autorizados. Um século antes dele, Baruc Spinoza não era tão conservador: para ele, a
Bíblia apela tão somente para as emoções religiosas do homem e seu movimento é o da
obediência e submissão mas não o da verdade, a qual só pode ser alcançada pelo uso da
razão. Assim a religião torna-se um instrumento nas mãos dos intelectuais para a
manipulação de massas.
Uma outra ala de teólogos racionalistas se caracterizou por uma abordagem mais
gramatical das Escrituras e tem como representante máximo John Ernesti (1707 – 1781).
Ele tentou por um fim às lutas primitivas entre interpretação literal e interpretação
alegórica; rejeitou o sentido múltiplo das Escrituras e defendeu que a interpretação
alegórica só pode ser aceita quando existe no próprio texto uma indicação do autor nessa
direção. Isto equivale a dizer que Ernesti fez uma opção pela interpretação literal do texto.
Dentre as diversas características do período moderno destacam-se:
A. Com o avanço da secularização as idéias de revelação, inspiração das escrituras e
do sobrenatural foram negadas, pois a ênfase agora é de caráter histórico, onde a
autonomia e autodeterminação humanas guiam a história e não determinadas ações de
Deus em série, tais quais intervenções a favor de seu povo. Como conseqüência, os relatos
de milagres na Bíblia, principalmente os de Jesus nos evangelhos, são negados (Johann
Eichorn e David Strauss, Sec.XIX).
B. A postura do tipo “leia o Novo para entender o Antigo” foi posta abaixo através da
gradual separação dos dois testamentos. Essa tendência surgiu a partir do momento em
que foi constatado o fim da unidade teológica não só dos testamentos (um em relação ao
outro), mas também do testamento em relação a si mesmo24. Há uma procura em
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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entender sobre aquilo que Israel afirmou sobre si mesmo e sobre sua fé. Por conseguinte,
há um maior dinamismo no estudo bíblico e na multiplicidade de suas tradições (Ernesti e
Semler).
O iluminismo era, em vários aspectos, uma revoltacontra o poder da religião
institucionalizada e con tra a religião em geral.
Por exemplo, o conceito pecado-culpa e sua evoluçã o nas diferentes partes do AT; o
conceito de justificação e o conflito fé versus obras em Paulo e em Tiago no NT.
C. As idéias de inspiração e de inerrância das escrituras foram abandonadas a partir
da compreensão do cânon como resultado de um processo histórico. O texto bíblico teria
um valor local, para a comunidade que o produziu e o recebeu, sem uma ligação com o
presente (Semler).
D. Uma forte reação contra o dogmatismo e o controle da exegese pela teologia
sistemática; aqui a busca do exegeta é, em primeiro lugar, entender o homem, o
pensamento, a cultura, a teologia que estava por trás do texto, utilizando para isso o
instrumento da razão, que é a crítica bíblica, tal qual trabalhada nas suas diversas escolas,
conforme descritas a seguir:
Crítica das Fontes. Como o próprio nome sugere, o objetivo desse método é o de
identificar as fontes escritas(e orais) de que se serviram os escritores para compor
o texto bíblico. Uma vez identificadas, a preocupação volta-se para a compreensão
da teologia de cada fonte ou de cada bloco de escritos. Os exemplos mais famosos
são: a hipótese documentária (Graff-Wellhausen) a qual atribui a autoria do
Pentatêuco a 04 estratos-fontes , identificados pelas letras “J” (Javista), “E”
(Eloísta) , “D” (Deuteronomista) e “S” (Sacerdotal) . Segundo a hipótese
documentária cada estrato possui características, formas e teologias próprias; os
evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) cuja curiosidade básica não foi
levantada em torno do conteúdo que os três possuem em comum, mas naquilo em
que diferem um do outro. Uma das conclusões foi que 95 % do conteúdo de
Marcos está espalhado entre Mateus e Lucas. Uma segunda constatação foi que
existem materiais que só são encontrados em apenas um dos três e não são
comuns. Com base no percentual e na influência de Marcos, concluiu-se também
que este evangelho, e não Mateus, foi o primeiro a ser escrito. Essas são algumas
contribuições da Crítica das Fontes.
Crítica das Formas. A preocupação principal desta escola é a fase do texto bíblico
conhecida como “pré-história” do texto. Nessa compreensão, o texto bíblico se
apresenta dentro de formas ou gêneros (sagas, ditos, lendas, etiologias, entre
outros) que nasceram dentro de uma determinada “situação de vida” ou sitz im
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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leben , um contexto vital, quando a comunidade de fé experimentava o futuro
texto na via oral. As formas que essas histórias antigas adquiriram ajudaram a
preservação das mesmas na vida do povo sendo mais tarde redigidas. Herman
Günkel (AT) e Rudolf Bultmann (NT) são os nomes mais conhecidos desta escola.
Crítica da Redação. Aqui a atenção não se dirige em princípio às fontes, nem à pré-
história oral do texto, mas ao escritor. O que teria levado os escritores a
escolherem ou selecionarem fontes, unindo-as num mesmo trabalho? Agora, eles
são visto, não como simples escritores, mas como redatores-teólogos. A tarefa da
Crítica da Redação é descobrir a teologia desses escritores que, em última análise,
é a teologia de sua comunidade.
2.8. A Hermenêutica Pós-Moderna
Mesmo durante o período moderno já estava ocorrendo uma espécie de insatisfação
por parte de alguns filósofos e teólogos com o reducionismo racionalista. Dentre eles
destaca-se a pessoa de Emanuel Kant, o qual questionou com fortes argumentos contra o
racionalismo do Sec.XVIII. Segundo ele é um erro reduzir a religião à razão, pois a religião
encontra lugar não no que é puramente racional, mas no que é ético: “nós, seres humanos,
somos por natureza seres morais e com base nessa moralidade inata é possível provar a
existência de Deus e da alma, a imortalidade, a liberdade e a vida futura”25. Com sua
influência, Kant levantou a atenção para outros aspectos da vida do ser humano que não
os meramente racionais, dando instrumentos a teólogos posteriores para outras reflexões,
como por exemplo, Schleiermacher, o qual será estudado mais tarde.
A. Características do Período Pós-moderno. O que teria influenciado a mudança da
hermenêutica moderna para a pós-moderna? Utilizaremos aqui o esboço de Augustus
Nicodemus Lopes26, o qual cita Ricardo Gouveia, apontando as principais características
do período pós-moderno:
A rejeição dos chamados “mitos modernos”: o cientificismo, o tecnologismo e o
economismo, ídolos de um período utópico, esbarraram na impotência do ser
humano, antes otimista, mas depois de duas guerras mundiais, desiludido.
O Pluralismo inclusivista – O pluralismo não é uma novidade pós-moderna. A partir
do movimento iluminista enfatizou-se um tipo de pluralismo que visava a
convivência amigável e tolerante das diferentes visões e formas opostas. O
pluralismo pós-moderno não quer apenas tolerância mas quer inclusivismo, ou
seja, espera-se que as opiniões cedam espaço umas às outras. Diante dessa nova
situação, todo discurso que tem a pretensão de impor-se como superior e único é
rejeitado, significando, por exemplo, no campo teológico, um golpe no
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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exclusivismo denominacional e no fundamentalismo. É interessante lembrar que
os movimentos de estudo bíblico e de representatividade extra-eclesiástica de
caráter interdenominacional surgiram um pouco antes da metade do século,
portanto dentro desse novo espírito, onde o elemento doutrinário que diferencia
um grupo do outro é substituído por crenças básicas gerais.
A narrativa e o problema da linguagem – Para o pós-modernismo não há nenhum
discurso que se aplique indiscriminadamente através de barreiras culturais e não
há nenhum absoluto que transcenda diferenças culturais. Tudo o que há são
narrativas intracomunitárias, válidas dentro dos limites de suas tradições culturais.
O pós-modernismo questiona discursos unívocos e que apresentam o autor como
“autoridade” e o leitor ou destinatário como aprendiz. O sentido do texto é
determinado no momento da leitura, à medida em que ele interage com o
depósito discursivo e ideário do leitor.
B. Vertentes formadoras das hermenêuticas bíblicas atuais.
A vertente teológico-psicológica – O personagem principal desta linha
hermenêutica foi, sem dúvida, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), o qual
seguindo os passos de Kant, também desvinculou a religião da razão. Para ele, a
religião não é um conhecimento, como pretendiam os racionalistas e os ortodoxos,
nem mesmo uma moral (Kant); antes, a melhor palavra que pode defini-la é
“afeto” (do alemão gefühl ) . Para ele, esse afeto é religioso e não algo que apela
aos sentimentos ou a uma emoção passageira de uma expressão de culto, mas que
está ligado fortemente ao sentimento que nos permite, em primeiro lugar, tomar
consciência da existência daquele que é superior à própria existência e base dela;
em segundo lugar, o “afeto” é o sentimento que nos leva a reconhecer nossa
dependência absoluta de Deus. Essas duas definições de “afeto” nos levam ao
pensamento que em Schleiermacher a religião constitui-se no gosto pelo infinito. A
função da teologia consiste em expor e atualizar essa idéia da dependência divina.
A distinção entre o que é natural e o que é sobrenatural deve ser rejeitada, não
porque se oponha à ciência moderna, mas porque limita o nosso sentimento de
dependência de Deus àqueles momentos em que se manifestam as coisas
sobrenaturais. O modelo utilizado por Schleiermacher foi o estudo psicológico das
escrituras através do entendimento das idéias dos seus autores, que eram
humanos. Deixando para trás o conceito de inspiração das escrituras, defendia que
a Bíblia reflete tão somente as idéias de seus autores e só pode ser entendida
porque existe uma unidade do espírito humano que liga homens de todas as
épocas e de todos os lugares uns aos outros. Ao valorizar a experiência religiosa do
caráter universal e residente no indivíduo, Schleiermacher reduziu o cristianismo a
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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uma experiência subjetiva e centralizou a teologia no homem deixando de lado a
revelação através da Palavra. Com isso, abriu caminho para hermenêuticas
centradas no leitor, como por exemplo, a vertente filosófica de Gadamer.
A vertente Exegética – Aparece aqui a pessoa de Rudolf Bultmann (1884-1976),
considerado um dos maiores eruditos em NT do SéculoXX. Notabilizou-se a partir
de sua exegese da demitização . O que seria a demitização em Bultmann? Ricoeur,
interpretando Bultmann, diz que demitizar “consiste em desfazer a engrenagem
conceptual por meio da qual foi constituída uma visão do mundo que já não é mais
a nossa, visto que pertence à uma época pré-científica”28. Para chegar ao seu
conceito de demitização, Bultmann parte do princípio que toda a interpretação da
revelação pressupõe uma pré-compreensão e esta, por sua vez, implica
essencialmente uma filosofia. Ora, é justamente essa pré-compreensão dos
primeiros discípulos de Cristo caracterizada pela visão místico-metafísica29 que
Bultmann acreditava ser incompreensível e absurda para o homem moderno, mais
dirigido pela mentalidade científica e pela orientação existencial. A partir daí,
Bultmann pregava a necessidade de demitização da mensagem cristã, tirando
aquela roupagem místico-metafísica, traduzindo-a em categorias existenciais, as
quais constituem a pré-compreensão do homem moderno. Por isso, se o pregador
moderno não quiser expor a mensagem cristã à falência total, deverá procurar
descobrir o significado mais profundo que está escondido sob as concepções
mitológicas e interpretar tais concepções servindo-se da auto-compreensão que o
homem do Século XX tem de si mesmo. A hermenêutica de Bultmann foi
influenciada pela filosofia existencialista de Heiddeger (seu colega de classe), o
qual defendia que a hermenêutica significa simplesmente o processo de
interpretar o ser. Essa maneira de interpretar não dá atenção à perspectiva do
autor, mas àquilo que se expressa no texto, independente do autor. Para
Bultmann, no processo de leitura acontece a auto-interpretação do leitor, que se
processa no nível de suas preposições. Segundo Bultmann, a pré-compreensão
místico-metafísica caracteriza-se pelo uso predominante da referências às
potências sobrenaturais e a um mundo habitado por espíritos, deuses, potestades,
os quais sempre intervêm na história dos homens; um mundo dividido em três
andares: o céu, ndeo habitam Deus e os seres celestiais; o inferno, como o mundo
subterrâneo e lugar da pena divina; a terra, como p alco dos acontecimentos
naturais e cotidianos, mas também como campo de batalha entre Deus, os seres
celestiais e Satanás e seus demônios.
A vertente Lingüística - Os lingüistas em geral concordam que o estudo da
lingüística é uma coisa antes e outra depois de Ferdinand de Saussure (1857-1913),
lingüista suíço que deu à lingüística status de ciência.30 A partir da descoberta do
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Sânscrito, na segunda metade do Século XVIII, Saussure desenvolveu uma teoria
segundo a qual existe uma estrutura lingüística comum a todos os povos e que
consiste na elaboração feita pelo cérebro de um sistema fechado de códigos que
se organizam de acordo com um padrão universal. Muito embora existam idiomas
diferentes, todos eles operam a partir de uma base estrutural que se desenvolve a
nível inconsciente.31 Mesmo que o autor de uma passagem tenha escrito com
uma intenção consciente, transmitiu inconscientemente uma série de outros
sentidos através desta base estrutural que governa todas as línguas. A tarefa
principal do lingüista (exegeta bíblico) é estudar esta estrutura. As idéias de
Saussure estão condensadas através de dicotomias, das quais as mais importantes
são:
o Língua versus fala (langue versus parole) - A língua é um conjunto de hábitos
lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se
compreender. Do ponto de vista funcional é encarada como um sistema de
signos distintos correspondentes a idéias distintas, mas de tal forma
organizados para atingir a um determinado fim, ou seja, palavras unidas com
normas de combinação para traduzir idéias. Já a fala é o lado executivo da
língua cujo domínio é da inteligência e da vontade do indivíduo, o qual
manipula combinações de forma que intenta exprimir seu pensamento
pessoal.
o Sincronia versus diacronia - o objetivo aqui é distinguir no estudo da língua
uma visão descritiva de uma visão histórica. Saussure procurou despertar a
consciência daqueles lingüistas que para explicar determinados fenômenos
recorriam ao passado e à evolução da língua. Tais métodos eram diacrônicos
pois se preocupavam excessivamente com a história do texto, seu
surgimento, seu desenvolvimento, seu contexto, sua gramática; a análise
sincrônica, por outro lado, procura ver o texto em si mesmo, sem relação
com o progresso histórico do qual faz parte. O exegeta neste caso concentra-
se na presença literária do texto como um todo no mundo de narrativa
construído pelo autor. Por exemplo, os autores dos evangelhos pintaram
quadros e criaram mundos de narrativas, buscando causar efeitos nos
leitores.
A vertente Filosófica - Desde os tempos mais antigos, a luta entre o que é alegórico
e o que é literal dentro da igreja cristã tem movimentado o ambiente da
hermenêutica, notadamente pela influência do platonismo, presente na escola
alexandrina e do aristotelismo, próprio da escola medieval. No início do século XX,
houve uma mudança na forma de pensar sobre as relações existentes entre o
escritor, o texto e o destinatário. Isso se deve ao trabalho do filósofo alemão Hans
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Georg Gadamer, cujo fundamento principal é a hermenêutica do tipo Reader
Response, cujos conceitos básicos são:
o O conceito de fusão de horizontes - "Horizontes" são os mundos vivos do
autor e do leitor que se fundem quando ambos se encontram no texto. O
leitor expande o horizonte do texto ao apropriar-se dele em uma nova
situação histórica; o texto, em troca, impulsiona o leitor a desafiar e expandir
as estruturas e pressuposições que traz consigo. Em resumo, a hermenêutica
de Gadamer se move do autor e do texto para uma união entre o texto e o
leitor com raízes no presente em vez do passado: interpretar é aplicar.
o O conceito da importância das pressuposições do leitor - Aduz-se aqui a
dicotomia de Saussure sobre diacronia e sincronia. O sentido de um texto
não é encontrado na pesquisa diacrônica em busca do sentido original e
histórico do texto, mas através do diálogo com o texto no presente sem
nenhuma preocupação com a intenção do autor, como faziam os exegetas da
escola da crítica da redação. Agora, contrariando a perspectiva negativa que
o racionalismo tinha sobre as pressuposições do leitor na interpretação,
Gadamer afirma que essas pressuposições são a chave para a compreensão
de um texto. Esse conceito veio mais tarde influenciar as hermenêuticas de
libertação.
o O conceito subjetivista - Gadamer não estabelece qualquer critério para
definir se uma interpretação é falsa ou verdadeira. Segundo ele, todas são
verdadeiras para quem lê, numa clara demonstração de relativização da
verdade e de subjetivismo, onde cada nova leitura pode produzir sentidos
diferentes e inovadores até para o mesmo leitor, e nenhum deles conflitante
com os demais.
o Desconstrucionismo - Outro expoente da vertente filosófica é o francês
Jacques Derrida (nascido em 1930 e falecido em 8.10.2004), considerado
como o pai do desconstrucionismo. Segundo esta linha hermenêutica,
surgida em meados da década de 1960, não há uma única verdadeira
interpretação de um fato, de um texto ou discurso mas muitas
interpretações igualmente válidas. Esta postura é, na verdade, uma
ampliação do princípio do pluralismo que, neste caso, vai além do
inclusivismo e propõe não apenas a aceitação e assimilação de pensamentos
diferentes,mas a inexistência de uma verdade absoluta. A desconstrução
surgiu nos textos de Derrida como parte de uma crítica abrangente ao
pensamento ocidental. Ela é um dos termos de uma equação filosófica
complexa elaborada em vários livros. Trata-se de uma estratégia “subversiva”
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de leitura que parte do princípio de que qualquer texto, por mais que almeje
à clareza e ao rigor, sempre contém pontos cegos ou módulos de
ambigüidade que, devidamente explorados, permitem desfazer as amarras
lógicas do raciocínio, inverter suas premissas, anular sua hierarquia de idéias.
O desconstrucionismo abriu portas para minorias que se sentiam
marginalizadas por aquilo que consideravam o “substrato autoritário e
opressor do pensamento ocidental”, como por exemplo, as feministas.
Entretanto, para Derrida, há coisas que não podem ser desconstruídas, a
saber, justiça, amizade e democracia.
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AULA
03
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3 - PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA
BÍBLIA
No decorrer da história da Hermenêutica foram se formando as diversas tendências
de interpretação da Bíblia, aliadas a alguns princípios de utilização na tarefa sempre nova e
desafiadora de atualização do texto. Geralmente os teólogos dividem essas tendências em
quatro escolas de interpretação: a escola gramatical, a escola histórica, a escola teológica e
a escola crítica. A escola gramatical lida com o sentido das palavras ora isoladamente
(sentido etmológico), ou então com o texto como um todo, levando ainda em
consideração questões relativas ao contexto lingüistico, histórico, social, político e
religioso. É nesse aspecto que se confunde com a escola histórica, a qual lida com o
ambiente em que foi formado o texto bíblico. Esse ambiente é o ambiente do autor e do
seu povo. Aqui, o lugar, o tempo, as circunstâncias e as concepções do ambiente formador
da Bíblia são vistos como importantes para a interpretação dos textos. Como afirma Louis
Berkhof ao utilizar-se desses princípios, o interprete transporta-se mentalmente para a
época em que o texto foi escrito. Já a escola teológica, zela pelo princípio "escriturístico"
da Bíblia, ou seja, o caráter místico da Bíblia, enquanto Palavra de Deus. A tendência dessa
escola é tornar os testamentos como uma unidade principalmente no que diz respeito à
doutrina da redenção que une tanto israelitas no AT quanto gentios do NT. Uma das
marcas desse caráter místico da Bíblia é a interpretação tipológica das escrituras, a qual
será estudada no próximo capítulo. Aqui mística-tipo-símbolo constituem uma realidade
inseparável. Finalmente, a escola crítica, a qual possui seus precedentes na busca de um
diálogo entre a linguagem científica e a linguagem religiosa própria dos séculos XVII e XVIII,
tem, como uma de suas características principais, a utilização de métodos científicos na
interpretação dos textos. Identificando-se com a escola histórica, a escola crítica busca
conhecer o texto a partir do autor e do seu ambiente, respeitando a antropologia do
momento e as categorias sociais; identificando-se também com a escola gramatical,
procura identificar categorias de linguagem próprias da cultura local através do método da
história das formas, da crítica textual e da história da redação. Do ponto de vista teológico,
ao contrário da escola chamada teológica, a escola crítica procurar entender a teologia
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enquanto evolução na história, seccionando períodos e tendências teológicas, desistindo
assim da idéia da unidade dos testamentos, visto que, segundo ela, na Bíblia encontram-se
diversas teologias. O diferencial da escola crítica é a sua proximidade da Psicologia, da
Antropologia, da Filosofia e principalmente da Sociologia. O texto é entendido
primeiramente no seu ambiente formador e, depois, por analogia, é entendido em um
novo momento, sempre numa ênfase nova onde a perspectiva da comunidade é
determinante na interpretação do texto.
Ao estudarem as escolas de interpretação bíblica, os teólogos geralmente dividem os
princípios hermenêuticos, separando-os por tendência, quer seja gramatical, quer seja
histórica, quer seja teológica, quer seja crítica. Em nossa abordagem evitaremos as
classificações, sugerindo apenas alguns princípios válidos para a leitura de textos bíblicos.
No contato com o estudante da Bíblia em laboratório, faremos as devidas identificações.
3.1. Princípio da Crença na Autoridade das Escrituras
O primeiro princípio a ser abordado é o da crença na autoridade das Escrituras. Se a
Bíblia é submetida à razão ou mesmo à tradição ela deixa de ter autoridade sobre a vida de
uma pessoa. Por exemplo, o que o catolicismo ensina sobre Maria é uma leitura das
Escrituras a partir da influência da tradição, o que pressupõe que a crença na autoridade
da tradição é superior à da autoridade das Escrituras, embora a nível teórico se afirme o
contrário. Entretanto, pretende-se aqui dar um novo sentido à autoridade das Escrituras,
visto que tem sido, usada por linhas tidas como "biblicistas" para consolidar ensinos por
demais alienadores.
A autoridade da Bíblia não existe para fundamentar princípios de história geral,
matemáticos e científicos. Daí a incapacidade da Igreja de conviver com descobertas
científicas que "abalaram" a crença na autoridade das Escrituras, tais como as de
Copérnico e de Galileu Galilei.
A autoridade das Escrituras não existe para defender as Escrituras em si mesmas, a
sua inerrância ou a sua infalibilidade, mas para revelar ao ser humano a vontade de Deus,
sua misericórdia, seu amor, trazendo ao homem novamente a condição de amigo de Deus
(II Co. 5:18-19), existindo ainda para conceder a esse ser humano princípios para viver de
acordo com a vida de uma nova criatura em Jesus Cristo. Em suma, o que se quer dizer é
que a autoridade das Escrituras existe em matéria de fé.
3.2. Princípio do Sentido Usual e Ordinário das Palavras
É de suma importância tomar as palavras no seu sentido usual e ordinário. O primeiro
passo para se determinar o sentido de uma palavra é a busca do seu significado, o qual é o
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valor denotativo da palavra. Um bom exemplo é a palavra "cordeiro" em Ex. 12:3 e em Jo.
1:29, onde significa o animal reservado ao sacrifício. No passo seguinte, a palavra em
questão é interpretada à luz das palavras ou sentenças que precedem ou seguem à
mesma. Por isso, pode-se dizer que em Ex. 12:3 a palavra "cordeiro" possui um sentido
próprio ao significado e em Jo. 1:29 possui um sentido metafórico 35. Outro exemplo é a
palavra "Fé", geralmente entendida como "Confiança". Esta palavra tem em Gl. 1:23 o
sentido de "crença", "doutrina"; em Rm. 14:23, "convicção"; em Hebreus 11, "confiança"
nas promessas divinas atestada pelo testemunho dos que crêem. Outro termo é a palavra
"carne" que em Rm. 3:20 traz a idéia de "pessoa";em Ezequiel 36:26 tem o sentido de uma
"disposição maleável à obediência"; em Ef. 2:3, "desejos licenciosos oriundos da velha
natureza"; em I Tm. 3:16 tem o sentido de "forma humana".
Como já dissemos, os escritores das Sagradas Escrituras escreveram, naturalmente,
com o objetivo de se fazerem compreender. E, por conseguinte, deveriam valer-se de
palavras conhecidas e deveriam usá-las no sentido que geralmente tinham. Averiguar e
determinar qual seja este sentido usual e ordinário deve constituir, portanto, o primeiro
cuidado na interpretação ou correta compreensão das Escrituras.
Será preciso repetir aqui, para maior aproveitamento, além do auxílio divino, que em
tal averiguação há modos de proceder que nenhum leitor da Bíblia deve ignorar, sendo
sempre necessário ter em conta o princípio fundamental que o Livro há de ser seu próprio
intérprete, de cujo princípio se deduzem outros, que chamamos regras ou pautas de
interpretação.
Destas diz assim a primeira: É preciso, o quanto seja possível, tomar as palavras em
seu sentido usual e comum.
Regra sumamente natural e simples, porém da maior importância. Pois, ignorando ou
violando-a, em muitas partes da Escritura não terá outro sentido que aquele que queira
conceder-lhe o capricho humano. Por exemplo, houve quem imaginasse que as ovelhas e
os bois que menciona o Salmo 8 eram os crentes, enquanto as aves e os peixes eram os
incrédulos, donde se concluía, em conseqüência, que todos os homens, queiram ou não,
estão submetidos ao poder de Cristo. Se tivesse sido levado em conta o sentido usual e
comum das palavras, não teria caído em semelhante erro.
Porém, tenha-se sempre presente que o sentido usual e comum não equivale sempre
ao sentido literal. Em outras palavras, o dever de tomar as palavras e frases em seu sentido
comum e natural não significa que sempre devem tornar-se ao "pé da letra". Como se
sabe, cada idioma tem seus modos próprios e peculiares de expressão, e tão singulares,
que se for traduzido ao pé da letra, perde-se ou é destruído completamente o sentido real
e verdadeiro. Esta circunstância se deve, talvez, ter mais presente ao tratar-se da
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linguagem das Escrituras, do que de outro livro qualquer, por estar sumamente cheio de
tais modos e expressões próprias e peculiares.
Os escritores sagrados não se dirigem a certa classe de pessoas privilegiadas, mas ao
povo em geral; e, por conseguinte, não se servem de uma linguagem científica ou seca,
mas figurada e popular. A estas circunstâncias se devem a liberdade, variedade e vigor que
observamos em sua linguagem. A elas se deve seu abundante uso de toda ordem de
figuras retóricas, símiles, parábolas o expressões simbólicas. Além do citado, ocorrem
muitas expressões peculiares do idioma hebreu, chamadas hebraísmos. Precisamos ter isso
tudo presente para podermos determinar qual seja o verdadeiro sentido usual e comum
das palavras e frases.
Exemplos:
1. Em Gênesis 6:12, lemos: "Porque toda carne havia corrompido o seu caminho
sobre a terra" (versão revista e corrigida). Tomando aqui as palavras carne e caminho em
sentido literal, o texto perde o significado por completo. Porém tomando em seu sentido
comum, usando-se como figuras, isto é, carne em sentido de pessoa e caminho no sentido
de costumes, modo de proceder ou religião, já não só tem significado, mas um significado
terminante, dizendo-nos que toda pessoa havia corrompido seus costumes; a mesma
verdade que nos declara Paulo, sem figura, dizendo; "Não há quem faça o bem" (Rom.
3:12).
Pergunta Jesus: "Qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma, não
acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la?" Neste
versículo, tomado ao pé da letra, embora nos apresente uma pergunta interessante,
estamos longe de compreender a verdade que encerra. Porém, sabendo que contam uma
parábola, cujas partes principais e figuradas requerem interpretação e designam
realidades correspondentes às figuras, não vemos aqui já agora uma pergunta
interessante, mas uma mulher que representa a Cristo; um trabalho diligente que
representa um trabalho semelhante que Cristo está levando a cabo; e uma moeda perdida
representa o homem perdido no pecado; tudo isto expondo e ilustrando admiravelmente a
mesma verdade que expressa Cristo sem parábola, dizendo: "Porque o Filho do homem
veio buscar e salvar o perdido" (Luc. 19:10).
Profetizando a respeito de Jesus, disse Zacarias (Luc. 1:69) "e nos suscitou plena e
poderosa salvação na casa de Davi". Dificilmente extrairemos daqui alguma coisa clara se
tomarmos a palavra casa em sentido literal. Porém, sabendo que, como símbolo e figura,
casa ordinariamente significa família ou descendência, já não estamos às escuras: aí se nos
diz que Deus levantou uma poderosa salvação entre os descendentes de Davi, como
também disse Pedro: "Deus, porém . . . o exaltou (a Cristo) a Príncipe e Salvador, a fim de
conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados" (Atos 5:31).
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Disse Jesus (Luc. 14:26): "Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai, e mãe . . .
não pode ser meu discípulo"; ora, tomado ao pé da letra, isso constitui uma contradição ao
preceito de amar até aos inimigos. Porém, lembrando-nos do hebraísmo, pelo qual se
expressam às vezes as comparações e preferências entre duas pessoas ou coisas, com
palavras tão enérgicas como amar e aborrecer, já não só desaparece a contradição, mas
compreendemos o verdadeiro sentido do texto, sentido que sem hebraísmo Jesus mesmo
o expressa, dizendo: "Quem ama seu pai e sua mãe mais do que a mim, não é digno de
mim" (Mat. 10:37).
Pelos exemplos citados pode-se compreender a grande necessidade de nos
familiarizarmos com as figuras e modos próprios e peculiares da linguagem bíblica. Esta
familiaridade se adquire, desde logo, por um estudo da própria Escritura. Porém, para
consegui-la com maior brevidade, conviria ter um breve tratado especial.
3.3. Princípio da Análise à Luz do Contexto
Além de buscar o contexto literário, analisando a palavra dentro das demais palavras
ou sentenças, é essencial estudar o texto à luz do ambiente que o produziu, ou seja, à luz
do seu contexto histórico, socio-cultural, religioso, político e geográfico. É intrigante para a
pessoa que lê o evangelho pela primeira vez o texto de Jo. 4:9, no texto que relata o
encontro entre Jesus e a mulher samaritana, onde aparece uma observação dizendo que
os judeus não se davam com os samaritanos. Entretanto o texto não diz porque. Sugere no
verso 20 uma briga religiosa. Entretanto as razões dessa briga são esclarecidas pelo
contexto histórico-religioso, o qual leva o estudante da Bíblia para o ambiente pós-exílico
do IV século a C., com a repatriação dos judeus em meio à povoação de árabes e de
pessoas oriundas das misturas raciais advindas da invasão assíria no reino do norte cerca
de 700 a C., culminando com divisões políticas na família sacerdotal judaica e a construção
de um templo no Monte Gerizim para competir com o Templo de Jerusalém. A postura de
Jesus diante do ódio dos judeus exposta no corpo do texto do capítulo 4 de João
representa uma quebra de fortes paradigmas na medida em que se conhece o contexto.
Às vezes sucede que não basta o conjunto de uma frase para determinar qual é o
verdadeiro significado de certas palavras. Portanto, e em tal caso, devemos começar mais
acima a leitura e continuá-la até mais abaixo, para levar em conta o que precede a segue à
expressão obscurae, procedendo assim, encontrar-se-á clareza no contexto por diferentes
circunstâncias.
Exemplos:
No contexto achamos expressões, versículos ou exemplos que nos esclarecem e
definem o significado da palavra obscura. Ao dizer Paulo: "quando lerdes, podeis
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compreender o meu discernimento no mistério de Cristo" (Ef. 3:4), ficamos um tanto
indecisos com respeito ao verdadeiro significado da palavra mistério. Porém, pelos
versículos anteriores e posteriores, verificamos que a palavra mistério se aplica aqui à
participação dos gentios nos benefícios do Evangelho. Encontra-se a mesma palavra em
sentido diferente em outras passagens, sendo necessário, em cada caso, o contexto para
determinar o significado exato.
"Quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do
mundo" (Gál. 4:3, 9-11). Que são os rudimentos do mundo? O que vem depois da palavra
nos explica que são práticas de costumes judaicos.
Este vocábulo também é usado noutro sentido, determinando o contexto sua correta
interpretação.
Às vezes encontra-se uma palavra obscura aclarada no contexto por sinônimo ou
ainda por palavra oposta e contrária à obscura. Assim que, por exemplo, a palavra
"aliança" (Gál. 3:17), se explica pelo vocábulo promessa que aparece no final do mesmo
versículo. Assim também acham sua explicação as palavras difíceis, "radicados e
edificados" pela expressão "confirmados na fé" que vem logo em seguida às mesmas (Col.
2:7).
"O salário do pecado é a morte", diz o apóstolo Paulo. O sentido profundo desta
expressão faz ressaltar de uma maneira viva a expressão oposta que a segue: "mas o dom
gratuito de Deus é a vida eterna" (Rom. 6:23). Outro tanto sucede em relação à fé, quando
João diz: "quem crê no Filho tem a vida eterna", pintando ao vivo a palavra crer pela
expressão oposta: "o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas
sobre ele permanece a ira de Deus" (Jo. 3:36).
Às vezes, uma palavra que expressa uma idéia geral e absoluta, deve ser tomada num
sentido restritivo, segundo determine alguma circunstância especial do contexto, ou
melhor, o conjunto das declarações das Escrituras em assuntos de doutrina. Quando Davi
por exemplo, exclama: "Julga-me, Senhor, segundo a minha retidão, e segundo a
integridade que há em mim", o contexto nos faz compreender que Davi só proclama sua
retidão e integridade em oposição às calúnias que Cuxe, o benjamita, levantara contra ele
(Sal. 7:8).
Tratando-se do administrador infiel temos indicada sua conduta como digna de
imitação; porém, pelo contexto vemos limitado o exemplo à prudência do administrador,
com exclusão total de seu procedimento desonesto (Luc. 16:1-133).
Falando Jesus do cego de nascimento, disse: "Nem ele pecou, nem seus pais", com o
que de nenhum modo afirma Jesus que não houvessem pecado; pois existe no contexto
uma circunstância que limita o sentido da frase a que não haviam pecado para que
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sofresse de cegueira como conseqüência, segundo erroneamente pensavam os discípulos.
(Jo. 9:3).
Ao ordenar Tiago no cap. 5:14, que o enfermo "chame os presbíteros da igreja, e
estes farão oração sobre ele, ungindo-o com óleo", entendemos pelo contexto que se trata
da cura do corpo e não da saúde da alma, como pretendem os romanistas que, deixando
de lado o contexto, como de costume, imaginam encontrar aqui apoio para a extrema-
unção.
Advertências. Tratando-se do contexto, é preciso advertir que às vezes se rompe o fio
do argumento ou narração por um parênteses mais ou menos longo, depois do qual volta
ao assunto. Se o parênteses é curto, não há dificuldade; porém se é longo, como sucede
seguidamente nas epístolas de Paulo, requer particular atenção.
Em Efésios 3, por exemplo, encontramos um parênteses que vai desde o verso 2 até o
último, reatando o fio do assunto no primeiro versículo do cap. 4. Vejam-se outros
exemplos em Filip. 1:27 até 2:16; Rom. 2:13 até 16; Efés. 2:14 até 18, etc., e note-se que a
palavra porque aqui, em lugar de introduzir, como de costume, uma razão determinada do
por quê de alguma cousa, serve para introduzir um parênteses.
Por outra parte, devemos recordar que os originais das Escrituras não têm a divisão
em capítulos e versículos; assim é que o contexto não se encontra sempre dentro dos
limites do capítulo que meditamos, nem tampouco acaba sempre o fio de um argumento
ou de uma narração com o fim do capítulo. É preciso ter isso em conta.
Por último, não se esqueça que, às vezes, tão-somente pelo contexto se pode
determinar se uma expressão deve ser tomada ao pé da letra ou em sentido figurado.
Chamando Jesus ao vinho sangue da aliança, compreendemos pelo contexto que a
palavra sangue deve ser tomada em sentido figurado, desde o momento que Jesus, no dito
contexto, volta a chamar ao vinho de fruto da videira, embora o tivesse abençoado. Daí
vemos, além disso, que não vem de Jesus o ensino da transformação do vinho em sangue
verdadeiro de Cristo, como pretendem os que fazem caso omisso do contexto, torcendo as
Escrituras para sua perdição. (Mat. 26:27, 29.) Havendo dito Jesus: "Quem comer a minha
carne e beber o meu sangue tem a vida eterna" e "minha carne é verdadeira comida, e o
meu sangue é verdadeira bebida", etc., os discípulos ficaram assombrados e começaram a
murmurar; dessa circunstância devemos esperar no contexto alguma explicação, se
devemos tomar em sentido material ou espiritual estas declarações. Efetivamente lemos:
"O espírito (o sentido espiritual das palavras ditas) é o que vivifica; a carne (o sentido
carnal) para nada aproveita." Comer a carne e beber o sangue equivale, pois, a apropriar-
se pela fé do sacrifício de Cristo na cruz, do que, como se sabe, resulta a vida eterna do
crente. (Jo. 6:48-63.)
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Falando Paulo de edificar, "se o que alguém edifica sobre o fundamento é ouro,
prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha", vemos pelo contexto que fala do próprio
Cristo como o fundamento do edifício, devendo-se tomar estas palavras no sentido
espiritual, representando, sem dúvida, doutrinas legítimas e falsas com suas
conseqüências. (1 Cor. 3:12.)
A expressão: "Será salvo, todavia, como que através do fogo", explica-se a si mesma
pelo contexto, o qual nos ensina que não se trata de salvar uma alma qualquer, mas a
servos de Deus, e que não é fogo que se atiça em suas pessoas, mas em sua infortunada
construção de material, qual feno e palha; além disso, que não é um fogo purificador, mas
destruidor, a saber, o fogo do escrutínio rigoroso no dia da manifestação de Cristo; estes
"cooperadores de Deus" salvar-se-ão, pois, no sentido de um construtor que, na catástrofe
do incêndio do edifício que está levantando, pode escapar, sim, porém perdendo tudo,
exceto a vida. O que significa a mesma expressão, dizendo: "será salvo", não mediante a
permanência no fogo, mas "como que através do fogo". Só os cegos ao contexto podem
sonhar com o purgatório nesta passagem. (1 Cor. 3:5-15.)
Dizendo Paulo que a união entre Cristo e a Igreja é tão intima, que somos membros
de seu corpo, de sua carne e de seus ossos, e que deve reinar união tão estreita como
entre marido e esposa, continua: "Grande é este mistério." Que mistério? O contexto o
explica em continuação: "mas eu me refiro a Cristo e à igreja" (Efés. 5:32).A união íntima
entre Cristo e sua Igreja é, pois, o mistério, e não a união entre marido e mulher, que, por
certo, não é nenhum mistério. Porém, os romanistas não só fazem um arranjo com o
contexto, mas ainda traduzem a expressão assim: "Grande é este sacramento",
acrescentando em nota explicativa que "a união do marido com a mulher é um grande
sacramento"! Deste modo, traduzindo mal e interpretando pior, encontram aqui o
fundamento para o que chamam "o sacramento do matrimônio".
O que acima foi dito basta para compreender a necessidade de ter em conta o
contexto a fim de decidir se determinadas expressões devem ser tomadas ao pé da letra
ou em sentido figurado.
3.4. Princípio do Desígnio
É preciso levar em consideração o desígnio ou objetivo do livro ou passagem onde
ocorrem as palavras. Por exemplo, o estudo geral das cartas de Paulo aos Gálatas e aos
Colossenses com o conhecimento do contexto das mesmas, revela o ambiente de confusão
doutrinária causado pelos erros dos judaizantes que queriam subverter o evangelho da
liberdade em Cristo Jesus, reduzindo-o à Lei com a observância de dias e cerimonias
judaicas e da falsa filosofia. Nesses casos durante todo o corpo do texto aparecem com
freqüência palavras que denunciam esse ambiente. A insistência do autor em usar alguns
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termos, como por exemplo, o termo "rudimentos do mundo" em Gl. 4:3,9,11. Se lido
isoladamente, o termo pode sugerir algum tipo de prática oriunda do paganismo e da
carnalidade própria do velho homem, mas quando lido à luz do contexto e do livro como
um todo, o termo apontará para as práticas legalistas que eram colocadas pelos
judaizantes como obrigatórias e integrantes para o verdadeiro cristão.
O objetivo ou desígnio de um livro ou passagem se adquire, sobretudo, lendo-o e
estudando-o com atenção e repetidas vezes, tendo em conta em que ocasião e a que
pessoas originalmente foi escrito. Em outros casos consta o desígnio no livro ou passagem
mesmo, como por exemplo, o de toda a Bíblia, em Rom. 15:4; 2 Tim. 3:16, 17; o dos
Evangelhos, em João 20:31; o de 2 Pedro no cap. 3:2, e o de Provérbios no capitulo 1:1, 4.
O desígnio alcançado pelo estudo diligente nos oferece auxílio admirável para a
explicação de pontos obscuros, para a aclaração de textos que parecem contradit6rios e
para conseguir um conhecimento mais profundo de passagens em si claras.
Exemplos:
1° – É evidente que as cartas aos Gálatas e aos Colossenses foram escritas na ocasião
dos erros que, com grande dano, os judaizantes ou "falsos mestres" procuravam implantar
nas igrejas apostólicas. Por conseguinte, estas cartas têm por desígnio expor com toda
clareza a salvação pela morte expiat6ria de Cristo, contrariamente aos ensinos dos
judaizantes, que pregavam as obras, a observância de dias e cerimônias judaicas, a
disciplina do corpo e a falsa filosofia. A cada passo encontraremos luz no estudo destas
cartas para a melhor compreensão de passagens, embora claras, em si mesmas, se temos
esse desígnio sempre presente. Leremos ao mesmo tempo com mais entendimento, por
exemplo, os Salmos 3, 18, 34 e 51, levando-se em conta em que ocasião foram escritos,
coisa que consta em seu respectivo encabeçamento. Outro tanto dizemos dos Salmos 120
até 134, intitulados "Cântico dos degraus", se tivermos presente que foram escritos para
serem cantados pelos judeus em suas viagens anuais a Jerusalém.
2° – Eis aqui a luz que oferece o desígnio para a aplicação de um ponto obscuro,
desígnio adquirido tendo em conta a condição de uma pessoa à qual se dirige Jesus. Ao
perguntar-lhe um Príncipe, cegado por justiça própria, que bem deveria fazer para obter a
vida eterna (Mat. 19:16; Luc. 18:18) e Jesus lhe responde: "Guarda os mandamentos",
quererá ensinar-lhe com esta resposta que o meio de salvação é a observância do
Decálogo? Certamente que não, desde o momento que Jesus mesmo e as Escrituras em
todas as partes ensinam que a vida eterna se adquire unicamente pela fé no Salvador.
Como explicar, pois, que Jesus lhe desse tal resposta? Tudo fica claro e desaparece toda a
dúvida, se tivermos em conta com que desígnio Jesus lhe fala. Pois, evidentemente, seu
objetivo foi valer-se da mesma lei e do mandamento novo de "vender tudo" o que possuía
para tirar o pobre cego de sua ilusão e levá-lo ao conhecimento de suas faltas para com a
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lei divina e à conseqüente humilhação, o que também conseguiu, fazendo-o compreender
que não passava de um pobre idólatra de suas riquezas, que nem mesmo o primeiro
mandamento da lei havia cumprido. O desígnio de Jesus, neste caso, foi o de usar a lei qual
"aio", como disse o Apóstolo, para conduzir o pecador à verdadeira fonte de salvação,
porém não como meio de salvação, e eis aqui por que lhe indica os mandamentos.
3° – Vejamos como, tendo em consideração o desígnio, desaparecem as aparentes
contradições. Quando Paulo disse que o homem é justificado (declarado sem culpa) pela fé
sem as obras, enquanto Tiago afirma que o homem é justificado pelas obras e não
somente pela fé, desaparece a aparente contração desde o momento que tomemos em
conta o desígnio diferente que levam as cartas de um e de outro. (Rom. 3:28 e Tiago 2:24).
Paulo combate e refuta o erro dos que confiavam nas obras da lei mosaica como meio da
justificação, rechaçando a fé em Cristo; Tiago combate o erro de alguns desordenados que
se contentavam com uma fé imaginária, descuidando e rechaçando as boas obras. Daí que
Paulo trata da justificação pessoal diante de Deus, enquanto Tiago se ocupa da justificação
pelas obras diante dos homens. O ser justificado (declarado sem culpa) o homem
criminoso à vista de Deus, realiza-se tão-somente pela fé no sacrifício de Cristo pelo
pecado e sem as obras da lei; porém o ser justificado (declarado sem culpa) à vista do
mundo, ou da igreja, realiza-se mediante obras palpáveis e "não somente pela fé" que é
invisível. "Mostra-me a tua fé pelas tuas obras", tal d o tom e a exigência da carta de Tiago;
tal a exigência, também, das cartas de Paulo. Vemos, pois, que as pessoas são justificadas
diante de Deus mediante a fé, porém, nossa fé é justificada diante dos homens mediante
as obras. Daí compreendermos que concordam perfeitamente as doutrinas dos apóstolos.
Lemos em 1 João 3:9: "Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do
pecado... esse não pode viver pecando." Quererá o apóstolo aqui dizer que o cristão é
absolutamente incapaz de cometer uma falta? Não, porque o próprio objetivo de sua carta
é o de prevenir para que não pequem, com o que está admitida a possibilidade de poder
cair em falta. Como, pois, compreender que os nascidos de Deus não podem pecar? Neste
caso também nos apresenta luz a consideração detida do desígnio da carta. Pelas
Escrituras vemos que nos fins do século apostólico existiam certos pretensos cristãos
enganados que criam poder praticar toda sorte de excessos carnais, sem respeitar lei
alguma. Um dos desígnios da carta é, evidentemente, prevenir os filhos de Deus contra
esse mau tipo de crenças. Diz João que, contrariamente a esses "filhos do diabo" que por
natureza cometem pecado, os "filhos de Deus" não podem viver pecando. Cada um se
ocupa nas obras do pai: os filhos de Deus se ocupam em manifestar seu amor a Deus,
guardando seus mandamentos (5:2); os filhos do diabo se ocupam em imitar a seu pai, que
está pecando desde o princípio.
Uns praticam o pecado, os outros não o praticam desde o momento em que
nasceram de Deus. Opondo-se a essesdissolutos filhos do diabo, que acreditavam poder
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pecar e naturalmente com gosto pecavam, afirma João que os nascidos de Deus, pelo
contrário, tendo repugnância e ódio ao pecado, não podem pecar; significa, não podem
praticar o pecado, ou continuar pecando, como indica o texto original. Pela razão de
haverem nascido de Deus, e aspirando, como aspiram, à perfeição moral completa, é
contra sua nova natureza praticar o pecado: não podem continuar pecando; o que
supostamente não impede que sejam exortados a guardar-se do mal, desde o momento
que não estão fora da possibilidade de pecar.
Outro caso de aparente contradição, que também aclara o desígnio dos escritos
correspondentes, encontramos nas cartas de Paulo. Na que dirige aos Gálatas (4:10, 11),
ele se opõe à observância dos dias de festas judaicas, e na dirigida aos Romanos (14:5, 6)
não faz uma oposição definitiva a tal observância. Como explicar esta diferença?
Simplesmente porque o objetivo geral da Carta aos Gálatas era de resistir às doutrinas dos
falsos mestres que haviam desviado aos Gálatas. Esses mestres lhes haviam ensinado que
para a salvação, além de certa fé no Cristianismo, era preciso guardar as práticas judaicas
do Antigo Testamento, com o que em realidade atacam o fundamento da justificação pela
fé, tornando nulo o sacrifício de Jesus Cristo na cruz. Do grave perigo em que haviam ido
parar, queixa-se amargamente o apóstolo, e nada há de estranho em que se opusesse com
firmeza a essas observâncias judaicas que obscureciam o glorioso Salvador e ameaçavam
arruinar o trabalho apostólico entre eles.
Muito diferente é o caso que o apóstolo trata em sua carta aos Romanos (Rom. 15:1-
13). A passagem em que isso ocorre tem por objetivo estabelecer a paz perturbada entre
um grupo de irmãos fracos convertidos do Judaísmo que criticavam os crentes mais firmes,
os quais, por sua vez, desprezavam os fracos. Estes irmãos débeis, que se haviam imposto
não comer carne nem beber vinho e que guardavam as festas judaicas, não se
encontravam no grave perigo dos gálatas. Assim é que o apóstolo menciona que uns
consideram todos os dias iguais, enquanto outros observam certo dia com preferência a
outro, afirmando que estes o fazem assim para o Senhor, sem opor-se direta e
definitivamente a isso. Porém, considerando o repetido encargo, que ato contínuo lhe
dirige, de estarem "seguros em seu ânimo", isto é, de submeter a sério exame a coisa até
não haver lugar para dúvida com respeito ao correto proceder que ambas as partes nos
assuntos divergentes deviam observar, e considerando além disso que seu desejo e
desígnio eram que os antagonistas chegassem a um mesmo parecer (15:5, 6), para que
cessassem as discórdias e se restabelecesse a paz. É evidente que o apóstolo induz os
fracos a avançar em seu critério, até ao ponto de abandonar a observância das festas
judaicas. Ainda aqui, pois se bem que indiretamente, o apóstolo se pronuncia contra o
costume antigo destinado a desaparecer, como toda coisa velha que haja cumprido sua
missão. Assim é que, em vista dos diferentes desígnios dos referidos escritos, encontramos
completa harmonia onde à primeira vista parece haver divergência.
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Poder-se-iam citar outros exemplos da mesma natureza, porém cremos suficientes os
já referidos para evidenciar a importância de consultar, em caso de necessidade, o
desígnio dos livros ou passagens para conseguir a correta compreensão das expressões
obscuras e ainda das que em si são claras.
3.5. Princípio das Passagens Paralelas
Com bastante cuidado é importante consultar passagens paralelas. O conjunto de
passagens que combinam entre si podem levar o estudante ao conhecimento de uma
doutrina ou idéia. As "marcas de Cristo" reclamadas por Paulo em II Co. 4:10, II Co. 11:23-
25 e Gl. 6:17, são alusões que o apóstolo faz dos seus sofrimentos e das perseguições
advindas de sua opção a favor do evangelho de Cristo.
A partir deste princípio pode-se assumir que o texto bíblico, na verdade, possui um
único sentido, a saber, o literal. O sentido literal não é o sentido "ao pé-da-letra", mas é o
sentido da intenção do autor. E o autor pode ter usado palavras com formas metafóricas,
ou formas próprias ao seu significado. O sentido literal é o que o autor quis dizer.
É necessário consultar as passagens paralelas, "explicando cousas espirituais pelas
espirituais" (1 Cor. 2:13, original).
Com passagens paralelas entendemos aqui as que fazem referência uma à outra, que
tenham entre si alguma relação, ou tratem de um modo ou outro de um mesmo assunto.
Não só é preciso apelar para tais paralelos a fim de aclarar determinadas passagens
obscuras, mas ao tratar-se de adquirir conhecimentos bíblicos exatos quanto a doutrinas e
práticas cristãs. Porque, como já dissemos, uma doutrina que pretende ser bíblica, não
pode ser considerada no todo como tal, sem resumir e expressar com fidelidade tudo o
que estabelece e excetua a Bíblia em suas diferentes partes em relação ao particular. Se
sempre se houvesse tido isto presente, não se propagariam hoje tantos erros com a
pretensão de serem doutrinas bíblicas.
Neste estudo importante convém observar que há paralelos de palavras paralelos de
idéias e paralelos de ensinos gerais.
Paralelos de Palavras
Quanto a estes paralelos, quando o conjunto da frase ou o contexto não bastam para
explicar uma palavra duvidosa, procura-se às vezes adquirir seu verdadeiro significado
consultando outros textos em que ela ocorre; e outras vezes, tratando-se de nomes
próprios, apela-se para o mesmo procedimento a fim de fazer ressaltar fatos e verdades
que de outro modo perderiam sua importância e significado.
Exemplos:
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1° - Em Gálatas 6:17, diz Paulo: "Trago no corpo as marcas de Jesus." Que eram essas
marcas? Nem o conjunto da frase, nem o contexto no-lo explica. Iremos, pois, às passagens
paralelas. Em 2 Cor. 4:10, encontramos em primeiro lugar, que Paulo usa a expressão
"levando sempre no corpo o morrer de Jesus", falando da cruel perseguição que
continuamente Cristo padecia, o que nos indica que essas marcas se relacionam com a
perseguição que sofria. Porém ainda mais luz alcançamos mediante 2 Cor. 11:23, 25, onde
o apóstolo afirma que foi açoitado cinco vezes (com golpes de couro) e três vezes com
varas; suplícios tão cruéis que, se não deixavam o paciente morto, causavam marcas no
corpo que duravam por toda a vida. Consultando, assim, os paralelos, aprendemos que as
marcas que Paulo trazia no corpo não eram chagas ou sinais da cruz milagrosa ou
artificialmente produzidas, como alguns pretendem, porém marcas ou sinais dos suplícios
sofridos pelo Evangelho de Cristo.
2° - Na carta aos Gálatas 3:27, diz o apóstolo dos batizados: "de Cristo vos
revestistes". Em que consiste estar revestido de Cristo? Pelas passagens paralelas em Rom.
13:13,14 e Col. 3:12,14, tudo se esclarece. O estar revestido de Cristo, por um lado
consiste em ter deixado as práticas carnais, como a luxúria, dissoluções, contendas e
ciúmes; e por outro em haver adotado como vestido decoroso, a prática de uma vida nova,
como a misericórdia, benignidade, humildade, mansidão, tolerância e sobretudo o amor
cujos atos os cristãos primitivos simbolizavam no seu batismo, deixando-se sepultar e
levantar em sinal de haverem morridopara essas práticas mundanas e de haverem
ressuscitado em novidade de vida, com suas correspondentes práticas novas. Assim é que,
consultando os paralelos, aprendemos que o estar revestido de Cristo não consiste em
haver adotado tal ou qual túnica ou vestido "sagrado", mas em adornos espirituais ou
morais próprios do Cristianismo simples, santo e puro (1 Pedro 3:3-6).
3° - Segundo Atos 13:22, Davi foi um "homem segundo o coração de Deus". Quererá
a Escritura com esta expressão apresentar-nos a Davi como modelo de perfeição? Não,
porque não cala suas muitas e graves faltas, nem seus correspondentes castigos. Como e
em que sentido, pois, foi homem conforme o coração de Deus? Busquemos os paralelos.
Em 1 Samuel 2:35, disse Deus: "Suscitarei para mim um sacerdote fiel, que procederá
segundo o que tenha no coração" do que resulta, tomando toda a passagem em
consideração, que Davi, especialmente em sua qualidade de sacerdote-rei, procederia
segundo o coração ou a vontade de Deus, Esta idéia se encontra plenamente confirmada
na passagem paralela do cap. 13, verso 14, onde também verificamos que era em vista do
rebelde Saul, e contrário à sua má conduta como rei, que Davi seria homem segundo o
coração de Deus.
Se bem que Davi, como vemos pela história e pelos seus Salmos, de modo geral foi
homem piedoso, em muitos casos digno de imitação, não nos autorizam de nenhum modo
os paralelos de nossa passagem a considerá-lo como modelo de perfeição, sendo seu
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significado primitivo, como temos visto, que Davi, em sua qualidade oficial, o contrário do
rebelde rei Saul, seria homem que procederia segundo o coração ou a vontade de Deus.
4° - Um exemplo da utilidade de consultar os paralelos em relação aos nomes
próprios, temo-lo no relato de Balaão, em Números, capítulos 22 e 24, deixando-nos em
duvida quanto ao verdadeiro caráter e de sua pessoa. Foi ele realmente profeta? E, em tal
caso, qual foi a causa de sua queda? Consultando os paralelos do Novo Testamento,
verificamos por 2 Pedro 2:15,16 e Judas 11, que ele foi um pretenso profeta que atuava
levado pela paixão da cobiça, e por Apocalipse 2:14, que por suas instigações Balaque fez
os israelitas caírem em pecado tão grande que lhes custou a destruição de 23.000 pessoas.
5° - Convém observar também que por este estudo de paralelos se aclaram aparentes
contradições. Segundo 1 Crônicas 21:11, por exemplo, Gade oferece a Davi, da parte de
Deus, o castigo de três anos de fome, e segundo 2 Samuel 24:13, lhe pergunta Gade se
quer sete anos de fome. Como pôde perguntar-lhe se queria sete e ao mesmo tempo lhe
oferece três? Simplesmente porque pelo paralelo de 2 Samuel 21:1, na pergunta de Gade
compreendemos que toma em conta os três anos de fome passados já, com o que estão
passando, enquanto no oferecimento dos três anos só se refere ao porvir.
6° - Atenção. Ao consultar-se este tipo de paralelos convém proceder como segue:
primeiramente buscar o paralelo, ou seja, a aclaração da palavra obscura no mesmo livro
ou autor em que se encontra, depois nos demais da mesma época e, finalmente em
qualquer livro da Escritura. Isto d necessário porque, às vezes, varia o sentido de uma
palavra, conforme o autor que a usa, segundo a época em que se emprega, e ainda, como
já temos dito, segundo o texto em que ocorre no mesmo livro.
Exemplos:
1° - Um exemplo de como diferentes autores empregam uma mesma palavra em
sentido diferente, encontramo-lo nas cartas de Paulo e Tiago. A palavra obras, quando
ocorre só, nas cartas aos Romanos e aos Gálatas, significa o oposto à fé, a saber: as
práticas da lei antiga como fundamento para a salvação. Na carta de Tiago se usa a mesma
palavra, sempre no sentido da obediência e santidade que a verdadeira fé em Cristo
produz. Neste caso, e em casos parecidos, não se aclara, pois, uma pela outra palavra; daí
compreendemos a necessidade de buscar paralelos com preferência no mesmo livro ou
nos livros do autor que se estuda. Notemos, todavia, que um mesmo autor emprega, às
vezes, uma palavra em sentido diferente, em cujo caso também uma expressão explica a
outra. Lemos em Atos 9:7, que os companheiros de Saulo, no caminho de Damasco
ouviram a voz do Senhor, e no capítulo 22:9 do mesmo livro, que "não perceberam o
sentido da voz" ou, como diz outra versão, "não ouviram a voz". É porque entre os gregos,
como entre nós, a palavra ouvir se usava no sentido de entender. Ouviram, pois, a voz e
não a ouviram, significando: ouviram o ruído, porém não entenderam as palavras. Do
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mesmo modo distinguimos entre ver e ver, como o faziam os hebreus, usando a palavra
em sentido diferente. Assim lemos em Gênesis 48:8, 10, que Israel "viu" os filhos de José, e
em seguida, "os olhos de Israel já se tinham escurecido por causa da velhice, de modo que
não podia ver bem". Significa que os viu confusamente, porém não os podia ver com
clareza, sendo necessário colocá-los perto, como também diz o contexto. Busquem-se,
pois, os paralelos, com preferência e em primeiro lugar num mesmo autor, porém não se
espere, mesmo assim, que sirvam de paralelos sempre todas as expressões iguais.
2° - Prova de como pode mudar o significado de uma palavra segundo a época em
que se emprega, temo-la na palavra arrepender-se. Novo Testamento é usada
constantemente no sentido de mudar de mente o pecador, isto é, no sentido de mudar de
opinião, de convicção íntima, de sentimento, enquanto no Antigo Testamento tem
significados tão diferentes que unicamente o contexto, em cada caso, os pode aclarar.
Tanto é assim, que no Antigo se diz do próprio Deus que se arrependeu, expressão que
nunca é empregada pelos escritores do Novo ao falarem de Deus, exceto no caso de
citarem o Antigo Testamento. Daí ser evidente que ao dizer que Deus se arrepende, não
devemos de nenhum modo tomar no mesmo sentido do que nós compreendemos por
arrependimento de um homem. Devem-se, pois, buscar os paralelos, em segundo lugar,
nos escritos que datam de uma mesma época de preferência aos que se puder encontrar
em outras partes das Escrituras.
Paralelos de Idéias
Para conseguir idéia completa e exata do que ensina a Escritura neste ou naquele
texto determinado, talvez obscuro ou discutível, consultam-se não só as palavras paralelas,
mas os ensinos, as narrativas e fatos contidos em textos ou passagens esclarecedoras que
se relacionem com o dito texto obscuro ou discutível. Tais textos ou passagens chamam-se
paralelos de idéias.
Exemplos:
1° - Ao instituir Jesus a ceia, deu o cálice aos discípulos, dizendo: "Bebei dele todos."
Significa isto que só os ministros da religião devem participar do vinho na ceia com
exclusão da congregação? Que idéia nos proporcionam os paralelos?
Em 1 Coríntios 11:22-29, nada menos que seis versículos consecutivos nos
apresentam o "comer do pão e beber do vinho" como fatos inseparáveis na ceia,
destinando os elementos a todos os membros da igreja sem distinção. Invenção humana,
destituída de fundamento bíblico é, pois, o participarem uns do pão e outros do vinho na
comunhão.
2° - Ao dizer Jesus: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja", constitui ele a Pedro
como fundamento da igreja, estabelecendo o primado de Pedro e dos papas, como
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pretendem os papistas? Note-se primeiro que Cristo não disse: "Sobreti, Pedro". Nada
melhor que os paralelos que oferecem as palavras de Cristo e Pedro, respectivamente,
para determinar este assunto, ou seja, o significado deste texto. Pois bem, em Mateus
21:42,44, vemos Jesus mesmo como a pedra fundamental ou "pedra angular", profetizada
e tipificada no Antigo Testamento. E em conformidade com esta idéia, Pedro mesmo
declara que Cristo é a pedra que vive, a principal pedra angular, rejeitada pelos judeus, em
Silo, esta pedra foi feita a principal pedra angular, etc. (1 Pedro 2:4, 8). Paulo confirma e
aclara a mesma idéia, dizendo aos membros da igreja de Éfeso (2:20) que são "edificados
sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo Cristo Jesus, a pedra
angular, no qual todo edifício, bem ajustado cresce para santuário dedicado ao Senhor".
Deste fundamento da igreja, posto pela pregação de Paulo, "como prudente construtor"
entre os coríntios, disse o apóstolo "porque ninguém pode lançar outro fundamento, além
do que foi posto, o qual é Jesus Cristo" (1 Cor. 3:10, 11).
Cotejando estes e outros paralelos, chegamos à conclusão de que Cristo, neste texto,
não constitui a Pedro como o fundamento de sua igreja.
2. O modo de proceder, tratando-se deste tipo de paralelos, é pois o de aclarar as
passagens obscuras mediante paralelos mais claros: as expressões figurativas, mediante os
textos paralelos próprios e sem figura, e as idéias sumariamente expressas, mediante os
paralelos mais extensos e explícitos. Vejamos a seguir novos exemplos:
Exemplos:
1° - Acentua-se muito o amor aos crentes em 1 Pedro 4:8, porque o amor cobre
multidão de pecados. Como explicar este texto obscuro? Pelo contexto e cotejando-o com
1 Cor. 13 e Col. 1:4, compreendemos que a palavra amor é usada aqui no sentido de amor
fraternal. Porém, em que sentido cobre o amor fraternal muitos pecados? Em Rom. 4:8 e
Salmo 32:1, vemos o pecado perdoado sob a figura de "pecado coberto", "sepultado no
esquecimento", como nós diríamos. Consultando o conteúdo de Prov. 10:12, citado por
Pedro neste lugar, compreendemos que o amor fraternal cobre muitos pecados no sentido
de perdoar as ofensas recebidas dos irmãos, sepultando-os no esquecimento, contrário ao
ódio que desperta rixas e aviva o pecado. Não se trata, pois, aqui de merecer o perdão dos
próprios pecados mediante obras de caridade, nem de encobrir pecados próprios e alheios
mediante dissimulações e escusas, como erroneamente pretendem os que não cuidam de
consultar os paralelos, explicando a Escritura pela Escritura.
2° - Segundo Gálatas 6:15, o que é de valor para Cristo é a nova criatura. Que significa
esta expressão figurada? Consultando o paralelo de 2 Cor. 5:17, verificamos que a nova
criatura é a pessoa que "está em Cristo", para a qual "as cousas antigas passaram" e "se
fizeram novas"; enquanto em Gál. 5:6 e 1 Cor. 7:19 temos a nova criatura como a pessoa
que tem fé e observa os mandamentos de Deus.
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3° - Paulo expõe sumariamente a idéia da justificação pela fé em Filipenses 3:9,
dizendo que deseja ser achado em Cristo, "não tendo justiça própria, que procede de lei,
senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus baseada na fé". Para
conseguir clareza desta idéia é preciso recorrer a numerosas passagens das cartas aos
Romanos e aos Gálatas, nas quais se explica extensamente como pela lei todo homem é
réu convicto diante de Deus e como pela fé na morte de Cristo, em lugar do pecador, o
homem, sem mérito próprio algum, é declarado justo e absolvido pelo próprio Deus. Rom.
3, 4, 5; Gál. 3, 4.
Paralelos de Ensinos Gerais
Para a aclaração e correta interpretação de determinadas passagens não são
suficientes os paralelos de palavras e idéias; é preciso recorrer ao teor geral, ou seja, aos
ensinos gerais das Escrituras. Temos indicações deste tipo de paralelos na própria Bíblia,
sob as expressões de ensinar conforme as Escrituras, de ser anunciada tal ou qual coisa por
boca de todos os profetas, e de usarem os profetas (ou pregadores) seu dom conforme a
medida da fé, isto é, segundo a analogia ou regra da doutrina revelada. (1 Cor. 15:3, 14;
Atos 3:18; Rom. 12:6.)
Exemplos:
1° - Diz a Escritura: "O homem é justificado pela fé sem as obras de lei." Ora, se desta
circunstância alguém tira em conseqüência o ensino de que o homem de fé fica livre das
obrigações de viver uma vida santa e de conformidade com os preceitos divinos, comete
um erro, ainda quando consulte um texto paralelo. É preciso consultar o teor ou doutrina
geral da Escritura que trata do assunto; feito isso, observa-se que essa interpretação é
falsa por contrariar por inteiro o espírito ou desígnio do Evangelho, que em todas as partes
previnem os crentes contra o pecado, exortando-os à pureza e à santidade.
2° - Segundo o teor ou ensino geral das Escrituras, Deus é um espírito onipotente,
puríssimo, santíssimo, conhecedor de todas as cousas e em todas as partes presente, coisa
que positivamente consta numa multidão de passagens. Pois bem, há textos que,
aparentemente, nos apresentam a Deus como ser humano, limitando-o a tempo ou lugar,
diminuindo em algum sentido sua pureza ou santidade, seu poder ou sabedoria; tais textos
devem ser interpretados à luz de ditos ensinos gerais.
O fato de haver textos que à primeira vista não parecem harmonizar com esse teor
das Escrituras, deve-se à linguagem figurada da Bíblia e à incapacidade da mente humana
de abraçar a verdade divina em sua totalidade.
3° - Ao dizerem as Escrituras: "O Senhor fez todas as coisas para determinados fins, e
até o perverso para o dia da calamidade" (Prov. 16:4), quererão aqui ensinar que Deus
criou o ímpio para condená-lo, como alguns interpretam o texto? Certamente que não;
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porque, segundo o teor das Escrituras, em numerosas passagens, Deus não quer a morte
do ímpio, não quer que ninguém pereça, mas que todos se arrependam. E, portanto, o
significado da última parte do texto deve ser que o Criador de todas as coisas, no dia mau,
saberá valer-se inclusive do ímpio para levar a cabo seus adoráveis desígnios. Quantas
vezes, pela divina providência, não tiveram de servir os perversos qual açoite e praga a
outros, castigando-se a si mesmos ao mesmo tempo!
Paralelos Aplicados à Linguagem Figurada
Às vezes é preciso consultar os paralelos para determinar se uma passagem deve ser
tomada ao pé da letra ou em sentido figurado. Várias vezes os profetas nos apresentam a
Deus, por exemplo, com um cálice na não, dando de beber aos que quer castigar, caindo
estes por terra, embriagados e aturdidos. (Naum 3:11; Hab. 2:16; Salmo 75:8, etc.) Esta
representação, breve e sem explicação em certos textos, encontra-se aclarada no paralelo
de Isaías 51:17,22,23, onde aprendemos que o cálice é o furor da ira ou justa indignação
de Deus, e o aturdimento ou embriaguez, assolações e quebrantamentos insuportáveis.
A propósito da linguagem figurada, é preciso recordar aqui que alguma semelhança
ou igualdade entre duas cousas, pessoas e fatos, justifica a comparação e uso da figura.
Assim, pois, se houver certa correspondência entre o sentido figurado de uma palavra e
seu sentido literal, não é necessário, como tampouco é possível, que tudo quanto encerra
a figura se encontre no sentido literal. Pela mesma razão, por exemplo, quando Cristo
chama de ovelhas a seus discípulos, é natural que não apliquemos a eles todas as
qualidades que encerra a palavra ovelha, a qual aqui é usada em sentido figurado. Em
casos como este sóibastar o sentido comum para determinar os pontos de comparação.
Assim compreendemos que, ao chamar-se Cristo de o Cordeiro, somente se refere a seu
caráter manso e a seu destino de ser sacrificado, como o cordeiro sem mácula o era entre
os israelitas. Do mesmo modo compreendemos em que sentido se chama ao pecado de
dívida; à redenção de pagamento da dívida, e ao perdão, remissão da divida ou da culpa.
É evidente que o sentido de tais expressões não deve ser levado a extremos
exagerados: se bem que Cristo morreu pelos pecadores, não se admite em conseqüência,
por exemplo, que todos os pecadores são ou serão salvos; e se bem que Cristo cumpriu
toda a lei por nós, não resulta daí que tenhamos o direito de viver no pecado; ou se consta
que o homem está morto no pecado, não quer dizer que está de tal modo morto que não
se possa arrepender e que fique sem culpa se deixar de ouvir o chamamento do
Evangelho. Tratando-se de figuras de objetos materiais, não será difícil determinar o justo
número de realidades ou pontos de comparação que designa cada figura, nem a
conseqüência lícita ou ensino positivo que encerra cada ponto.
Maiores dificuldades oferecem as figuras tomadas da natureza humana ou da vida
ordinária. Muitos têm-se recreado em formar castelos de doutrinas sem fundamento,
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rebuscando e comparando tais figuras e símiles, tirando conseqüências ilícitas, e até
contrárias às Escrituras. O espírito humano parece encontrar gosto especial em
semelhantes fabricações caprichosas e jogos de palavras. Devem-se, pois, estudar as
figuras com sobriedade especial e sempre com toda a seriedade.
3.6. Princípio da Análise Experiencial à Luz das Escrituras
De acordo com W.A. Henrichsen 36, deve-se interpretar a experiência pessoal à luz
das Escrituras e não as Escrituras à luz da experiência pessoal. E aqui temos uma delicada
premissa que, quando comparada às afirmações da Hermenêutica pós-moderna pode
levar o princípio a duas vertentes. Por um lado, admite-se que não é recomendável
imprimir sobre o texto e o seu resultado hermenêutico, ou seja, sua interpretação local, a
experiência da pessoa, no sentido de fazer o texto significar o que ela queira que ele
signifique ou mesmo o que ela precise que ele signifique. É justamente aqui que nascem as
interpretações de conveniência tão comuns à época em que vivemos. Por outro lado,
existe aquilo que R. Lapointe 37 chama de "Circularidade Hermenêutica", ou seja, a mútua
iluminação entre o acontecimento fundamental (primeiro) e o acontecimento derivado, ou
ainda entre o primeiro e a sua "palavra". Por exemplo, se a Igreja Primitiva interpretou
Jesus a partir das Escrituras, estava também interpretando as Escrituras a partir do
acontecimento de Jesus ( acontecimento: Jesus; palavra: NT ) . Em termos práticos, pode-
se tentar uma conciliação entre partes aparentemente contrárias. Se o Dêutero-Isaías fala
no capítulo 61 sobre uma pessoa sobre a qual repousa o Espírito do Senhor para libertar
cativos, curar aflitos, tirar cegos da escuridão e apregoar o ano aceitável do Senhor, ele
pode estar falando de si mesmo como pessoa, ou até mesmo do povo liberto do cativeiro
da Babilônia para exercer esse ministério diante dos povos, ou até mesmo de um outro
profeta (o que é menos provável). Entretanto, nada há que impeça o texto a ter uma nova
leitura na pessoa de Jesus Cristo, mas sempre de forma tal que venha a parecer que o
Dêutero-Isaías estava falando para uma outra época, a do porvir, onde sua pregação teria
um sentido de vaticínio. É o que temos em Lucas 4, onde Jesus afirma que "se cumpriu
hoje" diante das pessoas ali presentes o que falara o profeta. "Desobedecendo" um pouco
a idéia de que profecia cumprida jamais se repete, nada há que impeça a interpretação de
que no mundo hodierno, a Igreja de Jesus Cristo deve assumir o ministério que no AT
pertenceu ao profeta ou à sua comunidade e que no NT cumpriu-se em Jesus Cristo.
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4 - FIGURAS DE RETÓRICA
Vimos que para a correta compreensão das Escrituras é necessário, na medida do
possível, tomar as palavras em seu sentido usual e comum, o que, devido à linguagem
usual e figurada da Bíblia e seus hebraísmos, não significa que sempre devem ser tomadas
ao pé da letra. Também já observamos que é preciso familiarizar-se com esta linguagem
para chegar a compreender, sem dificuldade, qual seja o sentido usual e comum das
palavras. Para que o leitor consiga em parte esta familiaridade, exporemos em seguida
uma série de figuras e hebraísmos, com seus correspondentes exemplos, que precisam ser
estudados detidamente e repetidas vezes. Como veremos, as figuras retóricas da
linguagem bíblica são as mesmas que em outros idiomas; e não é tanto para seus nomes,
um tanto estranhos, quanto para os exemplos que lhes seguem, que chamamos a atenção.
4.1. Metáfora
Esta figura tem por base alguma semelhança entre dois objetos ou fatos,
caracterizando-se um com o que é próprio do outro.
Exemplos:
Ao dizer Jesus: "Eu sou a videira verdadeira", Jesus se caracteriza com o que é próprio
e essencial da videira; e ao dizer aos discípulos: "Vós sois as varas", caracteriza-os com o
que é próprio das varas. Para a boa interpretação desta figura, perguntamos, pois: que
caracteriza a videira? ou, para que serve principalmente? Na resposta a tais perguntas está
a explicação da figura. Para que serve uma videira? Para transmitir seiva e vida às varas, a
fim de produzirem uvas. Pois isto é o que, em sentido espiritual, caracteriza a Cristo: qual
uma videira ou tronco verdadeiro, comunica vida e força aos crentes, para que, como as
varas produzem uvas, eles produzam os frutos do Cristianismo. Procedase do mesmo
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modo na interpretação de outras figuras do mesmo tipo, como por exemplo: "Eu sou a
porta, eu sou o caminho, eu sou o pão vivo; vós sois a luz, o sal; edifício de Deus; ide, dizei
àquela raposa; são os olhos a lâmpada do corpo; Judá é leãozinho; tu és minha rocha e
minha fortaleza; sol e escudo é o Senhor Deus; a casa de Jacó será fogo, e a casa de José
chama e a casa de Esaú restolho", etc. (João 15:1; 10:9; 14:6; 6:51; Mat. 5:13,14; 1 Cor.
3:9; Luc. 13:32; Mat. 6:22; Gên. 49:9; Sal. 71:3; 84:11; Obadias 18.)
4.2. Sinédoque
Faz-se uso desta figura quando se toma a parte pelo todo ou o todo pela parte, o
plural pelo singular, o gênero pela espécie, ou viceversa.
Exemplos:
Toma a parte pelo todo o Salmista ao dizer: "Minha carne repousará segura" (versão
revista e corrigida), em lugar de dizer: meu corpo ou meu ser, que seria o todo, sendo a
carne só parte de seu ser (Sal. 16:9).
Toma o todo pela parte o Apóstolo quando diz da ceia do Senhor: "todas as vezes que
. . . beberdes o cálice", em lugar de dizer beberdes do cálice, isto é, parte do que há no
cálice. (1 Cor. 11:26).
Tomam também o todo pela parte os acusadores de Paulo ao dizerem: "Este homem
é uma peste e promove sedições entre os judeus esparsos por todo o mundo";
significando, por aquela parte do mundoou do Império romano que o Apóstolo havia
alcançado com sua pregação. (Atos 24:5.)
4.3. Metonímia
Emprega-se esta figura quando se emprega a causa pelo efeito, ou o sinal ou símbolo
pela realidade que indica o símbolo.
Exemplos:
Vale-se Jesus desta figura empregando a causa pelo efeito ao dizer: "Eles têm Moisés
e os profetas; ouçam-nos", em lugar de dizer que têm os escritos de Moisés e dos profetas,
ou seja o Antigo Testamento. (Luc. 16:29.)
Emprega também o sinal ou símbolo pela realidade que indica o sinal quando disse a
Pedro: "Se eu não te lavar, não tens parte comigo". Aqui Jesus emprega o sinal de lavar os
pés pela realidade de purificar a alma, porque faz saber ele mesmo que o ter parte com ele
não depende da lavagem dos pés, mas da purificação da alma. (João 13:8).
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Do mesmo modo João faz uso desta figura pondo o sinal pela realidade que indica o
sinal, ao dizer: "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado", pois é evidente
que aqui a palavra sangue indica toda a paixão e morte expiatória de Jesus, única coisa
eficaz para satisfazer pelo pecado e dele purificar o homem. (1 João 1:7.)
4.4. Prosopopéia
Usa-se esta figura quando se personificam as coisas inanimadas, atribuindo-lhes os
feitos e ações das pessoas.
Exemplos:
O apóstolo fala da morte como de pessoa que pode ganhar vitória ou sofrer derrota,
ao perguntar: "Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (1 Cor. 15:55). Emprega o apóstolo
Pedro a mesma figura, falando do amor, e referindo-se à pessoa que ama, quando diz: "o
amor cobre multidão de pecados" (1 Ped. 4:8). Como é natural, ocorrem com freqüência
estas figuras na linguagem poética do Antigo Testamento, dando-lhe assim uma
formosura, vivacidade e animação extraordinárias, como por exemplo ao prorromper o
profeta: "Os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores
do campo baterão palmas."
Convirá observar que em casos como estes não se trata somente de uma mera
personificação das coisas inanimadas, mas de uma simbolização pelas mesmas,
representando nesta passagem os montes e outeiros pessoas eminentes, e árvores
pessoas humildes; uns e outros de regozijo louvando ao Redentor ante seus mensageiros.
(Isaías 55:12.)
Outro caso de personificação grandiosa ocorre no Salmo 85:10,11, onde se faz
referência à abundância de bênçãos próprias do reinado do Messias nestes termos:
"Encontraram-se a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram. Da terra brota a
verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar."
4.5. Ironia
Faz-se uso desta figura quando se expressa o contrário do que se quer dizer, porém
sempre de tal modo que se faz ressaltar o sentido verdadeiro.
Exemplos:
Paulo emprega esta figura quando chama aos falsos mestres de os tais apóstolos,
dando a entender ao mesmo tempo que de nenhum modo são apóstolos. (2 Cor. 11:5;
12:11; veja-se 11:13.)
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Vale-se da mesma figura o profeta Elias quando no Carmelo disse aos sacerdotes do
falso deus Baal: "Clamai em altas vozes . . . e despertará", dando-lhes a compreender, por
sua vez, que era de todo inútil gritarem. (1 Reis 18:27.)
Também Jó faz uso desta figura ao dizer a seus amigos: "Vós sois o povo, e convosco
morrerá a sabedoria", fazendo-os saber que estavam muito longe de serem tais sábios. (Jó
12:2.)
4.6. Hipérbole
É a figura pela qual se representa uma coisa como muito maior ou menor do que em
realidade é, para apresentá-la viva à imaginação. Tanto a ironia como a hipérbole são
pouco usadas nas Escrituras, porém, alguma ou outra vez ocorrem.
Exemplos:
Fazem uso da hipérbole os exploradores da terra de Canal quando voltam para contar
o que ali haviam visto, dizendo: "Vimos ali gigantes . . . e éramos aos nossos próprios olhos
como gafanhotos... as cidades são grandes e fortificadas até aos céus." (Núm. 13:33; Deut.
1:28). Daí se vê que os exploradores falavam como se costuma entre nós ao dizer uma
pessoa a outra, por exemplo: "Já lhe avisei mil vezes", querendo dizer tio somente: "Já lhe
avisei muitas vezes."
Também João faz uso desta figura ao dizer: "Há, porém, ainda muitas outras coisas
que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo
inteiro caberiam os livros que seriam escritos."
4.7. Alegoria
A alegoria é uma figura retórica que geralmente consta de várias metáforas unidas,
representando cada uma delas realidades correspondentes. Costuma ser tão palpável a
natureza figurativa da alegoria, que uma interpretação ao pé da letra quase que se faz
impossível. Às vezes a alegoria está acompanhada, como a parábola, da interpretação que
exige.
Exemplos:
Tal exposição alegórica nos faz Jesus ao dizer: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu;
se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo, é a
minha carne... Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna", etc.
Esta alegoria tem sua interpretação na mesma passagem da Escritura. (João 6:51-65.)
Outra alegoria apresenta o Salmista (Salmo 80:8-13) representando os israelitas, sua
trasladação do Egito a Canaã e sua sucessiva história sob as figuras metafóricas de uma
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videira com suas raízes, ramos, etc., a qual, depois de trasladada, lança raízes e se estende,
ficando porém mais tarde estropiada pelo javali da selva e comida pelas bestas do campo
(representando o javali e as bestas poderes gentílicos).
Ainda outra alegoria nos apresenta o povo israelita sob as figuras de uma vinha em
lugar fértil, a qual, apesar dos melhores cuidados, não dá mais que uvas silvestres, etc.
Também esta alegoria está acompanhada de sua explicação correspondente – "Porque, a
vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta dileta
do Senhor", etc. (Isa. 5:1-7).
4.8. Fábula
A fábula é uma alegoria histórica, pouco usada na Escritura, na qual um fato ou
alguma circunstância se expõe em forma de narração mediante a personificação de coisas
ou de animais.
Exemplos:
Lemos em 2 Reis 14:9: "O cardo que está no Líbano, mandou dizer ao cedro que lê
está: Dá tua filha por mulher a meu filho; mas os animais do campo, que estavam no
Líbano, passaram e pisaram o cardo." Com esta fábula Jeoás, rei de Israel, responde ao
repto de guerra que lhe havia feito Amazias, rei de Judá. Jeoás compara-se a si mesmo ao
robusto cedro do Líbano e humilha a seu orgulhoso contendor, igualando-o a um débil
cardo, desfazendo toda aliança entre os dois e predizendo a ruína de Amazias com a
expressão de que "os animais do campo pisaram o cardo".
4.9. Enigma
O enigma também é um tipo de alegoria, porém sua solução é difícil e abstrusa.
Exemplos:
Sansão propôs aos filisteus o seguinte: "Do comedor saiu comida e do forte saiu
doçura" (Juízes 14:14). A solução se encontra no sobredito trecho bíblico.
Entre outros ditos de Agur, encontramos em Prov. 30:24 o enigma seguinte: "Há
quatro coisas mui pequenas na terra, que, porém, são mais sábias que os sábios." Este
enigma tem também sua solução na mesma passagem em que se encontra.
4.10. Tipo
O tipo é uma classe de metáfora que não consiste meramente em palavras, mas em
fatos, pessoas ou objetos que designam fatos semelhantes, pessoas ou objetos no porvir.
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Estas figuras são numerosas e chamam-se na Escritura sombra dos bens vindouros, e se
encontram, portanto, no Antigo Testamento.
Exemplos:
Jesus mesmo faz referência à serpente de metal levantada no deserto, como tipo,
prefigurando a crucificação do Filho do homem. (João 3:14.)
Noutra ocasião Cristo se refere ao conhecido acontecimento com
Jonas como tipo, prefigurando sua sepultura e ressurreição. (Mat. 12:40.)
Paulo nos apresenta o primeiro Adão como tipo, prefigurando o segundo Adão, Cristo
Jesus; e também o cordeiro pascoal como o tipo do Redentor. (Rom. 5:14; 1 Cor. 5:7.)
Sobretudo, a carta aos Hebreus faz referência aos tipos do Antigo Testamento, como, por
exemplo, ao sumo sacerdote que prefigurava a Jesus; aos sacrifícios que prefiguravam o
sacrifício de Cristo; ao santuário do templo que prefigurava o céu, etc. (Heb. 9:11-28; 10:6-
10).
Muitos abusos têm sido cometidos na interpretação de muitas coisas que parecem
típicas no Antigo Testamento. Assim é que folgamos em aconselhar: 1° – Aceite-se como
tipo o que como tal é aceito no Novo Testamento; 2° – recorde-se que o tipo é inferior ao
seu correspondente real e que, por conseguinte, todos os detalhes do tipo não têm
aplicação à dita realidade; 3° – tenha-se presente que às vezes um tipo pode prefigurar
coisas diferentes, e 4° – que os tipos, como as demais figuras, não nos foram dados para
servir de base e fundamento das doutrinas cristãs, mas para confirmar-nos na fé e para
ilustrar e apresentar as doutrinas vivas à mente.
4.11. Símbolo
O símbolo é uma espécie de tipo pelo qual se representa alguma coisa ou algum fato
por meio de outra coisa ou fato familiar que se considera a propósito para servir de
semelhança ou representação.
Exemplos:
O leão é considerado o rei dos animais do bosque; assim é que achamos nas
Escrituras a majestade real simbolizada pelo leão. Do mesmo modo se representa a força
pelo cavalo e a astúcia pela serpente. (Apoc. 5:5; 6:2; Mat. 10:16.)
Considerando a grande importância que sempre tiveram as chaves e seu uso, nada há
de estranho que viessem a simbolizar autoridade (Mat. 16:19).
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Recordando que as portas dos povoados antigamente serviam como uma espécie de
fortaleza, compreendemos por que, em linguagem simbólica, venha a representar força e
domínio. (Mat. 16:18).
Tão numeroso é este tipo de símbolos que cremos conveniente colocar os mais
comuns em seção à parte.
Quanto a fatos simbólicos, para representar a morte do pecador para o mundo e sua
entrada numa vida nova pela ressurreição espiritual, temos a imersão e saída da água, no
batismo. Representa-se também, como sabemos, a comunhão espiritual com Jesus e a
participação de seu sacrifício na celebração da Ceia do Senhor. (Rom. 6:3,4; 1 Cor. 11:23-
26.)
4.12. Parábola
A parábola é uma espécie de alegoria apresentada sob forma de uma narração,
relatando fatos naturais ou acontecimentos possíveis, sempre com o objetivo de declarar
ou ilustrar uma ou várias verdades importantes.
Exemplos:
Em Lucas 18:1-7 expõe Jesus a verdade de que é preciso orar sempre e sem
desfalecer, ainda que tardemos em receber a resposta para aclarar e imprimir nos
corações esta verdade, serve-se do exemplo ou parábola de uma viúva e um mau juiz, que
nem teme a Deus nem tem respeito aos homens. Comparece a viúva perante o juiz
pedindo justiça contra seu adversário. Porém o juiz não faz caso; mas em razão de voltar e
molestá-lo, a viúva consegue que o juiz injusto lhe faça justiça. E assim Deus ouvirá aos
seus "que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los".
Uma parábola que tem por objetivo ilustrar várias verdades, temo-la no Semeador
(Mat. 13:3-8), cuja semente cai na terra em quatro pontos diferentes; necessitando cada
um sua interpretação. (Vejam-se versos 1825.) Outra parábola que ilustra várias verdades
é a do João, no mesmo cap. vers. 24-30 e 36-43. Várias verdades são aclaradas também
pelas parábolas da ovelha perdida, da dracma perdida e do filho pródigo (Luc. 15). Outro
tanto sucede com a do fariseu e o publicano e outras (Luc. 18:10-14).
Quanto à correta compreensão e interpretação das parábolas, é preciso observar o
seguinte:
1° – Deve-se buscar seu objetivo; em outras palavras, qual é a verdade ou quais as
verdades que ilustra. Encontrado isso, tem-se a explicação da parábola, e note-se que às
vezes consta o objetivo na sua introdução ou no seu término. Outras vezes se descobre seu
objetivo tendo presente o motivo com que foi empregada.
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2° – Devemos ter em conta os traços principais das parábolas, deixando-se de lado o
que lhes serve de adorno ou para completar a narrativa. Jesus mesmo nos ensina a
proceder assim na interpretação de suas próprias parábolas. Como existe perigo de
equivocar-se neste ponto, vamos aclará-lo chamando a atenção para a de Lucas 11:5-8.
Nesta parábola Cristo ilustra a verdade de que é necessário orar com insistência, valendo-
se do exemplo de uma pessoa que necessita de três pães. É noite e vai pedi-los
emprestados a um amigo seu que já tem a porta fechada e está deitado, bem como os
seus filhos. Este amigo preguiçoso não quer levantar-se para dá-los, mas, por força da
insistência e importunação no pedido, o homem consegue o que deseja.
É fácil ver que aqui é o homem necessitado e suplicante quem nos oferece o bom
exemplo e representa o cristão na parábola. Igualmente fácil é entender que seu amigo
representa Deus. Porém, que absurdo seria interpretar tudo o que se disse do amigo,
aplicando-o a Deus, a saber, que tem a porta fechada, estão ele e seus filhos deitados e,
sendo preguiçoso, não quer levantar-se! É evidente que esta parte constitui o que
chamamos adorno da parábola e que se deve deixar de lado, por não corresponder e se
aplicar à realidade. Observemos, pois, sempre a totalidade da parábola e suas partes
principais, fazendo caso omisso de seus detalhes menores.
3° – Não se esqueça de que as parábolas, como as demais figuras, servem para
ilustrar as doutrinas e não para produzi-las.
4.13. Símile
A figura de retórica denominada símile procede da palavra latina "similis" que
significa semelhante ou parecido a outro. A palavra é definida da seguinte maneira pela
Enciclopédia Brasileira Mérito: "Semelhante. Analogia; qualidade do que é semelhante;
comparação de coisas semelhantes." A Bíblia contém numerosos e belíssimos símiles, que,
quais janelas de um edifício, deixam penetrar a luz e permitem que os que estão em seu
interior possam olhar para fora e contemplar o maravilhoso mundo de Deus. A metáfora
consiste em denominar uma coisa empregando o nome de outra, na esperança de que o
leitor ou o ouvinte reconhecerá a semelhança entre o sentido real e o figurado da
comparação. O Senhor Jesus empregou com respeito a Herodes o qualificativo de aquela
raposa, o que constitui uma metáfora. Se houvesse dito que Herodes era como uma
raposa, teria empregado a figura retórica denominada símile, mas neste caso, teria faltado
força à sua declaração. A palavra raposa ajustava-se tão bem ao astuto rei, que o Senhor
não necessitou dizer que Herodes era como uma raposa. No símile se emprega para a
comparação a palavra como ou outra similar, enquanto na metáfora se prescinde dela.
Exemplos:
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"Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para
com os que o temem." (Símile.)
"Como o pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o
temem." (Símile.)
"Pois ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos p6." (Metáfora).
"Quanto ao homem, os seus dias são como a relva; como a flor do campo, assim ele
floresce; pois, soprando nela o vento, desaparece; e não conhecerá daí em diante o seu
lugar." (Símile.) (Salmo 103:11-16.)
Outra série de símiles se encontra em Isaías, capítulo 55. Nos versículos 8-11 temos
símiles de rara beleza, como por exemplo: "Como os céus são mais altos do que a terra,
assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos; e os meus
pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos."
"Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem
que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar para dar semente ao
semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará
para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei."
"Os símbolos escolhidos", diz-nos o Dr. Delitch em seu Comentário Bíblico de Isaías,
"têm profundo significado alusivo. Assim como a neve e a chuva são causas imediatas de
crescimento, e também da satisfação que proporcionam os produtos colhidos, assim
também a Palavra de Deus abranda e refresca o coração humano, transformando-o em
terreno fértil e vegetativo. A Palavra de Deus proporciona também ao profeta – o
semeador – a semente para semear, a qual traz consigo o pão que alimenta a alma. O
homem vive de toda palavra que sai da boca de Deus". (Deut. 8:3.)
Outros dois símiles eficazes relativos ao poder da Palavra de Deus se encontram em
Jeremias 23:29 que diz assim: "Não é a minha palavra fogo, diz o Senhor, e martelo que
esmiúça a penha?" Compare a poderosa metáfora de Hebreus 4:12.
O profeta Isaías em 1:18, mediante dois símiles familiares, dá a conhecer as
promessas de Deus relativas ao perdão e à limpeza. "Ainda que os vossos pecados são
como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o
carmesim, se tornarão como a lã."
O profeta Isaías nos diz também que "Os perversos são como o mar agitado, que não
se pode aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo." O mesmo profeta compara os
justos a um jardim regado e um manancial inesgotável. (57:20 e 58:11).
Nada é mais inconstante que as ondas marinhas impulsionadas pelo vento. A elas
compara o apóstolo Tiago (1:6) o crente variável e vacilante, que oscila entre a fé e a
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dúvida. "Peça com fé, em nada duvidando; pois o que duvida d semelhante à onda do mar,
impelida e agitada pelo vento." A tradução deste versículo para o inglês, feita por Moffatt,
e vertida livremente para o português, diz assim: "Somente peça com fé, sem duvidar
jamais, porque o homem que duvida é como a onda do mar, que gira em redemoinho e
flutua, impulsionada pelo vento."
Os símiles da Bíblia são quais gravações formosas e de grande valor artístico, que
acompanham as verdades, que sem este auxílio seriam captadas fracamente e esquecidas
com facilidade.
4.14. Interrogação
A palavra interrogação procede de um vocábulo latino que significa pergunta. Mas
nem todas as perguntas são figuras de retórica. Somente quando a pergunta encerra uma
conclusão evidente é que é uma figura literária. A Enciclopédia Brasileira Mérito define a
interrogação da seguinte maneira: "Figura pela qual o orador se dirige ao seu interlocutor,
ou adversário, ou ao público, em tom de pergunta, sabendo de antemão que ninguém vai
responder."
Exemplos:
"Não fará justiça o Juiz de toda a terra?" (Gên. 18:25). Isso equivale a dizer que o Juiz
de toda a terra fará o que é justo. "Não são todos eles espíritos ministradores enviados
para serviço, a favor dos que hão de herdar a salvação?" (Hebreus 1:14). Neste versículo o
ministério nobre dos anjos se considera um fato incontrovertível. As interrogações que se
encontram em Rom. 8: 33-35 constituem formosos exemplos do poder e do uso desta
figura literária. A mente, em forma instintiva, vai da pergunta à resposta em atitude
triunfal. "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica.
Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está
à direita de Deus, e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo?
Será tribulação, ou fome, ou nudez, ou perigo ou espada?"
"Jesus, porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do homem?" Estas palavras
equivaliam a dizer: "Judas, tu entregas o Filho do homem com um beijo." (Lucas 22:48).
No livro de Jó há muitas interrogações. Aqui temos alguns exemplos: "Porventura não
sabes tu que desde todos os tempos, desde que o homem foi posto sobre a terra, o júbilo
dos perversos é breve, e a alegria dos ímpios momentânea?" (Jó 20:4, 5). "Porventura
desvendarás os arcanos de Deus, ou penetrarás até a perfeição do Todo-poderoso?" (Jó
11:7). A resposta de Deus do meio de um redemoinho (caps. 38-40) está expressa em sua
maior parte por meio de interrogações.
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4.15. Apóstrofe
A apóstrofe se assemelha muito à personificação ou prosopopéia. A palavra
apóstrofe procede do latim apostrophe e esta do grego apo, que significa de, e strepho,
que quer dizer volver-se. O vocábulo indica que o orador se volve de seus ouvintes
imediatos para dirigir-se a uma pessoa ou coisa ausente ou imaginária. A Enciclopédia
Brasileira Mérito nos proporciona a seguinte definição: "Figura usada por orador, no
discurso; consiste em interrompê-lo subitamente, para dirigir a palavra, ou invocar alguma
pessoa ou coisa, presente, ausente, real ou imaginária. O emprego desta figura, na
eloqüência, produz grandes efeitos sobre as paixões que o orador procura transmitir aos
ouvintes." Quando as palavras são dirigidas a um objeto impessoal, a personificação e a
apóstrofe se combinam, como por exemplo, em 1 Cor. 15:55, e em algumas outras
passagens que seguem:
Exemplos:
"Que tens, ó mar, que assim foges? e tu, Jordão, para tornares atrás? Montes, por
que saltais como carneiros? e vós colinas, como cordeiros do rebanho? Estremece, ó terra,
na presença do Deus de Jacó, o qual converteu a rocha em lençol de água e o seixo em
manancial" (Salmo 114:5-8). A seguir temos outro exemplo que combina a personificação
com a apóstrofe: "Ah, Espada do Senhor, até quando deixarás de repousar? Volta para a
tua bainha, descansa, e aquieta-te" (Jeremias 47:6). Uma das apóstrofes mais
extraordinárias e conhecidas é o grito do angustiado Davi, por motivo da morte de seu
filho rebelde: "Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera que eu
morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!" (2 Sam. 18:33). As palavras dirigidas ao
caído monarca da Babilônia (Isaías 14:9-32) constituem uma das apóstrofes mais vigorosas
da literatura.
A apóstrofe, empregada por oradores hábeis, é na maioria dos casos a forma mais
eficiente e persuasiva da retórica.
"Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei; e ouça a terra as palavras da minha boca" (Deut.
32:1). Estas palavras nos fazem lembrar de Jeremias que disse: "Ó terra, terra, terral ouve
a palavra do Senhor" (Jeremias 22:29). Constitui uma forma mui enfática de reclamaratenção e realçar a importância do que se fala.
Em Números 21:29 é onde encontramos uma das primeiras menções na Bíblia desta
figura retórica: "Ai de ti, Moabe! Perdido estás, povo de Camos!" Aqui a palavra é dirigida à
devastadora terra de Moabe como se estivesse presente. No famoso cântico de Débora e
Baraque, é dirigida a palavra aos reis e príncipes ausentes e dominados, como se
estivessem presentes: "Ouvi, reis, dai ouvidos, Príncipes. Eu, eu mesma cantarei ao Senhor;
salmodiarei ao Senhor Deus de Israel" (Juízes 5:3).
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Por motivos de espaço, só apresentaremos duas apóstrofes mais.
Ambas procedem dos lábios do Mestre. A incredulidade, a indiferença e a resistência
das cidades que haviam sido testemunhas da maior parte de sua maravilhosas obras o
fizeram exclamar: "Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! porque se em Tiro e Sidom se
tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam
arrependido com pano de saco e cinza . . . Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até o
céu? Descerás até o inferno!" (Mateus 11:21,23). Quem não compartilha a angústia do
Salvador, quando exclama: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os
que te foram enviados! quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta
os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!" (Mateus 23:37). Nestes últimos
exemplos se combinam a apóstrofe e a prosopopéia.
4.16. Antítese
Este vocábulo procede da palavra latina antithesis e esta de palavras gregas que
significam colocar uma coisa contra a outra. A Enciclopédia Brasileira Mérito nos dá a
seguinte definição: "Inclusão, na mesma frase, de duas palavras, ou dois pensamentos, que
fazem contraste um com o outro." Trata-se de uma figura de retórica muito eficaz que se
encontra em muitas partes das Escrituras. O mau e o falso servem de contraste ou fundo
que di realce ao bom e o verdadeiro.
Exemplos:
O discurso de despedida de Moisés (Deut. 27 a 33) consiste numa notável série de
contrastes ou antíteses. Note-se a que se encontra em Deut. 30:15 que diz: "Vê que
proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal." Temos aqui um contraste ou antítese
dupla. Também no versículo 19: "Os céus e a terra tomo hoje como testemunhas contra ti
que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição (duas antíteses); escolhe, pois, a
vida, para que vivas, tu e a tua descendência."
O Senhor Jesus apresenta em seu Sermão da Montanha numerosas antíteses. Note-
se a que aparece em Mateus 7:13,14: "Entrai pela porta estreita (larga é a porta e
espaçoso o caminho que conduz para a perdição e são muitos os que entram por ela)
porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos os
que acertam com ela." O Senhor Jesus estabelece contraste ou antítese entre a porta
estreita e a larga; entre o caminho estreito e o largo; entre os dois destinos, a vida e a
destruição e entre os poucos e os muitos. Temos aqui uma quádrupla antítese. Entre os
versículos 17 e 18 se contrasta a árvore má e seus maus frutos com a árvore boa e seus
bons frutos. Nos versículos 21 a 23 o Senhor efetua um contraste entre duas pessoas: uma
professa obediência à vontade divina, sem praticá-la, enquanto a outra realmente pratica a
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obediência. A seguir ilustra a diferença mediante uma extraordinária e múltipla antítese.
(Versículos 24-27.)
Nosso Senhor Jesus dá por concluído seu maravilhoso discurso escatológico
(referente às coisas finais, como a morte, o juízo e o estado futuro) nos capítulos 24 e 25
de Mateus, empregando gradação ou clímax de caráter antitético.
Em 2 Cor. 3:6-18, Paulo estabelece um contraste entre o Antigo Pacto e o Novo, entre
a Lei e o Evangelho, empregando para isso uma série notável de antíteses que podem ser
convenientemente preparadas em colunas paralelas. Em Rom. 6:23 o apóstolo Paulo
contrasta "morte" com "vida eterna" e o "salário do pecado" com o "dom gratuito de
Deus". "Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna
em Cristo Jesus nosso Senhor."
Em 2 Cor. 6:8-10 ele nos proporciona uma série de antíteses relacionadas com sua
própria experiência e nos versículos 14-16, mediante antíteses cuidadosamente
selecionadas, demonstra a loucura do cristão que se agrilhoa ao mundo. Em 1 Cor. 15:35-
38 dá por terminado seu poderoso argumento relativo à ressurreição mediante um
abundante número de antíteses, semelhante à descarga de uma metralhadora.
4.17. Clímax ou Gradação
A palavra clímax ou gradação procede do latim climax e esta do grego klimax que
significa escala, no sentido figurado da palavra. A Enciclopédia Brasileira Mérito nos
proporciona a seguinte definição da palavra gradação: "Concatenação dos elementos de
um período de modo a fazer com que cada um comece com a última palavra do anterior;
amplificação, apresentação de uma série de idéias em progressão ascendente ou
descendente. Também se diz clímax." O essencial é que exista avanço ou progresso na
oração, parágrafo, tema, livro ou discurso. A maioria dos sermões bem preparados têm
mais de uma gradação, e terminam mediante uma gradação final de caráter
extraordinário.
A gradação pode consistir em umas poucas palavras ou pode estender-se por todo o
discurso ou livro. Pode consistir em palavras soltas, preparadas de tal maneira que levem a
mente em progressão gradual ascendente, ou pode consistir em uma série de argumentos
que explodem em triunfal culminação, como o argumento incontrovertível da ressurreição
em 1 Cor., capítulo 15. O grande capitulo dá fé, Hebreus 11, d um exemplo de um longo e
poderoso clímax ou gradação.
Exemplos:
O capítulo oitavo de Romanos é um maravilhoso clímax ou gradação. Começa com os
vocábulos "nenhuma condenação", e termina dizendo que "nenhuma criatura nos poderá
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separar". Para criar este poderoso clímax ou gradação, o apóstolo emprega uma série de
gradações. Temos aqui uma delas: "Porque não recebestes o espírito de servidão para
viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros
com Cristo; se com ele sofrermos, para que também com ele sejamos glorificados"
(Versículos15-17).
Temos aqui os degraus da escala: (1) Estamos expostos ao espírito de servidão e
temor; (2) temos sido adotados; (3) ao compreender os lagos que nos unem a Deus, qual
crianças sussurramos a palavra Aba, que significa Pai, em aramaico; (4) até o Espírito dá
testemunho da verdade e realidade desta nova relação; (5) porém os filhos são herdeiros,
e também o somos nós; (6) somos herdeiros de Deus, o mais rico de todos; e (7) estamos
no mesmo pé de igualdade com Jesus, seu Filho, que é herdeiro de todas as coisas (Heb.
1:2); e se sofremos com ele, (8) também seremos glorificados com ele.
Temos em seguimento outra figura de gradação. Nos versículos 2930 notamos como
o Apóstolo ascende cúspide após cúspide: conheceu, predestinou, chamou, justificou,
glorificou. Depois de haver alcançado esta altura, poderá o Apóstolo continuar subindo?
Sim, leia os versículos 31-39. Note-se a base de nossa completa e absoluta confiança esegurança: (1) "Se Deus é por nós, quem será contra nós?" (2) Se nos deu livremente seu
Filho para que morresse por nós, como nos poderá negar a graça ou bênção de que
necessitamos? (3) Quem nos acusará, posto que é Deus quem nos justifica? (4) Quem se
atreverá a condenarnos, quando Cristo morreu para nos salvar? (5) Está agora à destra de
Deus como nosso Advogado para interceder por nós. (6) Quem nos separará do amor que
Cristo tem para conosco? Separar-nos-á por acaso (a) a tribulação, (b) angústia, (c)
perseguição, (d) fome, (e) nudez, (f) perigo, (g) ou espada? Depois de haver alcançado este
plano, o apóstolo se detém o suficiente para poder citar o Salmo 44:22, para demonstrar
que em época remota o povo escolhido sofreu o martírio por amor de Deus, insinuando
assim que estamos preparados para a mesma prova. Sim, nestes conflitos fazemos mais
que vencer. Logo, nos versículos 38 e 39 se eleva a alturas que produzem vertigens,
chegando logo a uma das gradações mais grandiosas de toda a literatura.
Recordemos também que no caso de Paulo não se tratava de um desdobramento
oratório. Tratava-se da plena confiança e profunda convicção de seu coração, e ficou
demonstrada em sua própria vida vitoriosa (2 Cor. 11:23-27) e morte (2 Tim. 4:6-8).
Notem-se também os admiráveis e eloqüentes clímax ou gradações em Isaías,
capítulos 40 e 55; também em Efésios 3:14-21. Leia-se também Filipenses 2:5-21.
Temos aqui um exemplo da arenga de Cícero dirigida contra Verres: "É um ultraje
encarcerar um cidadão romano; açoitá-lo é um crime atroz; dar-lhe morte é quase um
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parricídio; mas CRUCIFICÁ-LO, de que o qualificarei? Estas palavras lançam luz no que
respeita aos Atos 22:25-28.
O anticlímax é o contrário do clímax ou gradação e é a miúdo empregado por
escritores inexperientes. Consiste em descer do sublime ao ridículo ou colocar ao final do
escrito ou discurso as frases de menor importância.
4.18. Provérbio
Este vocábulo procede das palavras latinas pro que significa antes e verbum que quer
dizer palavra. Trata-se de um dito comum ou adágio. O provérbio tem sido definido como
uma afirmação extraordinária e paradoxal. Os Provérbios do Antigo Testamento estão
redigidos em sua maior parte em forma poética, consistentes em dois paralelismos, que
geralmente são sinônimos, antitéticos ou sintéticos. O livro dos Provérbios contam grande
variedade de Provérbios, adivinhações, enigmas e ditos obscuros. Neste último sentido da
palavra usa-se o provérbio por duas vezes consecutivas em João 16 (25,29). Em João 10:6
temos a mesma palavra grega, mas ali foi traduzida como parábola. Alguns provérbios são
parábolas abreviadas ou condensadas; outros, metáforas; outros, símiles; e outros se têm
estendido até formar alegorias.
Em sua Introdução ao livro dos Provérbios, escrito em hebreu, o Dr. T. J. Conant faz o
seguinte comentário: "A sabedoria ética e prática mais remota da maioria dos povos da
antiguidade se expressava em ditos agudos, breves, expressivos e enérgicos. Enfeixavam,
em poucas palavras, o resultado da experiência comum, ou das considerações e
observações individuais. Pensadores e observadores agudos, acostumados a generalizar os
acontecimentos experimentais e arrazoar com base em princípios básicos, expressavam o
resultado de suas investigações mediante apotegmas ou seja ditos breves e sentenciosos,
os quais comunicavam alguma instrução ou pensamento engenhoso, alguma verdade de
caráter moral ou religioso, alguma máxima relativa à prudência ou conduta, ou às regras
práticas da vida. Tudo isto era manifestado mediante termos destinados a despertar
atenção, ou estimular o espírito de investigação ou as faculdades do pensamento, e em
forma que se fixava com caracteres indeléveis na memória. Converteram-se, assim, em
elementos integrantes da forma popular de pensar, tão inseparáveis dos hábitos mentais
do povo como o próprio poder de percepção."
O propósito dos Provérbios é afirmado assim na introdução ao Livro dos Provérbios
(1:2-6): "Para aprender a sabedoria, e o ensino; para entender as palavras de inteligência;
para obter o ensino do bom proceder, a justiça, o juízo, e a eqüidade; para dar aos simples
prudência, e aos jovens conhecimento e bom siso: ouça o sábio e crespa em prudência; e o
entendido adquira habilidade para entender provérbios e parábolas, as palavras e enigmas
dos sábios."
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Exemplos:
"Médico cura-te a ti mesmo" (Lucas 4:23). Este deve ter sido um dito comum em
Nazaré. Aplicava-se a princípio, a médicos atacados de enfermidades físicas, os quais
tratavam de curar delas a outros. Jesus compreendeu que seus antigos conhecidos da
cidade de Nazaré, motivados pela incredulidade, empregariam essas palavras contra ele,
se não realizasse em Nazaré milagres tão maravilhosos como os que havia efetuado em
Cafarnaum. O Senhor respondeu aos seus pensamentos que ainda não se haviam
transformado em palavras, com outro provérbio, que constitui uma defesa própria:
"Nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra." Esta parece ser a interpretação
condensada do provérbio que diz: "Não há profeta sem honra senão na sua terra, entre os
seus parentes, e na sua casa." (Marcos 6:4; Mateus 13:57.) Jesus demonstra a verdade de
sua declaração ao referir-se à história de Elias (1 Reis capítulos 17 e 18) e de Eliseu (2 Reis,
5:1-14).
Contra os mestres apóstatas e reincidentes que semeavam a ruína naquela época, o
apóstolo Pedro emprega com grandes resultados dois fatos, que todos deviam ter
observado, condensados num provérbio, a saber: "O cão voltou ao seu próprio vômito; e: a
porca lavada voltou a revolver-se no lamaçal" (2 Pedro 2:22). A interpretação é evidente, e
não é difícil encontrar exemplos para ilustrar a verdade, mesmo em nossos dias. (Compare
Provérbios 26:11, onde a primeira parte deste duplo provérbio se aplica com respeito a um
néscio e sua necessidade.)
4.19. Advertências
1. Deve-se ter muito cuidado no que respeita à interpretação de provérbios, e em
particular, no referente àqueles que não são fáceis de entender e interpretar.
Quiçá estejam baseados em fatos e costumes que se perderam para nós.
2. Dado que os Provérbios podem ser símiles, metáforas, parábolas ou alegorias, é
bom determinar a que classe pertence o provérbio a ser interpretado. Figuras
diferentes podem combinar-se para formar um provérbio. Por exemplo, em Prov.
1:20-33, a sabedoria é personificada e se apresenta o provérbio na forma de uma
parábola com sua aplicação. Leia também Eclesiastes 9:13-18.
3. Estude o contexto, isto é, os versículos que precedem e seguem ao texto, os quais
são amiúdo a chave da interpretação, como sucede nos casos acima
mencionados.
4. Quando houverem fracassado todas as tentativas destinadas a aclarar o
significado, é melhor ficar na expectativa até que se receba mais luz sobre o
assunto.
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5. Não empregue como prova textos, provérbios ou outras Escrituras, cujo
significado não possa determinar, embora favoreçam a doutrina que você
mantém.
6. Aproveite a ajuda que proporcionam os comentaristas eruditos no estudo das
Sagradas Escrituras; eles conhecem os idiomas originais e podem proporcionar as
conclusões a que chegaram os eruditos sagrados mais famosos.
7. Acima de tudo, ore pedindo a iluminação divina.
4.20.Acróstico
A palavra acróstico procede dos vocábulos gregos que significam extremidade ou
verso. Temos vários exemplos de acrósticos no Antigo Testamento. O mais notável é o
Salmo 119, com seus 176 versos. Contam 22 estrofes, e cada uma delas corresponde a
uma letra do alfabeto hebraico. Há oito linhas duplas em cada estrofe.
Cada uma das oito linhas na primeira estrofe começa com uma palavra cuja primeira
letra é Aleph, a primeira do alfabeto hebreu. A primeira palavra de cada uma das oito
linhas duplas na segunda estrofe começa com Beth, a segunda letra do alfabeto, e assim
sucessivamente, até o fim. Canta-se em louvor da Palavra de Deus e de seu Autor. É
impossível trasladar esta característica singular do original à versão portuguesa, mas a
tradução de João Ferreira de Almeida (revista e corrigida) indica o acróstico, colocando em
ordem as letras hebraicas e seus nomes respectivos no começo das estrofes ou seções. No
idioma hebraico esta forma constitui uma verdadeira ajuda para a memória. Dado que os
salmos eram escritos para serem cantados sem livros, e posto que se aprendiam e
recitavam de memória na escola, esta disposição alfabética constituía uma grande ajuda
para aprender este capitulo, o mais longo da Bíblia.
Os Salmos 25 e 34 têm vinte e dois versículos em português, e o mesmo número de
estrofes em hebraico: uma para cada letra do alfabeto, tomadas em ordem. Nos Salmos
111 e 112, cada um dos versículos o estrofes está dividido em duas partes, seguindo a
ordem do alfabeto. Os últimos vinte e dois versículos do capítulo final dos Provérbios
começam com uma letra do abecedário hebraico, em ordem alfabética.
A maior parte das Lamentações de Jeremias estão escritas em acrósticos, e alguns
dos capítulos repetem cada uma das letras, uma ou mais vezes.
Temos aqui um modelo posterior de acróstico, em tradução livre:
Jesus, que na cruz seu sangue deu.
E a dor e o desdém por mim sofreu.
Sentenciado foi pela turba cruel Ultrajado bebeu o amargo fel
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Socorre-me e faz-me sempre fiel.
Os cristãos da primeira Igreja, como o evidenciam as catacumbas na cidade de Roma,
empregavam comumente acr6sticos nos epitáfios. Um dos símbolos favoritos e secretos de
sua fé imutável sob o fogo da perseguição era o desenho de um peixe. A palavra grega
equivalente a peixe era ichthus. O alfabeto grego consta de caracteres que nós
representamos mediante duas letras. Desta maneira th e ch são letras simples no alfabeto
grego. Ao recordar este fato, o peixe simbólico era lido da seguinte maneira:
I Iesous Jesus
Ch Christos Cristo
Th Theou de Deus
U Uios Filho
S Soter Salvador
4.21. Paradoxo
Denomina-se paradoxo a uma proposição ou declaração oposta à opinião comum; a
uma afirmação contrária a todas as aparências e à primeira vista absurda, impossível, ou
em contraposição ao sentido comum, porém que, se estudada detidamente, ou meditando
nela, tornase correta e bem fundamentada. A palavra procede do grego e chega a nós por
intermédio do latim. Está formada de dois vocábulos, para, que significa contra e doxa,
opinião ou crença. Soa ao ouvido como algo incrível, ou impossível, se não absurdo. Nosso
Salvador empregou com freqüência esta figura entre seus ouvintes, com o objetivo de
sacudi-los de sua letargia e despertar seu interesse.
Exemplos:
1. "Vede, e acautelai-vos do fermento dos fariseus e saduceus." (Mat. 16:6; Mar.
8:14-21 e Luc. 12:1.) Os discípulos pensaram que o Senhor falava do fermento do
pão, porque se haviam esquecido de levar pão consigo. Jesus lhes censurou a falta
de compreensão até que finalmente entenderam que o Senhor se referia às más
doutrinas e à hipocrisia dos fariseus e saduceus. (Mat. 16:12.)
2. "Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos." (Mat. 8:22; Luc. 9:60.) Esta
foi a extraordinária resposta que nosso Senhor deu a um dos candidatos ao
discipulado, que não compreendia o que significava seguir ao Senhor, e se
propunha primeiro sepultar seu pai. Aqueles que estão mortos no sentido
espiritual da palavra, podem assistir aos funerais dos que têm falecido no aspecto
físico. Outro desejava seguir ao Senhor Jesus, mas queria primeiro despedir-se dos
de sua casa. Nosso Senhor compreendeu que a consagração tinha algum defeito,
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igual ao primeiro caso citado, e portanto replicou por meio da parábola:
"Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de
Deus" (Lucas 9:61,62). Desta maneira o Senhor Jesus fez que as pessoas
compreendessem a importância que tinha o ser seu discípulo e o pregar o
evangelho.
3. "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?" E estendendo sua mão para seus
discípulos, disse: "Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que fizer a
vontade de meu Pai, esse é meu irmão, irmã e mãe." (Mateus 12:4650; Marcos
3:31-35; Lucas 8:19-21.) Mediante este procedimento notável nosso Senhor
inculcou a doutrina da relação espiritual mais elevada.
4. "Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e
irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Mateus
14:26). Este paradoxo constitui um hebraísmo, tal como foi explicado na página
29. Se esta declaração fosse tomada em forma literal, constituiria uma completa
contradição com outras Escrituras que nos ensinam que devemos amar a nossos
familiares. (Efésios 5:28, 29 e outras.)
5. "Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdoará; e quem perder a sua vida por
causa de mim e do evangelho, salvará." (Marcos 8:35; Mateus 16:25j Lucas 9:24.)
Mediante este paradoxo extraordinário, o Senhor faz que seus seguidores
compreendam o valor da alma, e a perda terrível que experimentam aqueles que
morrem sem esperança. Ao mesmo tempo o Mestre ensina que a melhor maneira
de empregar a vida é servindo a Deus. As páginas da história missionária estão
cheias de exemplos que ilustram o grande princípio que o Senhor Jesus enunciou
neste paradoxo. Em outro paradoxo (Marcos 9:43-48), o Senhor demonstra que é
melhor sofrer a perda de um dos membros de nosso corpo do que nos rendermos
à tentação e ficarmos perdidos para sempre.
6. "Coais o mosquito e engolis o camelo!" (Mateus 23:24). A peça mais notável de
invectiva da literatura é a lançada pelo Senhor contra os escribas e fariseus
hipócritas de seu tempo. Consiste em uma série de oito amargos presságios
pronunciados contra eles, pouco antes de sua morte (Mateus 23:13-33). O Senhor
Jesus os denomina "guias cegos" que cuidadosamente coam o mosquito, mas
engolem o camelo. O versículo precedente nos mostra as diferenças sutis que
faziam no que respeita à interpretação da lei, e quão escrupulosos eram para dar
dízimos da hortelã, do endro e do cominho que cresciam em suas hortas e logo
omitiam os assuntos mais importantes "da lei: a justiça, a misericórdia e a fé".
7. "E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do
que entrar um rico no reino dos céus." (Mateus 19:24; Marcos10:25; Lucas 18:25.)
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Este paradoxo maravilhou os discípulos, fazendo-os perguntar: "Quem pode ser
salvo?" O contexto nos proporcionará ajuda. O Senhor Jesus acabava de finalizar
sua entrevista com o jovem rico, que depois se havia afastado triste. Nessas
circunstâncias, o Senhor Jesus fez o seguinte comentárioa seus discípulos: "Um
rico dificilmente entrará no reino dos céus." Esta conversação se realizava em
idioma aramaico, a língua que o povo comum da Palestina empregava séculos
antes e depois do nascimento de Cristo. Muitos comentaristas eminentes afirmam
que os evangelhos foram no princípio escritos em dito idioma e daí traduzidos
para o grego.
O Dr. Jorge M. Lamsa explica que a palavra aramaica gamla pode significar uma corda
grossa, um camelo ou uma viga, e afirma que a palavra camelo é uma tradução errada,
primeiro do aramaico para o grego e posteriormente para outras línguas, entre elas o
português. Acrescenta o Dr. Lamsa que o que o Senhor Jesus quis dizer foi o seguinte:
"Mas eu vos digo, que trabalho mais leve é passar uma corda grossa pelo fundo de uma
agulha, que entrar um rico no reino dos céus." Estas palavras soam mais razoáveis que a
costumeira explicação, segundo a qual, depois que as portas da cidade se fechavam, o
camelo poderia passar por uma abertura muito menor na muralha, porém tinha que deixar
sua carga, e depois ajoelhar-se. Trata-se de uma formosa ilustração do que deve fazer o
jovem rico; mas surge a pergunta se isso realmente é o que o Senhor queria dizer ou não?
O versículo 26 indica que Jesus quis dizer que se tratava de uma impossibilidade. Pouco
antes o Senhor havia dito: "Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos
tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino de céus" (Mateus 18:3). Trata-
se aqui de outro paradoxo, similar ao anterior. Ambos os ditos são contrários à opinião
comum, e por esta razão se denominam paradoxos. A crença geral era que os ricos e os
que ocupavam posig6es elevadas estavam mais seguros do céu. Com respeito às riquezas,
o Dr. H. A. W. Meyer faz o seguinte comentário: "O perigo de não alcançar a salvação por
causa das riquezas não reside nestas, consideradas em si mesmas, mas na dificuldade que
tem o homem pecador de colocar essas riquezas à disposição de Deus." (1 Cor. 1:26-26.)
1. Os exemplos acima mencionados foram tomados das palavras de Jesus. Podem-
se obter outros numerosos exemplos nas Sagradas Escrituras. Temos aqui um do
apóstolo Paulo que diz: "Porque quando sou fraco, então é que sou forte." Isto é,
débil ou fraco em mim mesmo, mas poderoso ou forte no Senhor e em sua
fortaleza, tal como o estabelece com clareza o contexto. (2 Cor. 12:10; Efésios
6110).
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5 - HEBRAÍSMOS
Por hebraísmos entendemos certas expressões e maneiras peculiares do idioma
hebreu que ocorrem em nossas traduções da Bíblia, que originalmente foi escrita em
hebraico e em grego. Como já dissemos, alguns conhecimentos destes hebraísmos são
necessários para poder fazer uso devido de nossa primeira regra de interpretação.
Exemplos:
1° - Era costume entre os hebreus chamar a uma pessoa filho da coisa que de um
modo especial a caracterizava, de modo que ao pacífico e bem disposto se chamava filho
da paz; ao iluminado e entendido, filho da luz; aos desobedientes, filhos da desobediência,
etc.
(Veja-se Luc. 10:6; Efés. 2:2; 5:6 e 5:8.)
2° - As comparações eram expressas às vezes, mediante negações, como, por
exemplo, ao dizer Jesus: "Qualquer que a mim me receber, não recebe a mim, mas ao que
me enviou", o que equivale à nossa maneira de dizer: O que me recebe, não recebe tanto a
mim, quanto ao que me enviou; ou não somente a mim, mas também ao que me enviou."
Devemos interpretar da mesma maneira quando lemos: "Não procuro (somente) a minha
própria vontade, e, sim, a daquele que me enviou; trabalhai, não (só) pela comida que
perece mas pela que subiste para a vida eterna; não mentiste (somente) aos homens, mas
a Deus; não me enviou Cristo (tanto) para batizar, mas (quanto) para pregar o evangelho;
nossa luta não é contra o sangue e a carne (somente), e, sim, contra os principados . . .
contra as forças espirituais do mal", etc. (Mar. 9:37; João 5:30; 6:27; Atos 5:4; 1 Cor. 1:17;
Efésios 6:12.)
Como já dissemos em outra parte, o amar e aborrecer eram usados para expressar a
preferência de uma coisa a outra; assim é que ao ler, por exemplo: "Amei a Jacó, porém
me aborreci de Esaú", devemos compreender: preferi Jacó a Esaú. (Rom. 9:13; Deut. 21:15;
João 12:25; Luc. 14:26; Mat. 10:37).
3° - Às vezes os hebreus, apesar de se referirem tão-somente a uma pessoa ou coisa,
mencionavam várias para indicar sua existência e relação com a pessoa ou coisa a que se
referiam, como, por exemplo, ao dizer: "A arca repousou sobre as montanhas de Ararat", o
que equivale a dizer que repousou sobre um dos montes Ararat. Do mesmo modo que, ao
lermos em Mateus 24:1 que "se aproximaram dele os seus discípulos para lhe mostrar as
construções do templo", sabemos que um deles (como intérprete do sentimento dos
outros) lhe mostrou os edifícios do templo; e ao dizer (Mateus 26:8) que "indignaram-se os
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discípulos (pela perda do ungüento), dizendo: para que este desperdício?", sabemos por
João que foi um deles, a saber: Judas, que sem dúvida, expressando o pensamento dos
demais, disse; "Para que este desperdício?" Ao dizer também. Lucas que os soldados
chegaram-se a Jesus, apresentado-lhe vinagre na cruz, vimos por Mateus que foi um deles
que realizou o ato. (Gên. 8:4; Juízes 12:7; Mateus 24:1; Marcos 13:1; Lucas 23:36; Mateus
27:48.)
4° - Com freqüência usavam os hebreus o nome dos pais para denotar seus
descendentes, como, por exemplo, ao dizer-se (Gên. 9:25): "Maldito seja Canaã", em lugar
dos descendentes de Canaã (excetuandose, é claro, os justos de seus descendentes).
Muitas vezes usa-se também o nome de Jacó ou Israel para designar os israelitas, isto é, os
descendentes de Israel. (Gên. 49:7; Salmo 14:7; 1 Reis 18,17,18.)
5° - A palavra "filho" usa-se, às vezes, como em quase todos os idiomas, para designar
um descendente mais ou menos remoto. Assim é que o sacerdotes, por exemplo, se
chamam filhos de Levi; Mefibosete se chama filho de Saul, embora, em realidade fosse seu
neto; do mesmo modo Zacarias se chama filho de Ido, sendo seu pai Berequias, filho de
Ido. E assim como "filho" se usa para designar um descendente qualquer, do mesmo modo
a palavra "pai" se usa às vezes para designar um ascendente qualquer. Às vezes "irmão" se
usa também quando somente se trata de um parentesco mais ou menos próximo; assim,
por exemplo, chama-se Ló irmão de Abraão, embora em realidade fosse seu sobrinho.
(Gên 14:12-16.) Tendo presentes tais hebraísmos, desaparecem contradições aparentes.
Em 2 Reis 8:26, por exemplo, se chama a Atalia, filha de Onri, e no verso 18, filha de Acabe,
sendo em realidade filha de Acabe e neta de Onri.
Além dos hebraísmos referidos, ocorrem outras singularidades na linguagem bíblica,
certos quase-hebraísmos, que precisamos conhecer para a correta compreensão de muitos
textos. Referimo-nos ao uso peculiar de certos números, de algumas palavras que
expressam fatos realizados ou supostos e de vários nomes próprios.
Exemplos:
1° Certos números determinados usam-se às vezes em hebraico para expressar
quantidades indeterminadas.
"Dez", por exemplo, significa "vários", como também este número exato. (Gên. 31:7;
Daniel 1:20.)
"Quarenta" significa "muitos". Persépolis era chamada"a cidade das quarenta
torres", embora o numero delas fosse muito maior. Tal é, provavelmente, também o
significado em 2 Reis 8:9, onde lemos que Hazael fez um presente de 40 cargas de camelos
de bens de Damasco a Eliseu. Talvez seja este também o significado em Ezequiel 29:11-13.
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"Sete" e "setenta" se usam para expressar um número grande e completo, ainda que
indeterminado. (Prov. 26:16,25; Salmo 119:164; Lev. 26:24). É-nos ordenado perdoar até
setenta vezes sete para dar-nos a compreender que, se o irmão se arrepende, devemos
sempre perdoarlhe. Os sete demônios expulsos de Maria denotam, talvez, seu extremado
sofrimento e ao mesmo tempo sua grande maldade.
2° - Às vezes usam-se números redondos nas Escrituras para expressar quantidades
inexatas. Em Juízes 11:26 vemos, por exemplo, que se coloca o número redondo de 300
por 293. Compare-se também cap. 20:46, 35.
3° - Às vezes faz-se uso peculiar das palavras que expressam ação, dizendo-se de vez
em quando que uma pessoa faz uma coisa, quando só a declara feita; quando profetiza
que se fará, se supõe que se fará ou considera feita. Às vezes manda-se também fazer uma
coisa quando só se permite que se faça.
Em Lev. 13:13 (no original), por exemplo, diz-se que o sacerdote limpa o leproso,
quando apenas o declara limpo. Em 2 Cor. 3:6 lemos que "a letra (significando, a lei)
mata", quando na realidade só declara que o transgressor deve morrer.
Em João 4:1,2, diz-se que "Jesus" batizava mais discípulos que João, quando só
ordenava que fossem batizados, pois em seguida lemos: "(se bem que Jesus mesmo não
batizava, e, sim, os seus discípulos.)" Lemos também que Judas "adquiriu um campo com o
preço da iniqüidade", embora só fosse proveniente dele, entregando aos sacerdotes o
dinheiro com que compraram dito campo. (Atos 1:16-19; Mateus 27:4-10). Assim
compreendemos também em que sentido consta que "o Senhor endureceu o coração de
Faraó", ao mesmo tempo que lemos que Faraó mesmo endureceu seu coração; isto é, que
Deus foi causa de seu endurecimento oferecendo-lhe misericórdia com a condição de ser
obediente, porém se endureceu ele mesmo, resistindo à bondade oferecida. (Êxodo 8:15;
9:12; compare-se Rom. 9:17.)
Ao dizer o Senhor ao profeta Jeremias (1:10): "Hoje te constituo. . . para arrancares . .
. para destruíres e arruinares", etc., não o colocou Deus para executar estas coisas, mas
para profetizá-las ou proclamá-las. Neste sentido também Isaías teve de tornar "insensível
o coração deste endurece-lhes os ouvidos e fecha-lhes os olhos" (Isaías 6:10).
Como prova de que o idioma hebraico expressa em forma de mandamento positivo o
que não implica mais que uma simples permissão, e nem sequer consentimento, de fazer
uma coisa, temos em Ezequiel 20:39, onde diz o Senhor: "Ide; cada um sirva os seus ídolos
agora e mais tarde", dando-se a compreender linhas adiante que o Senhor não aprovava
tal conduta. O mesmo acontece no caso de Balaão o dizerlhe Deus: "Se aqueles homens
(os príncipes do malvado Balaque) vierem chamar-te, levanta-te, vai com eles; todavia,
farás somente o que eu te disser"; dizendo-nos o contexto que aquilo não era mais que
uma simples permissão de ir e fazer um mal que Deus absolutamente não queria que o
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profeta o fizesse. (Núm. 22:20.) Caso semelhante temos provavelmente nas palavras de
Jesus a Judas, quando lhe disse: "O que retendes fazer, faze-o depressa" (João 13:27).
4° - Na interpretação das palavras das Escrituras, é preciso ter presente também que
se faz uso mui singular dos nomes próprios, designando-se às vezes diferentes pessoas
com um mesmo nome, diferentes lugares com um mesmo nome e uma mesma pessoa
com nomes diferentes.
Pessoas diferentes designadas com um mesmo nome. Faraó, que significa regente,
era o nome comum de todos os reis do Egito desde o tempo de Abraão até à invasão dos
persas, mudando-se depois o nome de Faraó pelo de Ptolomeu. Abimeleque, que significa
meu pai e rei, parece haver sido o nome comum dos reis dos filisteus, como Agague, o dos
reis dos amalequitas e Ben-Hadade dos sírios e o de César dos imperadores romanos.
César Augusto (Lucas 2:1) que reinava ao nascer Jesus, era o segundo que levava este
nome. O César que reinava ao ser crucificado Jesus, era Tibério. O imperador para o qual
apelou Paulo e a quem tanto se chamava Augusto como César, era Nero. (Atos 25:21). Os
reis egípcios e filisteus parecem ter tido um nome próprio além do comum, como os
romanos. Assim é que lemos, por exemplo, de um Faraó Neco, do Faraó Ofra e de
Abimeleque Aquis. (Veja-se o prefácio ao Salmo 34; 1 Samuel 21:11.)
No Novo Testamento se conhecem diferentes pessoas sob o nome de Herodes.
Herodes o Grande, assim chamado na história profana, foi quem, sendo já velho, matou as
crianças em Belém. Morto este, a metade de seu reino, Judéia e Samaria inclusive, foi dada
a seu filho Arquelau; a maior parte da Galiléia, a seu filho Herodes o Tetrarca, o rei (Lucas
3:1; Mateus 2:22); e outras partes da Síria e Galiléia a seu terceiro filho Filipe Herodes. Foi
Herodes o Tetrarca quem decapitou a João Batista e zombara de Jesus em sua paixão.
Ainda outro rei Herodes, a saber, o neto do cruel Herodes o Grande, matou ao apóstolo
Tiago, morrendo depois abandonado em Cesaréia. Foi diante do filho deste assassino de
Tiago, chamado Herodes Agripa, que Festo fez Paulo comparecer. O caráter deste rei era
muito diferente do de seu pai, e não confundi-los é de importância para a correta
compreensão da História. Levi em Marcos 2:14 é o mesmo que Mateus. Tomé e Dídimo
são uma mesma pessoa. Tadeu, Lebeu e Judas são os diferentes nomes do apóstolo Judas.
Natanael e Bartolomeu são também os nomes de uma mesma pessoa.
Lugares diferentes designados com um mesmo nome. Duas cidades chamam-se
Cesaréia, a saber Cesaréia de Filipe, na Galiléia, e Cesaréia situada na costa do
Mediterrâneo. A esta última, porto de mar e ponto de partida para os viajantes, que saíam
da Judéia para Roma, refere-se constantemente o livro dos Atos.
Também se mencionam duas Antioquias: a da Síria, onde Paulo e Barnabé iniciaram
seus trabalhos e onde os discípulos pela primeira vez foram chamados de cristãos; e a da
Pisídia, à qual se faz referência em Atos 13:14 e em 2 Tim. 3:11.
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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Também há vários lugares chamados Mispa no Antigo Testamento como o de
Galeede, de Moabe, o de Gibeá e o de Judá. (Gên. 31:47-49; 1 Sam. 22:3; 7:11; Josué
15:38).
Um mesmo nome que designa a uma pessoa e a um lugar. Magogue, por exemplo, é
o nome de um filho de Jafé, sendo também o nome do país ocupado pela gente chamada
Gogue, provavelmente os antigos citas, hoje chamados tártaros (Ezeq. 38; Apoc. 20:8), dos
quais descendem os turcos.
Uma mesma pessoa e um mesmo lugar, com nomes diferentes. Horebe e Sinai são
nomes de diferentes picos de uma mesma montanha, Porém às vezes um ou outro destes
nomes designa a montanha inteira.
O lago de Genesaré chamava-se antigamente Mar de Cinerete, depois Mar da Galiléia
ou Mar de Tiberíades. (Mateus 4:18; João 21:1.) A Abissínia moderna se chama Etiópia e às
vezes Cuxe, designando este último nome, sem dúvida, a maioria das vezes, Arábia ou
Índia, Grécia chama-se tanto Javã como Grécia. (Isaías 66:19; Zac. 9:13; Dan. 8:21.) Egito
chama-se às vezes, Cão, outras Raabe. (Salmo 78:51;Isaías 51:9.) O Mar Morto se chama
às vezes Mar da Planície, por ocupar a planície onde estavam as cidades de Sodoma e
Gomorra; Mar do Este, em função de sua posição para o Leste, contando desde Jerusalém,
e ainda Mar Salgado. (2 Reis 14:25; Gên. 14:3; Josué 12:3).
O Nilo chama-se Sibor, porém com mais freqüência o Rio, cujos nomes também às
vezes designam outros rios.
O Mediterrâneo se chama às vezes o Mar dos Filisteus, que viviam em suas costas;
outras, Mar Ocidental; outras, e com mais freqüência, Mar Grande. (Êxodo 23:31; Deut.
11:24; Num. 34:6,7).
A Terra Santa chama-se Canaã, Terra de Israel, Terra de Judéia, Palestina, Terra dos
Pastores e Terra Prometida. (Êxodo15:15; 1 Sam. 13:19; Hebr. 11:9.)
Um cuidadoso conhecimento do referido uso peculiar dos nomes próprios não só
favorece a correta compreensão das Escrituras em geral, como faz desaparecer virias
contradições que a ignorância encontra em diferentes passagens bíblicas.
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6 - PARTES BÁSICAS DA HERMENÊUTICA
BÍBLICA
O estudo da Hermenêutica requer um adequado conhecimento de seus elementos
fundamentais. São esses elementos que comporão cada etapa do processo de
interpretação e aplicação do texto em estudo. Conforme apresentado na Introdução do
presente trabalho, são três as partes básicas da Hermenêutica, voltadas para o sentido do
texto: A Noemática ( do grego noema, "pensamento, sentido" ) aponta o sentido presente
no texto; a Heurística ( do grego eurisko, "achar, encontrar") estuda as ferramentas
utilizadas para se determinar o sentido do texto; e a Proforística ( do grego profero,
"mostrar, expor" ) trabalha com o modo, a maneira, de expor os sentidos contidos na
Bíblia.
6.1. Noemática
Para a compreensão deste elemento, é imprescindível o entendimento do conceito
de SENTIDO, bem como a sua distinção de SIGNIFICADO: enquanto este é o que uma
palavra, em seu valor denotativo, pode significar, aquele é o significado que a palavra
recebe pelo influxo do autor ou mesmo até do intérprete. Segundo Georges Mounin,
citado por Fernando Castin, 38 o sentido é o valor preciso que um significado adquire num
contexto. Pierre Guiraud, também citado por Castin no mesmo texto, defende a dinâmica
das relações da palavra com as outras palavras do contexto. Tais relações são
determinadas pela estrutura do sistema lingüístico, o que equivale a dizer que palavras
isoladas não possuem sentido mas significado, somente adquirindo sentido dentro de um
determinado contexto. Um exemplo disto pode ser visto no provérbio "Quem tem boca vai
a Roma ". O significado das palavras isoladas nos traz uma frase sem nexo, mas o valor que
cada palavra adquire na frase nos levará a um sentido, qual seja: podemos ir a qualquer
lugar desconhecido e longínquo desde que estejamos dispostos a pedir orientação ou a
perguntar.
Entrando no campo bíblico, chegamos à histórica questão hermenêutica da busca do
sentido original do texto, o que deu origem às célebres controvérsias entre interpretação
alegórica e literal, e às mais variadas propostas quanto à multiplicidade dos sentidos do
texto bíblico: sentidos anagógico, tropológico, escatológico, etc. Uma das tendências
hermenêuticas é achar que só existe na Bíblia um único sentido, o literal, seja ele próprio
ou metafórico. Por sentido literal entende-se aquele sentido do domínio direto e
consciente do autor em seu momento histórico. É aquilo que ele intenta dizer
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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independente da forma ( estilo, gênero, etc. ); por exemplo: O cordeiro pascal em Ex. 12:3
e em Jo. 1:29 deve ser entendido em sentido literal; em ambos os casos, a palavra cordeiro
tem um só significado ( o animal sacrificado no rito de expiação ) e um só sentido, embora
próprio no primeiro caso e metafórico no segundo. Como fundamento, admite-se que se
Deus fala aos homens através da Escritura, Ele o faz através de homens que, por sua vez,
não escreveram para não dizer nada, mas possuem uma intenção através das palavras que
usam.
Entretanto, outros teólogos defendem, ao lado deste, um outro sentido literal
chamado de pleno, também conhecido como sensus plenior. Compreende-se aqui que
Deus coloca uma consistência mais profunda no conteúdo expresso pelo autor, ainda que
seu pensamento se limite ao seu momento histórico, pois o sentido pleno está fora do seu
alcance intelectivo ou visual. O sensus plenior não é, portanto, do domínio do autor.
Algumas das profecias messiânicas encontradas em Isaías e em Malaquias são
interpretadas a partir do sensus plenior, cujas características gerais são as seguintes:
Está incluído na letra do texto, apesar de ser desconhecido do escritor;
É da alçada divina e de sua intenção;
Só pode ser descoberto à luz de uma revelação ou ensinamento posterior;
É homogêneo em seu conteúdo.
Manuel de Tuya e Jose Salguero apresentam um exemplo de homogeneidade do
sentido pleno: Em Sl. 2:7 a expressão "Tu és meu filho; hoje te gerei" tem relação com a
entronização do messias vetero-testamentário. Entretanto, o sentido pleno do texto
encontra-se centrado na pessoa de Jesus Cristo em três textos do NT, nos quais os sentidos
são polivalentes e divergentes (quanto ao significado), embora homogêneos no sentido:
Em At. 13:33, alude-se à ressurreição de Cristo; em Hb. 1:5 à divindade de Cristo e em Hb.
5:5 à sua posição de superioridade em relação ao modelo humano representado pelo
sumo-sacerdote.
Outra tendência é indicar, além do sentido literal, o sentido "típico" das Escrituras. O
tipo é uma espécie de metáfora que não consiste meramente em palavras mas em atos,
pessoas ou objetos que designam semelhantes atos, pessoas ou objetos no porvir,
apontando, portanto, para uma realidade futura. Foi bastante enfatizado pelos pais
apostólicos. De acordo com Tuya e Salguero são necessárias para a configuração do
sentido típico, as seguintes características:
Uma realidade histórica ou literária. O fundamento do tipo possui uma realidade
histórica anterior, independente do próprio tipo, realidade essa que, utilizada por
Deus, vem a significar outra coisa. Por exemplo, a serpente levantada no deserto
(Nm.21:9 e Jo. 3:14 ). Do ponto de vista literário aparece um texto curioso que,
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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contrariando o padrão judaico de narrativa sobre um personagem histórico no
qual o personagem é sempre identificado pela sua genealogia, apresenta
Melquisedeque apenas como "rei de Salém” e sacerdote do Deus altíssimo "(Gn.
14:18). Por conta disto, o NT o apresenta como "tipo" do sacerdócio eterno de
Cristo (Hb. 7:3) pois se "assemelha" (do grego afomoiomenos) ao Filho de Deus. É
natural que Melquisedeque tivesse pai e mãe pois foi sacerdote e rei, entretanto o
texto omite essa informação. Por isso a relação de um texto com o outro torna-se
espiritual.
A partir desta idéia, se requer uma semelhança entre o tipo e o antítipo. O tipo
deve ser uma imagem sensível e menos perfeita que a realidade espiritual que
ilustra, o que significa dizer que existe uma relação de proporção e análoga entre
eles.Esta analogia não significa que deve haver uma adequação entre o tipo e o
antítipo em todas as suas partes. Um só aspecto dessa relação basta para
caracterizar esta tipologia (comparar Ex. 12:46 com Nm. 9:12 e Jo. 19:33-36 ).
A mais importante característica do tipo está no fato de que a realidade que ele
representa vem da sobrenatural escolha de Deus. O escritor não tem como ou por
que saber se o que ele escreve é usado por Deus para representar outra realidade
no futuro.
Em suma, o sentido literal não significa necessariamente literalismo (leitura ao pé da
letra) mas aquilo que o autor quis efetivamente dizer, usando para isto palavras no seu
sentido denotativo ou de forma retórica, lançando mão das figuras de linguagem, numa
espécie de "sentido literal-figurado". Por isso torna-se importante o conhecimento dos
tipos mais freqüentes de figuras de linguagem existentes no texto bíblico:
Metáfora ("levar mais além") - é uma figura comparativa na qual um objeto é
assemelhado a outro, afirmando ser o outro ou falando de si como se fosse o
outro, ressaltando assim suas qualidades ou características ( Is. 40:6; Sl. 18:2; Mt.
5:13; Lc. 13:32; Jo. 6:48; Jo. 10:7 e 9; Jo. 10:11 e 14 ). São considerados como tipos
secundários de metáforas os antropomorfismos e os antropopatismos. Nos
primeiros atribui-se a Deus formas humanas e atividades físicas ( Sl. 33:18; Sl.
34:16; Tg. 5:4 ); nos últimos atribui-se a Deus sentimentos e paixões humanas (Gn.
6:6; Dt. 13:17; Ef. 4:30).
Símile - é uma figura comparativa na qual um objeto é assemelhado a outro,
existindo aí a cláusula comparativa ( "como", "tal qual", "assim como", "tal como").
Na metáfora a comparação está implícita e na símile, explícita. Assim, em I Pd. 1:24
temos uma símile e em Is. 40:6 uma metáfora. Outros exemplos de símile podem
ser encontrados em Lc. 10:3 e Sl. 1:3-4.
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Metonímia (metonomazo - "denominar de outra maneira") - emprega-se esta
figura quando a causa é tomada pelo efeito ou vice-versa, ou o símbolo pela
realidade que ele indica. Baseia-se numa relação mental. Por exemplo, em Lc.
16:29 o termo "Moisés e os profetas" significa o conjunto de textos do AT; em I Co.
10:21 o termo "cálice do Senhor" refere-se ao conteúdo do cálice mas não ao
cálice em si mesmo; em At. 7:8 a circuncisão é chamada de concerto porque é um
sinal do concerto; em I Jo. 1:7 a palavra "sangue" indica toda a paixão e morte
expiatória.
Sinédoque ("receber juntamente") - é a substituição da parte pelo todo ou
do todo pela parte. Assemelha-se à metonímia mas a relação em que se encontra
é mais física que mental. Por exemplo, em Lc. 2:1 "todo o mundo..." se refere
apenas à parte do mundo que César Augusto governava, ou seja, o Império
Romano; em Pv. 1:16 a sentença "os seus pés correm para o mal" não significa que
apenas os pés deles correm para o mal mas eles mesmos. Os pés são a parte que
representa o todo – “eles”. Outros textos: Rm. 1:16; 16:3-4.
Prosopopéia - usa-se esta figura quando se personificam as coisas inanimadas
atribuindo-lhes ações de pessoas. Exemplos: Sl. 85:10-11; Is. 35:1; I Co. 15:55; Tg.
5:4; I Pd. 2:8.
Eufemismo - consiste na substituição de uma expressão desagradável, pesada ou
injuriosa por outra inócua ou suave. A Bíblia fala da morte dos cristãos como um
adormecimento (Ex.1:5, Is.6:2b, Ez.16:26, At. 7:60 e I Ts. 4:13-15). Eufemismos
podem também ocorrer nas traduções e não apenas no texto original (o termo
esterco – “peresh” traduzido por “imundície” em Ml.2:3)
Hipérbole (hiperballos - "sobrepor, colocar acima") - apresenta uma coisa
grandemente aumentada ou grandemente diminuída do seu tamanho real para
apresentá-la viva à imaginação ( I Samuel 18:7; Sl. 6:6; Sl. 119:136; Miquéias 6:7;
Mt. 23:24; Mc. 10:25; Lc. 6:42; Jo. 21:25 ). Algumas vezes quando a hipérbole
reduz demasiadamente ou deprecia, como em Nm. 13:33 e I Co. 15:9, recebe o
nome "lilote".
Ironia (do grego eironeia - "simulação") - faz-se uso da ironia quando se expressa o
contrário do que se quer dizer mas sempre de tal modo que se faz ressaltar o
sentido verdadeiro. A ironia é uma maneira de ridicularizar indiretamente sob a
forma de elogio. Com freqüência vem marcada pelo tom de voz de quem fala, o
que torna difícil, às vezes, distinguir uma ironia num texto a não ser que o contexto
ajude. Exemplos: II Sm. 6:20; I Rs. 18:27; Jó 12:2; Am. 4:4-5; II Co. 11:5.
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Pleonasmo - consiste na repetição de palavras ou no acréscimo de palavras
semelhantes que em nossa língua parecem redundantes. Exemplos: Jó 42:5; Mt.
2:10; At. 2:30 ).
Paradoxo - é uma afirmação aparentemente absurda e contrária ao bom senso.
Caracteriza-se pela união de duas idéias opostas numa mesma sentença de forma
proposital. Por isso não é o mesmo que contradição. Exemplo: Mc. 8:35.
Paronomásia - Consiste no emprego das mesmas palavras ou de palavras de sons
semelhantes para produzir sentidos diferentes. Às vezes é chamada de “jogo de
palavras” ou “trocadilho”. Ex. Mt. 8:22; É muito bonita quando aparece na língua
original. Por exemplo, Isaías utilizou palavras de sons parecidos para produzir um
impacto verbal nos ouvintes ou leitores de Is. 5:7. Nesse texto, o Senhor buscava
“juízo”.
Além do conhecimento das figuras de linguagem, torna-se igualmente importante o
estudo dos diferentes gêneros literários e de sua utilização no texto das escrituras. Por
gêneros literários entende-se o modo de expor por escrito um pensamento. Em geral,
estão ligados a grupos de textos maiores, sejam orações ou unidades distintas. O
pressuposto que fundamenta o estudo dos gêneros literários é a concepção de que o autor
se expressa dentro das categorias literárias que lhe sejam comuns, familiares e adequadas
ao seu propósito. Quando se estuda a cultura de um povo percebe-se que quando ele tem
algo a dizer sobre si mesmo e sobre os seus dramas ele o faz sempre dentro de formas
próprias nas quais possa entender-se e ser entendido. Existe melhor forma de entender o
drama do homem nordestino senão pela literatura de cordel? Assim também o drama
teológico do homem bíblico, expresso dentro de várias formas (aqui uma contribuição da
crítica das formas) e gêneros literários. Entretanto, persiste a tentativa de tentar "salvar" o
texto bíblico desses gêneros com o objetivo de perpetuar determinadas posturas
teológicas ou de proteger aquilo que se pretende por "Palavra de Deus", sempre na ótica
de grupos ou pessoas que demonstram ter o monopólio da verdade unívoca.
Os gêneros literários são mais caracterizados na forma de orações e textos maiores,
entretanto há alguns que os classificam também em unidades menores, quer sejam
palavras ou frases. Este último estudo foi feito no item anterior, o qual trata das figuras de
linguagem ou de retórica. No que diz respeito às unidades maiores, os principais gêneros
literários são os seguintes:
Parábola (do grego parabállein - "colocar junto, confrontar") - É um tipo de história
criada a partir de uma montagem feita pelo autor com base em fatos fictícios em um
cenário extraído da vida real, sempre com o objetivo de ilustrar uma verdade moral ou
espiritual, utilizando como recurso principal a comparação , às vezes implícita no texto,
outras vezes explícita ( a cláusula "O reino dos céus é semelhante ..."). Devido ao fato da
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parábola estar montada sempre na égide da verdade central, deve-se tomar bastante
cuidado ao usar os detalhes que compõem a história para criar doutrinas e ensinamentos,
quer seja através da alegorização, quer seja pela comparação direta (O local onde estavam
o rico e Lázaro é o mesmo Sheol do AT ou o mesmo inferno e céu do NT ? - Lc.16:19 ss ).
Alegoria (do grego Allos-agoreúo - "dizer outra coisa" ) - Consiste em um conjunto
de várias metáforas ou uma metáfora continuada numa narrativa em que as
expressões adquirem sentido figurado sempre por intenção do autor. Muitas vezes
confunde-se a Parábola com a Alegoria. Na Parábola, o autor mostra-se
interessado em comparar ou assemelhar de forma clara e explícita (símile
ampliado), enquanto que na Alegoria, o sentido ao qual quer se referir o autor está
implícito, residente nos elementos que usa de forma figurada (metáfora ampliada).
Uma segunda distinção é que enquanto a Parábola possui geralmente um só
elemento principal de comparação, a Alegoria contém vários (Vide Sl. 80:8-16); em
terceiro lugar, enquanto a Parábola apresenta um evento factível, na Alegoria não
há essa caracterização . Outros textos: Ezequiel 17:1-10; Is. 5:1 ss; Mt. 3:12; 23:4;
Fábula - É uma narrativa que se caracteriza principalmente pela atribuição de
qualidades humanas a seres irracionais ou mesmo inanimados. Há sempre na
Fábula a preocupação com a emissão de um juízo de valor ou de um ensinamento
moral. Exemplos: Dt. 9:8-15; II Rs. 14:9; II Cr. 25:18. No que diz respeito ao estudo
de unidades de texto ainda maiores, alguns textos formando livros inteiros,
observa-se a existência de diversos gêneros literários, dos quais pode-se relacionar
os mais freqüentes:
Jurídico ou Nomístico - Associado a uma boa parte dos cinco primeiros livros da
Bíblia. Esses textos compreendem dois tipos de leis: apodíticas e casuísticas. Nas
leis apodíticas, os mandamentos são iniciados com uma cláusula proibitiva - a
palavra não - como acontece no Decálogo (Ex. 20:3-17). Nas sentenças casuísticas,
as leis são apresentadas por uma condição que origina determinada situação. São
leis dadas para situações específicas (Lv. 20:9-18, 21; Dt. 15:7-17).
Narrativo - Neste gênero, tem-se uma espécie de história, cuja idéia não é mesma
da maneira de se fazer história própria do historiador moderno, o qual trabalha a
partir de uma visão científica. Na narrativa bíblica a história é contada com o
intuito de transmitir uma mensagem, uma teologia. Por exemplo, um leitor
desavisado crerá que I e II Crônicas são uma cópia idêntica do texto de II Samuel,
principalmente no que diz respeito à vida de Davi. Ora, lendo os capítulos 11 a 21
de II Samuel tem-se um claro sentido de que ao relatar as falhas de Davi, o autor
queria ilustrar o fato de que o pecado produz conseqüências devastadoras,
combinando com a mensagem dos livros de Deuteronômio e I e II Reis, os quais
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foram produzidos num ambiente de culpa dos exilados na Babilônia quando se via
na infidelidade espiritual do povo a causa principal da catástrofe de 586 a.C.
Entretanto, I e II Crônicas omitem os pecados de Davi, dando ênfase ao seu fulgor
real, aos sacerdotes e ao templo. Essas obras se encaixam perfeitamente numa
época de restauração física e espiritual dos judeus, no retorno do cativeiro
babilônico, quando o povo se queixava da perda de seus símbolos nacionais,
conforme está implícito em Ag. 2:3. I e II Crônicas encorajam o povo a manter-se
na fidelidade ao Senhor, na promessa de que a linhagem de Davi e o templo
seriam preservados.
Existem vários tipos de narrativas, dentre as quais se destacam: Epopéia, Épico,
Etiologia e Tragédia. Na Epopéia aparece a narrativa sobre os feitos e a vida de um herói
nacional ou protagonista, uma pessoa que por vezes torna-se padrão para os outros como
por exemplo, Abraão, Gideão e Davi. No gênero épico aparecem as narrativas contendo
uma série de episódios centralizados numa pessoa ou num grupo de pessoas com façanhas
militares e eventos de milagres. Um bom exemplo é o período de peregrinação dos
israelitas no deserto e a conquista de Canaã. A Etiologia é uma narrativa cujo propósito é o
de justificar uma realidade a partir de causas encontradas em tradições orais bem antigas.
Para justificar o domínio sobre os cananeus, os israelitas incluíram em sua narrativa das
origens o episódio da nudez de Noé e da maldição imposta a Cam e sua descendência,
conforme Gn.9:22-27. Existem etiologias ligadas ao culto para explicar a importância de
lugares sagrados. Já a Tragédia é a história da decadência de um indivíduo, do apogeu ao
desastre (Sansão, Saul e Salomão).
Poético - Não se pode limitar a poesia hebraica apenas aos livros de Jó, Salmos,
Provérbios, Eclesiastes e
Cânticos. Há poesia no Pentatêuco e também nos livros proféticos. Na poesia
ocidental existe a força da métrica e da rima; na poesia oriental repetição e ritmo
se unem para tornar uma passagem duplamente memorável. A esta característica
dá-se o nome de Paralelismo, muito comum no livro de Provérbios. Observa-se no
texto bíblico vários tipos de Paralelismo dentre os quais destacam-se o sinônimo, o
antitético e o sintético. No Paralelismo sinônimo duas sentenças repetem com
palavras diferentes uma mesma idéia na mesma ênfase e sentido (Pv. 5:1); no
Paralelismo antitético, a segunda sentença apresenta uma declaração oposta à
primeira, mas sempre numa relação dimetral (Pv. 10:1); no Paralelismo sintético,
uma segunda ou terceira sentença complementam a idéia da primeira, levando-a
adiante sem repeti-la com palavras diferentes (Sl. 27:1; 1:3; 103:1).
Apocalíptico - Carregado de simbolismos, imagens, visões e revelações, este tipo
de literatura aparecia com mais freqüência em momentos de grande perseguição
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contra judeus ou cristãos. Nele percebe-se um estado de tensão entre justos e
ímpios, reino de Deus e reino dos homens, com resultados de recompensa para
ambos. No AT aparece nos livros de Daniel e Zacarias e no NT, no Apocalipse de
João. Entretanto, no período intertestamentário, houve uma proliferação deste
tipo de literatura aparecendo livros tais como o de Henoc e outros considerados
pseudepígrafos. A literatura apocalíptica, muito mais que previsões, contém
verdadeiros tratados de fé com o objetivo de confortar os fiéis perseguidos e
exortá-los a permanecerem firmes. Em síntese, o apocalipse é um documento da
resistência dos fiéis.
Sapiencial - Alguns podem confundir poesia com sabedoria. Toda literatura
sapiencial tem caráter poético, mas nem todo texto poético pertence à literatura
sapiencial. Pode-se encontrar um tipo de sabedoria dos simples, a sabedoria
cotidiana (Provérbios); uma sabedoria que reflete a crise da idéia de Deus (Jó) ;
uma sabedoria que reflete a crise na própria sabedoria (Eclesiastes). Muito mais do
que os profetas, os sábios incomodaram as estruturas religiosas do seu tempo e
até hoje incomodam àqueles que realizam uma leitura moralista do AT.
Evangelhos (do grego euangellion - "boa notícia") - Essas narrativas não podem ser
consideradas simplesmente como uma biografia de Jesus e, por isso, históricas sob
o ponto de vista estrito da palavra "história". Isso fica evidente na conclusão do
Evangelho de João (21:25). Aqui o verdadeiro Jesus é o Cristo, Filho de Deus. Os
evangelhos contêm algum material biográfico sobre Jesus, mas apresentam muito
mais o que ele significou para a comunidade que guardouas suas palavras e o
conteúdo de doutrina que dele ficou (Lc. 1:1-4). Representam, na verdade, a
pregação sobre Jesus Cristo encarnada na atividade da Igreja primitiva, com ações
de louvor.
Epistolar - Esse tipo de literatura era muito comum no império romano e tornou-se
depois útil dentro dos objetivos canônicos. Uma epístola não é simplesmente uma
carta, que é mais curta em seu conteúdo e tem um caráter pessoal. Numa epístola,
existe uma variedade de temas, abordados de maneira sistemática, na forma de
uma circular dirigida a várias comunidades. A epístola aos Gálatas por exemplo, é
dirigida não apenas a uma comunidade mas às igrejas da Galácia. Entretanto, a
prática de algumas igrejas de usarem coletivamente cartas menores dirigidas a
indivíduos (Por exemplo, a carta de Paulo a Filemom, lida e conservada pela igreja
de Colossos) fez desaparecer essa distinção entre carta e epístola, principalmente
em virtude da autoridade crescente do apóstolo Paulo sobre essas comunidades.
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6.2. Heurística
De acordo com que o próprio termo sugere, a tarefa da Hermenêutica é "encontrar"
os sentidos do texto bíblico, mediante procedimentos científicos. Um deles é o da
investigação, o qual desembocará na exegese. Diante do texto, o investigador defronta-se
com várias questões. É como se o exegeta estivesse perguntando ao texto. As questões
que mais se destacam diante do pesquisador são as seguintes:
A. Crítica Textual - O que há de mais original no texto? O texto atual é resultado de
um desenvolvimento redacional? As variantes encontradas são acidentais ou substanciais?
41
B. Autoria do livro - Através do estilo literário e do conteúdo do livro, coletam-se
dados que podem conduzir ao autor do livro (ou autores), seu meio ambiente, sua família,
tendências teológicas, sua profissão, sua cultura. São notáveis a diferenças entre o
linguajar poético do autor do livro de Jó, o estilo rústico e agressivo de Amós e Jeremias, e
linguagem elegante do livro do Profeta Isaías.
C. Época e finalidade do livro - O que estava acontecendo por ocasião da escrita do
livro ? Há uma íntima relação entre a ocasião e a finalidade de um texto pois não há texto
sem propósito. O que pode acusar a época e a finalidade do livro está dentro do próprio
texto. A partir da insistência do uso de alguns termos, mesmo que não seja uma indicação
explícita da intenção do autor, pode-se perceber uma finalidade que, por sua vez, indica
um drama de época. Por exemplo, as várias referências à Lei, aos "rudimentos do mundo"
e à escravidão que a Lei provoca , revelam em Gálatas uma clara intenção de resolver os
problemas e estragos causados pela infiltração de judaizantes na igreja primitiva. Outras
vezes o autor indica de forma clara e explícita a sua finalidade ao escrever o livro, como em
Pv.1: 1-6, Lc.1:1-4 e Jo. 20:30-31.
D. Condições ambientais do autor - O autor é filho de seu tempo e do ambiente em
que vive. Expressa-se numa mentalidade correspondente a si e aos seus leitores. Por sua
vez, essa mentalidade reproduz determinadas condições ambientais, que podem ser de
natureza cultural, físico-geográfica e histórica. Do ponto de vista cultural, por exemplo, é
imprescindível o estudo da língua e do estilo literário para uma correta interpretação do
pensamento do autor. Cada língua tem sua própria dinâmica e seus próprios idiomatismos.
Outro instrumento importante é o estudo das religiões comparadas. Uma das
contribuições desse estudo é a separação entre aquilo que é teológico e aquilo que é
cultural dentro de um ponto de vista global. Como exemplo de determinantes físico-
geográficos existe a caracterização da Palestina como uma terra seca e estéril, onde a água
e a fertilidade eram uma necessidade constante. A relação entre o homem e a terra passa
de geográfica para religiosa. O livro de Gênesis descreve enfaticamente essa relação nos
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seus primeiros capítulos para falar do pecado das origens com a divinização dos elementos
naturais, o que constitui uma reação da religião de Israel contra as propostas da religião
agrária dos cananeus.
6.3. Proforística
A Proforística é a terceira parte básica da Hermenêutica e de acordo com o
significado do nome no grego ( mostrar, expor, levar adiante ), sua finalidade é a de expor
a Bíblia. Como se expõe as Escrituras? Algumas das formas mais comuns são as seguintes:
A. Versões - Pode parecer estranho que uma tradução da Bíblia seja uma exposição
da mesma. A versão se apresenta como uma tradução bem feita, talvez a melhor. Muitas
vezes, entretanto, está a serviço de uma determinada tendência hermenêutica. Já foi visto
no primeiro capítulo como a Septuaginta e os Targumim fizeram esse papel. Um outro
exemplo muito interessante, mais para dentro do nosso tempo é o Salmo 116:15 onde a
palavra "preciosa" pode sugerir um real interesse de Deus pela morte do fiel, quando no
original indica mais um alto custo ou uma tristeza de Deus por estar agora "perdendo" o
contato com o fiel pela sua morte (conforme doutrina do Sheol no AT). Aqui, um real
interesse em ligar o Salmo à expectativa cristã da ressurreição e do encontro com Cristo
após a morte do fiel, não existente no texto original. Outro bom exemplo é a tradução da
palavra hebraica “ ‘al’mah” – mulher jovem, moça em Is.7.14 por virgem que em hebraico
é “na’arah”. Menciono ainda um arranjo na numeração de versículos separadas por
unidades vistas em alguns textos como por exemplo em Ef.5.21-22. Como exercício,
observe as diferenças deste texto nas versões NVI, ALMEIDA, NTLH, BJ e outras.
Muitas vezes o pesquisador percebe que o texto foi modificado substancialmente em
função de acréscimos ou de retiradas ou modificações feitas no decorrer da história. Const
ata isto geralmente quando possui duas ou mais cópi as de manuscritos do mesmo texto.
Geralmente aí vê-se uma série de interesses de ordem teológica ou particular. Entretanto,
muitas varia ntes ocorrem devido a acidentes, ou seja, falhas de copistas quando da
ocasião de trans crição de textos de um manuscrito antigo para outro novo.
B. Comentários - É uma forma sistemática de estudo e de exposição de um livro
bíblico ou de parte dele. Aí se lança mão de vários recursos, alguns deles já expostos no
estudo sobre Noemática e Heurística. Os comentários representam posições teológicas de
pessoas ou escolas de estudos bíblicos das mais diversas tendências hermenêuticas. Cada
vez mais instituições procuram um maior aprofundamento, principalmente nas questões
lingüísticas-históricas visando a uma interpretação mais próxima do sentido do texto.
Outras formas de comentários são as chamadas notas de rodapé constantes em bíblias
especiais ou bíblias de estudo. Percebe-se, por exemplo, na Bíblia de Scofield, uma
inclinação tendenciosa em suas notas (em Daniel, Ezequiel, Mateus e Apocalipse, entre
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outros) para a defesa de uma escatologia de tendência dispensacionalista, futurista e pré-
milenista. Um outro exemplo interessante é a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, um
dos mais importantes textos surgidos nas últimas décadas, para o texto de Mt. 1:25, no
qual se percebe uma determinante dogmática sobre a interpretação do mesmo.
C. Teologia Bíblica - Alguns acham que a teologia bíblica não é uma interpretação em
si, mas o resultado da interpretação.Entretanto isso pode ser questionável, pois "fazer
Teologia" significa também interpretar. Aquilo que se chama de forma analítica da teologia
bíblica é o caminhar histórico e evolutivo da exposição da temática religiosa e bíblica,
separando a Teologia bíblica em partes e unidades distintas e independentes. Assim, os
escritores são vistos como intérpretes e teólogos ao mesmo tempo. Outra forma de
teologia segue o método lógico, o qual está relacionado com os sistemas nos quais a
Teologia é apresentada, existindo assim o chamado elemento doutrinário ou dogmático.
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AULA
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7 - DESAFIOS DA HERMENÊUTICA PARA
OS NOSSOS DIAS
Para Augusto Nicodemus um dos desafios atuais da Hermenêutica é saber até que
ponto as ferramentas do método histórico-crítico podem ser úteis na interpretação do
texto sagrado visto que utilizam pressupostos por vezes antagônicos à convicção de que a
Bíblia é a Palavra de Deus. Um desses exemplos e a busca pelo Jesus histórico. A leitura dos
evangelhos dentro dessa ótica sem a tradicional roupagem moralista geralmente atribuída
a Jesus, tira muitos mitos sobre o Cristo-homem e, de uma certa forma, deixa para trás o
dogma e a Teologia Sistemática. Nessa abordagem se conhece o Cristo que desafiou
estruturas familiares e sociais : ele rejeita o casamento, deixa sua família e sai pelo mundo
reunindo pessoas que escolhe como seus familiares; o Cristo amigo do povo, dos excluídos
e dos bem-de-vida: seus amigos são cobradores de impostos (inimigos dos judeus),
homens ricos, pescadores, beberrões e prostitutas; o Cristo nada "religioso", ou seja, que
desafia estruturas da religião constituída : ele cura e desafia o monopólio da religião
dominada pelos sacerdotes e pelos escribas. É o Cristo do sorriso que afaga crianças e as
toma em seus braços; mas também é o Cristo aborrecido que expulsa cambistas do
templo. Esse Cristo é Senhor. Como conciliar essas tendências e como aplicá-las hoje,
construindo pontes de relação entre a situação enfrentada por Jesus e a situação que ora
enfrentamos? Poder-se-ia aqui traçar algumas linhas de tratamento para o problema:
Com grande probabilidade, pode-se encontrar tanto no método histórico-crítico
quanto na proposta biblicista elementos positivos em suas respectivas propostas
hermenêuticas, desde que não haja um radicalismo de ambas as partes. Trabalhos
como o de Gerhard Maier43 tem mostrado algumas deficiências do método
histórico-crítico a partir da realidade alemã. É a luta entre o conceito "razão" e a
"Palavra de Deus".
O relativismo teológico tem se constituído em um dos principais resultados finais
do método histórico-crítico e também num elemento questionador da proposta de
formação de igrejas devidamente fundamentadas em doutrinas bíblicas. A
necessidade de um esteio, um "cânon espiritual" não tem servido apenas como
fator de segurança individual do crente em sua fé, mas também a nível coletivo, no
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sentido de identificar o grupo diante da secularidade, sendo útil inclusive para
servir de referencial ao não-crente.
Entretanto, não há como menosprezar os resultados da pesquisa histórico-crítica.
É praticamente impossível negar a falta da unidade "doutrinária" existente nos
testamentos, quer seja do testamento em relação a si mesmo, quer seja de um
testamento em relação ao outro testamento. É óbvio, por exemplo, que os
próprios profetas, porta-vozes de Deus, se encontravam sempre na tarefa nova de
contestar posturas doutrinárias antigas que, por vezes, eram utilizadas para
legitimar posturas antiéticas do povo que ia sob o nome do Senhor. São notórias as
posturas de alguns profetas contra o sacrifício ( Is. 1:11-12), o cerimonialismo (Is.
1:13-14), a eleição de Israel (Am. 3:1-2 e 6:1; Am. 9:7 contrariando Jeremias 47:4 ),
o Dia do Senhor como dia do favor divino ao seu povo (Am. 5:18). É igualmente
significativo como o livro de Jó questiona a íntegra da doutrina da retribuição e do
individualismo ético, entrevisto em Ezequiel 18, o qual, por sua vez, representa
uma reação contra antigos pressupostos do Anátema44 e da Guerra Santa. Pode-
se assumir, entretanto, que a Bíblia possui uma unidade central de tema: o que se
vê de Gênesis a Apocalipse é a idéia de um Deus que ama o ser humano e que vai
buscá-lo em sua indignidade e de um ser humano que foge desse Deus e de seu
amor.
Provavelmente, um dos maiores desafios da Hermenêutica para os tempos
hodiernos é a leitura de "conveniência" que existe da Bíblia. Esse tipo de leitura é
seletiva e parte, quase sempre, de idéias pré-concebidas. Por exemplo, como ler o
texto dos "Cântico dos Cânticos"? Alegoricamente ou naturalmente ? 45 É
alegórico quando fere o pudor moralista; é natural quando se precisa de um
argumento litúrgico-especial, uma cerimônia de casamento. Outro elemento, o da
Teologia da Prosperidade, é quase sempre um discurso nos lábios de pessoas que
atingiram situação econômica privilegiada e sentimento de culpa para aqueles que
ainda não saíram do ocaso financeiro ou ainda que não “digeriram” o ser parte de
uma classe média decadente.
Dessa leitura advém um problema, o do conflito entre a complacência da aceitação
das opiniões dos outros de uma espécie de “ditadura da mídia”, que impõe o
“politicamente correto”, e aquilo que a Bíblia ensina nas suas bases de fé (graça,
culpa, condenação eterna, salvação, arrependimento, mudança de vida, santidade,
etc)
Gostaria de deixar alguns temas para discussão em classe. Entre eles, o problema
da “razão sensível” (questão estética). Os desafios de um mundo globalizado e
transcultural movido cada vez mais pelas informações obtidas da Internet. A
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HERMENÊUTICA BÍBLICA
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necessidade de uma releitura do princípio do “Sola Scriptura” e a leitura fixista da
Bíblia cada vez mais comum nos meios fundamentalistas.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
BENTHO, Esdras Costa. Hermenêutica Fácil e Descomplicada. Rio de Janeiro: CPAD,
2003.