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AMH-2005-o-Direito-Luso-Brasileiro-No-Antigo-Regime

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DIREITO LUSO-BRASILEIRO
NO ANTIGO RÉGIME
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:021
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:022
Florianópolis
2005
F U N D A Ç Ã O
BOITEUX
DIREITO LUSO-BRASILEIRO
NO ANTIGO RÉGIME
António Manuel Hespanha
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:023
© António Manuel Hespanha
© da presente edição: Fundação José Arthur Boiteux (2005)
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Ficha Catalográfica
Presidente Prof. Orides Mezzaroba
Vice-Presidente Prof. Mário Lange de S. Thiago
Secretário Prof. Aires José Rover
Tesoureiro Prof. Ubaldo Cesar Balthazar
Orador Prof. Luiz Otávio Pimentel
Conselho Editorial Prof. Aires José Rover
Prof. Antonio Carlos Wolkmer
Prof. Arno Dal Ri Júnior
Prof. José Rubens Morato Leite
Prof. Mário Lange de S. Thiago
Prof. Orides Mezzaroba
Prof. Luis Carlos Cancellier de Olivo
Prof. Luiz Otávio Pimentel
COLEÇÃO “ARQUEOLOGIA JURÍDICA”
Cátedra Aberta da Fondazione Cassamarca
Sob a direção de Arno Dal Ri Júnior
Diagramação Studio S Diagramação & Arte Visual
(48) 3025-3070 – studios@studios.com.br
Capa Fernando C. Santos Jr.
sobre ilustração do pintor flamengo Van Rojmers-waelen
Revisão Ana Lúcia Pereira do Amaral
Endereço UFSC – CCJ – 1.º andar – Sala 110
Campus Universitário Trindade
CEP 88040-900 Florianópolis, SC, Brasil
Telefone: (48) 331-9655 / Fax: (48) 233-0390
E-mail: livros@ccj.ufsc.br
Site: www.funjab.ufsc.br
EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX
B197h Balthazar, Ubaldo Cesar
História do Tributo no Brasil / Ubaldo Cesar Balthazar.
– Florianópolis : Fundação Boiteux, 2005.
200p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 85-87995-49-9
1. Direito tributário – Brasil – História. 2. Constituições – Brasil.
3. Impostos – Legislação. I. Título.
CDU: 34:336.2
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:024
SUMÁRIO
PREFÁCIO - À PRESENTE EDIÇÃO BRASILEIRA ................................... 7
PARTE I
Introdução ........................................................................................................ 17
1. Evolução recente da história institucional e política ........................... 17
2. Linhas de força da história institucional ................................................ 21
3. Este manual ................................................................................................. 23
PARTE II - O IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE E DO PODER
1. A sociedade .................................................................................................. 29
2. As pessoas .................................................................................................... 41
3. As coisas e as situações reais no direito de Antigo Regime ................ 69
PARTE III - O DIREITO
1. O Direito ..................................................................................................... 109
PARTE IV - OS PODERES
1. A Família .................................................................................................... 149
2. A Igreja ....................................................................................................... 187
3. As comunidades ........................................................................................ 249
4. Os senhorios .............................................................................................. 281
5. A coroa ........................................................................................................ 339
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 475
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livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:026
PREFÁCIO
À PRESENTE EDIÇÃO BRASILEIRA
A edição original deste livro data de há dez anos e, basi-
camente, reporta-se apenas ao “direito do reino”. Ambos os factos
constituem limitações que o leitor deve ter muito em conta.
Não estou, por outro lado, em condições de listar, aqui,
as contribuições novas para a história institucional do Anti-
go Regime português. Em todo o caso, gostaria de ousar – cá
de longe e com o diminuto acesso que conhecemos a infor-
mações actualizadas sobre a historiografia de uns e outros –
acrescentar umas notas bibliográficas principais, também
para literatura brasileira.
 Começo pelos fundamentos interpretativos. Passaram
por duas décadas de prova, pois, de facto, nasceram – então
como marginal e arriscada hipótese – com o meu livro (e tese
de doutoramento – As vésperas do Leviathan [...], de 1976. O
livro foi objecto de recensões 1 e foi tido em conta e analisado
1 Ius commune, 1990, 433-435 (R. Rowland); The Journal of Modern History,
63.4(1991) 801-802 (B. Clavero); The American Historical Review, 97.1(1992)
221-222 (C. A. Hanson); The journal of modern history, 67.(1995) 758-759 (Julius
Kirchner); Latin American Review, 31.1(1996) 113-134; Ann. Econ. Soc. Civ.,
46.2(1991) N° 2 (mars-avril) 1991, 502-505 (J. F. Schaub).
2 Jean-Frédéric Schaub, “La penisola iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello
Stato”, Studi Storici, anno 36, gennaio-marzo 1995; Id., “ L’histoire politique
sans I’état: mutations et reformulations”, Historia a debate, III, Santiago de
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António Manuel Hespanha
8
em textos de contexto mais vasto 2 . Paolo Grossi publicou,
entretanto, o seu livro de descrição global da ordem jurídica
medieval, que, apesar de algum tom róseo, esclareceu a
arquitectura geral desse sistema de poder 3 . Entretanto, uma
análise político-jurídica centrada na dispersão do poder foi
ganhando espaços, culminando por ser aplicada … mesmo à
França 4 . Naturalmente, os espaços coloniais não ficaram de
fora desta tendência para destacar a periferização do poder,
eles que constituíam, justamente, as periferias mais periféri-
cas. Esse é o sentido mais forte do texto que publiquei no
livro dirigido por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e
Maria de Fátima Gouvêa, O Antigo Regime nos Trópicos. A
dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI-XVIII), Rio de Janei-
ro, Civilização Brasileira, 2001 5 . A própria produção teórica
brasileira já abordara o tema, nomeadamente nos livros de
Compostela, 1993, 217-235; Id., “Le temps et l’État: vers un nouveau régime
historiographique de l’ancien régime français”, Quad. fior. st. pens. giur. mod.,
25(1996) 127-182 Angelo Torre, “Percorsi della pratica. 1966-1995”, Studi storici,
1995, 799-829 (mais crítico); Roberto Bizzochi, “Storia debile, storia forte”,
Storia, 1996, 93-114
3 Paolo Grossi, L’ordine giuridico mediovavle, Bari, Laterza, 1995.
4 Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: Les racines hispaniques de l’absolutisme
français, Paris, Seuil, 2003.
5 Cf. A. M. Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns
enviesamentos correntes”), 163-187; nesse volume, ainda, interessantes contri-
buições para uma nova história da administração colonial brasileira: Maria
Hebe Mattos, “A escravidão moderna nos quadros do império português: o
Antigo Regime em perspectiva Atlântica”, 141-161; Maria Fernanda Bicalho,
“As câmaras e o governo do Imperio”, 189-221; Maria de Fátima Gouvêa,
“Poder político e administração na afirmação do complexo atlântico portugu-
ês (1645-1809)”, 285-316; cf., também, sobre o tema, Pedro Cardim, “O gover-
no e a administracão do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”,
Hispania. Revista del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, vol.
LXIV/i, no 216 (Enero-Abril 2004) pp. 117-156.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
9
António Carlos Wolkmer 6 . A que eu juntaria, pelo paren-
tesco entre direito periférico e direito informal, o estimulante
estudo de Keith S. Rosenn, The Jeito: Brazil’s Institutional Bypass
of the Formal Legal System and Its Developmental Implications7 .
Nas descrições mais gerais da história do direito, desta-
co que saíram, entretanto, duas novas sínteses muito apreci-
áveis: em Portugal, uma nova edição, aumentada, de Nuno
Espinosa Gomes da Silva 8 ; e, no Brasil,o livro de José
Reinaldo de Lima Lopes, O direito na história. Lições introdu-
tórias 9 . Ao passo que, na história da administração colonial
brasileira, aparecem novidades como os trabalhos de Airton
L. Seeländer, Cerqueira-Leite 10 , o livro de Arno Wehling e
Maria José Wehling, Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tri-
bunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808) 11 , o número
monográfico dirigido por Maria Fernanda Bicalho (ed.), “Po-
6 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura
do Direito. São Paulo, Alfa-Ômega, 1994; WOLKMER, Antonio Carlos.
Pluralidade Jurídica na América Luso-Hispânica “in” WOLKMER, Antonio
Carlos (org.) Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista à Colonização.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 75/93.
7 Em The American Journal of Comparative Law, Vol. 19, No. 3 (Summer, 1971), pp.
514-549; entretanto traduzido para português, no Brasil.
8 Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, 3ª ed. revista e
actualizada, Lisboa, Fundação Gulbenkian, 2000;
9 S. Paulo, Max Limonad, 2000.
10 Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 2003; Airton Seelander,. „A polícia e o rei-legislador: notas sobre
algumas tendências da legislação portuguesa no antigo regime”, em Bittar, Eduar-
do C. (org). História do direito brasileiro: leituras da ordem jurídica nacional, São
Paulo: Atlas, 2003 (uma colectânea significativa do “estado da arte” no Brasil..
11 Renovar, 2004; cf. ainda Arno Wehling e Maria José Wehling, Cultura jurídica
e julgados do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro: a lei da Boa Razão, in
Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz, Lisboa,
Estampa, 1995.
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António Manuel Hespanha
10
lítica e administração no mundo luso-brasileiro”, em Tempo,
7.14(2003), com artigos dos principais nomes no ramo; o li-
vro de Laura Mello e Souza, Norma e Conflito: Aspectos da
História de Minas no Século XVIII 12 e as actas de um congresso
recente, organizado por Istvan Jancsó 13 . A não esquecer, o belo
trabalho de Alberto Gallo, sobre uma especificidade do regi-
me prático dos ofícios na colónia 14 .
No domínio da história da terra, destaco os trabalhos
de Márcia Motta, Nas Fronteiras do Poder. Conflito e Direito à
Terra no Brasil do Século XIX 15 ; Lígia Osório Silva, Terras
devolutas e latifúndio. Efeitos da lei de 1850 16 , e Ricardo Mar-
celo Fonseca, “A lei de terras e o advento da propriedade
moderna no Brasil” 17 .
O mundo doméstico tem, no Brasil, uma referência in-
dispensável, correspondendo à de Otto Brunner para a histó-
ria do universo doméstico europeu: Gilberto Freyre. É uma
personalidade intelectual e política controversa – talvez mais
em Portugal do que no Brasil, pelo modo como se deixou com-
prometer com a última fase do colonialismo português; mas,
no conjunto, é fascinante e de um indubitável para a compre-
ensão do mundo de Antigo Regime e dos seus prolongamen-
12 Belo Horizonte, UFMG, 1999.
13 Istvan Jancsó (org.), Brasil: formação do Estado e da Nação, S.Paulo, Hucitec, 2003.
14 “La venalidad de oficios publicos en Brasil durante el siglo XVIII”, em Marco
Bellingeri, Dinamicas de Antiguo Régimen y orden constitucional [...],Torino, Otto
Editore, 2000.
15 Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.
16 Campinas, UNICAMP, 1998.
17 Em Anuário mexicano de historia del derecho, México: Vol. XVII, 2005, págs. 97/112.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
11
tos quase até aos nossos dias 18 . Por isso, muitos dos autores
leitores de Freyre dizem muito sobre esta sociedade perdida.
À parte estes, ultimamente, este mundo das sociabilidades
domésticas e, ao mesmo tempo, eclesiais, é abordado por Laura
de Mello e Souza, em Inferno Atlântico: demonologia e coloniza-
ção, séculos XVI-XVII 19 ; enquanto que à escravatura nos ofe-
receram interessantes estudos com elementos para a história
do direito, entre outros Alfredo Bosi, Dialética da Colonização 20 ;
Hebe Maria de Castro Mattos, com o colorido livro Das Cores
do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista –
Brasil séc. XIX 21 ; Id., Escravidão e Cidadania no Brasil
Monárquico 22 ; Keila Grinberg, Liberata – a lei da ambiguidade:
as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no
século XIX 23 ; Id., O Fiador dos Brasileiros: Cidadania, Escravi-
dão e Direito Civil no Tempo de Antonio Pereira Rebouças 24 ; Júnia
Furtado, Chica da Silva e o contratador de diamantes. O outro
lado do mito 25 ; Sílvia Lara (org.), Legislação sobre Escravos Afri-
canos na América Portuguesa 26 ; Kátia M. de Queirós Mattoso,
“A propósito de cartas de alforria. Bahia, 1779-1850” 27 , en-
18 Cf., por último, Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo, O imperador
das idéias. Gilberto Freyre em questão, Rio de Janeiro, Topbooks, 2000.
19 São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
20 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992
21 Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; que
22 Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
23 Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.
24 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002
25 S. Paulo, Companhia das Letras, 2003.
26 Madrid, Fundación Histórica Tavera, 2000; sobre o mundo indígena e o directo,
v., ainda, Tahís Luzia Colaço, “Incapacidade indígena”. Tutela religiosa e
violação do direito guarani nas missões jesuíticas,Curitiba, Juruá Editora, 2000.
27 Em Anais de História, (4): 23-52, 1972
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António Manuel Hespanha
12
tre uma muito rica bibliografia, em grande parte cobrindo já o
século XIX 28 . O papel dos juristas na construção de um apa-
relho conceitual e legislativo compatível com a escravatura
fica claro no livro de Eduardo Spiller Pena 29 .
O livro de Raymundo Faoro. Os donos do poder 30 , com a
atenção que deu ao papel dos juristas no sistema político de
Antigo Regime, foi muito inspirador, tal como os livros de José
Murillo de Carvalho 31 ou de Edmundo Campos Coelho 32 ,
esses já dedicados ao séc. XIX, mas evidenciando algumas con-
tinuidades relevantes no político papel dos juristas. Também a
obra colectiva Optima pars. Elites ibero-americanas do Antigo
Regime, org. por Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda So-
ares da Cunha, Lisboa, ICS, 2005, traz contribuições portugue-
sas e brasileiras para um estudo integrado de mecanismos de
poder, encarados, embora, do ponto do vista dos seus titula-
res, e não tanto dos seus mecanismos.
Se a historiografia penal de Antigo Regime tem apare-
cido menos 33 , o mesmo já não se pode dizer da historiografia
sobre as formas de resistência e revolta. Relembro o livro de
28 Cf. http://www.oah.org/meetings/2004/grinberg.html: State of the Field:
Slavery. Slavery in Brazil: The Recent Historiography. Bibliography. Organized
by Keila Grinberg.University of Rio de Janeiro
29 Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravatura e a
lei de 1871, Campinas, Editora da UNICAMP, 2001.
30 7ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987. 2 vols..
31 I – A Construção da Ordem, II – Teatro de Sombras, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora
UFRJ/Relume Dumará, 1996 (notáveis).
32 As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina e Engenharia no Rio de Janeiro, 1822-
1930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
33 V., em todo o caso, p.s., Textos de história, Volume 6(1998), N° duplo: 1 e 2
(Degredo no império colonial português).
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
13
Laura Mello e Souza, Norma e Conflito: Aspectos da História
de Minas no Século XVIII , já citado, o livro de Carla M. J.
Anastasia, Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na
primeira metade do século XVIII 34 e a obra de Luciano
Figueiredo (Luciano R. de A.Figueiredo, Revoltas, Fiscalidade
e Identidade Colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia
e Minas Gerais (1640-1761). Tese de Doutoradoapresentada
ao Departamento de História da FFLCH da USP, 1996), com
todo o interesse que subsequentemente vem levantando 35 .
No domínio da inventariação e publicação de novas
fontes relevantes para a história institucional e jurídica colo-
nial, saliento o trabalho de Esther Bertoletti (responsável pelo
Projecto “Resgate”, uma iniciativa exemplar do Governo bra-
sileiro, integrada nas comemorações do Descobrimento) e Caio
Boschi 36 . Chamo a atenção para a importância da documen-
tação publicada, por exemplo, no Códice Matoso – Coleção das
notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que
fez o doutor Caetano da Costa Matoso em 1749 37 .
34 Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
35 Cf., ainda, Luciano R. de A. Figueiredo, “Protestos, revoltas e fiscalidade no
Brasil Colonial”. LPH: Revista de História. 5 (1995): 56-87.
36 Que também tem estudos de história das missões com interesse para a a
história jurídica.
37 Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Cultu-
rais, 1999. Coleção Mineiriana, Série Obras de Referência. Coordenação geral
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, estudo
crítico Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, 2002. 1999.
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0213
António Manuel Hespanha
14
É com tudo isto, e com muito mais que aqui não fica
registado, que este livro deve ser reconsiderado. De momen-
to, deixo ao leitor mais essa tarefa 38 .
Por fim, agradeço à Fundação José Arthur Boiteux e
aos colegas Arno Dal Ri Júnior e Orides Mezzaroba a possi-
bilidade que me ofereceram de publicar este livro no Brasil,
onde ele era praticamente desconhecido.
Lisboa, Junho 2005.
António Manuel Hespanha
38 V. Laima Mesgravis, “A sociedade brasileira e a historiografia colonial”, em
Marcos César de Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva, S. Paulo,
Contexto, 2001.
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PARTE I
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livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0216
INTRODUÇÃO
Objectivos da aprendizagem
Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de:
• Explicar a autonomia da história institucional, que
a distingue tanto da história social como da histó-
ria pura do direito;
• Identificar as actuais linhas de força da história
institucional.
1. Evolução recente da história institucional e política
A história institucional e política, concebida como
história dos mecanismos de disciplina social, é uma das
mais antigas disciplinas historiográficas especializadas da
tradição cultural europeia. A história do direito, cultivada
autonomamente desde o século XVI, pode ser considerada
como um precursor seu, embora com um âmbito mais restri-
to, pois ocupava-se apenas do direito oficial e letrado39 . No
entanto, o romantismo do século XIX, nomeadamente a Es-
cola histórica alemã (C. F. von Savigny, 1779-1861), alarga
decisivamente o objecto desta, ao conceber o direito como
uma componente cultural que emanava do “espírito do povo”
39 Sobre estes conceitos, v., infra, III.
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0217
António Manuel Hespanha
18
(Volksgeist) e que incorpora, portanto, ao lado do direito es-
tadual e da tradição jurídica letrada (Professorenrecht), o di-
reito “popular” ou “vivido”. No início deste século, o
sociologismo jurídico (F. Ehrlich, E. Durkheim) e o
institucionalismo (Léon Duguit, Santi Romano)40 acentua-
ram ainda mais esta identificação do direito com os mecanis-
mos de organização e de disciplina “espontâneos” (the law in
action, por contraposição a the law in the books); daí que a
historiografia jurídica influenciada por estas correntes se te-
nha ocupado de todas as manifestações de normação social,
provindas ou não do Estado.
Não eram, portanto, estas orientações metodológicas
que mereceriam as críticas de formalismo que a primeira ge-
ração da Escola dos Annales dirigiu contra a história políti-
ca e jurídica41 . Os destinatários destas críticas eram antes os
historiadores do direito, que dominavam as faculdades jurí-
dicas e que faziam uma história “estritamente jurídica”,
dirigida unicamente para a descrição da evolução do direito
oficial e letrado, dos seus aspectos legislativos e conceituais
(ou “dogmáticos”) (Dogmengeschichte), não considerando,
nem o contexto social destes, nem as múltiplas formas de or-
ganização e de constrangimento que não têm origem no po-
der oficial, nem abrigo no discurso letrado sobre o direito42 .
40 Sobre estas correntes, v. Wieacker, 1993, 645 ss.; Hespanha, 1986a.
41 Cf. Hespanha, 1984; Hespanha, 1986.
42 Outros autores, com diferentes parentelas metodológicas, tinham criticado a
separação rígida entre a história do direito e a história social. É o caso de Otto
Brunner, que denunciou a “ideia de separação” (Trennungsdenken) cultivada pela
historiografia jurídica dominante. Sobre este autor, v. Hespanha, 1984, 33 ss.
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0218
DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
19
A crítica da Escola dos Annales era justa, se dirigida
apenas contra quem a merecia. Mas acabou por ter efeitos
excessivos e prejudiciais. Excessivos, por atingir, indistinta-
mente, toda a historiografia do poder e das instituições, mes-
mo aquela que nunca tinha perdido de vista que, como insti-
tuição social, o direito não podia deixar de manter relações
multifacetadas com a realidade social envolvente. Prejudi-
ciais, porque levou os historiadores a deixarem, inconsidera-
damente, fora do seu campo de análise os fenómenos
institucionais e jurídicos, como se estes não fossem senão
consequências directas e imediatas dos fenómenos sociais.
Paradigmático é o exemplo de F. Braudel que, na sua monu-
mental obra sobre a bacia do Mediterrâneo (justamente uma
área de enorme importância no plano das formas jurídicas43 ),
ignora completamente os aspectos jurídicos e político-institu-
cionais, com os quais, nomeadamente nessa época, a cultura
jurídica meridional cunhou modelos mentais, institucionais
e políticos que dominaram duradouramente a cultura e a
sociedade europeias quase até aos nossos dias. O que quer
dizer que nem se tratava de aspectos laterais e derivados,
nem de meros événements conjunturais e passageiros. Como
resultado, a perspectiva da história das instituições era igno-
rada, sendo as formas jurídicas, institucionais e políticas re-
duzidas a um “mero reflexo” da prática económico-social
(“economicismo”), desprovidos de espessura e autonomia.
43 Cf., infra, III.
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0219
António Manuel Hespanha
20
Os anos 70 constituíram, neste domínio da história
institucional e política, uma época decisiva de mudança.
Vários factores podem ser relacionados com isto:
- Em primeiro lugar, o aparecimento de novas gerações de
historiadores do direito – marcados pela influência do mar-
xismo pós-gramsciano (A. Gramsci, G. della Volpe, L.
Althusser, N. Poulantzas), mais atento à autonomia dos
vários níveis da prática social, e pela primeira vaga dos
Annales – favoreceu a superação, quer do formalismo da
história jurídica tradicional, quer do reduccionismo
economicista da historiografia marxista clássica.
- Em segundo lugar, novas correntes da teoria política e
sociológica (sobretudo, autores como L. Althusser, H.
Marcuse, J. Habermas, M. Foucault, P. Bourdieu, N.
Luhmann) sugeriram modelos teóricos mais matizados e
produtivos para a conceptualização das relações entre o
contexto social e as formas político-institucionais (nos seus
níveis institucional, discursivo e ideológico).
- Em terceiro lugar, a “crise do Estado”44 e os progressos
da antropologia política e jurídica (Richard Abel,
Boaventura Sousa Santos, Clifford Geertz45 ) fomenta-
44 Cf. R. Ruffili (ed.), Crisi dello Stato e storiografia contemporanea, Bolonha, 1979.
Que pensar com coragem e desassombro é uma tarefa arriscada prova-o a
trágica morte deste autor que, pela notoriedade que adquiriu como pensador
político alternativo, foi, pouco depois, assassinadopelas Brigade rosse.
45 Cf. alguns textos principais em A. M. Hespanha (dir.), Justiça e Litigiosidade.
História. e Prospectiva, Lisboa, Gulbenkian, 1994.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
21
ram uma consciência mais viva do carácter cultural, his-
tórico, “local”, dos paradigmas políticos e jurídicos do
primeiro mundo, dominados pelo “estatismo” e pelo
“positivismo legalista”46 , e abriram a via para uma histó-
ria institucional mais atenta à alteridade de outros mode-
los de organizar e de normalizar47 .
- Finalmente, as teorias do discurso desvendaram mecanis-
mos muito subtis de condicionamento recíproco entre o
contexto e o texto, mostrando como este não apenas tem
capacidades genéticas autónomas (é, neste sentido,
autocriador [“autopoiético”]), como pode criar e difundir
modelos de apreensão do mundo que, nessa medida, in-
fluenciam as estratégias práticas dos agentes históricos48 .
2. Linhas de força da história institucional
Passada a época dos manifestos49 , esta nova história
institucional entrou numa fase de realizações, das quais se
podem identificar as seguintes linhas de força50 :
- Reelaboração do conceito de direito e de instituições, no
sentido de uma incorporação no objecto da história (e so-
ciologia) das instituições, quer dos mecanismos “não ofi-
46 Cf., Hespanha, 1984,26 ss.
47 Portanto, menos crono- e etnocêntrica.
48 Para alguma informação suplementar, cf., infra, III.
49 Sobre a problemática recente da história institucional, v. o importante conjunto
de contributos em Grossi, 1986, e ainda, Hespanha, 1992.
50 Cf., também, Hespanha, 1986, 1986a e 1986b; Hespanha, 1992.
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António Manuel Hespanha
22
ciais” e espontâneos de organização e de disciplina, quer
de formas de controlo social que não funcionam segundo
o modelo da interdição e da sanção (como o direito), mas
segundo mecanismos “positivos” de condicionamento
(como a amizade, a liberalidade, a graça51 , o amor ou os
dispositivos de “política social”, típicos do Wellfare State)52 .
- Interesse pelos mecanismos de organização e disciplina
sociais “vividos” ou “espontâneos”, e pelos sistemas sim-
bólicos (frequentemente implícitos e impensados) que os
geram. Nesta medida, as instituições interessam ao his-
toriador, quer como formas de organização prática da
vida social, quer como manifestações de modelos men-
tais de apreensão do mundo. Neste segundo aspecto, as
instituições podem ser objecto de “interpretação profun-
da (ou densa)” (thick [or deep] interpretation, C. Geertz)53
e revelar um universo profundo de crenças que coman-
da a vida quotidiana de cada cultura (inclusivamente
da cultura contemporânea)54 .
51 Cf. infra, IV.5.2.
52 Cf., sobre o tema, Hespanha, 1992a.
53 Por “interpretação densa” entende-se uma leitura das práticas humanas dirigida
a identificar os sistemas simbólicos (de idéias, de valores) que lhes subjazem e
nos termos dos quais elas ganham sentido para os próprios agentes.
54 Todo o capítulo II.1 não é senão uma identificação do impensado social que
comandava a lógica institucional da sociedade de Antigo Regime. Também nos
capítulos lI.2. e lI.3., procuraremos, nesta linha, explicitar, a partir da análise
institucional, as concepções muito profundas que a cultura medieval e moderna
tinha acerca do que era uma “pessoa” ou uma “coisa” e mostrar como este
impensado se manifestava em consequências práticas, nomeadamente em
consequências normativas. Também os caps. IV.1. e IV.2. arrancam da descrição
do imaginário social subjacente à regulamentação da família e da Igreja, obtido
por uma “interpretação densa” das instituições e conceitos do direito.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
23
- Interesse pelo discurso jurídico, enquanto plano autónomo
de análise. Quer enquanto ele institui modelos de apreen-
der (juridicamente) o mundo e de agir (juridicamente)
sobre ele (e, logo, dirige a prática55 ), quer enquanto ele
resulta, ele mesmo, de práticas de produção específicas,
dependentes de factores sociais gerais e locais, que
condicionam os seus conteúdos56 .
- Realce do carácter alternativo (diferente) dos modelos
institucionais, jurídicos e políticos do Antigo Regime, em
termos tais que se toma ilegítimo aplicar à sua descrição e
interpretação as categorias com que, hoje em dia, com-
preendemos a política e o direito57 .
3. Este manual
Neste manual de história institucional tento partir para
a descrição dos mecanismos institucionais concretos de uma
descrição da sua lógica profunda. Como já antes referi, uma
das mais fortes aquisições da história (da sociologia e da
antropologia) dos nossos dias é a ideia de que por detrás
dos actos da vida quotidiana existem constelações de repre-
sentações, de imagens, de categorias, de sentimentos, por
meio das quais apreendemos o mundo e com auxílio das
55 No capítulo sobre o direito penal (cf., infra, 4.5.2), mostraremos como os vários
conceitos (“tipos”) de crimes constituem uma grelha para classificar as acções
humanas, para estabelecer semelhanças e diferenças entre elas, e para lhes
atribuir resultados punitivos.
56 Sobre este tipo de análise do discurso jurídico, cf. Hespanha, 1978.
57 Cf., sobre isto, Hespanha, 1984, 24 ss., e Hespanha, 1986b.
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António Manuel Hespanha
24
quais organizamos a acção. Isto acontece também com es-
sas formas organizativas mais permanentes que são as ins-
tituições. Por isso, se identificarmos esses quadros fundamen-
tais da cognição e da sensibilidade, os detalhes da organiza-
ção social ganham o seu sentido original, tomam-se “lógicos”,
previsíveis, e o seu estudo toma-se, correspondentemente, mais
fácil e, ao mesmo tempo, mais produtivo.
Acresce que esses quadros, além de constituírem
fenómenos de longa duração58 , são também entidades que
não conhecem as fronteiras dos reinos, antes tendo vigência
em amplas áreas culturais. Estes que aqui descrevemos vale-
ram, no seu fundamental, para toda a Europa sul-ocidental.
Por isso, deixa-se entender facilmente a partir deles a estru-
tura institucional básica dos reinos ibéricos, das unidades
políticas italianas e, em parte, do reino de França. Mas, em
virtude da expansão da tradição jurídica romanista por toda
a Europa ocidental, a capacidade modeladora deste modelo
político-institucional atinge a Alemanha, a Inglaterra, a Es-
cócia e os países escandinavos59 .
Este facto da vigência geograficamente alargada das
matrizes jurídico-culturais que vamos estudar dispensa-nos
de proceder a uma história comparativa das instituições.
Como vamos lidar, basicamente, com os dados culturais que
58 Como se pode ver, por exemplo, nas categorias do imaginário social descritas
no cap. II.1.
59 Aqui, no entanto, com algumas especialidades decorrentes da cultura da Re-
forma.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
25
estão na origem comum dos mecanismos jurídicos de toda a
Europa central e ocidental, ficamos a dispor de uma chave,
também comum, para entender os detalhes institucionais
concretos que estes dados geraram nas conjunturas dos vári-
os reinos. A partir daqui, o estudo das particularidades não
apenas se toma mais fácil, como permite relacionar os desvi-
os com particulares conjunturas culturais e políticas e, com
isto, apreender o significado das diferenças.
Os exemplos e as ilustrações apresentados são, assim,
quase sempre os do reino de Portugal. Com o que se cumpre
um segundo objectivo do manual, qual seja o de apresentar
uma descrição precisa dos quadros institucionais portugue-
ses, desde a organização da família até à organização do
reino e da Igreja. Dentro das limitações impostas pela dimen-
são do manual, procurou-se mesmo abordar aspectos menos
tratados, como o estado das pessoas (cap. II.2.), os direitos so-
bre as coisas (cap. II.3.) e o direito penal (cap. IV.5.2.).
Procurei simplificar,quanto possível, o texto da exposi-
ção. Mas não fiz economia da linguagem técnica precisa,
quando ela era indispensável. Por meio de notas e de refe-
rências bibliográficas procuro convidar todos a um trabalho
criativo e crítico de continuação (ou de reconstrução) dos
resultados aqui apresentados.
Tenho a noção, que aqui confesso e assumo, de que, na
sua linha geral, este manual vai ao arrepio da historiografia
política e institucional mais corrente entre nós. Descontando
embora tudo o que tudo tem de pessoal, abono-me, sobretu-
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António Manuel Hespanha
26
do, na autoridade das fontes, a que constantemente recorro
e que explicitamente cito. E também, porventura, numa nova
maneira de as ler, explicável a partir do que acabei de dizer
na curta introdução metodológica.
Bibliografia citada
GROSSI, Paolo (dir.), Storia sociale e dimensione giuridica. Strumenti
d’indagine e ipotesi di lavoro, Milano, Giuffre, 1986, 2 vols.
HESPANHA, António Manuel, “O materialismo histórico na história
do direito”, in A. M. Hespanha, A História do Direito na História Social,
Lisboa, Livros Horizonte, 1978, pp. 9-69.
HESPANHA, António Manuel, “Para uma teoria da história político-
institucional do Antigo Regime”, in A. M. Hespanha (dir.), Poder e Insti-
tuições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, Gulbenkian, 1984, pp. 7-90.
HESPANHA, António Manuel, “A história das instituições e a ‘morte do
Estado’”, in Anuario de filosofia del derecho, Madrid 1986a, pp. 191-227.
HESPANHA, António Manuel, “Para uma nova história do direito?”,
in Vértice, 470-472, 1986b, pp. 17-33.
* HESPANHA, António Manuel, Poder e Instituições no Antigo Regime.
Guia de estudo, Lisboa, Cosmos, 1992.
* HESPANHA, António Manuel, “O poder, o direito e a justiça numa
era de perplexidades” in Administração. Administração Pública de Macau
(15) (1992a), pp. 7-21 (incluindo a versão chinesa).
WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno (trad. port.
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit [...]), 1967, 2.ed., Lisboa, Gulbenkian, 1993.
Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com*.
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PARTE II
O IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE
E DO PODER
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1. A SOCIEDADE
Objectivos da aprendizagem
Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de:
• Identificar os traços fundamentais da constituição po-
lítica do Antigo Regime e derivá-los da ideia de corpo.
• Identificar os traços fundamentais do imaginário
absolutista e liberal e derivá-los da ideia de indiví-
duo, de vontade e de pacto.
• Compreender as razões do carácter central da ideia de
justiça no imaginário da sociedade de Antigo Regime.
• Compreender a oposição fundamental entre razão
e vontade, natureza e pacto, como fundamentos
teóricos da sociabilidade política.
1.1 A concepção corporativa da sociedade
O pensamento social e político medieval era domi-
nado pela idéia da existência de uma ordem universal (cos-
mos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava
todas as criaturas para um objectivo último que o pensa-
mento cristão identificava com o próprio Criador. Assim,
tanto o mundo físico como o mundo humano não eram ex-
plicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a
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António Manuel Hespanha
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esse telos, a essa causa final (para utilizar uma impressiva
formulação da filosofia aristotélica); o que transformava o
mundo na mera face visível de uma realidade mais global,
natural e sobrenatural, cujo (re)conhecimento era indispen-
sável como fundamento de qualquer proposta política. Por
isso teve então tanto êxito um texto do Digesto que definia a
prudência (= saber prático) do direito (que, então, desempe-
nhava o papel de teoria política) como uma “ciência do justo
e do injusto, baseada no conhecimento das coisas divinas e
humanas” (divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti
atque iniusti scientia, D,I,1,10,2).
A unidade dos objectivos da criação não exigia que as
funções de cada uma das partes do todo na consecução dos
objectivos globais da Criação fossem idênticas às das ou-
tras. Pelo contrário, o pensamento medieval sempre se man-
teve firmemente agarrado à ideia de que cada parte do todo
cooperava de forma diferente na realização do destino cósmi-
co. Por outras palavras, a unidade da Criação não comprome-
tia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos
objectivos de cada uma das “ordens da criação” e, dentro da
espécie humana, de cada grupo ou corpo social.
Ligada a esta, a ideia de indispensabilidade de todos
os órgãos da sociedade e, logo, da impossibilidade de um
poder político “simples”, “puro”, não partilhado. Tão mons-
truoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma
sociedade em que todo o poder estivesse concentrado no so-
berano. O poder era, por natureza, repartido; e, numa socie-
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
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dade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-
se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos so-
ciais. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a
autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio
propria, o funcionamento próprio de cada uma das partes do
corpo), mas por um lado, a de representar externamente a
unidade do corpo, e, por outro, a de manter a harmonia en-
tre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que
lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada
qual o seu estatuto (“foro”, “direito”, “privilégio”); numa
palavra, realizando a justiça (iustitia est constans et perpetua
voluntas ius suum unique tribuendi, a justiça é a vontade cons-
tante e perpétua de dar a cada um o que é seu, D,I,1,1,10,1).
E assim é que a realização da justiça – finalidade que os juris-
tas e politólogos tardo-medievais e primo-modernos conside-
ram como o primeiro ou até o único fim do poder político – se
acaba por confundir com a manutenção da ordem social e
política objectivamente estabelecida.
Por outro lado, faz parte deste património doutrinal a
ideia, já antes esboçada, de que cada corpo social, como cada
órgão corporal, tem a sua própria função (officium), de modo
que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária
para que a possa desempenhar. A esta ideia de autonomia
funcional dos corpos anda ligada, como se vê, a ideia de
autogoverno que o pensamento jurídico medieval designou
por iurisdictio e na qual englobou o poder de fazer leis e esta-
tutos (potestas lex ac statuta condendi), de constituir magistra-
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32
dos (potestas magistratus constituendi) e, de um modo mais
geral, de julgar os conflitos (potestas ius dicendi) e de emitir
comandos (potestas praeceptiva).
Por fim, saliente-se a ideia do carácter natural da cons-
tituição social. Daqui decorre a natureza indisponível das
leis fundamentais (“constituição”) de uma sociedade (de um
reino), pois estas dependem tão pouco da vontade como a
fisiologia do corpo humano ou a ordem da Natureza. É certo
que soberano e vassalos podem temporariamente afastar-se
das leis naturais de ordenação social, pela tirania ou pela
revolução; mas o mau governo, contra o qual as próprias
pedras clamarão, é sempre um episódio político passageiro.
O que os povos já poderão eleger – embora de acordo, tam-
bém, com características objectivas das várias nações, por sua
vez ligadas às particularidades da terra e do clima – são as
formas de governo: a monarquia, a aristocracia, a democra-
cia ou qualquer forma de governo misto, proveniente do cru-
zamento destes regimes-tipo referidos por Aristóteles. Como
podem explicitar e adaptar às condições de cada comunida-
de, através do direito civil (ius civile, i. e., do direito da cida-
de) os princípios jurídicos decorrentes da natureza das soci-
edades humanas (ius naturale60 ).Mas a constituição natural
conserva-se sempre como um critério superior para aferir a
legitimidade do direito estabelecido pelo poder, sendo tão
vigente e positiva como este61 .
60 Cf., infra, III.
61 Cf., infra, IV.5.3.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
33
Nestes termos, o direito – todo ele, mas sobretudo o
natural – desempenha uma função constitucional. Impõe-
se a todo o poder. Não pode – ou, pelo menos, não deve – ser
alterado. E isto porque se funda nos princípios necessários
de toda a convivência humana (affectio societatis). E não por-
que se fundamente num pacto primitivo ou num pacto histó-
rico estabelecido, por exemplo, em cortes, como supõem os
historiadores que sobrevalorizam o “pactismo” medieval ou
moderno62 . Em virtude desta função constitucional do direi-
to, toda a actividade política aparece subsumida ao modelo
“jurisdicionalista”. Ou seja, toda a actividade dos poderes
superiores – ou mesmo do poder supremo – é tida como orien-
tada para a resolução de um conflito entre esferas de interes-
ses, conflito que o poder resolve “fazendo justiça”63 .
Caso contrário, o governo será tirania (tyrania in
exercitio), podendo (e devendo) ser objecto de resistência.
1.2 O paradigma individualista
Embora se lhe possam encontrar antecedentes mais re-
cuados (oposição entre estóicos e aristotélicos, entre agostinia-
nismo e tomismo), a genealogia mais directa do paradigma
individualista da sociedade e do poder deve buscar-se na
escolástica franciscana quatrocentista [Duns Scotto (1266-
1308), Guilherme d’Occam (1300-c. 1350)]. É com ela – e com
62 Cf. ibid.
63 Cf., infra, IV. 5.l. (“paradigmas de legitimação ...”).
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34
uma célebre querela filosófica, a questão “dos universais” –
que se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da
sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade,
passou a entender-se que aqueles atributos ou qualidades
(“universais”) que se predicam dos indivíduos (ser pater
familias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações
sociais em que estes estão integrados não são qualidades in-
corporadas na sua essência, não são “coisas” sem a conside-
ração das quais a sua natureza não pudesse ser integralmente
apreendida – como queriam os “realistas”. Sendo antes meros
“nomes”, externos à essência, e que, portanto, podem ser dei-
xados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos
uma série de indivíduos “nus”, incaracterísticos, intermutáveis,
abstractos, “gerais”, iguais. Verdadeiros átomos de uma soci-
edade que, esquecidas as tais “qualidades” sociabilizadoras
agora tornadas descartáveis, podia também ser esquecida pela
teoria social e política. Esquecida a sociedade, i. e., o conjunto
de vínculos interindividuais, o que ficava era o indivíduo, sol-
to, isolado, despido dos seus atributos sociais.
Estava quase criado, por esta discussão aparentemen-
te tão abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a
toda a reflexão social durante, pelo menos, os dois últimos
séculos – o indivíduo, abstracto e igual. Ao mesmo tempo
que desapareciam do proscénio as pessoas concretas, ligadas
essencialmente umas às outras por vínculos naturais; e, com
elas, desapareciam os grupos e a sociedade.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
35
Para se completar a revolução intelectual da teoria
política moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer
realidade metafísica, laicizando a teoria social e libertando o
indivíduo de quaisquer limitações transcendentes.
Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento
das relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista,
sobretudo através da “teoria das causas segundas” – ao in-
sistir na relativa autonomia e estabilidade da ordem da Cria-
ção (das “causas segundas”) em relação ao Criador, a “cau-
sa primeira” – garantira uma certa autonomia da Natureza
em face da Graça e, consequentemente, do saber temporal
em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma recaída no
fideísmo, na concepção de uma completa dependência do
homem e do mundo em relação à vontade absoluta e livre de
Deus que levou a uma plena laicização da teoria social. Se
Deus se move por “impulsos” (teoria do impetus, de raiz
estóica), se os seus desígnios são insondáveis, não resta outro
remédio senão tentar compreender (racionalmente ou por
observação empírica) a ordem do mundo nas suas manifes-
tações puramente externas, como se Deus não existisse, se-
parando rigorosamente as verdades da fé das aquisições
intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social –
levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde Hugo
Grócio (1583-1645) e Tomas Hobbes (1588-1679) que a li-
berta de todas as anteriores hipotecas à teologia moral, do
mesmo passo que liberta os indivíduos de todos os vínculos
em relação a outra coisa que não sejam as suas evidências
racionais e os seus impulsos naturais.
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36
Esta laicização da teoria social e a colocação no seu centro
do indivíduo, geral, igual, livre e sujeito a impulsos naturais,
tem consequências centrais para a compreensão do poder.
A partir daqui, este não pode mais ser tido como fun-
dado numa ordem objectiva das coisas; vai ser concebido
como fundado na vontade. Numa ou noutra de duas pers-
pectivas. Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na
Terra, também soberanamente, pelo seu lugar-tenente – o
príncipe (providencialismo, direito divino dos reis). Ou pela
vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegu-
rança da sociedade natural, ou pelo desejo de maximizar a
felicidade e o bem-estar, instituem, por um acordo de vonta-
des, por um pacto, a sociedade civil (contratualismo). A von-
tade (e não um equilíbrio – ratio – preestabelecido) é, tam-
bém, a origem do direito. Guilherme d’Occam descrevera-o,
ou como o que Deus estabeleceu nas Escrituras, ou como o
que decorre racionalmente de algum pacto. E, laicizada a
teoria jurídica, Rousseau definirá a lei como “une déclara-
tion publique et solemnelle de la volonté, générale sur un objet
d’interêt commun” (Lettres écrites de la Montagne, I,6).
Perante este voluntarismo cedem todas as limitações de-
correntes de uma ordem superior à vontade (ordem natural
ou sobrenatural). A constituição e o direito tornam-se disponí-
veis e a sua legitimidade não pode ser questionada em nome
de algum critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se
extrai (na perspectiva providencialista) que Deus pode enviar
tiranos para governar os homens (pecadores, duros), aos quais
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
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estes devem, apesar de tudo, obedecer. Extrai-se também que
as leis fundamentais, como todos os pactos, são disponíveis, i.
e., factíveis e alteráveis pelos homens, num dado momento his-
tórico. E, finalmente, que todo o direito positivo, bem como
todas as convenções, enquanto produto directo ou indirecto
de pactos, são justos (“positivismo jurídico”)64 .
Para além destes pontos comuns, o paradigma indivi-
dualista e voluntarista na concepção da sociedade e do po-
der desdobra-se em certas correntes típicas. Por um lado, no
providencialismo, que concebe o poder como produto da livre
vontade de Deus, exercitada na terra pelas dinastias reinan-
tes, que assim eram revestidas de uma dignidade quase sa-
grada. Por outro lado, no contratualismo absolutista, que con-
cebe o pacto social como transferindo definitivamente para
os governantes todos os poderes dos cidadãos. Esgotando-se
os direitos naturais naqueles transferidos e não se reconhe-
cendo outra fonte válida de obrigações (nomeadamente, a
religião), o soberano ficava, então, livre de qualquer sujeição
(não ser a de manter a forma geral e abstracta dos coman-
dos, o que distinguiria o seu governo da arbitrariedade do
governo despótico). Por fim, neste quadroapenas sinóptico,
o contratualismo liberal, para o qual o conteúdo do contrato
social estaria limitado pela natureza mesma dos seus
64 Note-se, no entanto, que a ideia de um pacto na origem das sociedades civis
não era estranha à teoria política tradicional. Só que, como vimos, este pacto
apenas definia a forma de governo (que Aristóteles considerara mutável); não
já constituição política fundamental. E mesmo aquela, uma vez estabelecida,
consolidava-se em direitos adquiridos (iura radicata) impossíveis de alterar.
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38
objectivos – instaurar uma ordem social e política maximi-
zadora dos instintos hedonistas dos homens, pelo que os di-
reitos naturais permaneceriam eficazes mesmo depois de ins-
taurada a sociedade civil65 .
1.3 Orientação bibliográfica
As obras de base para a história do pensamento políti-
co-social moderno são as seguintes: para os séculos XVI e
XVII, Albuquerque, 1978, 1968, 1974; Torgal, 1981. Dispen-
sam, em geral, a consulta de autores anteriores. Para o sécu-
lo XVIII, Moncada, 1949; Langhans, 1957; Dias, 1982; Perei-
ra, 1982; 1983. Perspectivas novas para a história do pensa-
mento político nesta época foram abertas por Curto, 1988.
Síntese, Xavier, 1993.
A descrição dos grandes paradigmas do pensamento
político moderno, desde as suas origens medievais, estão
magistralmente expostos por Villey, 1961; 1968 (com o que
se pode, em grande parte, dispensar a leitura de clássicos
como Otto v. Gierke ou Émile Lousse). A leitura de Wieacker,
1980 (ou, mais recente e especificamente, de Stolleis, 1988),
também se aconselha, pela atenção dedicada aos pensadores
políticos centro-europeus, tão influentes entre nós na segun-
da metade do século XVIII.
65 Sobre estas correntes, com bibliografia suplementar, Xavier, 1993, 127. Sobre as
escolas do pensamento político moderno, Ibid., 127 ss.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
39
Bibliografia citada
ALBUQUERQUE, Martim de, O Pensamento Político no Renascimento
Português, Lisboa, ISCSPU, 1968.
ALBUQUERQUE, Martim de, A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicio-
nal Portuguesa, Lisboa, Inst. Hist. Infante D. Henrique, 1974.
ALBUQUERQUE, Martim de, Jean Bodin na Península Ibérica. Ensaio de
História das Ideias Políticas e de Direito Público, Lisboa, Centro Cultural
de Paris, 1978.
ANDRADE, Alberto Banha de, Vemey e a Cultura do Seu Tempo, Coimbra,
Acta Universitatis Conimbrigensis, 1966.
* CURTO, Diogo Ramada, O Discurso Político em Portugal (1600-1650),
Lisboa, Universidade Aberta, 1988.
DIAS, José S. da Silva, “Pombalismo e teoria política”, in Cultura. His-
tória e Filosofia, (1982), pp. 45-114.
* MONCADA, Luís Cabral de, “Origens do moderno direito portugu-
ês. Época do individualismo filosófico e crítico”, in Estudos de História
do Direito, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1949 pp. 55-178.
* MELO (Freire), José Pascoal de, Institutiones iuris civilis lusitani,
Ulysipone, 1789.
LANGHANS, Franz-Paul de Almeida, “História das instituições de
direito público. Fundamentos jurídicos da monarquia portuguesa”,
in Estudos de Direito, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1957,
pp. 225-356.
PEREIRA, José Esteves, “A polémica do ‘Novo Código’”, in Cultura.
História e Filosofia, 1(1982), p. 289 ss.
PEREIRA, José Esteves, O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII.
António Ribeiro dos Santos, Lisboa, INCM, 1983.
SAMPAIO, Francisco C. de Sousa, Prelecções de Direito Pátrio, Público e
particular, Lisboa, 1793.
SANTOS, António Ribeiro dos, Notas ao plano do Novo Código de direito
Publico de Portugal [...], Coimbra, Imp. Univ., 1844.
livro_antonio_m_espanha.p65 11/11/2005, 03:0239
António Manuel Hespanha
40
SILVA, Nuno Espinosa Gomes da, História do Direito Português. Fontes
de Direito, Lisboa, Gulbenkian, 1991.
STOLLEIS, Michael, Geschichte des öffentlichen Recht in Deutschland, voI.
I Reichspublizisti und Policeywissenschaft, 1600-1800, München, C. H.
Beck, 1988.
TORGAL, Luís Reis, Ideologia Política e Teoria doEstado na Restauração,
Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982,2 vols.
VILLEY, Michel, Cours d’histoire de la philosophie du droit, Paris,
1961-1964.
VILLEY, Michel, La formation de la pensée juridique moderne, Paris, 1968.
WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno, Lisboa,
Gulbenkian.
* XAVIER, Ângela Barreto, & HESPANHA A. M., “A representação da
sociedade e do poder”, in História de Portugal, voI. IV “O Antigo Regime”,
dir. A. M. Hespanha, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 121-145.
Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *.
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2. AS PESSOAS
Objectivos da aprendizagem
Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de:
• Explicar o carácter histórico e cultural (por oposi-
ção a “natural”) de conceitos como o de “pessoa”
ou de “identidade pessoal”;
• Identificar pessoas “artificiais”;
• Explicar o significado central dos conceitos de “pes-
soa” e de “estado” (por oposição a “indivíduo”) no
imaginário jurídico e político do Antigo Regime;
• Definir alguns “estados” da sociedade de Antigo
Regime – nobres, clérigos, peões, escravos, estran-
geiros, mulheres, menores –, bem como os traços
fundamentais da sua situação jurídica e política.
2.1 “Estados” e “pessoas”
O Código Civil português de 1867 abre com a enfática
declaração de que “Só o homem é susceptível de direitos e
obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua
personalidade” (artigo 1.°). Este artigo resume a imagem que,
hoje em dia, temos do universo dos sujeitos de direitos.
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António Manuel Hespanha
42
Para o nosso imaginário jurídico (e político), todos os
homens, mas exclusivamente eles66 , podem ser titulares de
direitos e de obrigações. Embora, vistas mais em detalhe, as
coisas, mesmo hoje, não sejam assim tão lineares67 , pode di-
zer-se que o universo dos actores no palco do direito e da
política corresponde fundamentalmente ao universo dos
actores no palco da vida quotidiana, tal como ela nos é dada
pelo senso comum. Os suportes dos direitos e das obrigações
são aqueles mesmos com que nos cruzamos na rua e que con-
sideramos como pessoas.
Por outro lado, todas as pessoas jurídicas são iguais e
cada uma delas, uma e uma só. A antropologia jurídica, po-
lítica (e moral) dos dias de hoje assenta fortemente nesta ideia
da igualdade e da unidade das pessoas, reagindo contra to-
das as formas de discriminação entre elas ou de desagrega-
ção da sua identidade pessoal68 .
Para o direito romano, e também para a tradição do
direito comum, em contrapartida, o universo dos titulares
de direito não era um universo de pessoas, no sentido que
o senso comum dá (e já então dava) à palavra, mas de “es-
tados” (status).
66 Tomamos, aqui, a palavra “homem” no seu sentido (politicamente incorrecto...)
genérico, abrangendo homens, mulheres e, como diriam os juristas antigos, ...
hermafroditas e eunucos.
67 Nomeadamente, porque há sujeitos de direito que não são homens, no sentido
natural da palavra (v. g., as chamadas “pessoas jurídicas” ou “pessoas
colectivas”, ou, ainda, os nascituros, para não falar dos “direitos dos animais”).
68 A esquizofrenia é uma doença; a duplicidade, um defeito moral; o uso de
várias identidades pessoais, um crime.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
43
Ao criar o mundo, Deus criara a Ordem. E a Ordem
consiste justamente numa unidade simbiótica; numa trama
articulada de relações mútuas entre entidades, pelas quais umas
dependem, de diversos modos e reciprocamente, de outras.
Neste sentido, todas elas, sem distinção de inteligentes ou bru-
tos, de seres animados ou inanimados, disponibilizam “utili-
dades” e se propõem colher estas, exercendo as “faculdades”
de gozo inerentes à sua situação, ao seu “estado”. Por outras
palavras, todas têm direitos e deveres umasem relação às ou-
tras. A natureza desses deveres e obrigações depende da posi-
ção de cada entidade (status) na ordem do mundo, sendo alheia
à circunstância de disporem ou não de entendimento, de se-
rem pessoas, no sentido mais corrente da palavra.
O que fica dito já dá para entender que, ao tratar dos
sujeitos da política ou do direito, o ponto de partida não há-de
ser constituído pelas pessoas (i.e., os seres dotados de identida-
de física e racional), mas pelas condições (status, “estados”),
ou seja, pelas posições relativas que as criaturas ocupam na
ordem ou ordens da Criação de que fazem parte. E, assim, o
status é definido como “a condição ou qualidade [das pessoas,
mas usando agora a expressão num sentido que já não
corresponde ao do senso comum] que faz com que alguém [ou
alguma coisa] seja membro de alguma sociedade [ou organis-
mo] e tenha comunicação com o seu direito [ou norma de or-
ganização]” (Wolfgang Adam Lauterbach, 1688)69 .
69 Cit. por Coing, 1985, I, 168. As interpolações que fizemos ao texto destinam-se
a evitar uma sua leitura banalizadora, reduzindo-o às evidências de hoje.
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António Manuel Hespanha
44
Esta diferente concepção do universo dos titulares de
direitos tem uma dupla consequência.
Por um lado, não permite uma rigorosa distinção entre
sujeitos e objectos do direito, decalcada, nomeadamente, na
distinção entre “pessoas” – dotadas do uso da razão, a quem
caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações70 – e “coi-
sas” – privadas de capacidade racional e que ocupariam, tam-
bém exclusivamente, a posição de objectos desses direitos e
dessas obrigações. Pelo contrário. Direitos e obrigações po-
dem competir, indistintamente, a homens e a outras entida-
des que não têm (ou já não têm) essa qualidade.
Podem competir, desde logo, a seres sobrenaturais,
como Deus, que, nesta medida é titular de direitos juridica-
mente protegidos71 tanto do domínio civil como do penal,
embora o exercício e a defesa destes estejam cometidos aos
seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis72 ). Também os
santos e os anjos podem ser titulares de situações jurídicas,
como a propriedade de bens ou a titularidade de cargos.
Conhecido é o exemplo de Santo António, titular de um pos-
to de oficial num regimento algarvio, com os corresponden-
tes direitos, nomeadamente o de receber a sua paga. Titular
de direitos podia ser, ainda, a alma (de pessoa morta), a quem
70 Realçando esta identificação entre os sujeitos de direito e os homens, e critican-
do a anterior “personificação” de seres irracionais, v. Ferreira, 1870, comentário
ao art.o. 1.°.; cf. também, Pascoal de Melo, 1789, II, 1, 1.1 e 2.
71 Sobre o domínio de Deus sobre as coisas, v. Soto 1556, 1. IV, q. 2, art. 2.
72 Como estes não exercem direitos próprios, mas direitos de outrem, este exercí-
cio está vinculado por normas estritas destinadas a salvaguardar que os direi-
tos são efectivamente exercidos no sentido querido pelo seu titular.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
45
se faziam frequentemente deixas73 . Quando Álvaro Valas-
co74 considerou “incivilis et ridicula” a decisão de alguns tri-
bunais de aceitar a nomeação da própria alma para as se-
gunda e terceira vida de um prazo “de vidas”75 , o que o cho-
cava não era que a alma pudesse ser enfiteuta, mas que, sen-
do ela imortal, se prejudicasse o senhorio, pois este nunca
poderia recuperar o prédio. Só neste sentido ela era, neste
caso, uma “persona minus idonea” (ibid., n. 6).
Personificados eram, ainda, embora só para os sujeitar
a penas, os animais. São conhecidas muitas histórias de pu-
nição de animais76 . Dias Ferreira, que escrevia na década de
60 do século passado, ainda lembrava que, sendo juiz em
Alfândega da Fé, tinha posto fim a um processo intentado
pelo seu antecessor contra um boi que quebrara um braço a
um homem77 . Mesmo as coisas inanimadas podiam ser titu-
lares de direitos. Assim, um prédio podia ser titular de direi-
tos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões
reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a adscrição,
vinculação de certas pessoas a trabalhar certo prédio). Claro
73 Por exemplo, de rendas com as quais se pagassem missas pela sua salvação. A
instituição da alma como herdeiro foi proibida pela L. 9.9.1769; cf. alvo 20.5.1796.
74 Valasco, 1588, cans. 193, n. 1 ss.
75 Sobre este instituto, v. infra, II.3.
76 Com os quais se tivessem relações sexuais (bestialidade) ou responsáveis por
danos; sobre as acções de pauperie e noxal, utilizáveis no último destes casos, v.
Coing, 1985, 117; Pascoal de Melo, 1789 [Inst. iur. crim.], 1. 7, 8 (não estavam
em uso em Portugal).
77 Ferreira, 1870, I, 6. Só a reforma judiciária de 1832 teria posto fim a estas
práticas. Sobre a punição dos danos causados por animais, V. Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico das avaliações e dos danos, § 36.
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António Manuel Hespanha
46
que o exercício ou a reivindicação destes direitos competia a
uma pessoa. Mas esta era designada pela especial situação
(status, de propriedade, de administração) que o ligava à coi-
sa. Só a identificação do direito com a liberdade e a razão,
obra do racionalismo moderno78 , excluirá que seres despro-
vidos de inteligência possam ser titulares de direitos79 .
Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no
sentido daquele que o senso comum exige para que se possa
falar de pessoa, estavam outros titulares de direitos, como o
nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter direitos pes-
soais protegidos (pela punição do aborto)80 , era também ti-
tular de direitos patrimoniais, como o direito a alimentos81 e
à protecção das suas expectativas sucessórias, situação a que
se reportava o dito romano “nasciturus pro jam natus
habetur, quoties de commodo ejus agitur”, o nascituro tem-
se por já nascido em tudo o que diga respeito aos seus inte-
resses)82 . Quanto ao defunto, além de ser passível de puni-
ção83 , ele era titular de direitos protegidos penalmente, como
o direito à honra, o direito a sepultura e à integridade do
cadáver84 , mas ainda de direitos patrimoniais. Uns e outros
78 Cf. infra, II.3.
79 Cf. Soto, 1556, IV, q. I, sect. 2, p. 283.
80 Sobre a punição do aborto no direito moderno, v. Pascoal de Melo, 1789 [Inst.
iur. crim.], 9, 14 (no nosso direito não era expressamente punido; cf., em todo o
caso, Ord. fil., I, 73,4; v. 35); Sousa, 1816; Carneiro, 1851,67.
81 Sobre o curador do ventre (de mulher prenha), v. Lobão, 1828, II, tit. 12, sec. IV.
82 Cf. Carneiro, 1851, I, 65 ss.
83 Privação de sepultura, infâmia, censuras eclesiásticas, Carneiro, 1851,67, n. 11 ss.
84 Cf. Carneiro, 1851, I, 67, n. 11 ss.; Sousa, 1816, 2,2,1,1, § 6.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
47
eram actuados ou pelo príncipe (em Portugal por meio do
curador dos defuntos e ausentes85 , ou pela punição penal
pública das ofensas feitas aos seus restos mortais) ou pelos
herdeiros86 . Em qualquer dos casos, o verdadeiro titular dos
direitos era o defunto, de que o herdeiro, mais do que repre-
sentante, era a mesma pessoa87 , assumindo as próprias carac-
terísticas e qualidades, mesmo psíquicas, do falecido. Assim,
por exemplo, ‘ele respondia por disposições psíquicas
pessoalíssimas do de cuius, como a sua ignorância, o seu dolo
ou a sua má fé88 . Esta sub-rogação na pessoa do defunto
abrangia mesmo o sexo; e, por isso, uma herdeira podia exer-
cer, nessa qualidade, direitos exclusivos de homens.
Finalmente, são também “personificados” (personae vice
fungitur, D., 49,1,22) conjuntos de pessoas, “pessoas colectivas”,
“corporações”, como as Iuniversitates, collegia ou corpora89 ,90 ,
ou conjuntos de bens, como a herança, o fisco, as piae causae
(hospitais, montes de piedade), as capelas e os morgados91 .
Mas a concepção do universo dos titulares de direitos
como um universo de “estados”(status) autoriza, ainda, a
“personalização” de estados diferentes mesmo que coinci-
85 Cf. Lobão, 1828, II, XII, sec. 1.
86 Ou curador da herança, no caso de não haver herdeiro; cf. Lobão, 1828, II,
12, sec. 2.
87 “Haeres reputantur eadem persona defuncti” (o herdeiro reputa-se a mesma
pessoa do defunto), Amara1, 1610, v. “Haeres”, n. 22 e 23.
88 Cf. Amara1, 1610, ns. 24 ss.
89 Cf. Coing, 1985, I, 167-168.
90 Para o regime das sociedades, em Portugal, cf. Gi1issen, 1988, p. 776.
91 Sobre isto, v. Coing, 1985, I,266-268.
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António Manuel Hespanha
48
dam na mesma pessoa. Daí que seja considerado como um
facto natural que a um homem correspondam, do ponto de
vista do direito, várias personificações, vários corpos, vários
“estados”. Como escreve Manuel Álvares Pegas92 , “nem é
novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o mesmo
homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferentes”.
O exemplo teológico deste desdobramento da personalidade
era o do mistério da Santíssima Trindade, em que três pesso-
as distintas coexistiam numa só verdadeira. Mas o mesmo
acontecia com o exemplo, bem conhecido, dos “dois corpos
do rei”. Na mesma pessoa física do rei coexistiam a sua “pes-
soa privada” e a sua “pessoa pública”. Ou ainda mais, como,
v. g., se o rei fosse, como era em Portugal, grão-mestre das
ordens militares; ou Duque de Bragança; neste caso, já era
possível distinguir nele quatro pessoas, “cada qual retendo e
conservando a sua natureza e qualidades, devendo ser con-
sideradas como independentes umas das outras”93 .
Em face desta multiplicidade de estados, a materialidade
física e psicológica dos homens desaparece. A pessoa deixa
de corresponder a um substrato físico, passando a constituir
o ente que o direito cria para cada faceta, situação ou estado
em que um indivíduo se lhe apresenta. A veste tornou-se cor-
po; o hábito tomou-se monge. “Pessoa – escreve ainda o tra-
dicional Lobão94 – é o homem considerado como em certo
92 Pegas, 1669, XI, ad 2, 35, cap. 265, n. 21.
93 Cf. Pegas, 1669, ibid.
94 Lobão, 1828, II, tit. I, § 1.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
49
estado”, ou seja, considerado sob o ponto de vista de certa
qualidade “conforme a qual [...] goza de direitos diversos dos
que gozam outros homens” (ibid.).
Então, se são as qualidades, e não os seus suportes
corporais-biológicos, que contam como sujeitos de direitos
e obrigações, estes podem multiplicar-se, encamando e dan-
do vida jurídica autónoma a cada situação ou veste em que
os homens se relacionem uns com os outros. A sociedade,
para o direito, enche-se de uma pletora infinita de pessoas,
na qual se espelha e reverbera, ao ritmo das suas multifomes
relações mútuas, o mundo, esse finito, dos homens. A mo-
bilidade dos estados em relação aos suportes físicos é tal
que se admite a continuidade ou identidade de uma pessoa,
mesmo que mude a identidade do indivíduo físico que a
suporta. É, como vimos, o caso da pessoa do defunto que,
depois da morte, incarna no herdeiro; mas, também o caso
do pai, que incarna nos filhos, mantendo a sua identidade
pessoal95 -96 . Nestes casos, a realidade jurídica decisiva, a
verdadeira pessoa jurídica, é esse estado, permanente, e não
os indivíduos, transitórios, que lhe dão momentaneamente
uma face97 . Tal é a sociedade de estados (Stãndesgesellschaft),
95 “O pai e o filho são uma e a mesma pessoa pelo que respeita ao direito civil”,
Valasco, 1588, cons. 126, n. 12.
96 A relação entre estado e indivíduo chega a aparecer invertida, atribuindo-se ao
primeiro a eficácia de conformar o aspecto físico do segundo; diz-se, por exem-
plo, que o estado de escravidão destrói a fisionomia e majestade do homem (cf.
Carneiro, 1851, 69, nota a).
97 Cf., neste sentido, Clavero, 1986, maxime, 36.
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50
característica de Antigo Regime, que antecede a actual so-
ciedade de indivíduos.
No entanto, nem uma tal abundância de pessoas garan-
te – por isso mesmo que a relação entre pessoa jurídica e indi-
víduo empírico não é necessária – que todos os homens sejam
dotados desta capacidade de gozo de direitos. E, na verdade,
há pessoas que, por serem desprovidas de qualidades juridica-
mente atendíveis, não têm qualquer status e, logo, são despro-
vidas de personalidade. Tal é o caso dos escravos98 .
2.2 Os “estados” na sociedade de Antigo Regime
Nesta multiplicidade de estados, sob os quais os indiví-
duos se apresentam e dos quais decorrem os seus direitos e
obrigações, introduziram os juristas alguma ordem, tipifi-
cando alguns que, pelo seu carácter mais genérico, podiam
ser geralmente assumidos pelos indivíduos.
Alguns estavam ligados à própria natureza, enquan-
to esta capacitava ou incapacitava os indivíduos para assu-
mirem certos papéis nas relações sociais e, assim, condicio-
nava as situações sociais, políticas e jurídicas em que estes
se podiam colocar. É o que se passa com o sexo (homens,
mulheres), a idade (infantes, impúberes, menores, maiores),
a perfeição psíquica (insanidade mental, prodigalidade) ou
física (mudez, surdez).
98 “Quem quer que não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania ou fami-
liar, status civilis, civitatis, familiae] é tido, segundo o direito romano, não como
pessoa, mas como coisa”, escreve Vulteius, 1727 (cit. por Coing, 1985, 170).
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
51
Outros estados tinham sido introduzidos pelo direito
civil. Recolhendo uma sistematização que vinha do direito
romano, os juristas distinguiam entre o estado de liberdade
(status libertatis), perante o qual os homens se classificavam
em livres e escravos; o estado civil (status civitatis), que os
distinguiam em cidadãos, peregrinos e estrangeiros e, dentro
da primeira categoria, em patrícios (ou nobres), clérigos e
plebe; e o estado de família (status familiae), que distinguia
pai, cônjuge, filhos, parentes e criados. Mas estas classifica-
ções não esgotavam a variedade enorme de estados que po-
diam ocorrer na República99 .
2.2.1 Nobres; clérigos e peões
Uma das classificações mais em evidência na socieda-
de de Antigo Regime era aquela que repartia os homens em
três estados, correspondentes a três grandes funções sociais:
clero, nobreza e povo (Ord. af, I, 63, pr.: “[...] defensores são
um dos três estados que Deus quis per que se mantivesse o
mundo, ca assi como os que rogam pelo povo chamam ora-
dores, e aos que lavram a terra, per que os homens hão de
viver e se mantêm são ditos mantenedores, e os que hão de
defender são chamados defensores.”). Mas, mesmo deste
ponto de vista das funções sociais, a estrutura estatutária era
muito mais complicada na sociedade moderna.
99 “Os estados vulgares são infinitos”, escreve Lobão, 1828, II, tit. 1, § 1; outros
que podem ser considerados são os de ausente, cativo, miserável, infame,
indigno, solteiro, casado, viúvo, etc.
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Desde logo, tende-se a distinguir, dentro do povo, os
estados “limpos” (como o dos letrados, lavradores, militares)
dos estados “vis” (como os oficiais mecânicos ou artesãos). É
este o sentido da classificação de um jurista seiscentista por-
tuguês, Melchior Febo (século XVII) – “triplicem in nobilitate
statum, alterum nobilem, mechanicum, artiumque sedenta-
rium alterum, ultimum privilegiatorum, qui militiae, vel arte
a sordida muneribus eximantur” [no que respeita à nobreza
(secular), existem três estados: um o nobre, outro o mecânico
e artesão, o último o dos privilegiados que, pela milícia ou
pela arte se libertam das profissões sórdidas]. Também pro-
gressivamente, este estado popular intermédio entre a no-
breza e as profissões vis – “estado do meio”, “privilegiados”,
“nobreza simples” – vai sendo assimilado à nobreza e, no
seio desta, vai-se constituindo um novo conceito diferenciador,
o de “fidalguia”,ou mesmo, mais tarde e por influência es-
panhola, o de “grandeza”100 -101 .
Esta extensão do estado da nobreza102 – e sua conse-
quente pulverização por classificações suplementares – fica
manifesta ao ler tratados da época sobre a natureza do estado
nobre103 . Aí, recolhendo classificações anteriores (Aristóteles,
100 Cf. Monteiro, 1993.
101 Jorge de Cabedo (séc. XVI/XVII) – “A XXV de Abril de 1687 foi determinado
em Relação que era escuso de paguar oytavo do vinho um cirurgião examina-
do e que se provava ter quartão na estrebaria, porque o foral não diz que
quem não for nobre não pague oitavo, mas diz que o pião pague oitavo;
porque no primeiro caso era necessário provar nobreza ... e no segundo caso
basta provar que não pião”.
102 Cf. Hespanha 1989, 274 ss.
103 V. g. Carvalho 1634 (ed. cons. 1746); Pascoal de Melo, 1789 [Inst. iur. civ.], II,
3; Lobão ] 828, 56.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
53
Bártolo) e adaptando-as a antigas classificações das fontes
portuguesas, distingue-se nobreza “natural” e nobreza “polí-
tica” (ibid., n. 200 ss.). Na primeira, incluem-se o príncipe, os
nobres “ilustres” (correspondentes aos titulares e “fidalgos de
solar”; cf. Ord.fil.,V,92; V, 120); os nobres matriculados nos
livros da nobreza (“fidalgos rasos”; cf. Ord. fil., II,11,9; I,48,15;
III,29; III,59,15; V,120); os nobres por fama imemorial (Ord.
fil., II,11,7-8); aqueles cujo pai era nobre (Ord. fil., V,92). Neste
caso, a pertença ao estatuto decorre da natureza das coisas e
prova-se pelos diversos modos de manifestação da tradição
(desde a prática de actos que competem aos nobres até à “fama
comum e firme”, ibid., n. 209 ss.), eventualmente ratificada
por acto jurídico formal (como a sentença). Como natural,
esta nobreza é também generativa, ou seja, transmissível por
geração. Já a nobreza “política” decorre, não da natureza mas
de normas de direito positivo, dos costumes da cidade (n. 264
ss.). Deste tipo é a nobreza que se obtém pela ciência(1), pela
milícia(2), pelo exercício de certos ofícios(3), pelo privilégio e
pelo decurso do tempo104 .
Também o estado do clero105 se estende progressiva-
mente, embora em muito menor grau do que o da nobreza.
104 A regra, nesta matéria, seria a de que têm nobreza “aqueles que se comportam
como nobres, andando a cavalo, adquirem o estado intermédio de nobreza (n.
457: Ord. fil., IV, 92, I). Mas admite, além disso, os “ricos adquirem nobreza,
independentemente de andarem a cavalo, desde que vivam honestamente e
não se ocupem de ofícios mecânicos” (n. 459); o mesmo aconteceria com os que
estão inscritos nas confrarias das misericórdias (n. 460) e os mercadores com
negócio superior a 100 000 réis (n. 466: Ord. fil.,I,90 e v.138).
105 V. infra, lV.2.
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Para além dos clérigos de ordens maiores, gozavam do esta-
tuto eclesiástico clérigos de ordens menores (tonsurados e de
hábito, servindo ofícios eclesiásticos106 : (Ord. fil., II, 1,4; II,
1,27)107 ; os cavaleiros das ordens militares de Cristo, Santia-
go e Avis (Ord.fil., II,12), desde que tivessem comenda ou
tença de que se mantivessem; ou os cavaleiros da Ordem de
Malta (L. 18.9.1602 e 6.12.1612). Mas, para além disto, não
poucos leigos, desde que tivessem alguma relação com os
anteriores. Assim, gozavam de alguma parte do estatuto cle-
rical (nomeadamente em matéria de foro) os escravos e os
criados dos Cavaleiros de Malta108 ; os oblatos da mesma Or-
dem, vivendo sob obediência109 , os familiares e criados dos
coleitores apostólicos, desde que não exerçam ofícios mecâ-
nicos110 ; os “frades leigos” e os noviços111 .
E, mesmo no “estado do povo” muitos são os privilégi-
os – de certas categoria profissionais, dos cidadãos de certa
terra, das mulheres, dos anciãos, dos lavradores, das amas,
dos rendeiros de rendas reais, dos criadores de cavalos – que
eximem ao estado comum112 .
106 Exceptuam-se os donatos da Ordem de Malta e membros de certas ordens
menores (Ord. fil., II, 2), como a Ordem Terceira de S. Francisco ou
confratenidades do mesmo tipo, bem como os eremitas e penitentes (Pegas,
1669, t. 8, p. 322, n. 2).
107 Cf. Pegas, 1669,t. 8, p. 281, n. 3 ss.
108 Cf. Lei da Reformação da Justiça 6.12.1612, n. 6. Comentário, Cabral, 1739,
107 ss.; Pegas, 1669, t. 8, p. 3 315, n. 3. Era controverso se este regime se
aplicava aos colonos e enfiteutas (Pegas, ibid., n. 19). E não se aplicava aos
escravos ou criados de outras ordens.
109 Lei da Reformação da Justiça, n. 12.
110 Ibid., n. 8.
111 Ibid., ns. 14 e 15.
112 V. Hespanha, 1989,279 ss.
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME
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Esta multiplicação dos estados privilegiados (i. e., com
um estatuto jurídico-político particular) prossegue incessante-
mente, cada grupo tentando obter o reconhecimento de um
estatuto diferenciador, cujo conteúdo tanto podia ter reflexos
de natureza político-institucional113 ou, mesmo, económica (v.
g., isenções fiscais), como aspectos jurídicos (v. g., regime espe-
cial de prova, prisão domiciliária) ou meramente simbólicos
(v. g., precedências, fórmulas de tratamento).
Com tudo isto, o que se verifica é a progressiva sepa-
ração entre “estado” e as funções sociais tradicionais. No-
bres são cada vez menos os apenas “defensores” (milita-
res), ao mesmo tempo que, com o aparecimento de exérci-
tos profissionais e massificados, muitos militares não são
nobres. Uma extensão do conceito de consilium (que, inici-
almente, era apenas o consilium feudal, apanágio dos no-
bres do séquito real) permite nobilitar os conselheiros ple-
beus, nomeadamente os letrados. E mesmo a riqueza – que
originariamente era fundamentalmente indiferente do ponto
de vista da nobreza – já é considerada nobilitante a partir
do século XVI(4). Ou seja, a progressiva diferenciação soci-
al obriga a um redesenho das taxinomias sociais, embora se
conserve fundamentalmente, como matriz geral de classifi-
113 V. g., interdições profissionais (como a dos cristãos-novos poderem ser admiti-
dos a certos cargos ou “ler no Paço”; como a dos clérigos poderem ser notários;
como a dos nobres poderem exercer ofícios vis); desigualdade do direito (v. g.,
Ord. fil., v. 120); preferência em (ou reserva absoluta de) cargos políticos (v. g.,
exercício de “cargos da governança” em certas terras).
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cação, o antigo esquema trinitário, a que, de resto, corres-
pondia a representação do reino nas cortes.
Saliente-se que a classificação social continua a ser en-
tendida como decorrente da natureza das coisas – da trans-
missão familiar, de uma constituição que se plasma na tra-
dição. E que, embora o direito feudal medieval incluísse nos
direitos do rei (regalia) o poder de conceder armas e brasões
(para além dos senhorios das terras e dos títulos correspon-
dentes), a nobreza é entendida como uma virtude essencial-
mente natural, quer essa natureza seja uma disposição fa-
miliar, transmissível pelo sangue, para servir nobremente,
quer seja a reputação ou fama que objectivamente decorre
do exercício de certas funções sociais. Inovações drásticas
nesta ordem natural introduzidas pelo arbítrio régio (privi-
légio real) são sempre mal recebidas, pelo menos até ao
momento em que, subvertida a concepção corporativa e
substituída por uma matriz voluntarista, se comece a ligar
o estatuto das pessoas – como, em geral, a constituição polí-
tica – a um acto de vontade soberana.
Para além destes, outros estados merecem aqui destaque.
2.2.2 Livres e escravos
Sobre a questão da liberdade dos homens, os juristas
encontravam pontos de apoio contraditório na tradição lite-
rária (cf. infra, III) que frequentavam.
Logo no início do Digesto, a célebre “lei” libertas (D., I,
5,4) afinava enfaticamente o carácter natural da liberdade e
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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO

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