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MARIA GABRIELA CALAÇA DE ARAÚJO - ENDOCRINOLOGIA 1 Cetoacidose Diabética INTRODUÇÃO • A cetoacidose diabética (CAD) é uma complicação grave que pode ocorrer durante a evolução do diabetes mellitus tipos 1 e 2 • É a causa mais comum de morte entre crianças e adolescentes com DM1, além de ser responsável por metade das mortes nesses pacientes com menos de 24 anos • A CAD moderada e grave deve ser tratada em unidade de terapia intensiva • O prognóstico depende das condições de base do paciente, com piora sensível em idosos, gestantes e aqueles com doenças crônicas • É marcada por três achados clínicos: o Hiperglicemia o Cetonemia o Acidose metabólica FATORES PRECIPITANTES Os estados infecciosos são a etiologia mais comum da CAD, dentre as infecções mais frequente temos: → Do trato respiratório superior → Pneumonias → Infecções das vias urinárias Na prática diária, é necessário valorizar outros fatores importantes, como acidente vascular cerebral (AVC), ingestão excessiva de álcool, pancreatite aguda, infarto agudo do miocárdio (IAM), traumas e uso de glicocorticoides. Dentre as drogas ilícitas, a cocaína pode ser a causa de episódios recorrentes de CAD em jovens. Os distúrbios psiquiátricos associados a irregularidades na condução da dieta ou no uso diário de insulina também podem contribuir para a CAD Uso de antipsicóticos atípicos (clozapina, olanzapina, risperidona e quetiapina) são capazes de aumentar o risco de distúrbios metabólicos, como ganho de peso, dislipidemia, DM, CAD e pancreatite aguda – sendo observados riscos maiores com clozapina e a olanzapina Fatores de risco: • Sexo feminino • Doenças psiquiátricas • Baixo nível socioeconômico • Episódios prévios de cetoacidose No DM tipo 2, a ocorrência de cetoacidose é mais rara, geralmente surgindo em condições de estresse, como infecções graves A descompensação glicêmica costuma ser mais prolongada e mais grave em pacientes com DM1 recém-diagnosticados e idosos com diabetes associado a processos infecciosos ou com limitações no autocontrole físico ou psíquico Em pacientes mais idosos, sempre lembrar do infarto agudo do miocárdio como fator precipitante, principalmente porque esses pacientes muitas vezes apresentam infartos silenciosos FISIOPATOLOGIA O que ocorre é a redução na concentração efetiva de insulina circulante associada à liberação excessiva de hormônios contrarreguladores, entre os quais o glucagon, as catecolaminas, o cortisol e o hormônio de crescimento Essas alterações hormonais na CAD desencadeiam o aumento da produção hepática e renal de glicose e a redução de sua captação pelos tecidos periféricos sensíveis à insulina, resultando em hiperglicemia e hiperosmolaridade no espaço extracelular. Portanto, a hiperglicemia é resultante de três mecanismos: 1. Ativação da gliconeogênese 2. Ativação da glicogenólise 3. Redução da utilização periférica de glicose (principalmente nos músculos) Na CAD, observam-se desidratação e glicosúria de graus variáveis, diurese osmótica e perda de fluidos e eletrólitos Os inibidores do cotransportador sódio-glicose 2 (SGLT2) – classe de antidiabéticos orais – cuja função é diminuir a glicemia plasmática ao inibir a reabsorção tubular renal de glicose, está associada a uma apresentação atípica de CAD → CAD euglicêmica QUADRO CLÍNICO O quadro clínico apresenta evolução lenta e progressiva dos sinais e sintomas de DM descompensado → poliúria, polidipsia, perda de peso, náuseas, vômitos, sonolência, torpor e coma Ao exame físico, na presença de acidose, podem-se observar hiperpneia e, em situação mais graves, respiração de Kussmaul (respiração rápida e profunda) MARIA GABRIELA CALAÇA DE ARAÚJO - ENDOCRINOLOGIA 2 Desidratação com pele seca e fria, língua seca, hipotonia dos globos oculares, extremidades frias, agitação, face hiperemiada, hipotonia muscular, pulso rápido e pressão arterial variando do normal até o choque hipovolêmico podem ocorrer Em alguns casos, são verificadas dilatação, atonia e estase gástrica, o que agrava o quadro de vômitos O atraso no início do tratamento da acidose e da desidratação pode evoluir com choque hipovolêmico e morte Dor abdominal, principalmente em crianças, por atrito entre os folhetos do peritônio desidratado e por distensão e estase gástrica, pode estar presente e ser intensa a ponto de simular um abdome cirúrgico O hálito cetônico (“cheiro de maçã podre”) é característico Leucocitose é a regra, entre 10.000 – 25.000/ mm³ com ou sem desvio à esquerda, devido à intensa atividade do córtex adrenal, com aumento dos glicocorticoides. É comum encontrarmos normocalemia e hipercalemia. O mesmo vale para o fosfato. A ureia e creatinina podem se elevar pela desidratação (azotemia pré-renal) É comum hiponatremia. Estima-se que para cada aumento de 100 pontos acima de 100 mg/dl da glicemia, o sódio cai 1,6 pontos. Portanto, devemos corrigir o sódio sérico pela hiperglicemia, adicionando 1,6 ao sódio dosado para cada aumento de 100 da glicemia. HIPERGLICEMIA A hiperglicemia é consequência, principalmente, do aumento de produção hepática de glicose, mas, também, devido à diminuição relativa de sua utilização pelos tecidos A glicemia varia em média entre 400-800 mg/dl e, isoladamente, não serve como parâmetro de gravidade CETONEMIA Os corpos cetônicos são produzidos em larga escala devido à lipólise excessiva, situação que ocorre quando os níveis de insulina se encontram extremamente baixos. Os principais cetoácidos produzidos são o ácido beta-hidroxibutírico, o ácido cetoacético e a acetona (essa última, por ser volátil, é eliminada na respiração – hálito cetônico) ACIDEMIA A acidose metabólica, consequente ao excesso de cetoácidos, é do tipo ânion-gap aumentado, devido ao acúmulo dos cetoânions No curso da cetoacidose podem associar-se acidose metabólica do tipo ânion-gap normal (hiperclorêmica) e acidose lática por hipoperfusão tissular (que também cursa com ânion-gap aumentado) DISTÚRBIOS HIDROELETROLÍTICOS A elevação da osmalaridade sérica provoca a saída de fluido do compartimento intra para extracelular, carreando eletrólitos como potássio, cloro e fosfato Na cetoacidose, apesar de uma grande perda urinária e grave espoliação corporal de potássio e fosfato, os seus níveis séricos mantêm-se normais ou elevados. São basicamente três motivos: 1. Depleção de insulina predispõe à saída de potássio e fosfato das células 2. A hiperosmolaridade extrai água e potássio das células 3. Acidemia promove a entrada de H+ nas células em troca de potássio AVALIAÇÃO LABORATORIAL Deve incluir: • Glicose plasmática • Fósforo • Ureia e creatinina • Cetonemia • Eletrólitos (inclusive com o cálculo de ânion- gap) • Análise urinária • Cetonúria • Gasometria • Hemograma • Eletrocardiograma Quando necessário, solicitar raio X de tórax e culturas de sangue e urina CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Pela ADA (Associação Americana de Diabetes): • Glicemia ≥ 250 m/dL • pH < 7,3 • Bicarbonato (HCO3) < 18 mmol/L • Corpos cetônicos presentes na urina MARIA GABRIELA CALAÇA DE ARAÚJO - ENDOCRINOLOGIA 3 Pela International Diabetes Federation (IDF): • Glicemia > 200 mg/dL • pH < 7,3 • bicarbonato sérico < 15 mmol/L • cetonemia • cetonúria A CAD é definida como: → grave: pH < 7 → moderada: pH entre 7 e 7,24 → leve: pH entre 7,25 e 7,3 a maioria dos pacientes com CAD apresenta-se com leucocitose, e pode traduzir apenas intensa atividade adrenocortical outros achados são: hipertrigliceridemia e hiperamilasemia, as quais, quando acompanhadas de dor abdominal, podem sugerir o diagnóstico de pancreatite aguda forma mais confiável de pesquisa de cetonúria é pela pesquisa indireta, através docálculo ânion-gap: DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL • cetose de jejum • cetoacidose alcoólica • acidose pelo uso de medicamentos (salicilatos, metformina) • acidose metabólica com ânion-gap elevado (como acidose láctica e insuficiência renal crônica) OBJETIVOS DO TRATAMENTO • manutenção das vias respiratórias pérvias e, em caso de vômito, indicação de sonda nasogástrica • correção da desidratação • correção dos distúrbios eletrolíticos e acidobásicos • redução da hiperglicemia e da osmolalidade • identificação e tratamento do fator precipitante TRATAMENTO Reposição volêmica vigorosa: Deve ser prontamente iniciada, pois é a medida isolada de maior impacto no tratamento da cetoacidose. A solução de escolha é a salina isotônica (SF a 0,9%), com um volume na primeira hora em torno de 1.000 ml; O objetivo da reposição volêmica são: repor o déficit de água, manter a pressão arterial, reduzir os níveis de glicemia e melhorar a perfusão tissular e renal, o que contribui para a reversão da acidose Após a primeira hora de hidratação, o ideal é a dosagem do sódio sérico, que deve ser corrigido pela hiperglicemia. Se o sódio corrigido estiver normal ou elevado (> 150mEq/l), a reposição deve continuar com salina a 0,45%, se baixo, a solução continua sendo o soro fisiológico a 0,9%. Nesse momento, a velocidade da reposição é ajustada para 4-14 ml/kg/h (200 a 800 ml/hora), conforme as necessidades de cada paciente. Quando a glicemia atinge 250 mg/dl, a reposição de fluidos deve ser feita com solução glicosada a 5% e com NaCl a 0,45% para prevenção de hipoglicemia e para a prevenção do edema cerebral, que poderia ocorrer uma queda muito rápida da glicemia. A infusão deve variar entre 150-250 ml/h, mantendo-se a glicemia entre 150-200 mg/dl. Insulinoterapia: Embora seja parte essencial do tratamento da cetoacidose diabética, a insulinoterapia só será eficaz se as medidas para restabelecimento da volemia estiverem em curso. O início da insulina antes da reposição volêmica pode agravar a hipovolemia e precipitar o choque hipovolêmico. Deve ser realizada, inicialmente, uma dose de ataque de insulina regular intravenosa (0,1 a 0,15 U/kg) para sensibilizar os receptores insulínicos, seguida da infusão venosa contínua de 0,1 U/kg/. O objetivo é uma queda média da glicemia de 50 a 75 mg/dl/h. A dose de infusão deve ser dobrada caso esta queda não ocorra Deve-se evitar quedas da glicemia acima de 100mg/dl/h, devido ao risco de hipoglicemia e de edema cerebral A infusão contínua deverá ser mantida enquanto durar a cetonúria ou, preferentemente, até a normalização do pH e bicarbonato, passando-se então para a via SC Na presença de hipocalemia (K < 3,3), a insulina não deve ser iniciada. MARIA GABRIELA CALAÇA DE ARAÚJO - ENDOCRINOLOGIA 4 Quando a glicemia atinge valores ≤ 200-250 mg/dl, a infusão de insulina deve ser diminuída (0,02-0,05 U/kg/h) e soro glicosado 5% deve ser adicionado à hidratação. O objetivo é manter uma glicemia entre 150-200 mg/dl até que a CAD se resolva A cetonemia pode ser acompanhada pelo cálculo do ânion-gap, o que deve ser feito a cada 2 horas inicialmente e, posteriormente, a cada 4 horas Os critérios de resolução da CAD são: • pH > 7,3 • bicarbonato > 18 mEq/l • glicemia < 200 mg/dl quando os critérios de resolução são alcançados, é possível liberar a dieta e iniciar o esquema de insulinização subcutânea conforme valores de glicemia capilar a cada 3 ou 4 horas. A infusão contínua de insulina venosa só será suspensa após 1-2 horas da dose de insulina subcutânea Esquema de insulinização SC: glicemia capilar: • ≥ 160-200 mg/dl: 0,1 U/kg (máx 4U) • ≥ 200-300 mg/dl: valores intermediários • ≥ 300-500 mg/dl: valores intermediários • ≥ 500 mg/dl: 0,4 U/kg (máximo 14U) • Fazer doses menores antes de dormir e na madrugada Quando a glicemia atinge 200 mg/dl, a dose é reduzida para 0,1 U/kg SC a cada 2 horas, até a resolução da CAD. Reposição de potássio: Pode ser iniciada caso os níveis séricos estejam < 5mEq/l, na presença de um fluxo urinário adequado. • Se < 3,3 mEq/l: reposição com 40 mEq de potássio • Se ≥ 3,3 e < 5,3 mEq/l: adicionar 20 a 30 mEq de potássio por soro • Se ≥ 5,3 mEq/l: não administrar potássio inicialmente, mas checa-lo de 2/2h Reposição de fósforo: Sua reposição é controversa e em geral deve ser avaliada somente nas seguintes situações: → Disfunção cardíaca → Anemia → Depressão respiratória → Nível sérico de fosfato < 1,0 mg/dl Quando necessário, 20-30 mEq/l de fosfato de potássio podem ser administrados, em velocidade não superior a 3-4 mEq/h, porque a reposição pode levar a queda de Ca e Mg Reposição de bicarbonato: Segundo a ADA, somente pacientes adultos com pH < 6,9 devem receber reposição de bicarbonato, devido aos efeitos potencialmente graves de acidose A dose usual é de 100 mEq/l de bicarbonato de sódio diluída em 400 ml de água destilada, com 20 mEq de KCl (se K < 5,3) IV em duas horas Complicações da administração de bicarbonato são: hipocalemia, arritmias cardíacas, sobrecarga de sódio, diminuição da oxigenação tissular pelo desvio da curva de dissociação da hemoglobina e acidose liquórica paradoxal Para pacientes pediátricos, alguns autores recomendam o uso de bicarbonato quando o pH for < 7,1. A dose a ser administrada pode ser calculada por: HCO3 oferecido (mEq) = HCO3 desejado – HC03 encontrado) x 0,3 x peso, sendo que o bicarbonato desejado é 12 mEq. O bicarbonato de sódio será diluído em água destilada (1:1) e administrado em duas horas. COMPLICAÇÕES DA CAD → Edema cerebral → Acidose metabólica hiperclorêmica → Síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) → Mucormicose → Trombose vascular → Infecções → Hipertrigliceridemia grave → Pancreatite aguda APÓS MANEJO DO QUADRO AGUDO Após a resolução da crise diabética, todo paciente deve ter a prescrição ajustada para insulina subcutânea A primeira dose da insulina de ação lenta deve ser feita pelo menos 2 horas antes da suspensão do protocolo IV, a fim de evitar hiperglicemia rebote Se o paciente já fazia uso de insulina antes, pode-se retornar com a dose habitual. Se não, o indicado é iniciar com 0,5 a 0,7 UI/kg/dia dividimos em 50% para insulina de ação lenta (uma vez ao dia) e 50% para insulina de ação rápida (divididos entre antes do café, do almoço e do jantar) MARIA GABRIELA CALAÇA DE ARAÚJO - ENDOCRINOLOGIA 5 Pacientes com CAD costumam ser reincidentes, com várias reinternações por novas crises. Então, é importante investir na prevenção dos casos, especialmente com estratégias e educação e acompanhamento psicológico (para reduzir a omissão da insulinoterapia ou outras condições como o abuso de álcool)
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