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"Somos continuidade das que vieram antes de nós": o ser mulher na poesia de Conceição Evaristo e Ryane Leão

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“Somos continuidade das que vieram antes de nós”: o ser mulher negra na poesia de 
Conceição Evaristo e Ryane Leão 
“We are a continuity of those who came before us”: being a black woman in the poetry of 
Conceição Evaristo and Ryane Leão 
 
Sthefani Ingrid Oliveira SILVA​1 
Ivon Rabêlo RODRIGUES​2 
 
Resumo​: O presente artigo tem o objetivo de proceder a uma análise acerca da construção da temática do ser 
mulher negra segundo a visão poética das escritoras negras Conceição Evaristo e Ryane Leão. Os dois poemas 
escolhidos para serem analisados foram “Vozes-mulheres” e “Identidade”, respectivamente. O primeiro texto foi 
publicado por Evaristo na série ​Cadernos Negros​, de 1990 e o segundo por Leão em seu primeiro livro intitulado 
Tudo nela brilha e queima​, de 2017. Os dois poemas funcionam como uma espécie de testemunho da trajetória 
das mulheres negras, não apenas na Literatura, mas também na sociedade de modo geral, imprimindo destaque 
ao tema do “empoderamento” feminino e tornando relevante o modo como a vivência dessas mulheres 
“invisibilizadas” tem sido revolucionário dentro da poesia feminista negra. Para esta análise, foram utilizados 
como apoio teórico os estudos dos autores Dalcastagnè (2012), Duke (2016) e Evaristo (2005). 
Palavras-chave​: Poesia. Feminismo. Empoderamento. Literatura afro-feminina. 
 
Abstract​: This article aims to set up an analysis about being a black woman into the poetic perspective of black 
writers Conceição Evaristo and Ryane Leão. The two poems chosen to be analyzed here were “Vozes-mulheres” 
and “Identidade”. The first poem was published by Evaristo on ​Cadernos Negros​, in 1990 and the second one by 
Leão in his first work ​Tudo nela brilha e queima​, in 2017. Both poems work as a kind of testimony of the 
trajectory of black women, not only in Literature but also in society, in general, emphasizing the theme of 
“empowerment” and making relevant the way in which the experience of these “invisible” black women has 
been revolutionary within black feminist poetry. The following authors were consulted for this analysis, as a 
theoretical base: Dalcastagnè (2012), Duke (2016) and ​Evaristo (2005)​. 
Keywords​: Poetry. Feminism. Empowerment. Afro-feminine literature. 
 
Introdução 
 
Nascida em Belo Horizonte em 1946, Conceição Evaristo é uma das principais vozes 
da literatura negra e feminista da contemporaneidade. Segunda filha de uma família de nove 
irmãos, mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1970, onde se formou em Letras pela 
UFRJ, sendo hoje Mestre em Literatura Brasileira pela PUC e Doutora em Literatura 
Comparada pela Universidade Federal Fluminense. 
Ryane Leão faz parte da nova geração de escritoras envolvidas com a temática do 
feminismo e da literatura voltada sobre e para mulher negra. Nascida em Cuiabá, em 1989, 
mudou-se para São Paulo onde cursou Letras pela UNIFESP. 
Os poemas “Vozes-mulheres” e “Identidade” que serão aqui analisados fazem parte da 
produção poética dessas duas autoras brasileiras que tem a ancestralidade, a construção da 
1 Pós-graduanda em Literatura Brasileira | FAFIRE/Recife/PE | E-mail: sthefanisoliveira@gmail.com 
2 Mestre em Literatura e Interculturalidade | UEPB/Campina Grande/PB | Orientador do trabalho | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com 
1 
 
identidade e a vivência da mulher negra como temas comuns em suas obras. O poema de 
Evaristo foi publicado na série ​Cadernos Negros​, de 1990 e o de Leão, em seu primeiro livro 
intitulado ​Tudo nela brilha e queima​, de 2017. 
Durante muito tempo a voz e a presença femininas na Literatura estiveram bastante 
ausentes e limitadas. Tal silenciamento acerca de temáticas que abordassem a imagem da 
mulher se deu pela limitação patriarcal imposta a ela, inclusive dentro do campo das 
produções literárias. Geralmente eram (e ainda são!) atribuídos às mulheres os espaços 
genéricos de esposas, filhas e empregadas domésticas obedientes. Dessa forma, é preciso 
entender por que a mulher, especificamente a mulher negra, recebeu tal limitação. 
Por muito tempo, a Literatura representou um espaço de exclusão para as mulheres, 
sejam elas negras ou brancas. As publicações dos textos literários eram dominadas por 
homens e era negada à mulher o direito à voz: “a negação da legitimidade cultural da mulher, 
como sujeito do discurso exercendo funções de significação e representação foi, no contexto 
dessas literaturas, uma realidade que perdurou até, mais ou menos, a década de 1970” 
(SCHMIDT; NAVARRO ​apud​ MONTEIRO, 2016, p. 3). 
Segundo Silva e Rodrigues (2016), para tratar da mulher negra é necessário fazer um 
recorte, pois além dos problemas de gênero surgem também os problemas de raça. Durante 
anos, mulheres negras foram representadas por homens brancos que atribuíam às mesmas 
características típicas do período da escravidão, como sedução, beleza e força física. 
Joan Scott (1995) considera que as desigualdades provenientes do poder social são 
baseadas em três dimensões: de gênero (como categoria analítica), de raça e de classe. No 
artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, ao fazer um apanhado histórico sobre 
os estudos feministas e de gênero, a autora enfatiza que as pesquisadoras feministas que 
possuíam uma visão política mais global detinham interesse por tais categorias, pois isso 
assinalavam “o envolvimento do/a pesquisador/a com uma história que incluía as narrativas 
dos/as oprimidos/as” (SCOTT, 1995, p. 73). 
Sendo assim, a história das mulheres negras foi contada por escritores brancos que 
tiraram das mesmas o direito de contá-la e atribuíram a essas mulheres funções sociais 
baseadas em um imaginário masculino e de base eurocêntrica. 
A produção de obras literárias por mulheres negras teve seu reconhecimento por volta 
de 1962, com a descoberta de ​Úrsula​, primeiro romance escrito pela autora maranhense Maria 
Firmina dos Reis, em 1859. Com sua descoberta, a mulher do século XIX passa finalmente a 
ser reconhecida como escritora e não somente como uma personagem sexualizada, 
2 
 
embranquecida e submissa, como geralmente apresentada nos enredos das obras produzidas 
ao longo deste século. 
O estudo sobre a identidade e a vivência dessas mulheres é importante, pois como 
afirmam Ferreira e Migliozzi (2017), a literatura afro feminina, além de revelar a situação a 
que as mulheres negras ainda são submetidas, revela a sua identidade e a sua busca pela 
humanização e por direitos básicos. 
As pesquisas sobre as mulheres negras têm ganhado espaço na sociedade e no 
ambiente acadêmico por meio de escritoras como Sueli Carneiro (2003), Djamila Ribeiro 
(2018), Carolina Maria de Jesus (1960) e muitas outras que estão envolvidas na construção da 
narrativa das mulheres negras sob a ótica do “feminismo negro”, projetando a produção de 
literatura feminina negra que vem atuando como instrumento de encontro, reconhecimento e 
superação nesse embate. A continuação e propagação desse trabalho é de extrema importância 
para que a sociedade em geral tenha consciência das narrativas e posições críticas dessas 
mulheres. 
 
Traçando percalços: o ser mulhernegra na Literatura Brasileira contemporânea 
 
Desde a construção do nosso cânone, a mulher negra ocupa espaço estrategicamente 
estereotipado na Literatura Brasileira. Segundo estudo de Regina Dalcastagnè (2012) em seu 
livro ​Literatura brasileira contemporânea: um território contestado​, a nossa literatura ainda é 
escrita em sua grande maioria por homens brancos, de classe média, pertencentes ao eixo 
geográfico Rio de Janeiro-São Paulo. 
Em dados levantados pela autora, cerca de 72,7% dos escritores brasileiros, lidos e 
publicados pelas grandes editoras, são homens; 93,9% são brancos, 78,8% possuem o ensino 
superior, 36,4% são jornalistas, vivendo em sua maioria no Rio de Janeiro ou em São Paulo. 
Isso mostra que a literatura é monopolizada por uma classe dominante que traça uma visão 
homogênea do Brasil e concretiza a estereotipização das minorias, como é o caso das 
mulheres, dos negros e, especialmente, da mulher negra que sofre uma opressão ainda mais 
significativa quando tem sua existência literária reduzida a padrões de sexualização, ao papel 
de empregada, lavanderia e melhor amiga da mulher branca, mas nunca a protagonista. 
Sobre isso, Conceição Evaristo (2005) assevera que 
 
[...] pode ser observado que a literatura brasileira, desde a sua formação até a 
contemporaneidade, apresenta um discurso que insiste em proclamar, em instituir 
uma diferença negativa para a mulher negra. A representação literária da mulher 
3 
 
negra ainda surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de 
corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor. Interessante 
observar que determinados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso literário 
brasileiro, são encontrados desde o período da literatura colonial (EVARISTO, 
2005, p. 52). 
 
Ainda hoje, com a literatura contemporânea, o espaço dado à mulher negra na 
literatura brasileira está ligado ao sexo, à procriação e a satisfação dos desejos dos homens, 
seguindo firmemente o padrão de desumanização e animalização criado pelo cânone. A 
mulher negra não pode ser representada como mãe ou chefe de uma família estruturadas, pois 
esses papéis já estão sendo ocupados por mulheres brancas. 
Em seu artigo “Ancestralidade, memória e autorrepresentação da mulher negra na 
literatura afro-brasileira contemporânea em ​Olhos d’água​”, Andrade (2018) afirma que 
Evaristo recorre a Sueli Carneiro (2003) para afirmar que a mulher negra é vista como 
“antimusa” da sociedade brasileira, pois essa sociedade tem como perfil estético a mulher 
branca, que é a matriarca, a dona de certa voz e possuidora de uma raiz familiar e identitária. 
Desta forma, a representação da mulher negra pelas mãos e pelos olhos de outras 
mulheres negras parece ser a única possibilidade viável para o rompimento com tais padrões 
estereotipados construídos para a figura feminina negra, revelando a importância e a 
contribuição dessas mulheres para a sociedade e para a Literatura nacional. 
 
Recolhendo ancestralidades: a análise de “Vozes-mulheres”​, ​de Conceição Evaristo 
 
“Vozes-mulheres” foi publicado originalmente em ​Cadernos negros, ​de 1990 e 
posteriormente em uma antologia intitulada ​Poemas da recordação e outros movimentos​, cuja 
primeira edição data de 2008. O poema, além de ter uma autoria feminina, também apresenta 
um eu lírico feminino. Isso fica, de certo modo, explícito no título, quando a autora escolhe 
revelar assim quem detém a elaboração e emissão do discurso. 
O título toca em pontos iniciais de suma importância para nossa análise: o fato de o 
texto se propor a fazer ouvir as vozes antes silenciadas e, no mesmo movimente, indicar a 
quem pertence esse discurso. A junção dos dois vocábulos “vozes” e “mulheres”, por meio de 
hífen, potencializa o discurso, trazendo a ideia de “empoderamento”. 
Falares e seres, nesse contexto, possuem a mesma conotação, que é a de tornar 
explícitas as trajetórias femininas reveladas pela ancestralidade e afirmar essa existência, a 
partir da coletividade, marcando parte da memória afro-brasileira que foi, por muito tempo, 
anulada pelos registros oficiais da História do Brasil. 
4 
 
Um dos propósitos de Evaristo era não deixar esquecida a história das gerações 
passadas de mulheres negras brasileiras, pois o que se sabe acerca do presente e o que se 
espera para o futuro são consequências da memória dessas mulheres. A memória 
marginalizada das mulheres negras brasileiras é despertada, no poema, por sua autora, que 
também faz parte desse contexto. Vejamos o poema: 
 
A voz da minha bisavó ecoou 
criança nos porões do navio. 
Ecoou lamentos 
de uma infância perdida. 
 
A voz de minha avó 
ecoou obediência 
aos brancos-donos de tudo. 
 
A voz de minha mãe 
ecoou baixinho revolta 
no fundo das cozinhas alheias 
debaixo das trouxas 
roupagens sujas dos brancos 
pelo caminho empoeirado 
rumo à favela. 
 
A minha voz ainda 
ecoa versos perplexos 
com rimas de sangue 
e fome. 
 
A voz de minha filha 
recolhe todas as nossas vozes 
recolhe em si 
as vozes mudas caladas 
engasgadas nas gargantas. 
 
A voz de minha filha 
recolhe em si 
a fala e o ato. 
O ontem – o hoje – o agora. 
Na voz de minha filha 
se fará ouvir a ressonância 
o eco da vida-liberdade. 
(EVARISTO, 2017, p. 21). 
 
A utilização de verbos no pretérito faz alusão, nos primeiros versos, a mulheres 
ancestrais que viviam em um tempo passado, a bisavó, a avó e a mãe, explicando como se deu 
a subordinação da mulher negra. O eu lírico realiza o percurso das vozes de sua ascendência, 
vozes que ecoaram desde os navios negreiros, como a da bisavó, depois nas favelas com a avó 
e também nas cozinhas alheias com a mãe, até que chegasse na sua própria voz, e na 
esperança de uma voz futura que será a de sua filha. 
5 
 
Na primeira estrofe é possível visualizar a relação estabelecida entre as personagens 
mencionadas: “A voz da minha bisavó ecoou / criança nos porões do navio. / Ecoou lamentos 
/ de uma infância perdida”, sendo descrito um sujeito impotente porque submisso, no caso 
uma menina escrava, que nunca teve espaço de direito a ter a voz ouvida, já que passou a vida 
presa, desde os porões dos navios negreiros. 
Na segunda estrofe é apresentada uma voz pretensamente obediente: “A voz de minha 
avó / ecoou obediência / aos brancos-donos de tudo”. Nela, Evaristo retoma propositadamente 
o trabalho escravo, revelando uma certa ironia dirigida para uma suposta dominação branca, 
indagando que, se são realmente donos, por que a obediência seria necessária? A voz da avó, 
nesse caso, apenas poderia imprimir continuidade a uma mentira, pretensa verdade 
engendrada pelo pensamento escravocrata. 
À medida que as referências ao tempo presente avançam, começam a ser apresentados 
no poema os sinais de resistência. Vão ficando mais claros os indícios de resistência, podendo 
ser percebidos na voz lírica da mãe: “A voz de minha mãe / ecoou baixinho revolta / no fundo 
das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos / pelo caminho 
empoeirado / rumo à favela”. 
Nesse momento, a escravidão já teria sido abolida, mas a senzala ganha uma 
roupagem nova e agora é representadapelas “cozinhas alheias”, revelando a estrutura 
marginal da sociedade brasileira contemporânea. Nesses versos, novamente os brancos são 
citados, trazendo outra vez a ideia da desagregação, subserviência e impessoalidade. 
Aqui, ao invés da obediência jurada ao branco dono de tudo, há uma voz de 
reclamação, de incômodo com a bagunça da rouparia a ser limpa e com o trabalho desumano 
para dar conta da organização da cozinha alheia, ofício duro para prover de alimento a mesa 
de uma morada que não é a sua, mas outra que lhe é estranha e que faz parte de uma realidade 
distante. 
Endossando o que se afirma no parágrafo anterior, depreende-se que o discurso do eu 
lírico marca os seguintes versos: “A minha voz ainda / ecoa versos perplexos / com rimas de 
sangue / e fome”. A repetição do verbo ecoar, também presente na primeira estrofe 
representando um grupo, agora representa uma voz que não é inteiramente sua, mas que se 
constrói através de uma ligação com a ancestralidade: o resultado das vozes que, ao longo do 
tempo, situam-se à margem da mesa farta e bem-posta dos homens brancos, estranhos à sua 
fome, ao seu desejo ancestral de visibilidade e existência digna. 
6 
 
Através dessa palavras-imagens ​é possível observar um eu lírico marcado pela dor e 
angústia das vozes anteriormente não ouvidas, de mulheres aprisionadas e silenciadas, em 
lamento pelo sangue que foi derramado e pelo sofrimento causado pela fome, sendo a 
“evidência do desespero e sensação de aprisionamento que, a duras penas, [...] procura 
descrever” (DUKE, 2016, p. 19). 
Em uma conferência para alunos do curso de Letras na UFMG, Conceição Evaristo 
afirmou que “escrevo porque não sei dançar nem cantar. Não tenho outras formas de 
manifestar minhas angústias... Se não escrever, adoeço”. Há, de fato, nos versos do poema 
analisado aqui, fielmente, a proposta de uma escrita voltada para purgar os males, 
manifestando os elementos de uma redenção para a angústia do eu lírico. 
Somente nas últimas estrofes, quando é revelada a voz de sua filha, é possível 
arrematar o elo entre o presente e o futuro: “A voz de minha filha / recolhe em si / a fala e o 
ato. / O ontem – o hoje – o agora. / Na voz de minha filha / se fará ouvir a ressonância / o eco 
da vida-liberdade”. 
As gerações futuras são representadas pela filha e o presente nos é trazido por meio de 
sua própria voz, no entanto o futuro está representado por vozes ainda não audíveis, de tom 
baixo, uma vez que haviam sido silenciadas anteriormente. Reunindo todos esses falares, a 
voz futura da filha se conecta às vozes de suas ancestrais. Ela não só discursa, mas também 
age, constituindo-se assim como uma sonoridade que se perfaz em ato. 
Em seu poema, Evaristo recolhe e projeta todas essas vozes de mulheres negras e 
periféricas, socialmente marginalizadas por anos, propondo uma outra elaboração de 
construção do feminino, com seu próprio punho de escritora negra, em um lampejo de 
esperança e insubmissão e recusando o que, segundo Piscitelli (2002, p. 8), correntes 
feministas já apontavam: “essa subordinação é decorrente das maneiras como a mulher é 
construída socialmente”. 
 
Preservando contiguidades: a análise de “Identidade”, de Ryane Leão 
 
“​Identidade” é um dos poemas reunidos no livro ​Tudo nela brilha e queima​, de 2017, 
da professora e escritora cuiabana, Ryane Leão. O livro reúne poemas com estruturas e estilos 
diferentes e consiste em um conjunto de pensamentos e afirmações poéticas da autora. Ao 
começar o livro, Leão deixa claro que o tema fundamental de sua obra é as mulheres, 
7 
 
entregando a elas os poemas com uma dedicatória significativa (“às mulheres infinitas”), 
juntando todas em uma única voz perene, a sua: 
 
foi uma mulher negra e escritora 
de pele e alma como a minha 
que me ensinou sobre os vulcões e as rédeas e os freios 
sobre os tumultos dentro do peito 
e sobre a importância de ser protagonista 
nunca segundo plano 
se você encostar a mão entre os seios 
vai sentir os rastros de nossas ancestrais 
somos continuidade 
das que vieram antes de nós. 
(LEÃO, 2017, p. 68). 
 
O poema deixa claro que o eu lírico é a projeção ficcional da própria autora e que a 
mesma tem a intenção de falar de suas experiências como mulher negra. Nos primeiros 
versos, Leão deixa explícito quais mulheres ela pretende representar: “foi uma mulher negra e 
escritora / de pele e alma como a minha / que me ensinou sobre os vulcões e as rédeas e os 
freios”. A autora considera a mulher a quem se refere como sua semelhante, por ser negra e 
escritora, e considera que foi com ela que aprendeu sobre metáforas potentes de representação 
da subjetividade, para contornar o sistema opressivo imposto às mulheres, desde suas 
ancestrais. 
Nos versos seguintes, o discurso autoral continua a relembrar as lições de insubmissão 
recebidas, acerca dos “tumultos dentro do peito / e sobre a importância de ser protagonista / 
nunca segundo plano”, já que, ao longo da História da Literatura Brasileira, a mulher negra 
quase sempre era sufocada pelos fardos de inferioridade, em suas representações. 
Retomando o estudo de Dalcastagnè (2012), agora sobre a representação de mulheres 
negras em obras literárias, após a análise de 258 romances produzidos entre os anos de 1990 a 
2004, a pesquisadora constatou que somente em três deles mulheres e negras aparecem como 
protagonistas; em contrapartida, em 25,1% são donas de casa, ocupando-se exclusivamente 
dos afazeres domésticos, da prole e do marido, em 88,9% as personagens femininas têm uma 
relação familiar com o protagonista e são coadjuvantes, em 44,8% elas são cônjuges e em 
35% são filhas. 
Na tentativa de modificar essas estatísticas, Leão procura conscientizar as mulheres 
negras e semelhantes a si sobre a importância de se fazer protagonista da própria história, de 
fazer com que a sua narrativa seja contada com a própria voz, e não por vozes brancas, 
masculinas e patriarcais, como vem sendo feito desde muito tempo. 
8 
 
Nos últimos versos do poema, a autora faz uma ligação com a sua memória ancestral: 
“se você encostar a mão entre os seios / vai sentir os rastros de nossas ancestrais / somos 
continuidade das que vieram antes de nós”. Segundo Alfredo Bosi (​apud ​PALMEIRA, 2010), 
é pela linguagem que se conserva a memória e é pela memória que a ausência se faz presença, 
uma vez que “é a linguagem que permite conservar a imagem que cada geração tem das 
anteriores” (BOSI, ​apud​ PALMEIRA, 2010, p. 8). 
Por meio de seus versos autoficcionais, podemos atestar assim, Ryane Leão pretende 
elevar a força das mulheres negras ancestrais que se faz urgente ainda hoje, nas lutas da 
contemporaneidade, repassando um legado que as mulheres negras de hoje continuam 
carregando, reforçando a lição sobre o peso e a importância do combate por um espaço de 
vivência e experiência negras, tendo como supra objetivo não deixar que sejam silenciadas 
essas vozes e nem que se interrompa a história fundadora dessas gerações passadas demulheres negras, uma vez que o presente e o futuro da cultura e da individualidade negras são 
consequências dessa preservação. 
 
Entretecendo discursos: o empoderamento da mulher negra pela literatura 
 
Tanto Conceição Evaristo quanto Ryane Leão podem ser consideradas representantes 
do que se pode nomear como novas vozes da escrita afro-feminina, pois que além de retomar 
um fazer literário histórico-filosófico de suas ancestrais, como explicitado nos poemas 
analisados, também ampliam as discussões acerca de temas como a identidade, o fazer poético 
e o lugar da mulher negra na sociedade contemporânea. 
Deste modo, Duke (2016) reitera que 
 
As escritoras mais jovens não procuram esquecer o propósito maior de alinhar-se 
com uma estética negra do Brasil. De fato, cada nova geração se inspira nas 
anteriores. Ao mesmo tempo, as escritoras mais jovens podem testemunhar os logros 
ao observar que, com cada palavra e com o passar do tempo, conseguem empurrar 
mais para trás aquela herança dolorosa original, num grande esforço grande de 
fazê-la desaparecer por completo, abrindo espaço para novas visões e atuações na 
história e cultura brasileiras. O valor, no seu discurso, está na sua capacidade 
constante de reescrever a história da nação e da mulher, ao seu modo (DUKE, 2016, 
p. 13). 
 
Ao realizar a leitura e a análise dos textos em questão, é possível enxergar um misto 
de tradição e ruptura, ao mesmo tempo, entre o passado e o presente, enfatizando a 
importância do diálogo entre o contexto atual e o espaço da ancestralidade, mencionada nos 
dois poemas. Dentro dessa perspectiva, Ferreira e Migliozzi (2017) trazem o questionamento: 
9 
 
 
[...] a literatura atual expressa algumas das mesmas preocupações e questionamentos 
de justiça, direitos iguais, desigualdade econômica e cidadania daquela época 
formativa de conscientização. O que, na realidade, podemos dizer que diferencia 
esses textos (precursores e contemporâneos) é justamente o enfoque do “grito” 
dessas mulheres, isto é, o que busca a escritora negra atual? O que ela reivindica? 
(FERREIRA; MIGLIOZZI, 2017, p. 6). 
 
Diferentemente das nossas ancestrais que reivindicavam alimento, sobrevivência sem 
dor e libertação, podemos arriscar dizer que as escritoras negras na contemporaneidade lutam, 
além disso, para que as vozes dessas mulheres silenciadas sejam por fim ouvidas. Elas se 
colocam como representantes maiores de suas ascendentes marginalizadas e é por meio da 
escrita que criam estratégias de solução para contornar a violência sentida por aquelas 
mulheres, sentenciadas ao anulamento. 
A escrita passa a ser, assim, uma forma eficaz para reverter angústias e revelar os 
poderes da mulher negra da atualidade, que não luta mais somente contra a fome ou por uma 
moradia digna, mas combate pelo direito a uma profissão digna, um relacionamento afetivo 
respeitoso, pelo direito de vivenciar sua negritude com legitimidade e sem dor, a sua 
experiência subjetiva mais profunda como mulher, mãe, irmã, esposa ou o que bem lhe 
aprouver. 
 
Considerações finais 
 
Por meio da análise literária empreendida nesta pesquisa, é possível dizer que a 
construção do artefato literário por, para e sobre as mulheres negras é um ato revolucionário e 
corajoso. Dentro do processo de elaboração estética torna-se necessário fazer escolhas éticas 
e, desse modo, assumir a responsabilidade com o que se representa e com quem será 
representado através desse discurso, sabendo ser este um processo de encontro, 
reconhecimento e tentativas de superação. 
Encontro com o nosso “eu” mais primordial, já que é um “eu” ancestral e por isso 
mesmo também coletivo, não apenas individual mas também social; há o reconhecimento na 
medida em que podemos enxergar a nós mesmos, ao dirigirmos nosso olhar para o outro, para 
além de nossa subjetividade, em um mesmo movimento de ver o indivíduo com que nos 
relacionamos e poder ser visto pelo outro que nos observa; e, finalmente, admite-se que o 
procedimento se converte em uma possibilidade de superação de nossas próprias limitações, 
como seres perecíveis e inquietos que somos, nessa busca infinita por compreensão. 
10 
 
Afunilando e convergindo o pensamento para a nossa temática de investigação, 
afirmamos que o ser mulher, seja na poesia ou nesta outra realidade a que demos o nome de 
sociedade, é em si um ser de luta, que se reveste de resistência e, tanto Conceição Evaristo 
quanto Ryane Leão, transpiram tal certeza em sua poesia: a certeza de que não é vã a luta 
travada para conseguir o direito à legitimidade de suas vozes e de suas existências negras. 
 
Referências 
 
ANDRADE, L. T. ​Ancestralidade, memória e autorrepresentação da mulher negra na 
literatura afro-brasileira contemporânea em ​Olhos d´água​, de Conceição Evaristo​. 
Revista Entrelaces. Ceará, v. 1, n 14, p.159-174. 2018. 
 
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea​: um território contestado. 
Rio de Janeiro: Editora Horizonte, 2012. 
 
DUKE, Dawn (org.). ​A escritora afro-brasileira​: ativismo e arte literária. Belo Horizonte: 
Nandyala, 2016. 
 
EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da mulher negra na literatura 
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