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Alice Bastos Dor oncológica Introdução e epidemiologia De todos os sintomas que o paciente com câncer apresenta, a dor é sempre o mais temido; O não controle da dor no câncer está associado com o significativo aumento dos níveis de depressão, ansiedade, hostilidade e somatização; Mais de 50% dos pacientes com câncer apresentam dor em algum momento no decorrer da doença; A dor oncológica está presente em 75 a 90% dos pacientes em fase final da vida; 65 a 85% dos pacientes com doença avançada apresentam dor relacionada ao câncer; A realidade brasileira é o diagnóstico de câncer em fase avançada, havendo, portanto, uma alta incidência de pacientes com síndrome dolorosa relacionada ao câncer; 15 a 25% dos pacientes com doença avançada sofrem de dor indiretamente relacionada à doença, ou seja, decorrente de seu tratamento. Etiologia A dor no paciente com câncer pode ser ocasionada por mecanismos e fatores diversos e pode estar relacionada à própria doença ou ser secundária a processos diagnósticos e/ou terapêuticos (quimioterapia, radioterapia, cirurgia), ou à dor não relacionada ao câncer; A etiologia da dor crônica relacionada ao câncer pode ser mais difícil de ser caracterizada, pois muitos pacientes, principalmente aqueles com doença avançada, possuem múltiplas etiologias e várias fontes de dor. Dor causada pelo tumor Ç É a causa mais comum de dor no câncer, podendo manifestar-se localmente ou à distância, pelo mecanismo de dor referida; A dor ocorre por conta de estimulação nociva nos nociceptores no periósteo; O crescimento tumoral ou as fraturas secundárias podem ocasionar lesão, compressão, tração ou laceração das estruturas nervosas, ocasionando dor isquêmica, dor neuropática periférica ou dor mielopática; As metástases ósseas mais comuns são as provenientes dos tumores de mama, próstata e pulmão; A dor óssea é caracterizada por: Sensação de dolorimento constante, profundo e às vezes contínuo; Surge com os movimentos (dor incidental). Ç A infiltração ou compressão de troncos, plexos e/ou raízes nervosas pelo tumor, linfonodos e/ou fraturas ósseas metastáticas pode determinar dor aguda de forte intensidade; A dor estará presente na distribuição da estrutura nervosa acometida; O paciente pode apresentar: Dor em queimação; Dor contínua; Hiperestesia; Disestesia; Perda progressiva da sensibilidade; As neoplasias de cabeça e pescoço ou as lesões metastásicas para os linfonodos cervicais podem comprimir os plexos cervicais, ocasionando dor local lancinante com disestesia, irradiada para a região da nuca ou retroauricular, ombro ou mandíbula; A plexopatia sacrolombar é comum em neoplasias de colo uterino e próstata, sarcoma da pelve e metástases de tumores distantes; Produz dor caracterizada como sensação de peso, pressão e queimação, inicialmente na região sacral, região posterior da coxa e região perineal. Alice Bastos Ç Pode ocorrer dor por invasão tumoral na medula espinal, no encéfalo e em suas meninges. Dor radicular Surge por compressão ou infiltração da medula espinal, com alteração motora, sensitiva e autonômica distais ao local da lesão; Além da dor radicular, é possível observar a primeira manifestação do comprometimento raquimedular: a dor mielopática localizada e a dor-fantasma. Cefaleia insidiosa e progressiva Surge como manifestação das metástases encefálicas; Se há hemorragia pela lesão causal, a dor instala-se subitamente, agravando-se com o decúbito horizontal, tosse ou espirro; Também apresenta piora durante o sono, melhora com a postura ortostática e vem acompanhada de náuseas e vômitos; Com o progredir da lesão encefálica, podem ocorrer sonolência, confusão mental, convulsões e coma. Carcinomatose das meninges Manifesta-se em 3 a 8% dos pacientes com neoplasias, especialmente de mama, pulmão e melanomas; Apresenta-se sob a forma de cefaleia e comprometimento das funções dos nervos cranianos e espinais, em 50 a 75% das vezes. Ç As células tumorais podem infiltrar e/ou ocluir os vasos sanguíneos e linfáticos, ocasionando vasoespasmo, linfangite e possível irritação nos nervos aferentes perivasculares; O crescimento tumoral nas proximidades dos vasos sanguíneos leva à oclusão desses vasos parcial ou totalmente, produzindo estase venosa ou isquemia arterial, ou ambos; A isquemia causa dor e claudicação (é o tipo de dor nos membros inferiores que se desenvolve ao caminhar e alivia com o repouso, sendo causada pela chega insuficiente de sangue aos músculos); A estase venosa produz edema nas estruturas supridas por esses vasos, determinando distensão dos compartimentos faciais e de outras estruturas nociceptivas; A oclusão arterial produz isquemia e hipóxia com destruição celular; Esses mecanismos (citados acima) causam dor normalmente difusa, cuja intensidade aumenta com a progressão do processo. Ç A oclusão de órgãos dos sistemas digestório, urinário e reprodutivo (estômago, intestinos, vias biliares, ureteres, bexiga e útero) produz obstrução do esvaziamento visceral e determina contratura da musculatura lisa, espasmo muscular e isquemia; Consequentemente, será produzida uma dor visceral difusa (tipo cólica) constante, com sensação de peso ou pobremente localizada, referida nas áreas de inervação da víscera comprometida; Órgãos como linfonodos, fígado, pâncreas e supra- renais podem vir a apresentar dor devido à isquemia ou distensão de suas cápsulas; Essas vísceras sólidas também podem apresentar dor por obstrução de seus sistemas ductais; Nos tumores de fígado, baço, rim e ósseos, o edema e a venocongestão ocasionam distensão das estruturas de revestimento e estruturas nociceptivas; Nos tumores de cabeça e pescoço (boca, orofaringe, lábio e face), tumores do trato gastrintestinal e geniturinário, podem ocorrer ulceração das membranas mucosas, infecção e necrose, e ulceração determinando dor intensa. Dor causada pelo tratamento do câncer Cerca de 19% dos pacientes com câncer apresentam dor secundária ao tratamento. Determinadas intervenções cirúrgicas têm alta incidência para o desenvolvimento de dor aguda e crônica; Alice Bastos Fase aguda: a dor decorre do processo inflamatório traumático de cirurgias, como toracotomias, esternotomias, amputações e mastectomias; Fase crônica: a dor decorre devido ao câncer recidivado localmente; O trauma ocasionado em estruturas nervosas, durante o procedimento cirúrgico, pode resultar em dor persistente além do normal, chamada neuralgia pós- cirúrgica; Tem origem traumática na sua grande maioria e, em um menor número de casos, decorre de fibrose cicatricial ou compressões; A dor-fantasma também pode estar presente nos pacientes que foram submetidos à amputação de um membro ou de outra estrutura somática do corpo; Caracteriza-se pela presença da imagem do órgão amputado, com dor em queimação e sensação de formigamento e latejamento. Apresenta-se como exacerbação aguda de dor crônica relacionada com: Posicionamento para terapia; Queimaduras cutâneas; Neuropatia actínica; Mielopatia actínica; Sinal de Lhermitté (desmielinização transitória da medula cervical ou torácica); Mucosite bucal; Esofagite; Produção de tumores primários de nervos periféricos secundários à radiação; Obstrução intestinal parcial; Infarto ou isquemia intestinal; Após a radioterapia, pode ocorrer fibrose de forma lenta e progressiva, ocasionando lesão nas adjacências dos nervos, com dor em queimação e disfunção do sistema somatossensorial. A dor pode ocorrer por polineuropatias periféricas, causadas por drogas imunossupressoras (oxaliplatina, paclitaxel, docetaxel, vincristina, carboplatina, cisplatina, doxorrubicina e capecitabina), podendoser de caráter transitório ou definitivo; Existem as mucosites (oral, faríngea, gastroduodenal e nasal) induzidas por irradiação junto com a monilíase do sistema digestório e a esofagogastroduodenite; A neuralgia herpética (fase aguda) pode surgir pela imunossupressão, aumentando sua incidência em função da idade avançada e do sexo; Essa situação tende a converter-se em neuralgia pós-herpética (fase crônica) com dor em queimação, alodinia, disestesia, parestesia, paroxismo de dor tipo choque e perda de sensibilidade na região. Dor não relacionada ao câncer ou ao seu tratamento Representam 3% do total; Podem ser causadas por: osteomielite, osteoartrite, neuropatia diabética, hérnia discal, síndrome pós- laminectomia miofascial, entre outras, sem relação com a dor ocasionada pelo câncer. Tipos de dor A dor no câncer tem as características da dor crônica ou persistente, sendo decorrente de processo patológico crônico, podendo envolver estruturas somáticas ou viscerais, bem como estruturas nervosas periféricas ou centrai, isoladas ou em associações, cursando com dor contínua ou recorrente por meses ou anos; A intensidade da dor relaciona-se geralmente ao estágio da doença, podendo apresentar períodos de remissão com a terapêutica neoplásica e de piora com recidivas e progressão da doença; Pode cursas com episódios de dor aguda, resultantes de procedimentos diagnósticos, cirurgias paliativas, fraturas, obstruções viscerais ou arteriais e agudizações da doença; A dor no câncer geralmente é mista, ou seja, pode estar associada com: Excesso de nocicepção (dor nociceptiva); Desaferentação (dor neuropática). A dor nociceptiva é mais comum do câncer; Alice Bastos É causada por estímulos aferentes de grande intensidade, nocivos ou lesivos, produzidos por processo inflamatório ou infiltração de tecidos pelo tumor, capazes de atingir o alto limiar de excitabilidade do nociceptor e gerar a dor; A dor neuropática surge quando há disfunção do SNP e/ou do SNC, por invasão tumoral ou pelo tratamento do câncer (cirurgia, quimioterapia e/ou radioterapia). Tratamento O tratamento tem como objetivo promover o alívio necessário da dor para que os procedimentos diagnósticos e terapêuticos do câncer possam ser realizados e deve ser instituído logo que surjam as primeiras manifestações dolorosas. Escada analgésica A OMS determinou que a base para o tratamento da dor neoplásica é a escada analgésica; A escada é formada por 3 degraus: 1. Dores de fraca intensidade: sugere a utilização de medicamentos não-opioides associados aos adjuvantes; 2. Dores de moderada intensidade: recomenda a utilização de analgésicos opioides fracos associados ou não aos medicamentos não-opioides e aos adjuvantes; 3. Dores de forte intensidade: sugere a utilização de opioides fortes associados ou não aos medicamentos não-opioides e aos adjuvantes; Esses 3 degraus sugerem classes de medicamentos e não drogas específicas, oferecendo ao médico a liberdade de escolha. Classes de medicamentos Este grupo é representado por: salicilatos, paracetamol, dipironas e anti-inflamatórios não esteroidais; Na dor oncológica, esses fármacos são benéficos no tratamento da dor somática, principalmente a de caráter inflamatório, como nas metástases ósseas. O tratamento analgésico com opioides constitui a base da terapia da dor no câncer; São classificados quanto à sua origem: Naturais: morfina, papaverina, codeína e tebaína; Semi-sintéticos: heroína, hidromorfona, hidrocodona, buprenorfina e oxidona; Sintéticos: levorvanol, butorfanol, metadona, pentazocina, meperidina, fentanil, sufentanil e alfentanil; Também podem ser classificados quanto à sua potência: Fracos (segundo degrau da escada analgésica): codeína e tramadol; Fortes (terceiro degrau da escada analgésica): morfina, metadona, oxicodona, buprenorfina, fentanil; Devido à sua eficácia, disponibilidade em todo o mundo e baixo custo, a OMS considera a morfina como droga padrão para o tratamento da dor no câncer. São medicamentos que contribuem para o alívio da dor, tratam os efeitos adversos dos analgésicos e melhoram distúrbios psicológicos associados ao quadro álgico. Antidepressivos tricíclicos Bloqueiam a reabsorção de monoaminas e aumentam a atividade das vias de modulação da dor; Os mais indicados são: amitriptilina, nortriptilina e imipramina. Alice Bastos Anticonvulsivantes Reduzem a hiperexcitabilidade neuronal e impedem as descargas paroxísticas da atividade elétrica ligada à neuropatia; São indicados nos casos de dor neuropática lancinante e paroxística; Os mais indicados são carbamazepina, oxcarbazepina, gabapentina e pregabalina. Corticosteroides Inibem a produção de prostaglandinas com redução da inflamação e do edema; São indicados em aumento da pressão intracraniana, compressão nervosa e infiltração de partes moles; As doses são individualizadas e não há consenso quanto à melhor droga e dose. Bifosfonados São análogos do pirofosfato inorgânico e inibem a atividade osteoclástica, sendo, portanto, usados como adjuvantes da dor por metástases ósseas generalizadas. Neurolépticos Produzem suas ações antagonizando a dopamina; Apresentam efeito antiemético desejado, prevenindo a ocorrência de vômitos quando associados aos analgésicos opioides. A via de administração de escolha para o tratamento da dor oncológica sempre que possível deve ser a oral, por ser mais segura, menos invasiva, apresentar boa tolerabilidade, promover analgesia satisfatória e ter baixo custo. Tratamento não farmacológico Acompanhamento com psicólogo: o psicólogo da dor pode atuar auxiliando o paciente no melhor entendimento do processo de sua doença, enfocando a subjetividade do processo doloroso no discernimento dos fatores biológicos (sensoriais), psicológicos (afetivos, cognitivos), comportamentais, sociais e culturais; Intervenções psicoterápicas: modelo biopsicossocial para compreensão do processo de cronicidade da dor, biofeedback, treinamento de relaxamento e dessensibilização; Medicina física e reabilitação: termoterapia, correntes álgicas, cinesioterapia (contrações musculares, exercícios, alongamento muscular), implantação de órteses e próteses de membros, protegendo o corpo de fraturas patológicas e disfunção corporal; Acupuntura: também é útil na dor do câncer, podendo atuar na dor somática e neuropática, assim como na melhora dos sintomas do câncer e sua terapia. Referências MELO, I. T. V. Dor no câncer. In: ALVES NETO, O. et al. Dor: princípios e prática. 1. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. p. 792-804. MINSON, F. P. Dor no câncer. In: MINSON, F. P.; MORETE, M. C.; MARANGONI, M. A. Dor: manuais de especialização. 1. Ed. Barueri, SP: Manole, 2015. p. 307- 315. SERRANO, S. C.; MELO, I. T. V. Dor oncológica. In: POSSO, I. P. et al. Tratado de dor: publicação da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor. 1. Ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2017. p. 1313-1326.
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