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Rodrigo Canalli Introdução ao direito constitucional e ao controle de constitucionalidade SGP - Educação a Distância EaD sumário Aula 1 Constituição e democracia I. Apresentação do curso.....................................................................................3 II. Objetivos.............................................................................................................3 1. Introdução...........................................................................................................4 2. Democracia.........................................................................................................7 3. Constituição e constitucionalismo..................................................................9 4. Poder Constituinte............................................................................................11 5. Relação entre Constituição e democracia...................................................12 6. Considerações finais.......................................................................................14 Sugestões de leitura............................................................................................15 Imagens..................................................................................................................15 Glossário................................................................................................................16 Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 3 Introdução ao direito constitucional e ao controle de constitucionalidade Aula 1 — Constituição e democracia I. Apresentação do curso Seja bem-vindo ao curso Introdução ao direito constitucional e ao controle de constitucionalidade! Para participar deste curso introdutório, destinado a todos os servidores interessados em conhecer mais sobre a Constituição e o papel do Supremo Tribunal no controle da constitucionalidade das normas, nenhum conhecimento jurídico prévio é exigido. No decorrer do curso, iremos apresentar de modo amplo e contextualizar alguns conceitos constitucionais básicos e verificar como têm sido desenvolvidos na jurisprudência do Tribunal. II — Objetivos Ao final deste curso, você deverá ter incorporado conhecimentos técnicos e hermenêuticos para compreender e avaliar, com objetividade, o processo de controle de constitucionalidade desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal. Após a primeira aula, nosso primeiro passo em direção a esse objetivo, espero que você seja capaz de responder à seguinte pergunta: por que uma democracia precisa de uma Constituição? Vamos lá! Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 4 1. Introdução Caro aluno, como servidor do Supremo Tribunal Federal (STF), sem dúvida você já tem ciência sobre o papel desse órgão como guardião da Constituição. Mas o que isso significa na prática? Significa que, como Corte Constitucional e órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal exerce o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Embora compartilhem muitos pontos em comum, os conceitos de Corte Constitucional e de órgão de cúpula do Poder Judiciário são um pouco diferentes. Corte Constitucional ou Tribunal Constitucional designa um órgão especializado cuja tarefa precípua é decidir sobre a constitucionalidade das leis. Uma Corte Constitucional pode integrar a estrutura ordinária do Poder Judiciário ou funcionar paralelamente a este. Esse modelo, bastante adotado na Europa, é chamado de modelo austríaco. Órgão de cúpula do Poder Judiciário ou Suprema Corte ou Supremo Tribunal refere- -se, em geral, à última instância recursal, especialmente nos regimes em que todos os juízes e tribunais têm competência para decidir sobre a constitucionalidade das leis ao examinar sua aplicação nos casos que julgam. Nesse modelo, identificado como modelo norte- americano, o órgão de cúpula não é uma Corte especializada; é simplesmente aquele que tem a última palavra na decisão dos casos judiciais. Edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Sede do Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © O Brasil adota um sistema misto, no qual o Supremo Tribunal Federal reúne características tanto de tribunal constitucional quanto de corte suprema. Essa estrutura tem importância, como veremos, para a definição dos diferentes caminhos pelos quais uma questão constitucional chega a ser apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal Federal — ora de modo direto (a que chamamos competência originária), ora por meio de um recurso contra decisões de outros tribunais (a que chamamos competência recursal). Além das competências estritamente relacionadas ao controle de constitucionalidade das leis, o Supremo Tribunal Federal acumula outras competências, também originárias, que não serão abordadas neste curso por não estarem diretamente relacionadas ao controle de constitucionalidade. A ação penal originária contra detentores de foro por prerrogativa de função é exemplo dessas outras competências. A competência originária que nos interessa neste curso é a que diz respeito a uma tarefa específica: o controle concentrado de constitucionalidade. No exercício do controle concentrado ou controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal julga a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo em tese ou, como o nome diz, em abstrato. Isso quer dizer que o que está em julgamento é a validade da própria lei, e não necessariamente a sua aplicação a um caso concreto. O texto da lei é comparado com o texto da Constituição e, caso ele contrarie algum dispositivo da Constituição, a lei é tida como inválida. Esse tipo de controle também é chamado de concentrado porque, ao invés de ser realizado simultaneamente por todos os órgãos do Poder Judiciário, é concentrado em um único órgão, o STF. A rigor, controle concentrado e controle abstrato de constitucionalidade não significam exatamente a mesma coisa. Contudo, existe uma sobreposição suficiente para permitir o uso intercambiável dessas expressões para se referir às seguintes modalidades de controle de constitucionalidade, que examinaremos mais detidamente no decorrer do curso: 5 Sede da Suprema Corte dos Estados Unidos. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 6 a ação direta de inconstitucionalidade (ADI); a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO); a ação declaratória de constitucionalidade (ADC); e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Por sua vez, a reclamação constitucional seria um exemplo de ação que serve como modalidade de controle de constitucionalidade concentrado, mas não abstrato. Embora seja da competência originária do STF e se preste a viabilizar o exame da constitucionalidade, supõe sempre uma situação concreta. Quanto à competência recursal do Supremo Tribunal Federal, o controle de constitucionalidade se faz primordialmente pela via do recurso extraordinário. Nesse caso, uma questão constitucional é levada ao STF após ter sido levantada no curso do julgamento de uma demanda concreta pelos demais tribunais estaduais e federais. Essa modalidade é chamada de controle de constitucionalidade concreto ou difuso. Concreto porque é realizado no curso de uma demanda judicial qualquer, um caso concreto no qual uma questão constitucional foi suscitada. É difuso porque a apreciação da questão constitucional, no exame do caso concreto, não é exclusiva do Supremo Tribunal Federal, mas distribuídapor todos os juízes e tribunais pelos quais o processo passou antes de chegar ao Supremo. Se, no caso, não houver recurso para o STF, ou se este não for admitido, a decisão constitucional que valerá será a que foi tomada por outro órgão do Poder Judiciário, e não pelo STF. Mais recentemente, o instituto da repercussão geral, como veremos adiante, tem levado ao que o Ministro Gilmar Mendes chamou de “abstrativização do controle difuso”. Esse nome feio nada mais quer dizer que o controle de constitucionalidade realizado por meio do recurso extraordinário, sem deixar de pressupor um caso concreto, adquiriu, com a repercussão geral, algumas características do controle abstrato. Veremos mais sobre a repercussão geral na Aula 6. Mas, afinal, para que serve esse tal de controle de constitucionalidade? Por que é que ele é exercido por um órgão do Poder Judiciário? Se a Constituição já estabeleceu o procedimento para o funcionamento do Congresso Nacional e do Poder Executivo, ao Poder Judiciário não cabe simplesmente aplicar as leis aprovadas? Ao invalidar uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, o Poder Judiciário não age de forma antidemocrática? Ou será isso, paradoxalmente, uma necessidade da própria democracia? a b c d Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal em 2002, exerceu a Presidência da Corte no biênio 2008-2010. É professor de direito constitucional da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e autor de diversas obras e artigos acadêmicos. https://goo.gl/6H7kzh Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 7 Sem nenhuma pretensão de portar verdades absolutas, vamos verificar algumas respostas que a história do constitucionalismo e das instituições democráticas modernas se encarregou de elaborar para essas perguntas. No espírito de liberdade de pensamento e crítica que acredito ser fundamental a qualquer aprendizado, sinta-se livre para, nos fóruns, discordar, questionar e apresentar seus pontos de vista sobre essas e outras questões. Longe de serem verdades matemáticas, instituições jurídico-políticas como Estado, Democracia e Constituição são construções do espírito humano que dependem, para existir, de ser reconhecidas por uma comunidade de pessoas. Não à toa, por muito tempo, despertaram, e ainda despertam, inúmeros debates. Nosso ponto de partida é o regime estabelecido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988. Trata-se de um Estado Democrático de Direito, que também pode ser chamado de Estado Democrático Constitucional. Democrático e constitucional, podemos dizer, são opostos complementares. 2. Democracia Um dos maiores líderes do século XX, Winston Churchill, descreveu a democracia como “a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Em linhas bem gerais, um Estado é democrático quando as normas que o governam são determinadas pelo povo, diretamente (democracia direta) ou por meio de representantes eleitos (democracia indireta ou parlamentar). Em outras palavras, quando o povo é o autor das leis, os governados são, em última análise, os próprios governantes. Tradicionalmente, portanto, a democracia é definida, a teor do célebre pronunciamento de Abraham Lincoln, como o “governo do povo e para o povo”. Embutidos nessa definição, aparentemente singela, estão séculos de estudos teóricos e experiências práticas em torno da ideia de soberania popular. Winston Churchill (1874-1965), Primeiro-Ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial, foi um notável orador e estadista, forte crítico do nazismo e defensor da democracia parlamentar. Décimo sexto Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln liderou aquele país durante sua maior crise, a Guerra Civil Americana, da qual saiu vitorioso com a preservação da União e a abolição da escravidão. Foi assassinado, ainda no exercício da Presidência, enquanto assistia a uma peça de teatro. https://goo.gl/n2QwF2 https://goo.gl/4VA6F9 Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 8 Do lado teórico, a partir do século XVIII, a ideia de que é a vontade do povo que constitui a comunidade política e determina os limites do poder político passou a ganhar espaço, pelo menos no mundo ocidental, em detrimento das formas de legitimação do poder político até então estabelecidas, tais como o poder divino e a tradição. Alguns dos mais importantes pensadores que contribuíram para isso foram Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Como aspecto prático da difusão dessas ideias, o fim do século XVIII foi marcado por duas revoluções que viraram o mundo de cabeça para baixo. Revolução Francesa e a Revolução Americana consagraram definitivamente a viabilidade prática, na experiência moderna, do governo do povo pelo próprio povo. Sa �a mais Mas, como assim? A democracia não nasceu em Atenas, como eu aprendi? Sim e não. De fato, existiram, na Antiguidade, práticas e instituições políticas com importantes características democráticas, especialmente em algumas das polis gregas (é célebre o exemplo da democracia ateniense) e na República Romana. Na prática, porém, houve pouca ou nenhuma relação direta entre elas e o nascimento da democracia nos Estados modernos. No plano teórico, vale destacar que o filósofo grego Aristóteles já classificava o “governo de muitos” entre as formas de governo, chamando-o, porém, de “República”. A palavra “Democracia” era usada por ele para designar a forma corrompida da República, quando esta se degenerava em tirania da maioria. Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo e teórico político inglês. Na clássica obra O Leviatã, justificou o estabelecimento de um Estado soberano em um pacto social para a imposição da ordem, que permitiria aos homens sair do estado de natureza, em que haveria constante guerra de todos contra todos, e viver em paz e segurança. John Locke (1632-1704): filósofo inglês tido como um dos principais teóricos do liberalismo e do contrato social. Além de ter sido um dos desenvolvedores das doutrinas do direito natural e da separação dos poderes, também se destacou pela defesa da tolerância religiosa. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): filósofo e teórico político suíço. Sua principal obra, Do Contrato Social, em que discute a legitimidade do Estado como derivada da vontade do povo, é considerada uma das grandes influências políticas da Revolução Francesa. A Liberdade Guiando o Povo, pintura de Eugene Delacroix (1830). https://goo.gl/jJNTs0 https://goo.gl/a2Vchz https://goo.gl/rizo5 https://goo.gl/rizo5 Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 9 O princípio democrático é um princípio cuja dimensão mais aparente é a procedimental, que diz respeito à forma como as regras são feitas, à sua fonte. Nesse contexto, o princípio da maioria tem grande relevância. Em tese, uma decisão normativa é democrática quando é aprovada pela maioria do povo (ou seus representantes). O princípio da maioria está presente nas eleições, assim como nas votações das leis pelos parlamentares. 3. Constituição e constitucionalismo No século XVIII, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Americana, surgiu o sentido moderno de constituição. Esse conceito passou a traduzir uma norma jurídica hierarquicamente superior às demais, que é, ao mesmo tempo, a pedra fundamental do Estado e o critério interno de validação do direito. Essa ideia decorre do que chamamos de constitucionalismo, doutrina segundo a qual a atividade do Estado deve ser pautada por limites emanados de uma Constituição, que pode ser escritaou não. Uma Constituição escrita pode ser facilmente identificada porque assume a forma de um texto corporificado em um documento. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, é um exemplo de Constituição escrita. Quando, porém, o conjunto dos preceitos fundamentais sobre a organização, o funcionamento e os limites ao exercício do poder de um Estado não está reunido em um texto escrito delimitado, mas pode ser inferido das práticas institucionais, de precedentes judiciais, usos e costumes, além de textos esparsos considerados fundamentais, tem-se uma Constituição não escrita. O Reino Unido é o exemplo mais conhecido. Outros exemplos contemporâneos são Israel e Nova Zelândia. Vale ressaltar que o sentido moderno de Constituição, resultado do constitucionalismo, é bem diferente do uso pré-moderno da expressão “Constituição”, que significava apenas regime ou forma de governo, o modo como uma comunidade se organizava politicamente e o seu funcionamento, sem nenhuma alusão à ideia de limites ao exercício do poder. Um Estado é constitucional, portanto, no sentido moderno, quando sua atuação é subordinada às regras preestabelecidas em uma Constituição e, consequentemente, limitada por ela. O Estado constitucional nasce como antítese ao Estado absolutista, em que não existem critérios limitando ou vinculando as condutas e as decisões dos governantes. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 10 Classicamente, esses limites ao exercício do poder são a separação de poderes e o federalismo (divide-se o poder para que o poder controle o poder, os diferentes ramos tenham interesse em controlar uns aos outros, e nenhum dos ramos tenha o poder absoluto), bem como a existência de uma carta de direitos (direitos fundamentais, que não podem ser violados pelas instituições do Estado, inclusive as leis). L eit ur a c omp lementar Leia trecho de O Federalista, coletânea de artigos escritos no século XVIII em defesa da ratificação da Constituição dos Estados Unidos. No trecho selecionado, James Madison, que mais tarde viria a se tornar o quarto Presidente daquele país, expõe argumentos justificando a separação de poderes e o sistema do federalismo. A que expediente devemos, então, recorrer, a fim de assegurar na prática a necessária repartição de atribuições entre os diferentes poderes, conforme prescreve a Constituição? A única resposta que pode ser dada é que, se todas as medidas externas se mostraram inadequadas, o defeito deve ser corrigido alterando-se a estrutura interna do governo, de modo que as suas diferentes partes constituintes possam, através das suas relações mútuas, constituir os meios de manter umas às outras nos devidos lugares. (...) A fim de criar os devidos fundamentos para a atuação separada e distinta dos diferentes poderes do governo — o que, em certo grau é admitido por todos como essencial à preservação da liberdade — é evidente que cada um deve ter uma vontade própria e, consequentemente, ser de tal maneira constituído que os membros de um tenha a menor ingerência possível na escolha dos membros dos outros. (...) Todavia, a grande segurança contra uma gradual concentração de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar aos que administram cada um deles os necessários meios constitucionais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos outros. (...) A ambição deverá ser contraposta à ambição. Os interesses pessoais devem estar ligados aos direitos constitucionais do cargo. Talvez seja um reflexo da natureza humana que tais expedientes sejam necessários para controlar os abusos do governo. Mas afinal, o que é o próprio governo senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária. Se os homens fossem governados por anjos, não seriam necessários controles externos nem internos sobre o governo. Ao constituir-se um governo de homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, em seguida, obrigar o governo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções auxiliares. Em uma república unitária, todo o poder outorgado pelo povo é entregue a um único governo, e as usurpações são prevenidas por uma divisão do governo em ramos distintos e independentes. Na república composta da América, o poder outorgado pelo povo é primeiramente repartido entre dois governos distintos, e, depois, a porção atribuída a cada um é subdividida entre ramos distintos e separados. Surge, assim, uma dupla segurança para os direitos do povo. Os diferentes governos controlar-se-ão mutuamente e ao mesmo tempo cada um deles será controlado por si próprio. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Brasília: Universidade de Brasilia, 1984. https://perguntasaopo.files.wordpress.com/2010/06/fed51.pdf Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 11 4. Poder Constituinte Poder Constituinte é o poder invocado para a promulgação de uma norma constitucional. Trata-se de um dos conceitos mais controversos da teoria política, e, por isso, não é nosso propósito nos estendermos muito sobre ele. Poder Constituinte originário é o poder que funda a ordem constitucional. Podemos dizer que é um poder de fato, já que a ordem jurídica constitucional nasce a partir dele, e com ela todas as regras de distribuição de poder político. Em tese, é ilimitado. A atual Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada, em 1988, pela Assembleia Nacional Constituinte instalada entre 1987 e 1988, com a finalidade de, no exercício do poder constituinte originário, elaborar, no fim do regime militar, uma Constituição democrática para o país. Poder Constituinte derivado é o poder de revisão ou alteração de normas da Constituição. Não é mais um poder ilimitado, porque está vinculado à forma prevista na própria Constituição. Na Constituição brasileira, o poder constituinte derivado é exercido pelo procedimento da proposta de emenda à Constituição, previsto no art. 60. A proposta de emenda à Constituição precisa ser aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado, em dois turnos, por pelo menos três quintos dos membros de cada Casa. Além disso, nem todas as normas da Constituição podem ser objeto de deliberação pelo Poder Constituinte derivado. Às normas constitucionais que não podem ser alteradas, nem mesmo por emenda à Constituição, dá-se o nome de cláusulas pétreas. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I — de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II — do Presidente da República; III — de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I — a forma federativa de Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III — a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessãolegislativa. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 12 Alguns autores falam, ainda, no conceito de momento constituinte, para aludir aos momentos históricos em que, por uma especial conjuntura política e social, o Poder Constituinte originário se manifesta. São os momentos especialmente simbólicos de transição política, revoluções, declarações de independência etc. 5. Relação entre Constituição e democracia Como acabamos de ver, os dois pilares do Estado Democrático de Direito são o regime democrático (o poder político pertence ao povo) e a submissão a uma Constituição (a atividade do Estado é pautada, e os seus poderes limitados, por uma Constituição). Neste ponto, talvez você já tenha percebido que parece haver uma relação paradoxal entre constitucionalismo e democracia. Ao mesmo tempo em que o princípio democrático coloca o poder político nas mãos do povo (ou pelo menos dos seus representantes eleitos), o princípio constitucional limita esse poder. De um lado, ao impor limites ao exercício do poder, a Constituição impõe restrições à democracia. Nem todas as leis, ainda que atendam ao princípio majoritário, serão válidas se não forem compatíveis com a Constituição (se violarem direitos fundamentais, por exemplo). Na prática, a função da Constituição é justamente remover certas decisões do processo democrático. Como, então, podem ser conciliados a democracia e o constitucionalismo? O que pode justificar um sistema em que a vontade do Poder Constituinte se sobrepõe à vontade da maioria? Eis o que dizem alguns autores que tentaram resolver esse quebra-cabeça. Para Robert Jackson, juiz da Suprema Corte Americana entre 1941 e 1954, certos princípios jurídicos, como o direito à vida, à propriedade, à liberdade de expressão e de imprensa, à liberdade religiosa, não podem se sujeitar ao sabor das maiorias políticas eventuais. Devem ser consagrados na Constituição e ser aplicados diretamente pelos Tribunais. Brasil: A Assembleia Nacional Constituinte funcionou entre 1987 e 1988, no Congresso Nacional, em Brasília. EUA: A Convenção Constitucional de 1787 ficou conhecida como Convenção da Filadélfia, cidade onde se reuniu. Robert Houghwout Jackson (1892-1954) foi, quando juiz da Suprema Corte dos EUA, um dos grandes defensores das liberdades individuais e do devido processo legal. Também tornou-se célebre pela sua atuação como promotor de acusação nos julgamentos de Nuremberg, em que foram julgados por crimes de guerra, ao final da Segunda Guerra Mundial, os líderes do regime nazista. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 13 Já para o economista e filósofo Friedrich Hayek, a democracia sem limites constitucionais acaba destruindo a si mesma e se torna uma tirania. Na mesma linha, o professor John Hart Ely não vê as restrições constitucionais como antidemocráticas, e, sim, como reforços da democracia. Isso porque esses limites asseguram a manutenção das condições para o exercício da democracia. O Tribunal constitucional, assim, é o guardião não só da Constituição, mas também da própria democracia. São as limitações constitucionais ao poder político que permitem que a democracia funcione, supere o princípio majoritário e seja o governo não só da maioria, mas de todos. É o princípio do constitucionalismo que, ao inserir uma carta de direitos fundamentais na base da ordem jurídica, assegura que maiorias de conveniência não subjuguem as minorias. É a função contramajoritária da Constituição que, ao limitar a democracia, permite que a democracia exista, sem se degenerar em despotismo. A Constituição tem esse papel de incluir no processo democrático consideração pelos interesses minoritários, de índios, homossexuais, quilombolas, minorias étnicas e religiosas etc. Há uma permanente tensão entre o princípio democrático e o constitucional. Economista e filósofo austríaco, Friedrich Hayek (1899-1992) deixou importantes contribuições para a teoria do direito em obras como Direito, Legislação e Liberdade e A Constituição da Liberdade. Figurando entre os quatro mais citados juristas da história dos Estados Unidos, o professor John Hart Ely (1938-2003) viu sua principal obra, Democracia e Desconfiança, tornar-se, em pouco tempo, uma das obras mais influentes sobre controle de constitucionalidade. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 14 6. Considerações finais A nota diferenciadora do chamado Estado Democrático de Direito é a própria legitimidade de o direito depender de mecanismos que preservem a autonomia e a responsabilidade dos cidadãos/indivíduos, de tal modo que eles se reconheçam como coautores do direito. As diferentes modalidades de participação político- jurídica dos cidadãos nada mais são do que expressões dessa ideia. Nesta aula, apresentamos, em linhas gerais, o que é uma Constituição. Abordamos os conceitos básicos do constitucionalismo, em especial o de Poder Constituinte, e a ideia de controle de constitucionalidade. Além disso, discutimos a relação entre a Constituição e a democracia. Para aprofundar o estudo desses temas, sugiro, a seguir, algumas leituras adicionais. Antes de concluir, gostaria de dizer que não hesitem em manifestar qualquer dúvida ou dificuldade que apareça durante nossa caminhada. Espero que a experiência de aprendizado nesta plataforma seja, durante todo o curso, um verdadeiro prazer. Esta aula fica por aqui. Despeço-me com um abraço e votos de enriquecimento intelectual para todos os participantes. Até a próxima aula! Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 15 Sugestões de leitura FIORAVANTI, Maurizio. Constitucion de la Antigüedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2007. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, IDP, 2000. PAIXÃO, Cristiano; BIGLIAZZI, Renato. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos: el Tribunal Constitucional y la política. Madrid: Minima Trotta, 2008. Imagens https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pal%C3%A1cios_em_Bras%C3%ADlia https://stanfordfreedomproject.com/what-is-freedom-new-essays-fall-2014/1601-2/ http://aktiventag2012.unitas.org/2012/03/21/vorstellung-der-stadt-karlsruhe/ http://www.crenshawlighting.com/projects/supreme-court-united-states/ http://connaissances.dk/tag/paris/page/2/ https://goo.gl/iK9R4L https://goo.gl/pLOlTR https://goo.gl/huFZqs https://goo.gl/Dxo90D Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 16 Glossário Absolutismo — Doutrina política ou forma de governo em que o soberano (monarca) detém poder absoluto e irrestrito sobre o Estado e seus súditos. No mundo ocidental, teve seu auge nos séculos XVI e XII, com o declínio do feudalismo e a consolidação dos Estados nacionais europeus, que eram, de início, marcadamente absolutistas. Exemplos históricos célebres são a França sob Luis XIV (chamado de Rei Sol) e a Rússia dos Czares. Já a Arábia Saudita, o Brunei e o Vaticano são exemplos atuais de regimes tipicamente absolutistas. Antítese — Antítese é uma ideia que se opõe a outra, apresentada anteriormente. Por exemplo: “limitado” em oposição a “absoluto”, “inferno” em oposição a “paraíso”, “paz” em oposiçãoa “guerra”. Aristóteles — Considerado, ao lado de Platão, um dos dois filósofos mais importantes da Grécia Antiga, foi tutor de Alexandre, o Grande, quando este era jovem. Ainda hoje é considerado, por muitos, um dos mais influentes pensadores de todos os tempos. Sua extensa obra filosófica e científica abrange desde física, biologia e medicina a política, ética, estética, lógica e metafísica. Atenas — Hoje a capital da República Helênica, mais conhecida como Grécia, a cidade de Atenas é uma das mais antigas do mundo com uma rica história que se estende por mais de 3.000 anos, pelo menos. No período conhecido como Antiguidade Clássica, Atenas foi uma das mais importantes cidades-estado (polis) — um conjunto de cidades politicamente independentes uma das outras, embora unidas pela língua e cultura em comum — integrantes do que chamamos de Grécia Antiga. Entre os séculos V e VI a.C., período que ficou conhecido como a Era de Ouro de Atenas ou o Século de Péricles, em referência ao líder político que promoveu a implementação da democracia, Atenas foi palco da primeira experiência democrática de que se tem registro. Competência — Regra definidora da autoridade judicial ou administrativa responsável por apreciar determinado processo ou realizar determinado procedimento. Diz-se que um órgão tem competência originária sobre uma questão quando a ele cabe apreciá-la e decidi-la direta e primeiramente, e recursal quando a ele cabe revisar a decisão de outro órgão. Constituição — Lei fundamental de uma determinada organização política (um Estado, uma Federação ou uma Comunidade de nações), na qual são definidos os limites do exercício do poder político. Funciona, assim, como parâmetro para a atividade executiva (como o poder de polícia), para a edição de leis e outros atos normativos e para a atuação dos juízes e dos tribunais. Controle de constitucionalidade — Procedimento pelo qual é verificada a compatibilidade de uma lei ou ato normativo com a Constituição. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 17 Democracia — Regime político caracterizado pela participação da população nas decisões políticas, seja diretamente, seja por meio de representantes eleitos. Direito constitucional — Ramo do direito que trata da formação, interpretação e aplicação das normas integrantes da Constituição do Estado, e que dizem respeito primordialmente à estruturação das instituições, à limitação do poder estatal e à garantia de direitos fundamentais. Estado — Embora não exista consenso acadêmico sobre a definição de Estado, podemos dizer que se refere, de modo geral, à estrutura pela qual é organizado o exercício do domínio político em uma comunidade e sobre um território particular. Alguns elementos que costumam estar associados ou fazer parte da definição de Estado, a depender da teoria, são: monopólio do uso legítimo da força; sistema de governo definido; povo; existência de burocracias administrativas; existência de Forças Armadas; existência de um ou mais idiomas oficiais. A não ser quando especificado pelo contexto, a palavra Estado, neste curso, se refere indistintamente ao conjunto dos entes políticos da Federação (União, estados, Distrito Federal e municípios). Hermenêutica — Palavra derivada de Hermes, o nome dado, na mitologia grega, ao mensageiro dos deuses. Designa os métodos, técnicas ou conhecimentos que permitem ao intérprete extrair sentido e coerência de textos, especialmente os de caráter religioso, literário ou jurídico. Jurisprudência — No sentido aqui empregado, refere-se ao conjunto das decisões tomadas por um órgão judicial, como um tribunal, em um intervalo de tempo, por meio das quais é assentada a interpretação do direito. Objetividade — Qualidade de uma avaliação ou conclusão feita segundo critérios objetivos, isto é, desvinculada de fatores subjetivos do indivíduo, como vieses pessoais, envolvimento emocional e preferências políticas, por exemplo. Polis — Em vez de se vincularem a um governo central, as cidades estabelecidas na Grécia antiga eram unidades políticas autônomas e independentes, sendo por isso chamadas de cidades-Estado (polis). Nelas, foram realizadas algumas das primeiras experiências de autogoverno da história, com destaque para a famosa democracia da cidade-estado de Atenas, que, apesar do nome, era bem diferente da democracia moderna. Mulheres, escravos e estrangeiros ficavam de fora, e alguns cargos eram escolhidos por sorteio! No mundo contemporâneo, Mônaco e Cingapura são verdadeiras e proeminentes cidades-estado. Recurso extraordinário — É o nome do recurso, no direito brasileiro, que leva para o Supremo Tribunal Federal o exame de qualquer caso, do qual não caiba outro recurso para qualquer órgão do Poder Judiciário, quando exista uma questão constitucional relevante a ser resolvida. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 18 República Romana — Período da antiga civilização romana que sucedeu a Monarquia e antecedeu o Império. Instituições políticas então desenvolvidas, como o Plebiscito, o Senado e a Assembleia Legislativa, diferentes formas de participação política, continuam presentes na política e no direito das democracias contemporâneas, apesar de terem passado por profundas transformações. A esse período da civilização romana também se deve o amadurecimento do conceito de cidadania. Revolução Americana — Cadeia de eventos que tem início com a insurgência dos habitantes de treze colônias britânicas na América do Norte contra a autoridade do Parlamento Britânico e cuja consequência foi a fundação dos Estados Unidos da América, com a adoção, em 4 de julho de 1776, da Declaração de Independência. Deu origem, assim, ao que é apontada como a primeira grande experiência de democracia moderna. Revolução Francesa — Série de eventos que, nas ultimas décadas do século XVIII, levou, na França, ao fim da Monarquia Absolutista, à adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e ao estabelecimento de uma república, entre outros desdobramentos internos e externos. Influenciou movimentos revolucionários subsequentes pela Europa e pelo mundo, desencadeando transformações sociais e políticas radicais, inspiradas nas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade Elaborado pelo Supremo Tribunal Federal - Todos os direitos reservados © 19 SGP - Educação a Distância EaD I. Apresentação do curso II — Objetivos 1. Introdução 2. Democracia 3. Constituição e constitucionalismo 4. Poder Constituinte 5. Relação entre Constituição e democracia 6. Considerações finais Sugestões de leitura Imagens Glossário
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