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HELENA

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todas as noivas. Feliz Estácio! Segue a carreira de 
sua vocação, enquanto que eu...
— Você?
— Interrompo a minha, e talvez para sempre. Preciso 
cuidar da vida; não sou capitalista, nem meu pai tampouco. 
Adeus, viagens!
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— Tanto melhor! Arranjo uma noiva para você. Não é a 
sua vocação, mas não será o primeiro que a erre, sem que daí 
venha mal ao mundo.
— Pois arranja lá isso... Em todo caso não será sua irmã.
— Oh! Não, disse vivamente Estácio.
— Na verdade, é bonita; mas... se permite a franqueza de 
antes, acho nela um certo ar de desdém...
— Que ideia! É a mais amável criatura do mundo. Verá 
mais tarde; hoje estava, talvez, preocupada. Em todo o caso, 
não havia de querer que ela a dançasse contigo na sala, de mais 
a mais sem música.
Mendonça acabava de acender um charuto; apertou a mão 
de Estácio e saiu. Estácio acordou de um sonho. A realidade 
colocou sobre ele as mãos de chumbo e repetiu-lhe ao ouvido 
a confissão interrompida de Helena. Ansioso por saber o resto, 
entrou ele imediatamente em casa. A tentativa foi inútil, porque 
a irmã se recolhera ao quarto. Estácio imitou-a. Era necessário 
esperar uma noite inteira, demora que o afligia, porque, dizia ele 
consigo mesmo, cumpria-lhe tomar conta da sorte de Helena, 
como irmão e chefe de família, quere conhecer seus sentimentos, 
e ordenar o que fosse melhor. Uma noite não era muito; contudo, 
a preocupação tirou-lhe o sono. A confissão súbita, sem sentido 
e eloquente da irmã colocou em seu espírito, como se fosse o 
eco eterno de uma voz extinta.
Nem no dia seguinte, nem nos subsequentes conseguiu 
o que esperava. Helena, ou evitava ficar a sós com ele, ou 
esquivava-se a maior explicação. Nos passeios matinais, que 
eram frequentes, procurou Estácio, mais de uma vez, tratar 
do assunto que o preocupava. Helena ouvia com um sorriso, e 
respondia com um gracejo; depois, mudava a conversa para a 
direção oposta. Como a conversa era ampla, nunca mais o moço 
conseguia trazê-la ao ponto de partida.
Um dia, a insistência de Estácio teve tal caráter de au-
toridade, que pareceu constranger e molestar Helena. Ela 
respondeu com um gracejo; ele respondeu com uma adver-
tência áspera. Iam ambos a pé, levando os animais pela rédea. 
Ouvindo a palavra do irmão, Helena conteve o passo, e fitou-o 
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com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das 
estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estácio pos-
suía estas duas coisas, a retratação do erro e a generosidade 
do perdão. Viu que cedera a um mau impulso, e confessou-o; 
mas, confessou-o com palavras tais que Helena travou-lhe da 
mão e lhe disse:
— Obrigada! Se você não tivesse me dito isso, você me 
veria sair pelo mundo e não me encontraria jamais.
— Helena!
— Oh! Não é vão melindre, é a própria necessidade da 
minha posição. Você pode encará-la com olhos benignos; mas 
a verdade é que só as asas do favor me protegem... Pois bem, 
seja sempre generoso, como foi agora; não procure violar a 
santidade de minha alma. Não insista em pedir a explicação de 
palavras mal pensadas e ditas em má hora.
— Mal pensadas? Pode ser; mas por isso é que são verda-
deiras; se você tivesse tempo de as meditar, guardaria consigo. 
Meu fim era somente ajudá-la a ter sorte, destruir...
— É tarde! interrompeu a moça, consultando o reloginho 
preso à cintura. Vamos?
Estácio sorriu melancolicamente; ofereceu-lhe o joelho, ela 
pousou nele o pezinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi 
menos alegre do que costumava ser. Eles falavam, mas a palavra 
vinha aos lábios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma 
raiva, mas nenhuma animação. Assim correu aquele dia; assim 
correriam outros, se não fosse a varinha mágica de Helena. A 
natural influência era tão forte que o irmão voltou desde logo 
às boas, sendo as melhores horas as que passava ao pé dela, 
a escutá-la e a vê-la, ambos contentes e felizes. O episódio da 
confissão vinha às vezes, como hóspede importuno, projetar 
entre eles o nebuloso perfil; mas o espírito de Estácio repelia-o, 
e a alegria da irmã fazia o resto.
Entretanto, graças ao amigo recém-chegado, o filho do 
conselheiro saiu um pouco de suas regras habituais, e começou 
a provar alguma coisa mais da vida exterior. Mendonça buscava 
realizar, em miniatura, o seu esvaído ideal parisiense; havia nele 
o movimento, a agitação, a alegria, que absolutamente faltavam 
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a Estácio, e vieram dar-lhe à vida a variedade que ela não tinha. 
Alguns espetáculos e passeios, uma ou outra janta alegre, tal foi 
o programa de uma parte pequena da existência de Estácio. Para 
contrastar com ela, tinha ele as manhãs do Andaraí e algumas 
noites do Rio Comprido. Ao amigo e à sua consciência, dizia o 
moço que estava a despedir-se da liberdade.
A influência de Mendonça estendeu-se à própria casa de 
Estácio. Mendonça gostava sobretudo da variedade no viver; 
não tolerava os mesmos prazeres nem os mesmos charutos; 
para os apreciar tinha necessidade de os alternar frequente-
mente. Se fosse possível, era capaz de fazer-se monge durante 
um mês, antes do carnaval, trocar o hábito por um dominó, e 
a ligar uma atividade à outra. A fidelidade à moda custava-lhe 
um pouco, quando esta não ia a passo com a impaciência. Em 
sua opinião, o que distinguia o homem do cão era a faculdade 
de fazer com que uma noite se não parecesse com outra. O Rio 
de Janeiro não lhe oferecia a mesma variedade de recursos que 
Paris; tendo o gênio criativo e fértil, não lhe faltaria meio de fugir 
à uniformidade dos hábitos.
O pior que lhe acontecia era a diferença entre os desejos e 
os meios. Filho de um comerciante, apenas remediado, não teria 
ele podido realizar a viagem à Europa, nas proporções largas 
em que o fez, a não ser a intervenção bondosa de uma parenta 
velha, que se responsabilizou de lhe enviar os recursos de que 
ele necessitasse durante aquela longa ausência.
Nem a parenta continuaria a abrir a bolsa, nem o pai 
queria criar-lhe hábitos de ociosidade. Tratava este, portanto, 
de obter-lhe um emprego público. Mendonça estava longe de 
recusar; pedia somente que o emprego o não deslocasse da 
Corte. Inquieto, amigo da vida barulhenta e fácil, inteligente 
sem largos horizontes, possuindo apenas a instrução precisa 
para desempenhar-se regularmente de qualquer comissão de 
certa ordem, Mendonça, com todos os seus defeitos e boas 
qualidades, era homem agradável e aceito. Os defeitos eram 
antes do espírito que do coração. A variedade que ele pedia 
para as coisas externas e de menor tamanho, não a praticava 
em suas afeições, que eram geralmente inalteráveis e fiéis. Era 
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capaz de sacrifício e dedicação; sobretudo se lhe não pedissem 
o sacrifício deliberado ou a dedicação refletida, mas aquele que 
exige uma circunstância imprevista e súbita.
Não admira que a presença de tal homem viesse modifi-
car o tom da sociedade de que era centro a família de Estácio, 
quando ele ali fazia alguma aparição. Era o sol daquela terra.
Não tinha a seriedade do figurino, nem o ar do estrangeira-
do. A tesoura do alfaiate não lhe escondia a índole expansiva e 
franca. Acolhido como um filho, achava ali uma porção de casa. 
Que melhor aspecto podia ter a vida em tais condições, naquela 
família ligada por um sentimento de amor?
A noite do último dia do ano veio turvar a limpidez das 
águas.
Capítulo XI
Naquele dia Estácio fazia aniversário, e D. Úrsula acitou 
receber algumas pessoas para jantar, e outras mais à noite, em 
reunião íntima. Ela e Helena se esforçavam para fazer com que 
a pequena festa de família fosse digna do objeto. Estácio sugeriu 
que não; mas era difícil alcançar a desistência de corações que 
o amavam.
Logo de manhã,
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