Baixe o app para aproveitar ainda mais
Leia os materiais offline, sem usar a internet. Além de vários outros recursos!
Prévia do material em texto
Clássicos da Literatura Brasileira Helena Machado de Assis Ilustrações: Eduardo Schloesser Joaquim Maria Machado de Assis, foi um escritor brasileiro que vi- veu entre os anos de 1839 e 1908. Filho de escravos alforriados, nunca estudou em uma universi- dade e, para conseguir destaque, apostava no desenvolvimento de suas habilidades intelectuais e culturais. Escrevia para diversas revistas e jornais, sendo autor de vários contos, romances, poesias e peças de teatro. Helena teve sua primeira edição em 1876. De característica romântica, a história gira em torno de um amor proibido entre dois jovens, tendo como pano de fundo a so- ciedade carioca do século XIX. H el en a Referência da Editora - 41907 Helena_CC.indd 1 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena.indd 1 10/02/20 11:35 Helena.indd 2 10/02/20 11:35 Machado de Assis Helena Clássicos da Literatura Brasileira Helena.indd 3 10/02/20 11:35 S235h Santiago, Rodolfo Helena / Machado de Assis ; adaptação, leitura e comentários ; Rodolfo Santiago ilustrações: Eduardo Schloesser, Iran Elson. – Recife : Prazer de Ler, 2014. 208p. : il. – (Clássicos da literatura brasileira). 1. FICÇÃO BRASILEIRA – I. Assis, Machado de, 1839-1908. II. Schloesser, Eduardo, 1962-. III. Elson, Iran. IV Título. V. Série: Clássicos da literatura brasileira. CDU 869.0(81)-3 PeR – BPE 14-430 CDD B869.3 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Helena Machado de Assis Coordenação Editorial Direitos reservados à Editora Prazer de Ler Ltda. Rua Neto Campelo Júnior, 37 CEP: 50760-330 - Mustardinha - Recife / PE Fone: (81) 3447.1178 - Fax: (81) 3422.3638 CNPJ: 14.605.341/0001-03 Edição 2014 Ilustrações Eduardo Schloesser Iran Elson Editor Malthus de Queiroz Leitura, Adaptação e Comentários Rodolfo Santiago Direção de arte Elto Koltz Diagramação Roseane R. Nascimento ISBN: 978-85-8168-295-2 Impresso no Brasil As palavras destacadas de amarelo ao longo do livro sofreram modificações com o novo Acordo Ortográfico. Helena.indd 4 10/02/20 11:35 Helena Helena.indd 5 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 6 Helena.indd 6 10/02/20 11:35 Helena.indd 7 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 8 Capítulo I O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de hemorragia cerebral fulminante, pouco depois de cochilar no início da tarde, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava para jogar a partida de cartas na casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, cha- mado de pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o Padre Melchior não pôde lhe dar as consolações da religião: a morte havia sido instantânea. No dia seguinte foi o enterro, e foi um dos mais concorri- dos que os moradores do Andaraí já viram. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até à última morada, estando representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não fosse de nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, costumes, educação e tradições de família. Seu pai havia sido juiz no tempo colonial, e figura de certa influência na sociedade do último vice-rei. Pelo lado materno, vinha de uma das mais distintas famílias paulistas. Ele próprio teve dois empregos, se saindo com habilidade e decência, o que lhe garantiu a carta de conselho e a admiração dos homens públicos. Sem dificuldades por conta da política da época, não estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que ali se acharam na ocasião de o levar à sepultura. Tinha, en- tretanto, tais ou quais ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os dois domínios podem se confundir. Se nenhuma saudade partidária lhe deu a última pá de terra, mulher houve, e não só uma, que viu ir se enterrar com ele a melhor página da sua mocidade. A família do conselheiro era formada de duas pessoas: um filho, o Dr. Estácio, e uma irmã, D. Úrsula. Esta cinquenta e poucos anos; era solteira; viveu sempre com o irmão, cuja casa organizava desde o falecimento da cunhada. Estácio tinha vinte e sete anos, e era formado em matemática. O conselheiro havia tentado encarreirá-lo na política, depois na diplomacia; mas nenhum desses projetos teve início. Helena.indd 8 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 9 O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do enterro, foi se encontrar com Estácio, que estava no gabinete particular do finado, em companhia de D. Úrsula. Também a dor tem suas vaidades; tia e sobrinho queriam nutri- -la com a presença dos objetos pessoais do morto, no lugar de suas atividades cotidianas. Duas tristes luzes iluminavam aquela pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silêncio entre os três. O primeiro que o rompeu, foi o médico. — Seu pai deixou testamento? — Não sei, respondeu Estácio. Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou três vezes, ato que era comum quando fazia alguma reflexão. — É preciso procurá-lo, continuou ele. Quer que o ajude? Estácio apertou sua mão afetuosamente. — A morte de meu pai, disse o moço, não alterou nada as nossas relações. Fica a confiança anterior, do mesmo modo que a amizade, já confirmada e antiga. A gaveta estava fechada; Estácio deu a chave ao médico; este abriu o móvel sem nenhuma comoção exterior. Interiormente estava abalado. O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão em que, aliás, nenhum dos outros repa- rou. Logo que começou a revolver os papéis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que sucedeu a serenidade habitual. — É isso? Perguntou Estácio. Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como se quisesse adivinhar o conteúdo. O silêncio foi muito demora- do para não causar impressão no moço, que aliás nada disse, porque acreditava que era efeito da comoção natural do amigo em tão dolorosa situação. — Sabem o que estará aqui dentro? Disse enfim Camargo. Talvez uma falta ou um grande excesso. Nem Estácio, nem D. Úrsula, pediram ao médico a expli- cação sobre as palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico pôde lê-la nos olhos de ambos. Não lhes disse nada; entregou o testamento a Estácio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, mergulhado em suas próprias reflexões, ora arranjando Helena.indd 9 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 10 maquinalmente um livro da estante, ora metendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista baixa, alheio completamente ao lugar e às pessoas. Estácio rompeu o silêncio: — Mas que falta ou que excesso é esse? Perguntou ao médico. Camargo parou diante do moço. — Não posso dizer nada, respondeu ele. Seria inconvenien- te, antes de saber os últimos desejos de seu pai. D. Úrsula foi menos discreta que o sobrinho; após longa pausa, pediu ao médico a explicação de suas palavras. — Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e de apreciar suas qualidades, que eram excelentes. Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiança que depositáva- mos um no outro. Não quis, pois, que o último ato de sua vida fosse um erro. — Um erro! Exclamou D. Úrsula. — Talvez um erro! suspirou Camargo. — Mas, doutor, insistiu D. Úrsula, por que motivo não acalma nosso espírito? Estou certa de que não se trata de um ato que manche a imagem de meu irmão; naturalmente a algum erro no modo de entender, alguma coisa, que eu ignoro o que seja. Por que não fala claramente? O médico viu que D. Úrsula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, melhor seria ficar calado. Tentou desfazer a impres- são de estranhezaque havia deixado no ânimo dos dois; mas da hesitação com que falava, concluiu Estácio que ele não podia ir além do que havia dito. — Não precisamos de explicação nenhuma, interveio o filho do conselheiro; amanhã saberemos tudo. Nessa ocasião entrou o Padre Melchior. O médico saiu às 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estácio, recolhendo-se ao quarto, murmurava consigo: “Que erro será esse? E que necessidade tinha ele de lançar este enigma em meu coração?” Helena.indd 10 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 11 A resposta, se pudesse ouvi-la, era dada nessa mesma ocasião pelo próprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava à porta: “Fiz bem em preparar-lhes o espírito, pensou ele; o golpe, se o houver, há será mais fácil de sofrer.” O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguém pôde ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Analisou o passado e vasculhou o futuro; mas de tudo o que reviu e analisou, nada foi dito a ouvidos estranhos. As relações do Dr. Camargo com a família do conselheiro eram estreitas e antigas, como havia dito Estácio. O médico e o conselheiro tinham a mesma idade: cinquenta e quatro anos. Conheceram-se logo depois de tomado o grau, e nunca mais se separaram desde esse tempo. Camargo era pouco simpático de primeira vista. Tinha as expressões duras e frias, os olhos analisadores e espertos, de uma esperteza incômoda para quem olhava para eles, o que o não fazia atraente. Falava pouco e seco. Seus sentimentos não transpareciam. Tinha todos os visíveis sinais de um grande egoísta; contudo, posto que a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lágrima ou uma palavra de tristeza, é certo que a sentiu muito. Além disso, amava sobre todas as coisas e pessoas uma criatura linda, — a linda Eugênia, como lhe cha- mava, — sua filha única e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor calado e escondido. Era difícil saber se Camargo professava algumas opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca demonstrou; e no meio das lutas dos anos anteriores, conservara-se indiferente e neutro. Quanto aos sentimentos religiosos, a tentar percebê- -los pelas ações, ninguém os possuía mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só pontual; interiormente, era incrédulo. Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher, — D. Tomásia, — meio adormecida numa cadeira de balanço e Eugênia ao piano, tocando um trecho de Bellini. Eugênia tocava com habilidade; e Camargo gostava de a ouvir. Naquela ocasião, porém, disse ele, parecia pouco con- Helena.indd 11 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 12 veniente que a moça se entregasse a uma distração qualquer. Eugênia obedeceu, de má vontade. O pai, que estava ao pé do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ela se levantou, e a olhou com olhos amorosos e profundos, como ela nunca viu. — Não fiquei triste pelo que me disse, papai, observou a moça. Tocava para me distrair. D. Úrsula como está? Ficou tão aflita! Mamãe queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a tristeza daquela casa. — Mas a tristeza é necessária à vida, acudiu D. Tomásia, que abriu os olhos logo à entrada do marido. As dores dos ou- tros fazem lembrar as próprias, e são um controle para a alegria, cuja quantidade pode gerar o orgulho. Camargo analisou esta filosofia, que lhe pareceu muito severa, com algumas ideias mais acomodadas e risonhas. — Deixemos a cada tempo seus próprios costumes, con- cluiu ele, e não antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não pararam de sentir a pureza. Eugênia não compreendeu o que os dois haviam dito. Voltou os olhos para o piano, com uma expressão de saudade. Com a mão esquerda, assim mesmo de pé, extraiu vagamente três ou quatro notas das teclas. Camargo tornou a fitá-la com ternura; a face sombria pareceu se iluminar de uma irradiação interior. A moça sentiu-se nos braços dele; deixou-se ir. Mas a expansão era tão nova, que ela ficou assustada e perguntou com voz trêmula: — Aconteceu lá alguma coisa? — Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um beijo na testa. Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moça tinha memória. A carícia encheu-a de orgulho filial; mas impres- sionou-a mais. Eugênia não acreditou no que o pai lhe dissera. Viu-o ir sentar-se ao pé de D. Tomásia e conversarem em voz baixa. Aproximando-se, não interrompeu a conversa, que eles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assuntos pura- mente domésticos. Percebeu-o; contudo, não ficou tranquila. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho de Andaraí. A resposta, que lhe chegou às mãos no momento em Helena.indd 12 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 13 que provava um vestido novo, teve a gentileza de esperar que ela terminasse a o que fazia. Lida finalmente, dissipou todos os receios do dia anterior. Capítulo II No dia seguinte, foi aberto o testamento com todas as formalidades legais. O conselheiro nomeava testamenteiros Es- tácio, o Dr. Camargo e o Padre Melchior. As disposições gerais nada tinham de mais: eram legados simples ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes. Uma disposição havia, porém, verdadeiramente impor- tante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, com D. Ângela da Soledade. Esta menina es- tava sendo educada em um colégio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com estima e carinho, como se de seu matrimônio fosse. A leitura desta disposição causou natural espanto à irmã e ao filho do finado. D. Úrsula nunca soube de tal filha. Quanto a Estácio, ignorava menos que a tia. Havia ouvido uma vez fa- lar em uma filha de seu pai; mas tão vagamente que não podia esperar aquela disposição testamentária. O espanto deu impressões diferentes a cada um. D. Úrsula reprovou de todo o ato do conselheiro. Parecia-lhe que, a despei- to dos impulsos naturais e licenças jurídicas, o reconhecimento de Helena era um ato de afronta e um péssimo exemplo. A nova filha era, no seu entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e deixá-la de lado. Recebê-la, porém, no seio da família e de seus afetos, legitimá-la aos olhos da sociedade, como ela estava aos da lei, D. Úrsula não compreendia, nem lhe parecia que alguém pudesse entendê-lo. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior quando lhe ocorreu a origem possível de Helena. Nada sabia da mãe, além do nome; mas essa mulher quem era? Helena.indd 13 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 14 Em que atalho sombrio da vida o conselheiro havia encontrado essa moça? Helena seria filha de um encontro passageiro, ou nasceria de algum afeto desaprovado embora, mas verdadeiro e único? A estas interrogações não podia responder D. Úrsula; bastava, porém, que lhe surgissem no espírito, para lançar nele o tédio e a irritação. D. Úrsula era severa a respeito de costumes. A vida do conselheiro, marcada de aventuras amorosas, estava longe de ser uma página de catecismo; mas o ato final bem podia ser a reparação de atitudes amargas. Isso D. Úrsula não viu. Para ela, o principal era a entrada de uma pessoa estranha na família. A impressão de Estácio foi muito outra. Ele percebeu a má vontade com que a tia recebeu a notícia do reconhecimento de Helena, e não podia negar a si mesmo que semelhante fato criava para a família uma nova situação. Contudo, qualquer que ela fosse, uma vez que seu pai assim o ordenava, levado por sentimentos de justiça ou impulsos da natureza, ele a aceitava tal qual,sem pesar em nada. A questão pesou menos que tudo no espírito do moço; não pesou nada. A ocasião era dolorosa demais para dar entrada a considerações de ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estácio não lhe permitia inspirar-se delas. Quanto à camada social a que pertencia a mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo de que eles saberiam levantar a filha até à classe a que ela ia subir. No meio das reflexões produzidas pela disposição testamen- tária do conselheiro, ocorreu a Estácio a conversa que havia tido com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquele o ponto a que o médico tinha feito alusão. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro: — Aconteceu o que eu previa, um erro, disse ele. Não houve falha, mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, muito bonito, mas pouco prático. Um legado era suficiente; nada mais. A simples justiça. — A simples justiça é a vontade de meu pai, respondeu Estácio. — Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sê-lo à custa dos direitos dos outros. — Os meus? Não os alego. Helena.indd 14 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 15 — Se os alegasse seria pouco digno da memória dele. O que está feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa família e afetos de família. Acredito que ela saberá corresponder com verdadeira dedicação... — Você a conhece? Inquiriu Estácio, cravando no médico uns olhos impacientes de curiosidade. — Eu a vi três ou quatro vezes, disse este no fim de alguns segundos; mas era muito criança. Seu pai falava-me dela como de pessoa extremamente afetuosa e digna de ser amada e ad- mirada. Talvez fossem olhos de pai. Estácio desejou ainda saber alguma coisa acerca da mãe de Helena, mas se sentiu mal de entrar em novas indagações, e tentou levar a conversa para outro assunto. Camargo, entretanto, insistiu: — O conselheiro falou-me algumas vezes no projeto de reconhecer Helena; procurei fazê-lo desistir, mas sabe como era teimoso, adicionando neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de vista era diferente. Não acho que sou homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade não pode passar por cima do que pertence à razão. Camargo disse estas palavras no tom seco e sentencioso que lhe saía. A velha amizade dele e do finado era conhecida de todos; a intenção com que falava podia ser hostil à família? Estácio refletiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir do médico, curta reflexão que por nenhum modo lhe abalou a opinião já clara e dita. Seus olhos, grandes e serenos, como o espírito que os movia, pararam bondosamente no interlocutor. — Não quero saber, disse ele, se há excesso na disposição testamentária de meu pai. Se o há, é legítimo, justificável pelo menos; ele sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa irmã, como se tivesse sido criada comigo. Minha mãe faria com certeza a mesma coisa. Camargo não insistiu. Se era válido desencorajar o moço daqueles sentimentos, que aproveitava já agora discutir e con- denar teoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executá-la lealmente, sem hesitação nem pesar. Isso mesmo declarou ele a Estácio, que o abraçou amigavelmente. O médico recebeu o abraço sem constrangimento, mas sem fervor. Helena.indd 15 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 16 Estácio havia ficado satisfeito consigo mesmo. Seu caráter vinha mais diretamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a única paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe acharemos nenhuma outra feição aparente. A fidelidade aos amigos era antes resultado do costume que da consistência dos afetos. A vida correu-lhe sem crises nem con- trastes; nunca achou ocasião de experimentar a própria raiva. Se a achasse, mostraria que tinha pouca. A mãe de Estácio era diferente; possuíra em alto grau a paixão, a ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimen- tos, com seus toques de orgulho, daquele orgulho que é apenas irradiação da consciência. Vinculada a um homem que, sem bar- reiras do afeto que lhe tinha, entregava o coração a amores ad- ventícios e passageiros, teve a força de vontade necessária para dominar a paixão e encerrar em si mesma todo o ressentimento. As mulheres que são apenas mulheres, choram, zangam-se ou resignam-se; as que têm alguma coisa mais do que a debilidade feminina, lutam ou recolhem-se à dignidade do silêncio. Aquela padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe permitia outra coisa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial de sua organização, concentrou-a toda naquele único filho, em quem parecia perceber como herdeiro de suas robustas qualidades. Estácio recebeu de sua mãe uma boa parte destas. Não sendo grande talento, deveu ao amor pelo conhecimento a figura notável que foi entre seus companheiros de estudos. Entregou- -se à ciência com ardor e convicção. Não gostava de política; era indiferente ao barulho exterior. Educado à maneira antiga e com severidade e discrição, passou da adolescência à juventude sem conhecer as corrupções de espírito nem as influências negativas da ociosidade; viveu a vida de família, na idade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em coisas ínfi- mas a pureza das primeiras sensações. Daí veio que, aos dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil, que só perdeu completamente mais tarde. Mas, se perdeu a timidez, ficara-lhe certa seriedade não incompatível com os poucos anos e muito própria de caráter como o dele. Na política seria talvez meio ca- Helena.indd 16 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 17 minho andado para subir aos cargos públicos; na sociedade, fazia com que lhe tivessem respeito, o que o levantava a seus próprios olhos. Convém dizer que não era essa gravidade aquela coisa enfa- donha, pesada e chata, que os moralistas dizem ser quase sempre um sintoma de espírito fraco; era uma seriedade jovial e familiar, igualmente distante da simplicidade e do tédio, uma compostura do corpo e do espírito, temperada pela força dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco firme e reto enfeitado com folhagens e flores. Juntava às outras qualidades morais uma sensibilidade, não feminina e doentia, mas sóbria e forte; áspero consigo, sabia ser terno e mavioso com os outros. Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa há ainda que acrescentar, é que ele não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que havia nascido. Elegante e polido, obedecia à lei do comportamento pessoal, ainda nas menores partes dela. Ninguém entrava mais corretamente numa sala; ninguém saía mais oportunamente. Ignorava a ciência das coisas pequenas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento. Na situação criada pelo testamento do conselheiro, Estácio aceitou a causa da irmã, a quem já via, sem a conhecer, com olhos diferentes dos de Camargo e D. Úrsula. Esta comunicou ao sobrinho todas as impressões que lhe deixara o ato do ir- mão. Estácio procurou dissipar cada uma; repetiu as reflexões opostas ao médico; mostrou que, ao fim de tudo, tratava-se de cumprir a última vontade de um morto. — Bem sei que não há agora outro remédio mais que aceitar essa menina e obedecer às determinações solenes de meu irmão, disse D. Úrsula, quando Estácio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ela os meus afetos não sei se posso nem devo fazer. — Contudo, ela é do nosso mesmo sangue. D. Úrsula ergueu os ombros como repelindo semelhante igualdade. Estácio insistiu em trazê-la a sentimentos mais bondo- sos. Invocou, além da vontade, a retidão do espírito de seu pai, que não havia dispor uma coisa contrária à boa fama da família. — Além disso, essa menina nenhuma culpa tem desua Helena.indd 17 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 18 origem, e visto que meu pai a reconheceu, convém que não se ache aqui como rejeitada. Que ganharíamos com isso? Nada mais do que perturbar a paz da nossa vida interior. Vivamos na mesma comunhão de afetos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pai, que nos fica para não diminuir nosso pa- trimônio comum. Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estácio percebeu que não vencera os sentimentos da tia, nem era possível con- seguir isso por meio de palavras. Confiou ao tempo essa tarefa. D. Úrsula ficou triste e só. Aparecendo Camargo daí a pouco, ela lhe disse todo o seu modo de sentir, que o médico interior- mente aprovava. — Conheceu a mãe dela? Perguntou a irmã do conselheiro. — Conheci. — Que espécie de mulher era? — Fascinante. — Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem infe- rior, ou... — Não sei; no tempo em que a vi, não tinha classe e podia pertencer a todas; além do mais, não a vi de perto. — Doutor, disse D. Úrsula, depois de hesitar algum tempo; que me aconselha que faça? — Que a ame, se ela o merecer, e se puder. — Oh! Confesso-lhe que isso há de custar muito! E será que merecerá? Alguma coisa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida; além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro... — Seu sobrinho aceita as coisas filosoficamente e até com satisfação. Não compreendo a satisfação, mas concordo que nada mais há do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se discutem sentimentos; ama-se ou aborrece- -se, conforme o coração quer. O que lhe digo é que a trate com bondade; e caso sinta em si algum afeto, não o sufoque; deixe- -se ir com ele. Já agora não se pode voltar atrás. Infelizmente! Helena estava a concluir os estudos; semanas depois de- terminou a família que ela viesse para a casa. D. Úrsula recusou a princípio ir buscá-la; o sobrinho convenceu-a disso, e a boa Helena.indd 18 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 19 senhora aceitou a incumbência depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para a moça ser trazida a Andaraí. D. Úrsula entrou no carro, logo depois de jantar. Estácio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao entrar na chácara, deu com os olhos nas janelas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguém dentro. Pela primeira vez sentiu Estácio a estranheza da situação criada pela presença daquela meia-irmã e perguntou a si próprio se não era a tia quem tinha razão. Repeliu pouco depois esse sentimento; a memória do pai restituiu-lhe a bondade anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de ter uma irmã sorria-lhe ao coração como pro- messa de aventuras novas e desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa cria- tura intermediária, que ele já amava sem conhecer, e que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estácio contemplou longo tempo as janelas; nem o vulto de Helena apareceu ali, nem ele viu passar a sombra da habitante nova. Capítulo III Na manhã seguinte, Estácio levantou-se tarde e foi direi- to à sala de jantar, onde encontrou D. Úrsula, pacientemente sentada na sua poltrona, ao pé de uma janela, a ler um livro do Saint-Clair das Ilhas, envolvida pela centésima vez com as tris- tezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralíssimo livro, ainda que enfadonho e longo, como outros de seu tempo. Com ele as mulheres passavam as horas compridas do inverno, com ele se encheu muita noite tranquila, com ele se desafogou o coração de muita lágrima que caiu. — Veio? Perguntou Estácio. — Veio, respondeu a boa senhora, fechando o livro. O al- moço está esfriando, continuou ela, dirigindo-se à empregada que ali estava de pé, junto da mesa; já foram chamar. . . Senho- rita Helena? — Senhorita Helena disse que já vem. — Há dez minutos, observou D. Úrsula ao sobrinho. Helena.indd 19 10/02/20 11:35 Helena.indd 20 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 21 — Naturalmente não demora, respondeu este. Que tal? D. Úrsula estava pouco habilitada a responder ao sobri- nho. Quase não havia visto o rosto de Helena; e esta, logo que ali chegou, recolheu-se ao aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de descanso. O que D. Úrsula pôde achar foi somente que a sobrinha era moça feita. Ouviu-se descer a escada um passo rápido, e não demorou que Helena aparecesse à porta da sala de jantar. Estácio estava então encostado à janela que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, donde se viam os fundos da chácara. Olhou para a tia como esperando que ela os apresentasse um ao outro. Helena parou ao vê-lo. — Menina, disse D. Úrsula com o tom mais doce que tinha na voz, este é meu sobrinho Estácio, seu irmão. — Ah! Disse Helena, sorrindo e caminhando para ele. Estácio dera igualmente alguns passos. — Espero merecer sua afeição, disse ela depois de curta pau- sa. Peço desculpa da demora; estavam à minha espera, creio eu. — Íamos para a mesa agora mesmo, interrompeu D. Úrsula, como protestando contra a ideia de que ela os fizesse esperar. Estácio procurou corrigir a rudez da tia. — Tínhamos ouvido o seu passo na escada, disse ele. Va- mos sentar, que o almoço esfria. D. Úrsula já estava sentada à cabeceira da mesa; Helena ficou à direita, na cadeira que Estácio lhe indicou; este tomou lugar do lado oposto. O almoço correu silencioso e desconso- lado; raros monossílabos, alguns gestos de concordância ou recusa, tal foi o desenrolar da conversa entre os três parentes. A situação não era cômoda nem comum. Helena, mesmo que procurasse ficar segura de si, não conseguia vencer de todo o natural acanhamento da ocasião. Mas, se o não vencia de todo, podiam ver-se através dele certos sinais de educação fina. Es- tácio examinou aos poucos a figura da irmã. Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, sem magreza extrema, estatura um pouco acima de mediana, jeito elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; Helena.indd 21 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 22 naquela ocasião havia uns longes cor-de-rosa, a princípio mais vermelhos, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto pareciam ser traçadas pela religião. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas gros- sas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos levantassem as pupilas ao céu, seria um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma só coisa pareceu menos interessante ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno. Acabado o almoço, trocadas algumas palavras, poucas e soltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante três dias passou quase todas as horas, a ler meia dúzia de livros que havia trazido consigo, a escrever cartas, a olhar impressionada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janelas. Alguma vez desceu a jantar, com os olhos vermelhos e a face pesaro- sa, apenas com um sorriso pálido e fugitivo nos lábios. Uma criança, subitamente transferida ao colégio, não esquece mais tristemente as primeiras saudades da casa de seus pais. Mas a asa do tempo leva tudo; e ao cabo de três dias, já a fisionomia de Helena trazia menos sombrio aspecto. O olhar perdeu a ex- pressão que primeiro lhe achou o irmão, para tornar-se o que era naturalmente repousado. A palavra saía-lhe mais fácil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar do acanhamento. No quarto dia, acabado o almoço, Estácioencetou uma con- versa geral, que não passou de um simples duo, porque D. Úrsula contava os fios da toalha ou brincava com as pontas do lenço que trazia ao pescoço. Como falassem da casa, Estácio disse à irmã: — Esta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nas- cemos debaixo do mesmo teto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu respeito. Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizen- do que a casa e a chácara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Úrsula que fosse lhe mostrar mais calmamente. Helena.indd 22 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 23 A tia fechou o rosto e secamente respondeu: — Agora não, menina; tenho por hábito descansar e ler. — Pois eu lerei para a senhora ouvir, disse a moça com graça; não é bom cansar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a servi-la. Não acha? Continuou ela voltando- -se para Estácio. — É nossa tia, respondeu o moço. — Oh! Ainda não é minha tia! Interrompeu Helena. Será quando me conhecer completamente. Por enquanto somos estranhas uma à outra; mas nenhuma de nós é má. Estas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com que ela as disse, era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, tinha um misterioso encanto, a que a própria D. Úrsula não pôde resistir. — Pois deixe que a convivência faça falar o coração, respondeu a irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o oferecimento da leitura, porque não entendo bem o que os outros me leem; tenho os olhos mais inteligentes que os ouvi- dos. Entretanto, se quer ver a casa e a chácara, seu irmão pode conduzi-la. Estácio declarou-se pronto para acompanhar a irmã. He- lena, entretanto, recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e, ao que pa- rece, a primeira que podia achar-se a sós com um homem que não seu pai. D. Úrsula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe secamente que fosse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da casa, ouvindo a moça as explica- ções que lhe dava Estácio e perguntando tudo com zelo e curio- sidade de dona da casa. Quando chegaram à porta do gabinete do conselheiro, Estácio parou. — Vamos entrar num lugar triste para mim, disse ele. — Que é? — O gabinete de meu pai. — Oh! deixe ver! Entraram os dois. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o conselheiro falecera. Estácio deu algumas indicações relativas ao tipo da vida doméstica de seu pai; mostrou-lhe a ca- Helena.indd 23 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 24 deira em que ele costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de família, a mesa, as estantes; falou de quanto podia interessá-la. Sobre a mesa, perto da janela, estava ainda o último livro que o conselheiro havia lido: eram as Máximas do Marquês de Maricá. Helena pegou nele e beijou a página aberta. Uma lágrima brotou-lhe dos olhos, quente de todo o calor de uma alma apai- xonada e sensível; brotou, deslizou-se e foi cair no papel. — Coitado! Murmurou ela. Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir alguns minutos depois de jantar, e olhou para fora. O dia começava a aquecer. O arvoredo dos morros da frente estava coberto de flores-da-quaresma, com suas pétalas roxas e tristemente belas. O espetáculo ia com a situação de ambos. Es- tácio deixou-se levar ao sabor de suas recordações da meninice. De envolta com elas veio pousar-lhe ao lado a figura de sua mãe; tornou a vê-la, tal qual se lhe fora dos braços, uma crua noite de outubro, quando ele tinha dezoito anos de idade. A boa senhora havia morrido quase moça, — ainda bela, pelo menos, — daquela beleza sem outono, cuja primavera tem duas estações. Helena ergueu-se. — Gostava dele? Perguntou ela. — Quem não gostaria dele? — Tem razão. Era uma alma grande e nobre; eu adorava-o. Reconheceu-me; deu-me família e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus próprios. O resto depende de mim, do juízo que eu tiver, ou talvez da sorte. Esta última palavra saiu-lhe do coração como um suspiro. Depois de alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e desceram à chácara. Fosse influência do lugar ou simples mobilidade de espírito, Helena tornou-se logo outra pessoa do que se parecia no gabinete do pai. Jovial, graciosa e travessa, perdeu aquela seriedade quieta e senhora de si com que havia aparecido na sala de jantar; fez-se feliz e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora, esvoaçavam por meio das árvores e por cima da grama. A mudança causou certo espanto ao moço; mas ele a explicou de si para si, e em todo o caso não o impressionou mal. Helena.indd 24 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 25 Helena pareceu-lhe naquela ocasião, mais do que antes, o complemento da família. O que ali faltava era justamente a alegria, a graça, a travessura, um elemento que temperasse a seriedade da casa e lhe desse todas as feições necessárias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar. O passeio durou cerca de meia hora. D. Úrsula viu-os chegar, ao final desse tempo, familiares e amigos, como se hou- vessem sido criados juntos. As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contraíram-se, e o lábio inferior recebeu uma dentada de despeito. — Titia... disse Estácio jovialmente; minha irmã conhece já a casa toda e suas dependências. Resta somente que lhe mostremos o coração. D. Úrsula sorriu, um sorriso amarelo e acanhado, que apagou nos olhos da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a má impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos, perguntou com toda a doçura da voz: — Não quer me mostrar o seu? — Não vale a pena! Respondeu D. Úrsula com afetada se- gurança; coração de velha é casa arruinada. — Pois as casas velhas consertam-se, disse Helena sorrindo. D. Úrsula sorriu também; desta vez porém, com expressão melhor. Ao mesmo tempo, olhou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a princípio indiferente, manifestou logo depois a impressão que lhe causava a beleza da moça. D. Úrsula retirou os olhos; por- ventura receou que o influxo das graças de Helena lhe mudassem o coração, e ela queria ficar independente e inconciliável. Helena.indd 25 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 26 Capítulo IV As primeiras semanas correram sem nenhum sucesso no- tável, mas ainda assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de dúvida, de observação recíproca, um tatear de impressões, em que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar posição. O próprio Estácio, inde- pendentemente da primeira impressão, recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos pouco o procedimento de Helena. Helena tinha as qualidades próprias a captar a confiança e a afeição da família. Era dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, as suas características por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava proba- bilidade de triunfo era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a todo tipo de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena lidava com livros ou com alfinetes, com bailes ou com serviços de casa, com igual interesse e gosto, frívola com os frívolos, séria com os que o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de virtudes domésticas e maneiras elegantes. Além das qualidades naturais, Helena possuía algumas maneiras de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mu- daram em parte o teor da vida da família. Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava correntemente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordadose toda a sorte de trabalhos femininos. Conversava com graça e lia admi- ravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e resignação, — não humilde, mas digna, — conseguia educar os deseducados, atrair os indiferentes e domar os hostis. Pouco havia ganho no espírito de D. Úrsula; mas a repulsa desta já não era tão viva como nos primeiros dias. Estácio cedeu de todo, e era fácil; seu coração tendia para ela, mais que ne- nhum outro. Não cedeu, porém, sem alguma hesitação e dúvida. Helena.indd 26 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 27 A flexibilidade do espírito da irmã pareceu-lhe a princípio mais calculada que espontânea. Mas foi impressão que passou. Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Escravos de uma família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali trazida por um ato de generosidade. Mas também a esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vê-la desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de 16 anos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à filha do seu senhor. Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera; faltando-lhe os sentimentos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato, — condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala. As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mes- ma hesitação de D. Úrsula. Helena sentiu a polidez fria e moderada. Longe de abater-se ou afrontar os sentimentos sociais, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, — tarefa em que se esmerou superando os obstáculos na família; o resto viria de si mesmo. Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no procedimento reservado e frio; foi o Padre-mestre Melchior. Melchior era capelão na casa do conselheiro, que havia manda- do construir alguns anos antes uma capelinha na chácara, onde muita gente da vizinhança ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta anos o padre; era homem de estatura mediana, ma- gro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave, sério sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade. Havia conhecido a família do conselheiro algum tempo depois do casamento dele. Descobriu a causa da tristeza que minou os últimos anos da mãe de Estácio; respeitou a tristeza, mas atacou Helena.indd 27 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 28 diretamente a origem. O conselheiro era homem geralmente ra- zoável, salvo nas coisas do amor; ouviu o padre, prometeu o que este lhe exigia, mas foi promessa feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escritura. Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as ocasiões graves, e o voto de Melchior pesava em seu espírito. Morando na vizinhança daquela família, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se as obrigações eclesiásticas não o chamavam a outro lugar, não se arredava de Andaraí, sítio de repouso após trabalhosa mocidade. Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de Andaraí, mencionaremos ainda o Dr. Matos, sua mulher, o Coronel Macedo e dois filhos. O Dr. Matos era um velho advogado que, em compensação da ciência do direito, que não sabia, possuía entendimentos muito aproveitáveis de meteorologia e botânica, da arte de comer, do jogo de cartas, do gamão e da política. Era impossível a ninguém queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das estações, a diferença dos climas, influência destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as marés e a pororoca. Ele falava com igual abundância das qualidades terapêuticas de uma erva, do nome científico de uma flor, da estrutura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio às paixões da política, se abria a boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e conserva- dores, — os quais todos lhe pareciam abaixo do país. O jogo e a comida achavam-no menos cético; e nada lhe avivava tanto a fisionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Estas prendas faziam do Dr. Matos um conviva interessante nas noites que o não eram. Posto soubesse efetivamente alguma coisa dos assuntos que lhe eram mais prezados, não ganhou a atenção que merecia, professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito, que ignorou até à morte. A esposa do Dr. Matos havia sido uma das belezas do primeiro reinado. Era uma rosa envelhecida, mas conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselhei- ro tinha ficado aos pés da mulher do advogado, sem que ela evitasse; mas só era verdade a primeira parte do boato. Nem Helena.indd 28 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 29 os princípios morais, nem o temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra coisa que não fosse afastar o conselheiro sem o prejudicar. A arte com que o fez, iludiu os maldosos; daí o sussuro, já agora esquecido e morto. A reputação dos homens amorosos parece-se muito com os juros do dinheiro: alcançado certo capital, ele próprio se multiplica e some. O conselheiro desfrutou essa vantagem, de maneira que, se no outro mundo lhe levassem à conta dos pecados todos os que lhe atribuíam na terra, receberia dobrado castigo do que mereceu. O Coronel Macedo tinha a particularidade de não ser coronel. Era major. Alguns amigos, levados de um espírito de justiça, começaram a dar-lhe o título de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal foi levado a aceitar, não podendo gastar a vida inteira a protestar contra ele. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sobre as bases da experiência, possuía imaginação viva, fértil e agradável. Era bom companheiro, extrovertido e comunicativo, pensando sério quando era preciso. Tinha dois filhos, um rapaz de vinte anos, que estudava em São Paulo, e uma moça de vinte e três, mais prendada que bonita. Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se consolidada. D.Úrsula não havia cedido completamen- te, mas a convivência ia produzindo seus frutos. Camargo era o único irreconciliável; sentia-se, através de suas maneiras cerimoniosas, uma aversão profunda, prestes a converter-se em hostilidade, se fosse preciso. As demais pessoas, não só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam de bem com a filha do conselheiro. Helena havia se tornado o acontecimento do bair- ro; seus ditos e gestos eram o assunto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas origens um fio biográfico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguém tirava elementos que pudes- sem construir a verdade ou uma só parcela que fosse. A origem da moça continuava misteriosa; vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia atribuir o nasci- mento de Helena a um amor ilustre ou apaixonado, — hipóteses admissíveis, e em todo o caso agradáveis a ambas as partes. Helena.indd 29 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 30 Capítulo V Por esse tempo Estácio resolveu dar um passo decisivo. Ligado por amor à filha de Camargo, desde antes da morte do conselheiro, pensava sempre em pedi-la ao pai, deixando a reso- lução para quando fosse propício o tempo. A condição não era fácil, porque o sentimento que ele nutria em relação a Eugênia tinha alternativas de faltade ânimo e fervor. A causa disso pode crer-se estava também em seu coração; mas principalmente residia nela. Num dos primeiros dias de agosto, Estácio decidiu solicitar a Eugênia autorização para fazer oficialmente o pedido. Assim disposto, dirigiu-se à casa de Camargo. Mal o avistou de longe, desceu Eugênia à porta do jardim. O chapéu de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do sol, — eram três horas da tarde, — tornava mais bela a figura da moça. Eugênia era uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do céu fluminense. Agora mesmo, se o leitor lhe descobrir o rosto em um camarote de teatro, ou se a vir en- trar em alguma sala de festa, compreenderá, — através de um quarto de século, — que os contemporâneos de sua mocidade lhe tivessem admirado, sem evitar, as graças que então apare- ciam com o frescor e a pureza das primeiras horas. Era de pequena estatura; tinha os cabelos castanho escuro, e os olhos grandes e azuis, dois pedacinhos do céu, abertos em rosto branco e corado; o corpo, levemente refeito, era natural- mente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até com arte, não possuía o dom de alcançar os máximos efeitos com os meios mais simples. Estácio contemplou-a apaixonado sem ousar dizer palavra; a primeira que lhe ia sair dos lábios, era justamente o pedido que o levava ali. Mas Eugênia o deteve, mostrando o anel que a madri- nha, fazendeira de Cantagalo, lhe havia mandado no dia anterior. Era uma opala magnífica, a tal ponto que Eugênia dividia os olhos entre o namorado e ela. Esta simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. Tomásia os esperava. A mãe de Eugênia sabia combinar os modos com os desejos de seu coração; não seria obstáculo aos dois namorados; infelizmente, a presença Helena.indd 30 10/02/20 11:35 Helena.indd 31 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 32 de duas visitas veio destruir o cálculo dos três. Estácio espreitava uma ocasião de pedir a Eugênia a autorização que desejava; até ao jantar não se lhe deparou nenhuma. Desceram todos ao jardim. D. Tomásia entreteve uma das visitas; Camargo foi mostrar à outra a sua coleção de flores. Estácio e Eugênia afastaram-se cautelosamente dos dois grupos, a pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquele dia. A flor existia; Eugênia colheu-a e deu a Estácio. — Não vá perdê-la; há de entregá-la a Helena da minha parte. Diga-lhe que estou com muitas saudades. Estácio colocou a flor na botoeira. — Vai cair! Disse Eugênia. Quer que pregue um alfinete? Estácio não teve tempo de responder, porque a filha de Camar- go, tirando um alfinete do cinto, prendeu o pé da flor, gastando muito mais tempo do que o exigia a operação. A moça não era míope; todavia aproximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve ímpetos de lhe beijar os cabelos, e seria a primeira vez que seus lábios lhe tocariam. — Pronto! Disse ela. Diga a Helena que é a flor mais bonita do nosso jardim. Sabe que eu gosto muito de sua irmã? — Acredito. — Suponho que é minha amiga; e é com certeza. Oh! Eu preciso muito de uma amiga verdadeira! — Sim? — Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão desgostos, como Cecília... Se soubesse o que ela me fez! — Que foi? Eugênia contou uma história, que omito em suas parti- cularidades por não interessar ao nosso caso, bastando saber que a razão capital da divergência entre as duas amigas foi uma opinião de Cecília acerca da escolha de um chapéu. Estácio não escutou a história com a atenção que a moça desejava; limitou-se a ouvir a voz de Eugênia, que era na verdade angélica. Alguma coisa porém lhe ficou; e quando ela se queixou: — O que me parece, observou o sobrinho de D. Úrsula, é que não valia a pena brigar por tão pouca coisa... Helena.indd 32 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 33 — Pouca coisa! Exclamou Eugênia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e de mau gosto? — Fez mal, se o disse, em todo o caso... Estácio fez uma pausa e continuou a andar. Eugênia espe- rou que ele continuasse o que ia dizer; mas o silêncio prolongou- -se mais do que era natural. — Em todo o caso? Repetiu a moça erguendo para ele os olhos claros e curiosos. — Eugênia, disse Estácio, quer saber a verdadeira razão do mau sucesso de suas amizades? É o fato de se deixar levar mais pelas aparências que pela realidade; é porque dá menos valor às qualidades sólidas do coração do que às bobagens da vida. Suas amizades são das que duram uma música, ou, quan- do muito, a moda de um chapéu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estéreis para as necessidades do coração. — Jesus! Exclamou Eugênia, estacando o passo; um sermão por tão pouca coisa! Se tivesse algum pedaço de latim, era o mesmo que estar ouvindo o Padre Melchior. Estácio não respondeu; contentou-se com erguer os om- bros, e os dois continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do outro. A diferença é que o enfado de Eugê- nia se manifestava por um movimento nervoso de impaciência e despeito. — Se o ofendi, perdoe-me, disse ela, com um leve tom de ironia. — Oh! Exclamou ele apertando-lhe a mão, como quem só esperava um pretexto para reatar a conversa interrompida. — Talvez ofendesse, continuou a moça; eu sei dizer as coisas como elas me vêm à boca, e parece que não são as mais acertadas. — Não digo que o sejam sempre, replicou Estácio sorrindo. Agora, pelo menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapéu? Não vale a pena desperdiçar afetos, Eugênia; sentirá mais tarde que essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miúdos nem despender em bobagens. Helena.indd 33 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 34 Eugênia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; sobretudo, não lhes sentiu a aplicação. O que a irritou mais foi o tom pedagogo de Estácio; estouvada e voluntariosa, não admitia que ninguém lhe falasse sem submissão ou a re- preendesse por atos seus, que ela julgava legítimos e naturais. A insistência do moço foi o ponto de partida a um desses con- flitos, não raros entre amantes, e comuns entre aqueles dois. Os de Eugênia não eram simples silêncios; seu espírito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; pelo con- trário, irritava-se e traduzia a irritação por meio de pirraças e acessos de mau humor. Estácio viu murmurar, crescer e de- sabar a tempestade. A moça articulava algumas frases soltas, batia no chão com o pezinho mimoso, que por acaso esmagou uma pobre erva, alheia às divergências morais daquelas duas criaturas. Ora parava e desandava o caminho; mas logo se di- rigia para o moço, com as pálpebras trêmulas de cólera, e um jeito nos lábios; comprazia-se em torcer a ponta da manga ou morder a ponta do dedo. Estácio, afeito a essas explosões, não lhes sabia remédio próprio: tanto o silêncio como a resposta eram ali matérias inflamáveis. Contudo, o silêncio era o menor dos dois perigos. Estácio limitava-se a ouvir calado, olhando com fingimento para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais belo quando a raiva o coloria. Uma terceira pessoa era a única esperança de pacificação; Estácio alongou o olhar pelo jardim em busca desse deus ex machina1. Apareceu ele enfim sob a forma de um Carlos Barreto, — estudante de medicina, que cultivava simultaneamente a patologia e a comédia, mas prometia ser melhor Esculápio 2que Aristófanes3. Mal os viu de longe, apertou o passo para o grupo. — Vem gente, Eugênia, disse Estácio; não demos espetá- culos e... perdoe-me. Eugênia ergueu os ombros, procurou com os olhos o in- truso que daí a pouco lhes estendia a mão. 1 Deus que vem da máquina; 2 Deus da medicina; 3 Maior representanteda comédia grega. Helena.indd 34 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 35 O céu não ficou logo claro; mas o vento ficou mais leve, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim das nuvens. Carlos Barreto deu a Eugênia a agradável notícia de que trouxera a seu pai um convite para o baile que daria no sábado próximo uma de suas parentas. A perspectiva do baile foi uma brisa saudável que dispersou o resto das nuvens. Eugenia sorriu. J’ai ri; me voilà désarmée, como na comédia de Piron. Vinte minutos depois, não havia em Eugênia vestígio da cena do jardim. Mas a ideia do casamento estava adiada. O efeito foi amargo e doce para Estácio. Estimando ver dis- sipada a cólera, doía-lhe que a causa fosse, não a própria virtude do amor, mas um motivo comparativamente fútil. A resolução de a consultar sobre o pedido de casamento se foi como de outras vezes. Saiu dali à noite, antes do chá, aborrecido e azedo. Esse estado não durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo, sentiu alguma coisa semelhante ao toque de um remorso. O amor de Estácio tinha a particularidade de crescer e afirmar-se na ausência e diminuir logo que estava ao pé da moça. De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe em- prestava. Daí, um dissentimento provável e um remorso certo. Agora que a deixava, ia ele irritado contra si mesmo; achava-se ridículo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade de Eugênia; concedia alguma coisa à idade, à educação, aos costu- mes, à ignorância da vida. Nesse estado de espírito entrou em casa, onde o esperava um incidente novo. Helena.indd 35 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 36 Capítulo VI Chegando à casa, achou Estácio remédio ao mau humor. Era uma carta de Luís Mendonça, que dois anos antes havia partido para a Europa, de onde agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, anunciando-lhe que dentro de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça foi o seu melhor companheiro de aula. Havia entre eles certas diferenças de gênio. O de Mendonça era mais extrovertido e ativo. Quando este partiu para a Europa, quis que o antigo colega o acompanhasse, e o próprio conselheiro opinara nesse sentido. Estácio recusou pelo receio de que, sendo diferente o espírito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao sacrifício de hábitos e preferências de um deles. A notícia da volta de Mendonça encheu de contentamen- to o sobrinho de D. Úrsula. D. Úrsula estava então na sala de costura, relendo algumas páginas do seu Saint-Clair, encostada a uma mesa. Do outro lado, ficava Helena, a fazer uma costura de crochet. — Titia, disse ele, dou-lhe uma novidade agradável para mim. — Que é? — O Mendonça chegou a Pernambuco; está aqui dentro de pouco tempo. — O Mendonça? — Luís Mendonça. — O que foi para a Europa, sei. Há quanto tempo? — Dois anos. — Dois anos! Parece que foi ontem. — Não leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que devo ir também à Europa, quanto antes. Querem ir? — Eu? Disse D. Úrsula, marcando a página do livro com os óculos de prata que até então conservara sobre o nariz. Não são coisas para gente velha. Daqui para a cova. — A cova! Exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me há de enterrar primeiro? — Menina! Exclamou D. Úrsula em tom de repreensão. Helena Helena.indd 36 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 37 sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de ver- dadeira simpatia que ouvia a D. Úrsula. Bem o compreendeu esta; e talvez a mortificou aquela espontaneidade do coração. Mas era tarde. Não podia recolher a palavra, não podia sequer explicá-la. — Como está vindo o teu amigo? Perguntou ela ao sobri- nho. Era bom rapaz antes de ir; um pouco tonto, apenas. — Vem do mesmo jeito, respondeu Estácio; ou ainda me- lhor. Melhor é certo, porque dois anos mais modificam o homem. Estácio fez aqui um elogio ao amigo, intercalado com ob- servações da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o chá. D. Úrsula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o crochet na cestinha de costura. — Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochet? pergun- tou ela ao irmão, caminhando para a sala de jantar. — Não? — Não, senhor; fiz um furto. — Um furto! — Fui procurar um livro na sua estante. — E que livro foi? — Um romance. — Paulo e Virgínia? — Manon Lescaut. — Oh! exclamou Estácio. Esse livro... — Esquisito, não é? Quando percebi que o era, fechei-o e lá o pus outra vez. — Não é livro para moças solteiras. — Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e sentando-se à mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo... — Imagino! Interrompeu D. Úrsula. — O desejo de aprender a montar a cavalo, concluiu Helena. Estácio olhou espantado para a irmã. Aquela mistura de geometria e equitação não lhe pareceu suficientemente clara e explicável. Helena soltou uma risadinha alegre de menina que aplaude a sua própria travessura. — Eu lhe explico, disse ela; abri o livro, todo cheio de Helena.indd 37 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 38 riscos que não entendi. Ouvi porém um barulho de cavalos e cheguei à janela. Eram três cavaleiros, dois homens e uma senhora. Oh! Com que elegância montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco anos, alta, esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa cauda do vestido caída a um lado. O cavalo era fogoso; mas a mão e o chicotinho da cavaleira quebravam-lhe os ímpetos. Tive pena, confesso, de não saber montar a cavalo. — Quer aprender comigo? — Titia consente? D. Úrsula levantou os ombros com o ar mais indiferente que pôde achar no seu repertório. Helena não esperou mais. — Escolha você o dia. — Amanhã? — Amanhã. Estácio costumava dar uns passeios a cavalo quase todas as manhãs. O do dia seguinte foi dispensado; começariam as lições de Helena. Antes disso, porém, escreveu Estácio à filha de Camargo uma carta cheia de ternura e afeto. Pedia-lhe desculpa do que se passara na véspera; jurava-lhe amor eterno; coisas todas que lhe dissera mais de uma vez, com o mesmo estilo, se não com as mesmas palavras. A carta dissipou-lhe a última sombra de remorso. Antes que ela chegasse ao seu destino, reconciliara-se ele consigo mesmo. O portador saiu para o Rio Comprido, e ele desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pé do qual estava situada a cavalariça. Naquele lado da casa corria a varanda antiga, onde a família costumava às vezes tomar café ou conversar nas noites de luar, que ali entrava pelas largas janelas. Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ao terreiro. Já ali estava Helena. D. Úrsula havia lhe emprestado um vestido de amazona, com que algumas vezes havia montado, antes da morte do irmão. O vestido ficava mal nela; era folgado demais para o talhe magro da moça. Mas a elegância natural fazia esquecer o acessório das roupas. — Pronta! Exclamou Helena apenas viu o irmão aparecer no alto da escada. Helena.indd 38 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 39 — Oh! Isso não vai assim! Respondeu Estácio. Não ache que conseguirá montar já hoje como a moça que ontem viu passar na estrada. Vença primeiramente o medo. — Não sei o que é medo, interrompeu ela com ingenuidade. — Sim? Não sabia que era valente. Pois eu sei o que ele é. — O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito se desfaz; basta a simples reflexão. Quando era pequena educaram-me com almas do outro mundo. Até a ida- de de dez anos era incapaz de entrar numa sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possível que uma pessoa morta voltasse à terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma coisa. Lavei o meu espíritodessa tolice, e hoje era capaz de entrar, de noite, num cemitério... E daí talvez não: os corpos que ali dormem têm direito de não ouvir mais um só rumor de vida. Estácio havia chegado ao último degrau da escada. As últimas palavras ouviu-as ele com os olhos fitos na irmã e en- costado ao poial de pedra. — Quem lhe ensinou essas ideias? Perguntou ele. — Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no coração. Senhor especialista em geometria, continuou balançando caprichosamente o chicote, — veja se transcreve em algum livro estas figuras de minha invenção, e comece cavalgar comigo. Com um movimento rápido prendeu a saia do vestido, e caminhou para diante. Estácio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois sentimentos diferentes: a afeição que o prendia à irmã, e a estranha impressão que ela lhe fazia sen- tir. Quando chegou à porta da cavalariça, viu aparelhados dois animais, o cavalo de seus passeios da manhã, e a égua que a tia cavalgava uma ou outra vez. — Que é isso? Disse ele. Por ora vamos a algumas indica- ções somente, aqui no terreiro. — Justamente! Respondeu a moça. Um escravo, que ali estava, trouxe um tamborete. Estácio aproximou-se de Helena, que afagava com a mão branca e fina as crinas da égua. Helena.indd 39 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 40 — Como se chama? Perguntou ela. — Moema. — Moema! Ora espere... é um nome indígena, não é? Estácio fez um sinal afirmativo. Helena tinha um pé sobre o tamborete; repetiu ainda o nome da égua, como quem refletia sobre ele, sem que o irmão percebesse que não era aquilo mais do que um disfarce. De repente, quando ele menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no selim. A égua encurvou o colo, como vaidosa do peso. Estácio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correção do movimento, e sem saber ainda o que pensar daquilo. Helena inclinou-se para ele. — Fui bem? Perguntou sorrindo. — Não podia ir melhor; mas o que me admira... As patas de Moema interromperam a reflexão do moço. A cavaleira balançou o chicotinho, e o animal saíu a trote largo pelo terreiro fora. Estácio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como para tomar a rédea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou ver que ela não fazia ali os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe a elegância e a destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde saíra. — Que tal? Disse ela logo que estacou. Terei jeito para a equitação? — Criança! — Que é isso? Já aprendeu? interveio D. Úrsula, do alto da varanda, onde acabava de chegar. — Estava caçoando conosco, disse Estácio. Vê como sabe montar? — Ela sabe tudo, murmurou D. Úrsula entre dentes. Estácio montou no cavalo. Consultou o relógio; eram sete horas e meia. — Permite que o acompanhe? Perguntou Helena. — Com uma condição, disse ele; é que tem que ter juízo. Não quero brincadeiras; a égua é aparentemente mansa, mas não deve brincar com ela. Já vejo que você é capaz de muitas coisas mais. — Prometo ir pacificamente. Helena.indd 40 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 41 Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de rédea ao animal e seguiu ao lado do irmão. Passado o portão, seguiram os dois para o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca. Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a égua, instigada por ela, adiantava-se alguns passos ao cavalo; Estácio repreendia a irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudência, gostava de lhe ver o branco do busto e a firme serenidade com que ela conduzia o animal. — Não me dirá você, perguntou ele, por que motivo, sa- bendo montar, pedia-me ontem lições? — A razão é clara, disse ela; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um cálculo. — Um cálculo? — Profundo, hediondo, diabólico, continuou a moça sorrin- do. Eu queria passear algumas vezes a cavalo; não era possível sair só, e nesse caso... — Bastava pedir-me que a acompanhasse. — Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir que não sabia montar. A ideia momentâ- nea de sua superioridade neste assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida... Estácio sorriu do cálculo; logo depois ficou sério, e per- guntou em tom seco: — Já lhe negamos algum prazer que desejasse? Helena estremeceu e ficou igualmente séria. — Não! murmurou; minha dívida não tem limites. Esta palavra saiu-lhe do coração. As pálpebras caíram-lhe e um véu de tristeza lhe apagou o rosto. Estácio arrependeu-se do que dissera. Compreendeu a irmã; viu que, por mais inocen- tes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas à má parte, e, em tal caso, o menos que se lhe podia dar era a descortesia. Estácio aparentava ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ela e rompeu o silêncio. — Você ficou triste, disse Estácio; mas eu desculpo-a. — Desculpa-me? Perguntou a moça erguendo para o irmão os belos olhos úmidos. Helena.indd 41 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 42 — Desculpo a injúria que me fez, achando que estava sendo grosseiro. Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições do mundo. Helena deu livre curso à imaginação e ao pensamento; suas falas exprimiam, ora a sensibilidade apaixonada, ora a reflexão da experiência prematura, e iam direitas à alma do irmão, que se comprazia em ver nela a mulher como ele queria que fosse, uma graça pensadora, uma seriedade amável. De quando em quando faziam parar os animais para contemplar o caminho percorrido, ou falar acerca de um acidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam falando das vantagens da riqueza. — Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade da terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais uma hora ou quase. O preto de quem Estácio havia falado, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dois cavaleiros que se aproximavam. Ia cortando a fruta e deitando os pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram sujas; o chapéu que lhe cobria a cabeça, tinha já uma cor envelhecida. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito. Helena voltou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes. — Tem razão, disse Helena; aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples Helena.indd 42 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 43 questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o desperdicemos, quer o economizemos. O essen- cial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. Estácio soltou uma risada. — Você devia ter nascido... — Homem? — Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas. Nem estou longe de crer que o próprio cativeiro lhe parecerá uma bem-aventurança, se eu disser que é o pior estado do homem. — Sim? RetorquiuHelena sorrindo; estou quase a fazer-lhe a vontade. Não faço; prefiro admirar a cabeça de Moema. Veja, veja como se vai andando. Esta não maldiz o cativeiro; pelo contrário, parece que lhe dá glória. Pudera! Se não a tivéssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só isso, é também impaciência. — De quê? — Impaciência de correr por essa estrada da Tijuca fora, e beber o vento da manhã, espreguiçando os múscu- los, e sentindo-se alguma coisa senhora e livre. Mas o que quer você, minha pobre égua? Continuou a moça indicando a cabeça até às orelhas do animal; vai aqui ao pé de nós um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu inimigo. — Helena! Interrompeu Estácio; você é muito capaz de disparar a correr. — E se fosse? — Eu deixava-a ir, e nunca a traria em meus passeios. Você monta bem; mas não desejo que faça traquinagens. Nós somos responsáveis, não só por sua felicidade, mas também por sua vida. Helena refletiu um instante. — Quer dizer, perguntou ela, que se eu fosse vítima de um desastre, não faltaria quem o entendesse como culpa de minha família? Helena.indd 43 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 44 — Justo. — Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me lembrasse — é uma suposição — se eu me lembrasse de deixar a vida por aborrecimento ou capricho, seria você acu- sado de me haver dado o veneno? Não há melhor modo de me fazer evitar a morte. — Vamos deixar essa conversa de lado, e voltemos para casa, interrompeu Estácio. — Já! — Raras vezes passo daqui; e não pense você que é perto. — Parece-me que ainda agora saímos de casa. Vamos uns cinco minutos adiante? Sim? Estácio consultou o relógio. — Cinco minutos justos, disse ele. — Até aquela casa que ali está com uma bandeira azul. Havia, claramente, cerca de quatro minutos adiante, à es- querda da estrada, uma casa de aparência insignificante, sobre cujo telhado flutuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estácio conhecia a casa, mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a explicação daquilo. — Vá lá saber, disse o irmão rindo. Helena deu de rédea à égua e adiantou-se alguns passos. Estácio apertou o animal e alcançou-a. — Não vá fazer tolices! Disse ele em tom de branda repreen- são. Aquilo é fantasia do morador, ou algum sinal de pássaros, ou qualquer outra coisa que não vale a pena de uma travessura. Vamos contemplar antes a manhã, que está deliciosa. Helena não atendeu à proposta do irmão e foi andando, a passo lento, na direção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o alpendre antigo que lhe corria na frente. As colunas deste estavam já lascadas em muitas partes, apa- recendo, aqui e ali, a estrutura de tijolo. A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, aparente ao menos. Quando eles passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguém espreitava por ela, ficou sumido na sombra, porque ninguém de fora o viu. Helena.indd 44 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 45 Cerca de cinco metros adiante, Estácio resolveu definitiva- mente regressar, e Helena não opôs objeção nenhuma. Torceram a rédea aos animais e desceram. — Não poderei falar com a bandeira? Perguntou a moça. Deixe-me ao menos dizer-lhe adeus. Tinha já tirado da bolsa o seu fino lenço de seda; agitou- -o na direção da casa. Quis o acaso que a bandeira, até então quieta, se movesse ao sopro de um vento que passou. — Vê como ela me respondeu? Não se pode ser mais cortês! Exclamou Helena, rindo. Estácio riu também da lembrança da irmã, e ambos des- ceram, a passo lento, como haviam subido. Helena vinha séria e pensativa. Os olhos, cravados nas orelhas de Moema, não pareciam ver sequer o caminho que o animal seguia. Estácio, para arrancá-la ao silêncio, fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena respondeu distraidamente. — Que tem você? Perguntou ele. — Nada, disse ela; ia. . . ia escutando uma canção. Não ouve? Ouvia-se, efetivamente, a algumas braças adiante, uma cantiga da roça, meio alegre, meio triste. O cantor apareceu, logo que os cavaleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquele lugar. Era o preto, que pouco antes tinham visto sen- tado no chão. — Que lhe dizia eu? Observou a irmã de Estácio. Ali vai o infeliz de agora há pouco. Uma laranja chupada no capim e três ou quatro quadras, é o bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar comprar o tempo. Nós pode- ríamos dizer o mesmo? — Por que não? A moça recolheu-se ao silêncio. — Helena, isso que você acaba de dizer... Vamos, estamos sós; confesse alguma tristeza que tenha. — Nenhuma, respondeu a moça. Peço-lhe, entretanto, uma coisa. — Diga. — Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu respeito. Explicarei umas, procurarei esclarecer Helena.indd 45 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 46 outras, emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espírito esta verdade: é que sou uma pobre alma lançada num turbilhão. Estácio ia pedir explicação mais desenvolvida daquelas últimas palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, e passou a égua a correr. Estácio fez o mesmo ao cavalo; daí a alguns minutos entravam na chácara, ele aturdido e curioso, ela com a face vermelha e a bater-lhe violentamente o coração. Capítulo VII Desceram do cavalo os dois no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia dar na varanda. Pisando o primeiro degrau, disse Estácio: — Helena, explique-me suas palavras de há pouco. — Quais? E como Estácio levantasse os ombros, com ar de despeito, continuou Helena: — Perdoe-me; a pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confissões; mas, neste caso, a confissão inteira seria imprudência maior. Se se tratasse de fatos, creia que a ninguém melhor podia confiá-los do que a você; mas por que motivo irei perturbar seu o espírito com a narração de meus sentimentos, se eu própria não chego a entender-me? Estácio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam D. Úrsula dando as ordens daquele dia a dois escravos. Estácio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara à jovialidade de costume. Já haviam dito que a alma da moça era uma espécie de comediante que havia recebido da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vestuário. D. Úrsula viu-a entrar risonha e ir a dar-lhe os costumados bons Helena.indd 46 10/02/20 11:35 Helena.indd 47 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 48 dias, — que eram sempre um beijo, — ou antes dois, — um na mão, outro na face. — Demorei-me muito? Perguntou ela voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relógio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! Que passeio, senhor meu irmão! Estácio olhava para ela silencioso e não lhe respondeu. Foram logo depois mudar de roupa, e o almoço reuniu a família. D. Úrsula propôs, durante ele, algumas mudanças na disposição da chácara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Úrsula desceu à chácara com Estácio. As alterações foram ainda estudadas e combinadas no próprio terreno, com assistência do feitor, logo que acabou a deliberação e que o projeto de D. Úrsula foi definitivamente assentado, Estácio reteve-a e lhe disse: — Preciso falar-lhe um instante. — Também eu. — Quais são os seus sentimentos atuais em relação a Helena? Oh! não precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são meras aparências. Não creio que seja absolutamente amiga dela; mas não pode negar que a antipatia desapareceu
Compartilhar