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Martin Buber - Eu e Tu

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MARTIN BUBER
EU e TU
TRADUÇÃO DO ALEMÃO,
INTRODUÇÃO E NOTAS POR
NEWTON AQUILES VON ZUBEN Professor
na Faculdade de Educação da Unicamp
Produção editorial: Adalmir Caparrós Fagá
Titulo original: Ich und Du
S'a. ed. Lambert Schneider, Heidelberg, 1974
Tradução: Newton Aquiles Von Zuben
10ª Edição revista - 2006 — 3ª Reimpressão - 2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Buber, Martin, 1878 - 1965
Eu e tu / Martin Buber
Tradução do alemão, introdução e notas por
Newton Aquiles Von Zuben
São Paulo : Centauro, 2001
Titulo original: Ich und Du ISBN 978-85-88208-16-2
1. Deus — Conhecimento 2. Relacionismo 3. Vida
I. Von Zuben, Newton Aquiles. II. Titulo.
01-4235 CDD — 181-3
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia judaica 181.3
2. Ensino : Filosofia 370.1
e 2009 CENTAURO EDITORA
Travessa Roberto Santa Rosa, 30— 02804-010 — São Paulo — SP
Tel. 11 — 3976-23 99 — Tel./Fax 11 — 3975-2203
E-mail: editoracentauro@terra.com.br
www.centauroeditora.com.br
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................
5 PRIMEIRA PARTE
......................................................................................... 43 SEGUNDA
PARTE ........................................................................................ 64
TERCEIRA PARTE .........................................................................................
87 POST-SCRIPTUM .......................................................................................
116 GLOSSÁRIO
............................................................................................... 125 NOTAS DO
TRADUTOR .............................................................................. 128
INTRODUÇÃO
O paradoxo é a paixão do pensamento; o pensador sem paradoxo é como
um amante sem paixão, um sujeito medíocre. Martin Buber, por ter assumido o
paradoxo tanto em sua vida como em suas obras, se apresenta como um dos
grandes pensadores de nossa época. Sua mensagem antropológica constitui,
sem dúvida, um marco essencial dentro das ciências humanas e da filosofia. A
dimensão hermenêutica de sua obra sobre a Bíblia e sobre o Judaísmo faz de
Buber um dos pilares que ainda sustentam toda a evolução contemporânea da
reflexão teológica. Notável, e de relevante importância, foi o seu trabalho de
tradução da Bíblia para o alemão, empreendimento este iniciado em
colaboração com seu amigo Franz Rosenzweig e finalizado após a morte deste
em 1929. Mais particularmente, a sua filosofia do diálogo, obra-prima de um
verdadeiro profeta da relação (do encontro), situa-se como uma relevante
contribuição no âmbito das ciências humanas em geral e da antropologia
filosófica. Seus extensos e profundos estudos sobre o Hassidismo projetaram
Buber ao mundo intelectual do Ocidente como exímio escritor e como o
revelador desta corrente da mística judaica.
Entretanto, devemos reconhecer que a vasta produção de Buber ainda
permanece desconhecida em nosso meio. A nosso ver, a atualidade de Martin
Buber se fundamenta num duplo aspecto: primeiramente no vigor com que suas
reflexões tornam possíveis novas reflexões. Embora pertencentes ao passado,
elas "provocam" a ponto de exercer fascínio sobre aqueles que com elas se
deparam; em segundo lugar, no comprometimento deste pensamento com a
realidade concreta, com experiência vivida. Pensamento e reflexão assinaram
um pacto indestrutível com a práxis, com a situação concreta da existência.
Martin Buber representa um dos exemplos do verdadeiro vínculo de
responsabilidade entre reflexão e ação, entre práxis e logos. Para ele a
experiência existencial de presença ao mundo ilumina as reflexões. A fonte de
seu pensamento é sua vida; sua existência é a manifestação concreta de suas
convicções.
A crescente presença de idéias de Martin Buber se faz de um modo
bastante marcante nos mais diversos domínios da cultura moderna. Seus
estudos sobre a Bíblia e o Judaísmo tiveram uma influência decisiva na teologia
contemporânea, sobretudo na teologia protestante. Suas obras filosóficas têm
influenciado várias das chamadas ciências humanas: psiquiatria, psicologia,
educação, sociologia e toda uma corrente da filosofia contemporânea que se
preocupa com o sentido da existência humana em todas as suas manifestações.
A mensagem buberiana evoca no pensamento contemporâneo uma notável
nostalgia do humano. Sua voz ecoa exatamente numa época que paulatina e
inexoravelmente se deixa tomar por um esquecimento sistemático daquilo que é
mais característico no homem: a sua humanidade. Sendo assim, a obra de Buber
é fundamental para a abordagem da questão antropológica.
Esta mensagem humana, fornecida ao homem contemporâneo
caracteriza-se por uma exigência de revisão de nossas perspectivas sobre o
sentido da existência humana. A nostalgia que envolve uma conversão propõe
um projeto de existência a ser realizado e não uma simples volta a um passado
distante numa postura de mero saudosismo romântico. A afirmação do humano
não é um objeto de análises objetivas, exatas, infalíveis, mas sim um projeto que
envolve o risco supremo da própria situação humana da reflexão.
Não raras vezes o pensamento de Buber sofreu interpretações ambíguas,
e até mesmo errôneas, que poderiam facilmente ser evitadas se se tivesse
observado uma certa postura de abordagem exigida pela profundidade da obra.
Martin Buber não é um pensador qualquer, não é um autor no meio de outros
perfazendo um sistema de pensamento filosófico ou teológico. Há muita
verdade na auto-caracterização de Buber como "atypischer Mensch" (homem
atípico).
Como não se trata de uma construção sistematicamente elaborada, sua
obra exige uma abordagem cuidadosa e criteriosa; os aventureiros à busca de
soluções rápidas e receitas para crises existenciais poderão decepcionar-se logo
nas primeiras páginas, desencorajados pelas ruelas austeras de um pensamento
que várias vezes se manifesta por conceitos, frases e passagens obscuros.
Nossa intenção aqui é introduzir as principais idéias de Buber ao leitor que
o desconhece ou o conhece através de breves citações. Não se trata de um
trabalho exaustivo sobre o pensamento de Buber ou sobre a sua filosofia. Trata
se de uma introdução à leitura de Eu e Tu que ora apresentamos em tradução
portuguesa. No entanto, como a nosso ver Eu e Tu é a chave de todas as outras
obras de Buber, acreditamos que o leitor, após o conhecimento deste livro,
poderá mais facilmente abordar qualquer estudo deste grande pensador.
A essência do pensamento buberiano revela-se, talvez mais do que a
maioria dos outros pensadores, estruturada como um círculo. Isto decorre do
sentido que Buber deu ao comprometimento da reflexão como a existência
concreta, ao vínculo da práxis e do logos. Tal comprometimento é uma das
características principais do pensamento de Buber. No próprio nível da reflexão,
pelo fato de a filosofia ser um desvelamento progressivo, seus esforços
ontológicos aparecem necessariamente entrelaçados com reflexões práticas.
Este aprofundamento filosófico anseia sem cessar um ambiente de busca de um
efetivo engajamento. Sua filosofia do diálogo — da relação — ponto central de
toda a sua reflexão, tanto no campo da filosofia ou dos ensaios sobre religião,
política, sociologia e educação, atingiu sua expressão madura em Eu e Tu graças
à fonte representada pelo Hassidismo e sua mensagem. Na mística hassídica
Buber encontrou não só o princípio, mas a luz e o molde para a sua reflexão.
Podemos mesmo afirmar que a compreensão de Eu e Tu será completa quando
for levada em consideração toda a influência da mística em geral (Budismo,
Taoísmo, a mística alemã, a mística judaica) e mais especificamente do
Hassidismo.
No entanto, Buber não pode ser considerado um representante de um
misticismo irracional. Senão, como articular tal qualificação com sua obra Eu e Tu
que traz reflexões religiosas profundamente ligadas a uma ontologia? Além do
mais, a dimensão ontológicade sua reflexão não nos permite afirmar que
estamos diante de um sistema filosófico "pronto" do mesmo modo como
podemos dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema.
Entretanto, podemos, em nossa preocupação de refletir criticamente sobre o
pensamento de Buber, destacar temas ou conceitos mais importantes e centrais
contidos na obra e que servem de estrutura conceitual para a abordagem de
outros pontos da doutrina ou das idéias que seriam, neste caso, conseqüências
do tema essencial.
Esquematicamente, a obra de Buber pode apresentar-se sob três facetas:
Judaísmo, ontologia e antropologia. Cada uma delas se liga às outras de um
modo circular. A renovação, projeto que Buber propõe ao Judaísmo, implica uma
ontologia da relação que, por sua vez, tem suas conseqüências em vários
campos, tais como educação e política. Podemos abordar essas facetas de um
modo cronológico ou lógico. Dentro desta última perspectiva, a ontologia da
relação (da palavra como diálogo) está presente como fundamento de todos os
outros temas, seja de um modo retrospectivo nas suas concepções sobre o
Judaísmo e na hermenêutica do Hassidismo, seja de um modo prospectivo na
sua tradução da Bíblia, na sua antropologia filosófica, em seus estudos sobre
educação ou política, orientados para uma ética do inter-humano. O fato
primordial do pensamento de Buber é a relação, o diálogo na atitude existencial
do face-a-face.
Nesta introdução propomos ao leitor algumas considerações sobre os
dados biográficos de Buber, algumas características de seu pensamento e de sua
vida, as principais idéias que o influenciaram (aqui destacaremos a mística
hassídica) e finalmente fazemos algumas reflexões sobre o sentido de Eu e Tu no
conjunto da obra.
1. Dados Biográficos
Martin Buber nasceu em Viena aos 8 de fevereiro de 1878. Após o divórcio
de seus pais, partiu para Lemberg, na Galícia, cidade onde moravam seus avós
paternos. Buber passou assim sua primeira infância com seu avô Salomon Buber,
grande autoridade da Haskalah. Junto desta família o jovem Buber teve a chance
de experimentar a união harmoniosa entre a tradição judaica autêntica e o
espírito liberal da Haskalah. A atmosfera era propícia para uma piedade sadia e
para um profundo respeito pelo estudo. Teve aí a oportunidade de aprender o
hebreu, de ler os textos bíblicos e de tomar contato com a tradição judaica. Aos
14 anos voltou a morar com o pai. Matriculou-se no ginásio polonês de Lemberg.
A filosofia, sob a forma de dois livros, marcou sua primeira e influente presença
na vida de Buber entre seus 15 e 17 anos. Nesta época, como ele mesmo nos
relata, o seu espírito estava tornado por idéias de tempo e de espaço. Em sua
obra "O Problema do Homem" ele faz alusão a uma experiência que exerceu
profunda influência sobre sua vida "Um constrangimento, que não podia
explicar, tinha se apoderado de mim: eu tentava, sem cessar, imaginar os limites
do espaço, ou senão a inexistência de um limite, um tempo que começa e que
termina sem começo nem fim. Um era tão impossível quanto o outro; um
deixava tão pouca esperança quanto o outro; falavam-nos que não havia opção
senão escolhendo um ou outro de tais absurdos. Sob forte tensão, eu vacilava
entre um e outro, e acreditava que iria enlouquecer, e este perigo tanto me
ameaçava que eu pensava seriamente em escapar da confusão por meio do
suicídio". Foi então que lhe caiu à mãos o livro "Prolegômenos" de Kant, onde
encontrou uma resposta para sua indagação. Nesse livro ele verificou que o
espaço e o tempo não são mais que formas através das quais efetuamos a
percepção das coisas e que elas em nada afetam o ser das coisas existentes.
Descobriu também que tais formas entram, de algumas maneiras, na
constituição de nossos sentidos. É tão impossível dizer que o mundo é infinito no
espaço e no tempo, quanto dizer que é finito, pois "nem um nem outro pode ser
contido na experiência" e nenhum pode ser encontrado no mundo. "Eu podia",
diz Buber, "dizer a mim mesmo que o Ser mesmo está subtraído tanto ao infinito
quanto ao finito espacial e temporal, pois que não faz senão aparecer no espaço
e no tempo, e não se esgota a si mesmo nesta sua aparência. Eu começava então
a perceber que há o eterno, muito diferente do infinito, e que, não obstante,
pode haver uma comunicação entre eu, homem, e o eterno" (O Problema do
Homem). Outro livro lido por Buber foi "Assim Falava Zaratustra", de Nietzsche;
Buber se empolgou, tanto com a mensagem de Zaratustra que resolveu traduzi lo
para o polonês. A visão nietzscheana do tempo como eterno impediu Buber de
ter uma concepção diferente do tempo e da eternidade.
Em 1896 Buber entrou para a Universidade de Viena, matriculando-se no
curso de Filosofia e História da Arte. Mais do que em qualquer lugar, encontrava
se em Viena o exemplo típico de uma cultura aberta a toda sorte de influências,
oriundas de todos os quadrantes do mundo intelectual. Encontravam-se aí
elementos eslavos, judeus e românicos. A recém-formada escola vienense era
neoromântica e o lirismo ou o diálogo lírico estava aí presente em sua forma de
criação e expressão. Toda a atmosfera da intensa vida social e cultural de Viena
contribuiu para tornar Buber um devoto da literatura, da filosofia, da arte e do
teatro. Isso contribuiu de algum modo para que ele esquecesse suas raízes
judaicas. Não foi senão mais tarde, no final de seus cursos universitários, que a
consciência da força e profundidade da tradição judaica ressurgiu. Em 1901
entrou na Universidade de Berlim onde foi aluno de Dilthey e G. Simmel. Em
Leipzig e Zurich dedicou-se ao estudo da psiquiatria e da sociologia. Em 1904
recebeu, em Berlim, o título de doutor em Filosofia.
Em Berlim entrou em contato com uma comunidade fundada pelos irmãos
H. e J. Hart, a "Neue Gemeinschaft", que representava um oásis para a jovem
geração: aí os jovens podiam se expressar livremente. A comunidade
apresentava um desejo ardente de novos tempos: o lema era viver mais
profundamente a humanidade do homem. Foi aí que Buber travou amizade com
Gustav Landauer, personagem este que o influenciou profundamente.
Buber era um membro ativo no seio da comunidade universitária. Os
jovens se reuniam amiúde, para discutir em conjunto os problemas que mais
lhes interessavam. As reuniões se realizavam à maneira de seminários nos quais
cada um dos participantes tinha a chance de expor um trabalho que seria
discutido por todos. Buber fez aí duas exposições: uma sobre Jakob Boehme e
outra intitulada "Antiga e nova comunidade" onde afirmou "nós não queremos a
revolução, nós somos a revolução".
Participante ativo dos primeiros Congressos do movimento sionista, Buber
foi escolhido 1° secretário. Alguns anos mais tarde chefia uma revolta de cisão
no seio do movimento, por discordar da orientação do presidente e fundador
Theodor Herzl.
De 1916 a 1924 Buber foi editor do jornal "DER JUDE". Em 1923 foi
nomeado professor de História das Religiões e Ética Judaica, na Universidade de
Frankfurt. A cadeira, única na Alemanha, foi posteriormente substituída por
História das Religiões. De 1933, quando foi destituído do cargo pelos nazistas,
até 1938 Buber permaneceu em Heppenheim. Em 1938 aceitou o convite da
Universidade Hebraica de Jerusalém, para lá ensinar Sociologia. Buber tinha
então 60 anos. Esse período foi de intensa atividade intelectual. Suas pesquisas
se aprofundaram em diversas áreas: estudos sobre a Bíblia, Judaísmo e
Hassidismo; estudos políticos, sociológicos e filosóficos.
Buber morreu em Jerusalém a 13 de junho de 1965.
2. Características do Pensamento
"É necessário ter conhecido Martin Buber pessoalmente para se
compreender num instante a filosofia do encontro, esta síntese do evento e da
eternidade". Nestas palavras de Bachelard vemos a convicção profunda de
alguém que acredita na necessidade de se encarar com seriedade tal obra e tal
vida, ligadas por um vínculo inquebrantável. A impressão que a presença de
Buber causava no seu interlocutor nos é relatada por G. Marcel: "Fiquei
profundamente impressionado,desde o início, com a grandeza autêntica de tal
homem que me parecia realmente comparável aos grandes patriarcas do Antigo
Testamento". Marcel emprega o termo "plenitude" para caracterizar a
personalidade e a existência de Buber, cuja magnanimidade surpreendia desde o
primeiro encontro. Olhar profundo que parecia tocar a intimidade de seu
interlocutor, e que, contudo, sabia acolher na simplicidade e na fugacidade de
um diálogo. Uma presença autêntica emanava de sua pessoa, e a profundeza de
seu semblante residia na presença a si mesmo. Exatamente por esta presença a
si mesmo é que ele podia tornar-se presente aos outros, acolhendo-os
incondicionalmente em sua alteridade. A abertura e a disponibilidade com
relação ao outro encontravam em Buber um suporte: a zona de silêncio, na qual
se inscreve a confiança no outro. O olhar encontra rapidamente o calor e a
gratuidade da resposta. Tal disponibilidade lhe fora inspirada, desde a juventude,
pela vida das comunidades hassídicas que havia visitado durante a estadia na
casa de seu avô, Salomon Buber. Nesta época a semente do Tu já havia sido
lançada: o lugar dos outros é indispensável para a nossa realização existencial.
A plenitude citada por Marcel não seria verídica se acaso não
soubéssemos descobrir, ao lado da amabilidade do acolhimento e da abertura
aos outros, a firmeza de sua personalidade, quando se tratava de defender um
ponto de vista considerado como certo. Tal firmeza era logo orientada para uma
constante procura do verdadeiro, em meio às múltiplas verdades. Esta plenitude
no diálogo caracterizava a própria postura intelectual de Buber, pois ele nunca se
desligava do mundo, e suas idéias nunca eram excogitadas numa reclusão
acadêmica. Ele viveu plenamente as tarefas do mundo tais como elas se lhe
apresentavam. Desde os primeiros anos de sua formação intelectual vemos
Buber à frente de grupos estudantis. Dentro do movimento sionista com o qual
se unira, ele entrou em conflito com os seus dirigentes, pois estes só se
mostravam interessados em assuntos políticos ou diplomáticos. O jovem Buber,
liderando um pequeno grupo, defendeu uma concepção mais ampla do
sionismo: uma concepção que fosse, em sua essência, um esforço de libertação e
purificação interior e um meio de elevar o nível social e cultural das massas
judaicas. Esta firmeza de atitude demonstrava uma vida interior muito madura e
consciente, baseada numa compreensão bastante aguda do sentido de liberdade
pessoal. Somente tal vida interior poderia lhe dar forças para enfrentar as
dificuldades inerentes à sua própria existência, dificuldades estas provindas da
marca que a circunstância histórica impingia não só a ele mas a muitos outros, a
ponto de torná-los pessoas diferentes, pois eram judeus. Isto, ao invés de lhe ser
desfavorável ou um motivo de desdém, enriqueceu sua experiência ao revelar lhe
a verdadeira origem de seu poder criador.
Outra característica marcante desta personalidade e deste espírito
filosófico, foi uma grande fé no humano. Ele vivia ardentemente o
"Menschensein" e pode superar todas as suas dificuldades, buscando uma
solução para o problema existencial do homem atual. Ele havia entendido a voz
que o interpelava e, ao mesmo tempo desejava que todos os homens tentassem
responder a ela. Buber nunca quis figurar como o porta-voz de um sistema
filosófico. Via sua missão como uma resposta à vocação que havia recebido: a de
levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem
os olhos para a situação concreta que estavam vivendo. Como Sócrates, ele
ajudava, com sua presença, o "parto dos espíritos" nos homens. Seu esforço foi
sempre sustentado pela esperança de atingir o fim, pois sem a esperança não se
encontrará o inesperado, inacessível e não-encontrável, como já afirmava
Heráclito.
Buber não se deixa etiquetar por qualquer sistema doutrinário conhecido.
Qualificações como místico, existencialista ou personalista nada mais fazem do
que desvirtuar o sentido de sua vida e de sua obra. Aliás, ele mesmo se
qualificou como "atypischer Mensch". O maior compromisso de sua reflexão é
com a experiência concreta, com a vida. Ele aliou, com rara felicidade, a postura
e as virtudes de um homem atual (de seu tempo, do século XX) com as raízes
profundas do Judaísmo primitivo. Em realidade, ele encarnava o sábio e o
profeta tentando simplesmente advertir os homens a respeito de sua situação.
Não se tratava de receitas tradicionalmente conhecidas ou imperativos
inadiáveis, mas um apelo aos homens para que vivessem sua humanidade mais
profundamente, movidos pela nostalgia do humano.
"Durante a primeira guerra mundial, depois que meus próprios
pensamentos sobre as coisas mais elevadas haviam tomado uma orientação
decisiva, eu falava às vezes sobre minha posição a meus amigos; ela era
semelhante a uma 'estreita aresta'. Desejava exprimir com isso que não me
coloco numa larga e alta planície quanto ao Absoluto, mas sobre uma senda
estreita de um rochedo, entre dois abismos, onde não existe segurança alguma
de ciência enunciável, mas onde existe a certeza do encontro com aquilo que
está encoberto" (O Problema do Homem, pág. 92 da tradução francesa). Esta
afirmação revela, talvez melhor que qualquer outra, o significado e o valor da
vida e do pensamento de Buber. Nela podemos encontrar não somente a "santa
insegurança" mencionada em sua obra "Daniel" (1913), mas também todo vigor
e profundeza poética e filosófica de Eu e Tu. Esta "estreita aresta" não é uma
solução de tranqüilidade que se torna um refúgio para os espíritos pusilânimes;
não é, de forma alguma, uma posição de facilidade que tende a transcender a
existência real eivada de paradoxos e contradições, ignorando-os simplesmente
a fim de escapar das situações delicadas e embaraçosas provocadas por eles. Tal
"aresta" onde Buber se coloca, é antes de mais nada o vislumbre da união
paradoxal da plenitude, superando as soluções de compromisso daquilo que
geralmente é entendido como dilemas ou alternativas: orientação-atualização,
Eu-Tu-Eu-Isso, dependência-liberdade, bem-mal, unidade-dualidade. A união dos
contrários permanece um mistério na profunda intimidade do diálogo. Diálogo é
plenitude.
De fato, "diálogo" é uma categoria que pode servir de via de acesso à
compreensão da obra de Buber. "Diálogo" foi o tipo de compromisso de relação
que a vida e a obra deste autor selaram entre si.
Apesar da vida de Buber ostentar profundas marcas de divisões, de
contrastes, de oposições, não é sob esta categoria de ruptura que devemos
abordá-la. Pode parecer uma divisão, a distinção existente entre dois períodos
de sua vida, o primeiro até 1938 (período alemão) e o segundo, de 1938 até sua
morte (período israelense). Eles, em verdade, estão estreitamente unidos. Sem
dúvida, Buber conheceu experiências drásticas de profunda ruptura, mas sua
vida permanece única, plenamente voltada para uma aspiração: o humano. Em
cada aspecto de sua vida e de sua obra, seja o aspecto filosófico, seja o aspecto
religioso, o político ou o existencial, um fator único os centraliza numa
mensagem vivida: o diálogo. Eu e Tu, publicado em 1923, no período alemão,
fundamenta suas obras posteriores, mesmo as datadas do período israelense, e
que versavam sobre educação, sociologia, política e principalmente sua
antropologia filosófica. Estas últimas nada mais são que explicações ou
manifestações enriquecidas por outras experiências existenciais da filosofia do
diálogo de Eu e Tu. Por outro lado, os seus estudos sobre Judaísmo e sobre
Hassidismo, no segundo período, refletem a intuição primitiva e o mesmo "elan"
de uma renovação em profundidade do Judaísmo apresentando primeiramente
em seus Ensaios Sobre o Judaísmo, publicado em 1909.
Não se pode falar propriamente de condicionamento de um dos temas
sobre os outros. O modo pelo qual Buber os relaciona ao longo de suas
reflexões, fazendo-os como que equifundamentantes, é a principal característica
de seu filosofar. Mesmo tratando dos mais diversos temas em qualquer dos
campos, separadamente,percebemos neles a presença marcante da unidade
que subjaz a todos eles. Por isso aquele que deseja ouvir o que Buber tem a
dizer, não poderá nunca operar qualquer cisão entre uma obra e outra. É
conveniente completar o estudo de Eu e Tu pela leitura de outros escritos tanto
de cunho filosófico, ensaios que compõem sua antropologia filosófica, ou por
exemplo, Caminhos de Utopia e outros escritos de cunho político e social, assim
como os ensaios e obras consagrados ao Judaísmo.
Ademais, é notável em Buber o sentido profundo de diálogo que se
estabelece entre sua própria vida e a sua reflexão. Ambas firmam um pacto de
profundo e mútuo compromisso. São auto determinantes. Para Buber, porém, o
conteúdo vivido da experiência humana, em todas as suas manifestações, vale
mais que qualquer sistematização conceitual.
Assim, o "diálogo" (a relação dialógica) não é uma categoria à qual ele
chegou por vias de raciocínio dedutivo, mas como ele próprio qualificou em Eu e
Tu, o encontro é essencialmente um evento e como tal ele "acontece". Sem
dúvida Buber foi profundamente marcado por aquilo que, quando ainda criança
em visita a uma comunidade hassídica, acontecia entre o hassid, sequioso de
palavras de conforto e orientação, e o tsadik, o guia da comunidade, que
confortava seus hassidim com palavras. Do mesmo modo foi singular para ele a
experiência na adolescência quando, em casa de seu avô, brincava com seu
cavalo favorito até que em dado momento "algo aconteceu", algo "foi dito" a ele
e ele respondeu ao apelo; o diálogo acontecera. A fonte de onde brotou o
dialógico era pois profundamente vivencial, concreta, existencial
3. Influências
a) Considerações Gerais
Martin Buber é mais pensador do que um filosofo acadêmico ou um
teólogo profissional. A vitalidade de seu pensamento toma sua força no sentido
da concretude existencial da experiência de presença ao mundo. A obra é
inexoravelmente unida à vida. A grande diferença entre Buber e grande parte
dos filósofos profissionais repousa no sentido que é atribuído à relação entre
uma questão teórica e a práxis. A uma questão qualquer os filósofos respondem
através da exposição de posições teóricas apelando para a experiência
existencial ou, digamos, para o plano empírico, somente como simples ilustração
para a retidão das teorias. Estas não mantêm para eles um vínculo profundo com
a práxis ou, se houver tal vínculo, ele é mais uma imposição de normas e
orientações que nunca surtem efeito, pois simplesmente ignoram o sentido
profundo da práxis. Esta nada tem a dizer. Buber, ao contrário, radica a gênese e
o desenvolvimento de sua reflexão na riqueza e na força vital de sua experiência
concreta. Em Buber reflexão e ação (logos e práxis) foram intimamente
relacionadas.
Embora Buber não deixe claro as suas referências filosóficas e históricas e
não se preocupe com sua inclusão no seio de um sistema ou de um contexto
histórico-filosófico, numa introdução parece-nos interessante não omitir a sua
situação dando uma referência ao clima onde seu pensamento se desenvolveu,
as influências que sofreu e o molde no qual seu pensamento tomou força.
Devemos retificar em parte a afirmação de que Buber não deixa claro, em seus
escritos, as referências às influências por ele sofridas. Ele afirmou com clareza a
sua dívida para com Feuerbach quando diz que dele recebeu um impulso
decisivo com relação ao sentido do Eu e do Tu e, de um modo geral, no que diz
respeito à questão antropológica (Cfr. "O Problema do Homem", pág. 46 da
tradução francesa).
Distinguiremos dois tipos de influências e experiências que gravitam
ativamente na intuição criadora de Buber. No primeiro, de ordem filosófica,
incluiremos algumas personalidades que estiverem presentes na reflexão de
Buber e o clima ou movimento filosófico dentro do qual se situam Buber e sua
obra. No segundo, englobaremos, de modo geral, o misticismo — budista, o
taoísta e o judaico — mais particularmente a mística hassídica.
Vários fatores provocaram em Buber a nostalgia do humano. Muitas
influências de força variada serviram como provocação, outras como "elan" para
a reflexão, outras como suporte ou como clima. Não nos é possível, no âmbito
desta introdução, um estudo minucioso dessas influências, embora
reconheçamos sua importância. Podemos, no entanto, enumerá-las, e consagrar
um momento para aquela que foi pelo menos bastante significativa ao seu
pensamento e que a nosso ver contribuiu decisivamente para a compreensão do
sentido da mensagem por ele legada aquela que tê-lo-ia despertado para a
procura incansável do "paraíso perdido": a nostalgia do humano. Tal influência
foi o Hassidismo. Um estudo minucioso e profundo sobre as influências sofridas
por Buber pode ser encontrado na notável obra de Hans Kohn: Martin Buber sein
Werk und seine Zeit (Martin Buber sua Obra e seu Tempo).
Talvez Feuerbach seja um dos autores mais citados na obra de Buber. Em
suas próprias palavras, disse ele que recebeu, como já afirmamos, de Feuerbach
um impulso decisivo para a construção de sua filosofia do diálogo. Primordial no
pensamento de Feuerbach sobre o conhecimento do homem é que ele considera
este como o objeto mais importante da filosofia. Ele não vê o homem enquanto
indivíduo, mas como a relação entre o eu e o tu. No parágrafo 59 de sua obra
Princípios da Filosofia do Futuro, Feuerbach afirma: "O homem, individualmente
não possui a natureza humana em si mesmo nem como ser moral nem como ser
pensante. A natureza do homem não é contida somente na comunidade, na
unidade que repousa exclusivamente sobre a realidade da diferença entre o eu e
o tu". Feuerbach rejeita a filosofia da identidade absoluta, pois, esta leva a uma
negação das distinções imediatas (isto está bem claro no parágrafo 56 da mesma
obra). Feuerbach estabelece a distinção entre eu e tu como forma de rejeição ao
idealismo. Buber, retomando a intuição de Feuerbach, dirigiu seu interesse para
a relação entre os seres humanos. A maior critica que Buber apresentou à tese
de Feuerbach diz respeito à substituição, feita por Feuerbach, da relação com
Deus pela relação eu e tu. Buber ainda criticou o método postulativo de
Feuerbach — segundo Buber, este método impediu que Feuerbach levasse
adiante suas intuições e suas afirmações.
É patente certa afinidade entre Buber e Kant. Há íntima relação entre as
idéias de Buber e o princípio kantiano no plano da moral: não devemos tratar
nosso semelhante simplesmente como meio, mas também como um fim; nos
diversos tipos de relação Eu-Tu, o homem é considerado como fim e não como
meio. Há sem dúvida vários modos através dos quais trato meu Tu como meio
(eu peço sua ajuda, eu solicito uma informação), assim como há diversas
maneiras pelas quais sou tratado como meio. O encontro onde a totalidade do
homem está presente e onde existe total reciprocidade é um dos modos de Eu
Tu. É errado catalogar todos os outros modos de Eu-Tu, que não conhecem a
total reciprocidade como modos de EU-ISSO.
Tanto a obra como o estilo de Nietzsche marcaram profundamente o
pensamento de Buber. Como já vimos, o próprio Buber relata a impressão
causada pelo livro Assim Falava Zaratustra, ainda na sua fase de adolescência.
Merecem especial destaque os seus mestres mais próximos Dilthey e
Simmel. Franz Rosenzweig, líder da Academia Judaica Livre de Frankfurt e amigo
intimo do autor esteve também presente nas reflexões de Buber, sobretudo
através da obra "Der Stern der Erloesung" (A estrela da Redenção), publicada em
1921.
Gustav Landauer também exerceu influência sobre Buber. A amizade com
Landauer proporcionou significativa riqueza de idéias para Buber. Desde o
primeiro encontro em Berlin por volta de 1900 até a morte de Landauer em
1922, uma grande amizade uniu os dois pensadores. De um modo particular,
foram as concepções de Landauer sobre o conceito de comunidade que
chamaram a atenção de Buber. Além disso, ambos estavam interessados no
estudo da mística. Foi a primeira edição moderna dos escritos de Mestre Eckart,
editada por Landauer, que levou Bubera estudar o pensamento místico alemão.
O método de Buber na coleta na compilação dos contos hassídicos bastante se
assemelha com o método empregado por Landauer na sua edição e
interpretação da obra do Mestre Eckart.
Se quiséssemos inserir Buber dentro de uma corrente do pensamento
filosófico talvez pudéssemos optar pela Filosofia da Vida ("Lebensphilosophie").
Neste ponto é marcante a influência de seu mestre Dilthey. Do mesmo modo,
muitas das afirmações, passagens ou conceitos utilizados por Buber permitem
aproximá-lo de um certo "intuicionismo". Porém, estas duas correntes não
poderiam ser tomadas aqui no seu sentido técnico ou como é usualmente
empregado na história da filosofia. Avançamos esta afirmação com todo o
cuidado, pois qualquer precipitação ao generalizar acarretaria em erro histórico
Buber não se filia a movimento filosófico algum, ainda que possamos, com
cuidado, aproximá-lo de uma corrente ou de um método. Sem dúvida alguma,
Buber é tributário de uma época; várias vezes ele deve pagar um certo preço
pela própria situação histórica que vivenciou.
De modo geral, não é difícil constatar que as obras de Buber revelam um
profundo compromisso com a vida. A vida é realizada e confirmada somente na
concretude do "cada-dia". Segundo Buber, o projeto da filosofia é explicitar a
concretude vivida da existência humana a partir do próprio interior da vida.
Percebe-se que este pacto com a existência concreta levou Buber a uma postura
um tanto cética frente aos sistemas filosóficos. Tal atitude de reserva e de certo
ceticismo era comum na tradição da "Lebensphilosophie". O trecho de uma das
importantes obras de Buber a que aludimos há pouco, onde ele falava da
"estreita aresta", denota esta atitude cética não só para com os sistemas
filosóficos mas também para com a atitude filosófica de um modo geral. Para
Buber, a filosofia e o filosofar são primordialmente atos de abstração. Esta
afirmação implica uma crítica à maneira de abordar a realidade, na medida em
que estes atos de abstração nos separam da concretude da existência vivida.
Abordando o sentido do estudo da existência humana (do conhecimento
antropológico), Buber é suficientemente claro em estabelecer a distinção entre a
abstração e o conhecimento antropológico, opondo entre si os dois modos de
abordagem. Aquela nos separa da vida enquanto que este tenta abordar o fluxo
concreto da vida partindo de seu interior. A abordagem própria à antropologia
filosófica deve ser realizada como um ato vital. "Aí não se conhecerá", diz Buber
referindo-se à abordagem antropológica, "permanecendo na praia
contemplando as espumas das ondas. Deve-se correr o risco, é necessário atirar
se na água e nadar" (Cfr. O Problema do Homem, página 18 da tradução
francesa).
Várias afirmações de Buber permitem aproximá-lo do intuicionismo. Este
deve ser entendido como uma participação na concretude da vida, em oposição
ao conhecimento conceitual próprio de um espectador alienado à concretude do
fluxo existencial. Buber critica a teoria Bergsoniana da intuição, pois vê nela um
certo perigo. Com efeito, no ato da intuição, pode-se ser subjugado pelo ato da
intuição sem, com isso, atingir a verdadeira realidade do objeto intuído que se
coloca aquém do momento de presença, momento este em que se realiza a
intuição. Podemos dizer simples e deliberadamente (o âmbito desta introdução
não nos permite aprofundar tais afirmações) que Buber se aproxima da
perspectiva intuicionista na medida em que distingue radicalmente duas atitudes
se situação no mundo, dando primazia à atitude pré-cognitiva e pré-reflexiva
(não-conceitual) existente entre o homem e o ente que se lhe defronta no
evento da relação dialógica.
Por fim notemos que vários conceitos utilizados por Buber e cujo sentido
se aproxima daquele dado pelo intuicionismo decorrem também da influência
exercida por Dilthey.
O interesse que norteou Buber para o estudo das fontes da mística e dos
ensinamentos judaicos teve sua origem num sentimento profundo de carência
de fundamento de sua própria existência. Esta procura de raízes o conduziu para
aquilo que, sob diversas formas, podemos chamar de "auto-afirmação judaica".
O primeiro passo foi sua participação, ainda nos tempos de universidade no
movimento sionista. Porém, logo em seguida, ele liderou o movimento de
oposição contra a facção política comandada por Theodor Herzl, radicalizando a
cisão no seio da instituição. A fundação de um Estado político não deveria ser
senão uma fase do renascimento judaico.
Foi ainda o descontentamento consigo mesmo que o conduziu ao estudo
da mística judaica, estudando os místicos alemães Mestre Eckart e Angelus
Silesius. Encontrou-se assim com a mística hassídica cuja vitalidade operou uma
transformação em seu pensamento. De um intelectual alemão à procura de
raízes judaicas Buber passou a ser um pensador cujo espírito era profundamente
judaico. A paixão pelo humano encontrava raízes na sua lealdade para com o seu
povo.
Exatamente nesta época, quando aprofundava seus contatos com o
Hassidismo, lhe sobreveio um novo tipo de estímulo intelectual: as primeiras
traduções das obras de Kierkegaard. O teor da mensagem soava-lhe como uma
exigência de que toda a filosofia deveria ser centrada na existência concreta do
indivíduo. Embora diferentes em suas manifestações, Kierkegaard e Nietzsche
rejeitavam o idealismo filosófico. Enquanto Kierkegaard rejeitava o racionalismo
filosófico a partir da afirmação da fé religiosa, Nietzsche o fazia a partir da
criatividade humana.
De uma fase mística Buber passou por uma fase existencial cujo principal
exemplo é Daniel, obra publicada em 1913. A união com o Absoluto já não era
mais procurada por ser ilusória, ela não opera a união no interior da existência
individual; nela o próprio ser não é levado à sua verdadeira integração e a
separação interior permanece. O próprio conceito de unidade será visto
posteriormente como uma falha na sua abordagem valorativa da existência
humana. Eu e Tu contém severas críticas à proposta mística da unidade. Esta
categoria será substituída pela categoria da relação que é fundamental para a
compreensão do sentido da existência humana. "No princípio é a relação". A
relação, o diálogo, será o testemunho originário e o testemunho final da
existência humana.
b) O Hassidismo
Buber é conhecido tanto pela sua filosofia do diálogo como pelos seus
estudos sobre o Hassidismo, sobretudo pela sua obra "Die Erzaehlungen der
Chassidim", que apareceu em tradução portuguesa sob o título "Histórias do
Rabi" (Editora Perspectiva).
Embora não encarasse sua tarefa como um empreendimento
hermenêutico e histórico, Buber legou ao Ocidente uma das tradições religiosas
de grande riqueza mística e espiritual. O assíduo contato e a intimidade que
manteve, durante anos, com este movimento da mística hassídica
representaram para Buber mais do que uma simples influência, o clima ou o
molde do seu pensamento.
Diz Buber que um dos aspectos mais vitais do movimento hassídico é o
fato de que os hassidim contavam entre si histórias sobre seus líderes, os
tzadikim. Grandes coisas haviam presenciado, participando delas e a eles
cumpria relatá-las, testemunhá-las. "A palavra utilizada para narrá-las é mais que
mero discurso, transmite às gerações vindouras o que de fato ocorreu, pois a
própria narrativa passa a ser acontecimento, recebendo consagração de um ato
sagrado" (Cfr. Histórias do Rabi, pág. 11).
Não se trata de uma mera coletânea elaborada por Buber, pois, como ele
mesmo afilam, "o que os hassidim narravam em louvor de seus mestres não
podia ser enquadrado em qualquer molde literário já formado ou em
formação"... "O ritmo interno dos hassidim é por demais acelerado para a forma
calma de narrativa popular, queriam dizer muito mais do que ela podia conter"
(Idem, pág. 12). Buber entendeu sua tarefa como uma sorte de "informação" —
no sentido de dar formas — destas lendas que os hassidim contavam sobre seus
tzadikim. E mais, "devido ao elemento sagrado que a enforma devido à vida dos
tzadikime à alegria elevada dos hassidim, essa lenda é metal precioso, embora
por vezes impuro, misturado à escória" (Idem, pág. 13).
Contrariamente a algumas críticas que lhe foram dirigidas, Buber não
utiliza a massa informe das lendas como um veículo de suas próprias idéias a
respeito da mística hassídica. Os personagens principais — os tzadikim — não
são meros porta-vozes daquilo que Buber pretensamente havia colocado em
suas bocas, ou no entusiasmo dos que reletavam — os hassidim — para o bem
de sua causa, ou de sua filosofia do diálogo, ou de suas idéias sobre Deus,
religião ou mística. Buber nos narra o que ele ouviu e não o que ele nos queria
falar. O metal precioso de que fala Buber, poderia ser melhor entendido como
pedra preciosa, um diamante que deverá ser lapidado. O fato de que ele não
acrescenta nada em seu relato destas histórias, não significa que Buber nô-las
deu como encontrou, ou que nos relatou tudo o que encontrou; ele atingiu a
perfeição através da lapidação, do esmero. Ele próprio diz que "Histórias do
Rabi" por exemplo, contém um décimo de tudo o que foi coletado. Este livro, em
bela tradução, vai nos mostrando pedras preciosas, uma após as outras, sem
haver estabelecimento de hierarquia entre elas. Todas revelam o sentido
religioso e humano da existência concreta dos tzadikim dentro de uma tradição
religiosa viva e cheia de piedade.
Herman Hesse, referindo-se a esta obra de Buber, afirmou em carta
datada de 1950: "Buber, como nenhum outro autor vivo, enriqueceu a literatura
universal com um genuíno tesouro".
Pode-se afirmar que Buber encontrou-se duas vezes com o Hassidismo. A
primeira, em sua infância, quando acompanhou o pai durante uma visita a uma
comunidade hassídica de Sadagora na Galícia (Polônia). Nesta ocasião
misturavam-se a espontaneidade de uma criança aberta ao mundo, que vive
todas as experiências e permanece nelas, e uma comunidade que ainda
retratava a primitiva comunidade dos primeiros discípulos do Baal-Schen-Tov.
Em seu trabalho "Meu Caminho para o Hassidismo", Buber, relatando aquele
encontro, afirmou que recebeu tudo como criança, isto é, não como
pensamento mas como imagem e sentimento.
As recordações deste encontro desvaneceram através dos anos até que à
procura de raízes e de sua auto-afirmação encontrou-se com o movimento
sionista que representou um retorno ao judaísmo na vida de Buber. Foi então
que um livro, Testamento de Israel Baal-Schen-Tov caiu-lhe às mãos e sua leitura
fê-lo experimentar a alma hassídica; nessa época ele vislumbrou o significado
primitivo de ser judeu. "Eu via aberto a mim", diz Buber, "o judaísmo como
religiosidade, como piedade, como Hassidismo. As imagens de minha infância, a
lembrança do tzadik e de sua comunidade me iluminaram e me levantaram, e
reconheci a idéia do homem perfeito. Ao mesmo tempo descobri a vocação de
proclamar isto ao mundo" ("Meu Caminho para o Hassidismo", pág. 89 de
"Hinweise").
No judaísmo da diáspora sempre houve comunidades cujos membros se
chamavam "hassid" (piedoso, devoto). O Hassidismo surgiu na Polônia, no século
XVIII. Caracterizava-se por um esforço de renovação da mística judaica. Um traço
comum a todas essas comunidades hassídicas é que por sua santidade, piedade
e união com Deus, aspiravam a uma vida santificada aqui na Terra. Esta nova
manifestação do judaísmo é uma vida nova, na qual o antigo e o tradicional são
aceitos e se mostram transfigurados na simples e cotidiana existência de cada
um, para lhe proporcionar uma nova luz. Com o Hassidismo aparece um novo
sentido de piedade. A manifestação deste espírito de renovação se concretizava
na pessoa do tzadik, o mestre, o líder da comunidade. O fundador do movimento
foi Rabi Israel ben Eliezer, apelidado de Baal-Shen-Tov, o possuidor do Bom
Nome (1700-1760). Ele e seus discípulos se dedicaram à uma vida de fervor,
alegria e piedade. Representavam uma reação contra o rabinismo tradicional, na
sua tendência legalista e intelectual; enfatizavam a simplicidade, a devoção de
cada dia, na concretude de cada momento e na santificação de cada ação. Esta
ênfase na piedade e no amor de Deus tem suas raízes nos Profetas e nos Salmos.
Se quisermos situar o Hassidismo no contexto do Judaísmo pós-bíblico,
podemos considerá-lo, segundo M. Friedman, como o encontro de três
correntes: a lei judaica apresentada na Halakhah e a tradição mística judaica ou
Kabbalah. O Hassidismo não admite divisão entre ética e religião. Não há
distinção entre a relação direta com Deus e a relação com o companheiro.
Ademais, a ética não se limita a uma ação ou a uma regra determinada. No
Hassidismo a Kabbalah se tornou ethos, afirma Buber; este movimento não
reteve da Kabbalah senão o necessário para a fundamentação teológica de uma
vida inspirada na responsabilidade de cada indivíduo pela parte do mundo que
lhe foi confiada.
Buber resumiu assim o sentido da mensagem hassídica: Deus pode ser
contemplado em cada coisa, e atingido em cada ação pura. "O ensinamento
hassídico é essencialmente uma orientação para uma vida de fervor, em alegria
entusiástica" (Histórias do Rabi, pág. 20). Este ensinamento não é uma teoria
que existe independentemente de sua realização, mas é a contemplação teórica
de vidas realmente vividas por tzadikim e hassidim. Vê-se um novo tipo de
relação entre o mundo e Deus, que não é simplesmente panteísta, pois não há
absorção de um pelo outro. A imanência de Deus não implica absorção do
mundo por Deus. Pelo contrário, ao afirmar esta relação, a doutrina hassídica
pode ser qualificada de panenteísta, isto é, longe de uma identificação entre
Deus e mundo ela significa e afirma a realidade do mundo como mundo-em
Deus. "O comércio real do homem com Deus tem não só seu lugar, mas também
seu objeto no mundo. Deus se dirige diretamente ao homem por meio destas
coisas e destes seres que Ele coloca na sua vida: o homem responde pelo modo
pelo qual ele se conduz em relação a estas coisas e seres enviados de Deus"
(Prefácio de Livros Hassidicos, cfr. tradução francesa do prefácio na revista Dieu
Vivant, 1945, pág. 18).
O Hassidismo retoma o ensinamento de Israel e lhe dá uma expressão
prática. Já que o mundo é a "morada" de Deus, ele se torna por isso — do ponto
de vista religioso — um sacramento (idem). Para Buber, o Hassidismo denunciou
e afastou o perigo da separação entre a "vida em Deus" e "a vida no mundo".
Buber considera, aliás, esta separação como o pecado original e a doença infantil
de toda "religião". Ele "eliminou" definitivamente o muro que dividia o sagrado e
o profano, ensinando a executar toda ação profana como santificada. O
Hassidismo realiza uma união autêntica e concreta. "Sem resvalar para o
panteísmo", diz Buber, "que aniquila ou debilita o valor dos valores — a
reciprocidade da relação entre o humano e o divino, a realidade do Eu e do Tu
que não cessa mesmo à beira da eternidade — o hassidismo tornou manifestas,
em todos os seres e todas as coisas, as irradiações divinas, as ardentes centelhas
divinas, e ensinou como se aproximar delas, como lidar com elas e, mais, como
elevá-las, redimi-las e reatá-las à sua raiz primeira (Histórias do Rabi, pág. 21). O
Hassidismo ensina a todos a presença do Deus no mundo.
Como será o homem responsável pela tarefa de realizar Deus no mundo?
"Se diriges a força integral de tua paixão ao destino universal de Deus, se fizeres
aquilo que tens a fazer, seja o que for, simultaneamente com toda tua força e
com essa intenção, sagrada, a Kavaná, reúne Deus e a Schehiná, eternidade e
tempo. Para tanto não precisas ser erudito, nem sábio: nada é necessário exceto
uma alma humana, unida em si e dirigida indivisamente para o seu alvo divino"
(Idem, pág. 22).
O Hassidismo concretizou profundamente, como nos mostram as
"Histórias do Rabi", três virtudes que se tornaram essenciais para a realização da
tarefa de cada um: o amor, a alegria e a humildade. Foi pelo amor que o mundo
foi criado e é através dele que será levado à perfeição. O temor de Deus é
somente uma porta que leva ao amor de Deus, que ocupalugar central na
relação entre Deus e o homem. Deus é amor, é a capacidade de amar, é a mais
profunda participação do homem em Deus.
A alegria entusiástica provém do reconhecimento da presença de Deus em
todas as coisas. A humildade é a procura constante do verdadeiro si-mesmo que
atinge sua perfeição como parte de um todo, de uma comunidade. Todas as
virtudes atingem sua perfeição pela oração no sentido mais alto de qualquer
ação santificada em qualquer momento do dia ou da noite.
A verdadeira relação com o tzadik sustentará o hassid em sua busca de
realização. O tzadik é o amparador do corpo e da alma. A grande tarefa do tzadik
é facilitar aos seus hassidim a relação imediata com Deus e não substitui-la. Ele
deverá orientar o hassid em sua tensão, em seu ir-em-direção-a-Deus. "Um dos
princípios fundamentais do hassidismo", diz Buber, "é que o tzadik e o povo
dependem um do outro..." Sobre sua inter-relação repousa a realidade hassídica.
"Aqui tocamos aquela base vital do hassidismo, da qual se esgalha a vida entre
entusiasmadores e entusiasmados. A relação entre o tzadik e seus discípulos é
tão somente a sua mais intensa concentração. Nesta relação, a reciprocidade se
desenvolve no sentido da máxima clareza. O mestre ajuda os discípulos a se
encontrarem e, nas horas de depressão, os discípulos ajudam o mestre a
reencontrar-se. O mestre inflama as almas dos discípulos; e eles o rodeiam e
iluminam. O discípulo pergunta e, pela forma de sua resposta, evoca, sem o
saber, uma resposta no espírito do mestre, a qual não teria nascido sem essa
pergunta" (Histórias do Rabi, pág. 25).
A vitalidade do fervor religioso, o ensinamento completado pela prática
cotidiana e concreta; um novo tipo de relação com Deus, de "serviço" a Deus
através do mundo; um profundo espírito de comunidade; o amor como
elemento fundamental; a inter-relação, no autêntico inter-humano do tzadik e
seus hassidim formando a comunidade; a alegria entusiástica; o novo sentido do
mundo e das relações do homem com o mundo; a transposição da divisão entre
o sagrado e o profano, tais são algumas das principais facetas do ensinamento
hassídico que marcaram decisivamente o pensamento e a vida de Buber.
A intimidade de Buber com o hassidismo repousa sobre uma inefável
relação de simpatia. Ela produziu um vínculo de autopatia, isto é, se Buber
dilapidou as "histórias" auxiliando-as a se manifestarem mais claramente, do
mesmo modo, a mensagem do hassidismo fecundou e provocou o pensamento
de Buber. Talvez se pudesse falar de remodelagem mútua. O Hassidismo foi o
farol convidativo, decisivo e provocador de uma tomada de consciência da tarefa
e do sentido da existência humana no mundo.
4. Eu e Tu, de uma Ontologia da Relação a uma Antropologia do Inter
humano
Eu e Tu representa, sem dúvida, o estágio mais completo e maduro da
filosofia do diálogo de Martin Buber. Ele a considera como sua obra mais
importante: obra na qual apresentou, de modo mais completo e profundo, sua
grande contribuição à filosofia. Eu e Tu não é simplesmente uma descrição
fenomenológica das atitudes do homem no mundo ou simplesmente uma
fenomenologia da palavra, mas é também e sobretudo uma ontologia da
relação. Podemos dizer que a principal intuição de Buber foi exatamente o
sentido de conceito de relação para designar aquilo que, de essencial, acontece
entre seres humanos e entre o Homem e Deus.
A reflexão inicial de Eu e Tu apresenta a palavra como sendo dialógica. A
categoria primordial da dialogicidade da palavra é o "entre". Mais do que uma
análise objetiva da estrutura lógica ou semântica da linguagem, o que faria da
palavra um simples dado, Buber desenvolve uma verdadeira ontologia da
palavra atribuindo a ela, como palavra falante, o sentido de portadora de ser. É
através dela que o homem se introduz na existência. Não é o homem que
conduz a palavra, mas é ela que o mantém no ser. Para Buber a palavra proferida
é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem. Ela é um ato do
homem através do qual ele se faz homem e se situa no mundo com os outros. A
intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da palavra que, pela
intencionalidade que a anima, é o princípio ontológico do homem como ser
dialogal e dia-pessoal. As palavras-princípio ("Grundwort") são duas
intencionalidades dinâmicas que instauram uma direção entre dois pólos, entre
duas consciências vividas.
Na verdade Eu e Tu pode ser considerada a obra mais importante de
Buber não só pelo vigor do pensamento ou pela atualidade de sua mensagem,
mas também pelo fato de que ela se situa no centro ou no começo de toda a
obra: é a chave ou a via de acesso a todos os outros escritos pertinentes aos
mais diversos domínios onde se manifestou a atividade reflexiva de Buber. Obra
de maturidade, Eu e Tu teve conseqüências diretas nas suas obras posteriores
sobre antropologia filosófica, educação, política, sociologia, bem como nos seus
estudos e exegeses da Bíblia e sobre o Hassidismo ou o Judaísmo. Todas as
influências de filósofos ou de correntes filosóficas, do pensamento místico em
geral, do Budismo, do Taoísmo, da mística judaica e do Hassidismo se encontram
nesta monumental reflexão, verdadeira obra-prima da primeira metade do
século. A mensagem de Eu e Tu, em cada uma de suas três etapas, apresenta
temas que ainda hoje provocam e fecundam nossa reflexão.
A base de Eu e Tu não é constituída por conceitos abstratos mas é a
própria experiência existencial se revelando. Buber efetua uma verdadeira
fenomenologia da relação, cujo princípio ontológico é a manifestação do ser ao
homem que o intui imediatamente pela contemplação. A palavra, como
portadora de ser, é o lugar onde o ser se instaura como revelação.
A palavra é princípio, fundamento da existência humana. A palavra
princípio alia-se à categoria ontológica do "entre" ("zwischen") objetivando
instaurar o evento dia-pessoal da relação. A palavra como diálogo é o
fundamento ontológico do inter-humano.
O fato primitivo para Buber é a relação. O escopo último é apresentar uma
ontologia da existência humana, explicitando a existência dialógica ou a vida em
diálogo. As principais categorias desta vida em diálogo são as seguintes: palavra,
relação, diálogo, reciprocidade como ação totalizadora, subjetividade, pessoa,
responsabilidade, decisão-liberdade, inter-humano.
Mais do que uma metafísica ou uma teologia sistemática, Eu e Tu é uma
reflexão sobre a existência humana. A questão antropológica do sentido da
existência interpelou Buber. Tudo o mais está integrado a esta questão. Por
exemplo, a problemática de Deus, ponto importante nas obras de Buber, é
integrada na questão da pessoa humana, ser de relação. Assim, Deus será o Tu
ao qual o homem pode falar e nunca algo sobre o qual ele discorrerá sistemática
e dogmaticamente. O Tu eterno é aquele que nunca poderá ser um Isso. Sobre a
questão de Deus, a intuição fundamental de Buber é entender o novo tipo de
relação que o homem pode ter com Ele, porque para o homem não importa
talvez o que Deus é em sua essência, mas sim o que Deus é em relação a ele,
homem. Deus é, pois, Aquele com o qual o homem pode estabelecer uma
relação interpessoal. Buber encaminha o problema de Deus, ultrapassando a
dicotomia sagrado-profano, através da realidade da existência humana.
Eu e Tu se apresenta em três partes. Segundo um antigo projeto de Buber
abandonado logo no início, Eu e Tu representava o primeiro capítulo ou a
primeira parte de uma obra em cinco partes. Esta primeira parte, Eu e Tu, Buber
a subdividiu nos seguintes tópicos: 1. Palavras; 2. História; 3. Deus.
A ontologia da relação será o fundamento para uma antropologia que se
encaminha para uma ética do inter-humano. Diz-se então que o homem é um
ente de relação ou que a relação lhe é essencial ou fundamento de sua
existência. Com isso assistimos ao encontro do pensamento de Buber com a
tradição fenomenológica, na medida em que grande parte dos filósofos que a ela
pertencem partem também deste princípio do homem como ser situado no
mundo com ooutro. O maior mérito que cabe a Martin Buber está no fato de ter
acentuado de um modo claro, radical e definitivo as duas atitudes distintas do
homem face ao mundo ou diante do ser. As atitudes, como veremos adiante, se
traduzem pela palavra-princípio Eu-Tu e pela palavra-princípio Eu-Isso. A
primeira é um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros
na reciprocidade e na confirmação mútua. A segunda é a experiência e a
utilização, atitude objetivante. Uma é a atitude cognoscitiva e a outra atitude
ontológica.
O sentido que Buber atribuiu ao conceito de relação, aliado à radical
distinção ontológico-existencial, é uma aquisição que terá profundas influências
para a abordagem da existência humana. Não se pode mais prescindir destas
reflexões em qualquer perspectiva que se tome do humano, seja na antropologia
filosófica ou em ciências humanas. Se a sua afirmação da existência humana
como ser de relação não é original — aliás o próprio Buber reconheceu ter
recebido o impulso decisivo de Feuerbach —, o mesmo não se pode dizer no que
se refere à distinção que ele estabeleceu entre as duas atitudes do homem e os
dois tipos de mundo a elas correspondentes.
De qualquer forma, sua penetrante e vigorosa reflexão e o modo profético
com que lança sua mensagem baseada nestes dois princípios da existência
humana — o dialógico e o monológico — e sobretudo a coerência e intimidade
entre Eu e Tu e o restante de sua vasta obra, colocam-no em um lugar,
inquestionavelmente singular na História da Filosofia e do pensamento
contemporâneo. Todos aqueles que abordaram os mesmos temas, fundamentais
em filosofia, não o fizeram com tão grande profundidade e beleza de linguagem.
O mundo é múltiplo para o homem e as atitudes que este pode apresentar
são múltiplas. A atitude é um ato essencial ou ontológico em virtude da palavra
proferida. Cada atitude é atualizada por uma das palavras-princípio, Eu-Tu ou Eu
Isso. A palavra-princípio, uma vez proferida, fundamenta um modo de existir. Ela
é uma palavra originária, fundamental, "Grundwort". O homem, como já foi dito,
é um ser de relação. Podemos nos referir aqui ao conceito de intencionalidade
como ele é entendido na fenomenologia. A relação não é uma propriedade do
homem, assim como a intencionalidade não significa algo que esteja na
consciência, mas sim algo que está entre a consciência e o mundo ou o objeto.
Sendo assim, a relação é também um evento que acontece entre o homem e o
ente que se lhe defronta. Não é o homem que é o condutor da palavra mas é
esta que o conduz e o instaura no ser. Notemos aqui nítidas reminiscências
judaicas sobre o sentido dado à palavra que não é logos (razão), mas dabar. A
atitude de abertura do homem e a doação originária do ser formam a estrutura
da relação Eu-Ser. "A essência do ser se comunica no fenômeno", diz Buber. A
contemplação é a atitude que instaura a presença imediata do homem-Eu ao
mundo.
Dentre as múltiplas atitudes que o homem pode apresentar diante do
mundo, Buber destaca duas que são as duas possibilidades do Eu revelar-se
como humano. Em face da doação do ser no fenômeno, o homem, Eu, profere a
palavra-princípio. Em outros termos o homem pode atender ao apelo do ser. Tal
decisão é essencialmente passiva e ativa, ela é uma atitude de aceitação ou de
recusa. Estas duas atitudes, repetimos, são atualizadas pelas palavras-princípio
proferidas. Ser Eu significa proferir uma das duas palavras. Sendo a palavra
portadora de ser, o homem que a profere existe autenticamente graças a ela.
Existir como Eu ou proferir a palavra-princípio é uma e mesma coisa. A própria
condição de existência como ser-no-mundo é a palavra como diálogo. Há uma
distinção radical entre as duas palavras-princípio. O Eu de uma palavra-princípio
é diferente do Eu da outra. Isso não significa que existem dois "Eus" mas sim a
existência de uma dupla possibilidade de existir como homem. A estrutura toda
é dual. Há dois mundos, duas relações. Chamamos relação para Eu-Tu e
relacionamento para Eu-Isso. Tu e Isso são duas fontes onde a eficácia da palavra
se desenvolve constituindo a existência humana. As torrentes caudalosas que
brotam do Isso, das coisas, provêm de um modo convergente da fonte
primordial que é o Tu. O Tu é primordial e conseqüentemente o Isso é posterior
ao Tu. "No princípio é relação". A abordagem reflexiva, cognoscitiva de objetos,
do Isso, só poderá ser levada a efeito na medida em que passa pelo lugar
ontológico do encontro de duas pessoas. Não constitui novidade o que muitos
filósofos contemporâneos afirmam sobre a prioridade da relação ontológica
sobre a relação cognoscitiva do homem com o mundo. Sem dúvida, tanto estes
filósofos como o próprio Buber souberam estar atentos e se enriquecer da
mesma fonte.
O fenômeno da relação foi descrito por Buber com o emprego de vários
termos: diálogo, relação essencial, encontro. Devemos estar atentos ao sentido
de cada um deles. Por exemplo, encontro e relação não são a mesma coisa. O
encontro é algo atual, um evento que acontece atualmente. A relação engloba o
encontro. Ela abre a possibilidade da latência; ela possibilita um encontro
dialógico sempre novo. Mesmo durante o relacionamento Eu-Isso o homem
guardaria a possibilidade de uma nova relação. "Beziehung", é uma possibilidade
de atualização do encontro dialógico, "Begegnung".
O dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno do inter
humano. Inter-humano implica a presença ao evento de encontro mútuo.
Presença significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade é a marca
definitiva da atualização do fenômeno da relação. O "entre" é assim considerado
como a categoria ontológica onde é possível a aceitação e a confirmação
ontológica dos dois pólos envolvidos no evento da relação.
As duas palavras-princípio instauram dois modos de existência: a relação
ontológica Eu-Tu e a experiência objetivante Eu-Isso. Esta diferença
antropológica se fundamenta no conceito de totalidade que determina a relação
ontológica Eu-Tu. "A palavra-princípio só pode ser proferida pelo ser na sua
totalidade".
As duas palavras-princípio ao se atualizarem não só estabelecem dois
modos de ser-no-mundo, mas também imprimem uma diferença no estatuto
ontológico do outro. No entanto, o fundamento cabe à palavra-princípio Eu-Tu.
Segundo Buber o Tu ou a relação são originários. O Tu se apresenta ao Eu como
sua condição de existência, já que não há Eu em si, independente; em outros
termos o si-mesmo não é substância mas relação. O Eu se torna Eu em virtude
do Tu. Isto não significa que devo a ele o meu lugar. Eu lhe devo a minha relação
a ele. Ele é meu Tu somente na relação, pois, fora dela, ele não existe, assim
como o Eu não existe a não ser na relação. "É falso dizer que o encontro é
reversível", afirma Buber. "Nem meu Tu é idêntico ao Eu do outro nem seu Tu é
idêntico ao meu Eu. À pessoa do outro eu devo o fato de que eu tenho este Tu;
porém o meu Eu — que deve aqui ser entendido como o Eu da relação Eu-Tu —
eu o devo ao fato de dizer Tu, não à pessoa à qual eu digo Tu" (Replies to my
Critics, pág. 697, em The Phylosophy of Martin Buber. Editado por Schilpp. P. A. e
Friedman, M.).
O "entre", o "intervalo" é o lugar de revelação da palavra proferida pelo
ser. Este intervalo existe entre Eu e Tu e entre Eu e Isso. Não há conhecimento
de um indivíduo, mas este relacionamento Eu-Isso funda-se em última análise no
inter e dia-pessoal. Há uma conivência ontológica entre o Eu e o Tu para o
conhecimento do mundo. Como diz Bachelard, coisas infinitas como o céu, a
floresta e a luz, não encontram seu nome senão dentro de um coração amante.
A co-participação dialogal é o fundamento ontológico do existir e de suas
manifestações. A compreensão do ser é tributária desta participação dialogal no
eixo Eu-Tu envoltos na vibração recíproca do face-a-face.
Buber estabelece, como vimos, uma distinção entre as duas palavras
princípio. Para que o evento instaurado pela palavra-princípio Eu-Tu seja
dialógico é necessário o elemento de totalidade. Totalidadenão é simples soma
dos elementos da estrutura relacional. Esta totalidade se vincula à totalidade do
próprio participante do evento. Esta totalidade do Eu que profere a palavra
princípio deve ser entendida como um ato totalizador, uma concentração em
todo o seu ser. O homem está apto ao encontro na medida em que ele é
totalidade que age. Mais que a independência do todo, como evento relacional,
único, Buber entende a totalidade como independência da própria relação em
face dos componentes desta estrutura. Porém esta independência não é
absoluta, mas relativa: cada elemento da estrutura considerado isoladamente é
pura abstração. O evento "acontece" em virtude do encontro "entre" o Eu e o Tu
na reciprocidade da ação totalizadora. A totalidade presente no Eu-Tu não é
simplesmente a soma das sensações internas do seu psicológico. A totalidade
precede ontologicamente a separação. A palavra Eu-Tu precede a palavra Eu
Isso. Eu-Isso é proferido pelo Eu como sujeito de experiência e utilização de
alguma coisa. A inteligência, o conhecimento conceitual que analisa um dado ou
um objeto é posterior à intuição do ser. Eu-Isso é posterior ao Eu-Tu. O Eu de Eu
Isso usa a palavra para conhecer o mundo, para impor-se diante dele, ordená-lo,
estruturá-lo, vencê-lo, transformá-lo. Este mundo nada mais é que objeto de uso
e experiência.
O problema da totalidade permanece no centro das preocupações de
Buber em relação à questão antropológica. Tal preocupação se coaduna com a
sua concepção da tarefa filosófica, a saber, a reflexão sobre questões reais —
aquelas que envolvem um compromisso atual com a totalidade da pessoa em
todas as suas manifestações. As categorias da totalidade e do "entre" são
fundamentais na antropologia filosófica de Buber. Se Eu e Tu nos revela o
diálogo como fundamento da existência humana, se a questão antropológica
deverá ser abordada como um ato vital de procura do sentido da existência
humana, então trata-se de perscrutar o dialógico no ser humano. O "entre"
permitirá, como chave epistemológica, abordar o homem na sua dialogicidade; e
só no encontro dialógico é que se revela a totalidade do homem. A ênfase sobre
a totalidade acarreta, como corolário, a rejeição da afirmação da racionalidade
da razão como característica distintiva do homem.
As duas palavras-princípio fundam duas possibilidades do homem realizar
sua existência. A palavra Eu-Tu é o esteio para a vida dialógica, e Eu-Isso instaura
o mundo do Isso, o lugar e o suporte da experiência, do conhecimento, da
utilização.
A atitude do Eu pode ser o ato essencial que revela a palavra proferida
com a totalidade do ser, ou então uma postura noética, objetivante. Na primeira,
o Eu é uma pessoa e o outro é o Tu; na segunda, o Eu é um sujeito de
experiência, de conhecimento e o ser que se lhe defronta um objeto. A este
segundo tipo de Eu. Buber chama de egótico, isto é, aquele que se relaciona
consigo mesmo ou o homem que entra em relação com o seu si-mesmo. Eu-Tu e
Eu-Isso traduzem diferentes modos de apreensão da realidade, ao mesmo
tempo que instauram uma diferença ontológica no outro pólo da relação, seja
como Tu, seja como Isso. A contemplação ("Schauung") é a doação do ser como
Tu ao Eu, pessoa, que o aceita. A inteligência, o conhecimento, a experiência é a
apreensão do ser como objeto. Na contemplação, a atitude não é cognoscitiva
mas ontológica. No conhecimento ou na experiência a atitude não é presença do
ser que se revela na contemplação, é um tornar-se presente ao ser e com o ser.
Em suma, existem dois modos de presença. Sendo originários, a relação
Eu-Tu e o conceito de presença recebem seu sentido autêntico na doação
originária do Tu. No encontro dialógico acontece uma recíproca presentificação
do Eu e do Tu. No relacionamento Eu-Isso se o Isso está presente ao Eu não
podemos dizer que o Eu está na presença do Isso. A alteridade essencial se
instaura somente na relação Eu-Tu; no relacionamento Eu-Isso o outro não é
encontrado como outro em sua alteridade. Na relação dialógica estão na
"presença" o Eu como pessoa e o Tu como outro.
Há diversos modos de existência Eu-Isso. Buber os resume em dois
conceitos: experiência ("Erfahrung") e a utilização ou uso ("Gebrauchen"). A
experiência estabelece um contato na estrutura do relacionamento, de certo
modo unidirecional entre um Eu, ser egótico, e um objeto manipulável.
Este relacionamento se caracteriza por uma coerência no espaço e no
tempo; ele é coordenável e submetido à ordem temporal. O relacionamento
implica que os entes, coisas que são objetos, se confinam com outros objetos. O
relacionamento define as coisas como uma soma de partes.
O mundo do Isso, ordenado e coerente, é indispensável para a existência
humana; ele é um dos lugares onde nós podemos nos entender com os outros.
Buber o chama de reino dos verbos transitivos. Ele é essencial na vida humana,
mas não pode ser o sustentáculo ontológico do inter-humano.
A afirmação da primazia do diálogo no qual o sentido mais profundo da
existência humana é revelado não nos deve levar à conclusão de que a atitude
Eu-Isso seja algo de negativo, inferior ou um mal. Ao contrário, ela é uma das
atitudes do homem face ao mundo, graças à qual podemos compreender todas
as aquisições da atividade científica e tecnológica da história da humanidade. Em
si o Eu-Isso não é um mal; ele se toma fonte de mal, na medida em que o
homem deixa subjugar-se por esta atitude, absorvido em seus propósitos,
movido pelo interesse de pautar todos os valores de sua existência unicamente
pelos valores inerentes a esta atitude, deixando, enfim, fenecer o poder de
decisão e responsabilidade, de disponibilidade para o encontro com o outro,
com o mundo e com Deus. A diferença entre as atitudes não é ética mas
ontológica. Não se deve distingui-las em termos de autencidade ou
inaltenticidade. Enquanto humanas, as duas atitudes são autênticas. Quando,
por esta razão, a relação perde o seu sentido de construtora do engajamento
responsável para com a verdade do inter-humano, aí então, o Eu-Isso é
destruição do si-mesmo, e o homem se toma arbitrário c submetido à fatalidade.
"Se o homem não pode viver sem o Isso, não se pode esquecer que aquele
que vive só com o Isso não é homem".
Quando a decisão vital do homem percebe o sopro do espírito entre ele e
o parceiro da relação, acontece a conversão, advém a resposta, surge o Tu. Não
existe nenhum meio ou conteúdo, nenhum interesse interposto nesta doação do
Tu e na aceitação do Eu. À doação gratuita do Tu, o Eu responde pela aceitação
imediata. Então, na presença, na proximidade que une os semelhantes, o Eu,
pessoa, encontra o Tu. Buber distingue três esferas onde acontece a relação: a
relação com os seres da natureza, a esfera dos homens e a esfera das essências
espirituais. O critério de maior valor repousa sobre a reciprocidade. Assim a
relação de maior valor existencial é o encontro dialógico, a relação inter-humana
onde a invocação encontra sua verdadeira e plena resposta. Devemos estar
alertas ao equivoco de atribuir ao Tu, cm Buber, o significado simplista de pessoa
e ao Isso o significado de coisa, objeto. Eu-Tu não é exclusivamente a relação
inter-humana. Há muitas maneiras de Eu-Tu e o Tu pode ser qualquer ser que
esteja presente no face-a-face: homem, Deus, uma obra de arte, uma pedra,
uma flor, uma peça musical. Assim como o Isso pode ser qualquer ser que é
considerado um objeto de uso, de conhecimento, de experiência de um Eu, Eu e
Tu não aceita a distinção familiar entre as coisas e pessoas. Devemos estar
atentos também a uma outra distinção familiar que não é aceita por Buber.
Trata-se da atribuição de certas atitudes a determinados tipos de humanos e
outras atitudes que só alguns seres humanos podem ter. O homem, pelo simples
fato de ser humano, pode tomar qualquer uma das duas atitudes. Eu-Tu não é
reservado às pessoas mais "poderosas", de maior poder de acesso à cultura, —
aos sábios ou aos artistas. É errado também afirmar que o cientista só poderia
tomar, por exemplo, o homem como objetode seu estudo e investigação,
adotando uma atitude Eu-Isso, já que esta é uma exigência metodológica interna
de sua ciência. Tal distinção entre pessoas mais aptas a tomar tal atitude — Eu Tu
ou Eu-Isso — que outras, não tem fundamento já que se trata de duas atitudes
vitais que não representam dois tipos de posturas estanques que alguns homens
pudessem tomar e outros não. Não são, ademais, dois estados de ser, mas dois
modos de ser, de existência pessoal que o homem deve tomar incessantemente,
quer uma quer outra, num ritmo constante.
As duas atitudes são reversíveis e convertíveis em virtude da decisão do
homem como Eu e do significado do que acontece entre o Eu e o mundo. A
decisão do Eu não significa criação ou constituição do outro.
Buber denuncia e rejeita o Eu como substância. Encontraremos, duas
décadas mais tarde, a mesma denúncia contra o "ego cogito" do solipsismo
cartesiano feita por Merleau-Ponty. Tanto na Estrutura do Comportamento como
na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty rejeita a noção de consciência
como função universal da organização da experiência; ele apresenta a
consciência como uma rede de intenções significativas, "único modo possível de
unir a consciência e a ação" (Fenomenologia da Percepção, pág. 478). O cogito
não é mais constituinte, mas projeto ou perspectiva sobre o mundo. Assim, para
ele, o mundo se converte no campo de nossa experiência e deixa de ser um
objeto de pensamento (idem, pág. 178). O Eu não é, repetimos, uma realidade
em si, mas relacional. Não se pode falar em Eu sem mundo, sem Isso ou sem o
Tu. Se o Eu decide-se por uma ou por outra atitude, significa que é o fenômeno
da relação Homem-Mundo como um todo que define a possibilidade do Eu
decidir. Do Eu depende a decisão, não de tomar uma atitude mas de tomar tal
atitude, pois ele não é, senão quando decide tomar tal atitude diante do mundo.
A iniciativa e o fundamento pertencem ao ser como Tu. O Tu se oferece (não é
procurado) ao encontro e o Eu decide encontrá-lo. Temos, então, o escolher e o
ser-escolhido, na mútua ação do face-a-face. Parece difícil a explicação deste
paradoxo de realidades independentes e equifundamentares. Buber afirma que
o Tu é inefável, ele não pode ser objetivado — abordado através de expressões
explicativas, esclarecedoras e por isso redutoras a uma realidade que ele, por
natureza, não pode ser.
É de suma importância, para a filosofia do outro de Buber, a
irredutibilidade do Tu a um objeto que minha atitude determina e experimenta,
sobre o qual pode falar e enunciar juízos predicativos. Em hipótese alguma o
outro pode ser um objeto. Se isto acontecer, e ai está o destino do homem, o Tu
já não é mais senão um Isso, uma soma de qualidades, útil a um propósito
realizável. O Tu não pode ser representado, já que a apresentação aqui é
essencialmente presença, instante único do diálogo; a representação sugere de
algum modo a independência do sujeito com relação ao representado.
A relação atual (atuante) envolve simultaneamente passividade e
espontaneidade. A afirmação de Buber é clara: "Ich werdw am Du" "tornou-me
Eu na relação com o Tu". O Tu orienta a atualização do Eu e este, pela sua
aceitação, exerce sua ação na presentificação do outro que, neste evento, é o
seu Tu.
No Tu, finitude e ilimitação se confundem. A temporalidade é a presença
da atitude transcendente. A presença instaura também a finitude. Neste evento
da relação finitude e transcendência se relacionam, dialeticamente, pois minha
abertura ao outro, que é meu Tu, define ao mesmo tempo meu ser como finito,
isto é, relacional. Esta finitude não é limitação no sentido de objetivação
(oposição própria ao mundo do Isso), mas é a própria relação dialógica na
medida em que o Eu se vincula ontologicamente ao Tu, sem que ambos percam
sua realidade e atualidade. Tal atualidade, diz Buber, supõe ação e paixão, ou
atividade e espontaneidade, uma autêntica alteração, pois o Eu age sobre o Tu e
o Tu, sobre o Eu.
As relações Eu-Tu, embora não apresentem coerência no espaço e no
tempo, não estão simplesmente no ar, desligadas. Há algo subjacente que as une
como num fluxo constante de latência: é a nostalgia do Tu. As duas atitudes,
segundo Buber, se atualizam sucessivamente em um ritmo constante. Não
podem ser tomadas simultaneamente. Os instantes fugazes de relação
entremeiam na vida do homem os inúmeros e prolongados momentos de
relacionamento Eu-Isso. A presença do Tu — subjacente no fluxo constante da
relação Eu-Tu e no relacionamento Eu-Isso, e mesmo durante o relacionamento
Eu-Isso — evoca-nos a idéia de "campo de presença" a que se refere Merleau
Ponty na Fenomenologia da Percepção. A própria existência humana na sua
unidade e multiplicidade de aspectos é esta experiência de "trânsito" no ritmo
constante das atitudes. Este fato se refere à construção do mundo do Tu em
concordância com o mundo do Isso na existência de cada indivíduo.
Buber propõe ao homem a realização da vida dialógica, uma existência
fundada no diálogo. Para esta tarefa sobressai de novo o sentido profundo da
categoria à qual já aludimos: o "entre". Uma das manifestações antropológicas
mais concretas da existência da esfera "entre" é o fenômeno da resposta. Neste
nível palavra e práxis se confundem, isto é, no nível do dialógico, ou em outros
termos dialogos é diapráxis, já que existe uma interação "entre" Eu e Tu.
Resposta pode ser amor. O amor não é algo possuído pelo Eu como se fosse um
sentimento. Os sentimentos, o homem os possui; porém, o amor é algo que
"acontece" entre dois seres humanos, além, do Eu e aquém do Tu na esfera
"entre" os dois. Do mesmo modo, "a verdadeira comunidade não nasce do fato
de que as pessoas têm sentimentos umas para com as outras (embora ela não
possa, na verdade, nascer sem isso) ela nasce de duas coisas: de estarem todos
em relação viva e mútua com um centro vivo e de estarem unidas umas às
outras em relação viva e mútua".
O fenômeno da resposta é essencial à relação. Quem ouve se não é para
responder? A experiência de receber a palavra e respondê-la é o âmago do
"entre" ou a revelação vivida pela reciprocidade. Esta experiência vivida de um
vínculo numa situação de apelo e resposta encerra para Buber o fenômeno da
responsabilidade em seus dois sentidos: primeiro, como resposta e, segundo,
como a "obrigação" de responder. Para Buber a responsabilidade como projeto
do homem na história de viver num nível real e essencial da vida humana é a
resposta ao apelo do dialógico. A responsabilidade transcendendo o nível moral,
para um nível mais amplo, é o nome ético da reciprocidade.
Podemos resumir as principais características do mundo do Tu em:
imediatez, reciprocidade, presença, totalidade, incoerência no espaço e no
tempo, a fugacidade e a inobjetivação. A reciprocidade permanece como o
parâmetro valorativo das diversas relações Eu-Tu nas diferentes esferas que
Buber distinguiu.
O problema de Deus aparece mais claramente na terceira parte de Eu e
Tu, cujo título poderia ser até mesmo "O Tu Eterno". Porém, só compreendemos
claramente as concepções de Buber sobre o Tu eterno após uma correta
compreensão das duas primeiras partes e do Post-scriptum escrito em 1957
quando Buber esclarece alguns pontos que haviam suscitado controvérsias.
Um dos pontos mais notáveis é, a nosso ver, a extrema fidelidade desta
concepção para com a intuição central de seu pensamento e a extrema
coerência desta concepção com as conseqüências que dela resultaram. Como,
atualmente, nossa época se caracteriza mais por um eclipse de Deus, a
preocupação de Buber voltava-se principalmente para o esclarecimento do
diálogo com Deus a fim de torná-lo de novo possível para o homem
contemporâneo. Assim, a reflexão sobre a palavra, o seu sentido na existência
humana, o sentido e a tarefa que a própria história reserva a este mundo do
homem desenharam o clima no qual a relação absoluta entraria em cena, ao
mesmo tempo que exigiam para a sua própria condição de possibilidade, a
relação com o Tu eterno. Trata-se de uma "conversa com Deus".

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