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América Latina e sustentabilidade Laércio Antônio Pilz (org.) COLABORAÇÃO Angélica Massuquetti Gisele Spricigo Marilene Maia Vera Lúcia S. Bemvenuti EDITORA UNISINOS 2013 APRESENTAÇÃO Esta obra tem como objetivo servir de apoio a alunos que desenvolvem estudos à distância em disciplinas que abrangem o tema da contextualização histórica e social da América Latina, a temática étnico-racial e a questão da sustentabilidade. A UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), como universidade associada e alinhada à AUSJAL (Associação das Universidades Jesuítas da América Latina), assume como uma de suas prioridades acadêmicas a formação integral de seus estudantes, em relação à qual está aliada a proposta de formação humanística que propõe, atravessando todos os cursos e compondo alianças com as respectivas áreas, o estudo e a reflexão sistemática a partir de três eixos temáticos: o eixo de formação antropológica: visa conceber o ser humano em sua totalidade para não deixar-se enganar pelo reducionismo secularista nem por um tecnocratismo que desdenhe os delineamentos do humanismo integral; o eixo de América Latina: visa assumir o contexto em que vivemos a partir do conhecimento sócio-histórico da realidade latino-americana, sobretudo da realidade contemporânea; o eixo de formação ética: inclui fundamentos da moralidade humana e também a ética aplicada a cada profissão, de maneira que supere a ideia de uma neutralidade mal entendida em exercício profissional. Diante de diferentes contextos e áreas de estudo e ação, cada um destes eixos propõe conteúdos e elementos conceituais que desafiam estudantes e profissionais a pensar em um projeto relativo às suas áreas de formação, em que a dignidade das pessoas, dos diferentes grupos humanos e da vida em geral, seja prioridade absoluta. Acreditamos e apostamos que profissionais com uma formação humana e ética consistente e com conhecimento da realidade latino-americana estarão melhor preparados para responder às demandas atuais e serão fundamentais para o desenvolvimento e ampliação dos espaços de cidadania na América Latina, em especial no comprometimento com projetos em que a defesa da diversidade e da sustentabilidade esteja colocada como prioridade. A estrutura desta obra contempla três unidades: uma primeira unidade que aborda o contexto histórico e a formação da identidade latino-americana, além da formação nacional e a integração na América Latina; uma segunda unidade que aborda a temática da educação das relações étnico-raciais, com ênfase no que se refere aos grupos ameríndios (indígenas) e aos afrodescendentes (negros); e uma terceira unidade que aborda os desafios da sustentabilidade diante do contexto atual e dos desafios globais e locais, a relação entre economia e meio ambiente e, por fim, os indicadores da realidade e políticas públicas para uma sociedade sustentável. Que esta obra, junto com os conteúdos apresentados e as atividades que serão desenvolvidas a distância, possa provocar construtivamente nosso pensamento, bem como potencializar e animar as nossas práticas para o aprimoramento da cidadania. Desejo uma boa leitura a todos. SUMÁRIO UNIDADE 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL CAPÍTULO 1 – AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E IDENTIDADE 1.1 Contextualização histórica 1.2 Diversidade e identidade 1.3 Os latino-americanos CAPÍTULO 2 – AMÉRICA LATINA: FORMAÇÃO NACIONAL E INTEGRAÇÃO 2.1 Formação nacional 2.2 Integração cultural 2.3 Desafios atuais UNIDADE 2 – EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS CAPÍTULO 3 – QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS INDÍGENAS 3.1 A visão dos civilizados 3.2 Lições indígenas 3.3 Questões contemporâneas CAPÍTULO 4 – QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS NEGROS 4.1 A condição negra 4.2 Olhar enviesado e resistência 4.3 A multiplicidade de corpos UNIDADE 3 – SUSTENTABILIDADE CAPÍTULO 5 – OS DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE 5.1 Introdução 5.2 Desenvolvimento: reflexões iniciais 5.3 Pensando sob uma perspectiva global/local CAPÍTULO 6 – A RELAÇÃO ENTRE ECONOMIA E MEIO AMBIENTE – REFLEXÕES TEÓRICAS E A AGENDA 21 LOCAL 6.1 Considerações iniciais 6.2 Contribuições de Söderbaum 6.3 Jenkins e os valores culturais 6.4 Pearce: resgate histórico 6.5 Da problematização dos autores à Agenda 21 6.6 O debate sobre desenvolvimento sustentável e o documento Agenda 21 6.7 Agenda 21 Brasileira 6.8 Agenda 21 local 6.9 Considerações finais CAPÍTULO 7 – INDICADORES DA REALIDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA UMA SOCIEDADE SUSTENTÁVEL 7.1 Considerações iniciais 7.2 Indicadores da realidade 7.3 Projetos societários de desenvolvimento 7.4 Poíticas públicas CONCLUSÃO GERAL INTRODUÇÃO A história da América Latina e sua singularidade, as questões étnico-raciais e os desafios contemporâneos em relação ao desenvolvimento do continente, em especial no que diz respeito à implementação das novas tecnologias, são o foco dessa obra. Falar sobre o contexto latino-americano significa se envolver, paradoxalmente, com uma rica diversidade cultural e suas particularidades e, ao mesmo tempo, com uma história sofrida que foi experimentada pela maior parte de suas populações. Diante de um passado colonial de exploração e saque de riquezas pelas metrópoles europeias, em que povos autóctones foram dizimados e grupos negros escravizados, estamos desde sempre desafiados a nos comprometermos com a libertação de todas as estruturas de poder que ainda mantêm essa lógica. Proponho que assumir a cidadania latino-americana significa reconhecer e abraçar a diversidade e, ao mesmo tempo, afirmar um sentimento de fraternidade em favor das populações que, historicamente, foram escravizadas e exploradas. Que o estudo sobre a condição histórica da América Latina e sua diversidade, sobre os preconceitos raciais e sociais que a atravessam e sobre alternativas positivas de desenvolvimento socioeconômico e tecnológico possa ampliar a compreensão da realidade atual e qualificar a ação cidadã de cada um de nós. UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL Esta primeira unidade quer situar o leitor em relação aos principais aspectos sócio-históricos que formaram e ainda caracterizam parte significativa do contexto latino-americano. Muitos aspectos estudados nos levam à compreensão de certos aspectos estruturais que têm seu nascedouro num trajeto histórico e social que foi marcando a evolução da América Latina. Na medida em que compomos esta leitura, vamos percebendo o quanto ainda temos que lutar contra forças de poder parasitárias que se fazem presentes nas relações de poder atuais e na maneira com se estabelecerm processos educativos e produtivos. Que este resto (ou muito) de colonialismo que nos atravessa seja um desafio a ser percebido e combatido nas práticas mais próximas de nossas relações e nos processos e mecanismos que perpassam nossas instituições e organizações. CAPÍTULO 1 AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E IDENTIDADE Quem são os verdadeiros latino-americanos? As populações ameríndias que viviam no continente antes da chegada dos europeus? Ou seriam todos aqueles que fizeram parte das populações exploradas e injustiçadas durante sua história? Proponho que podemos pensar que todos, atualmente, devemos assumir a história da América Latina e nos fazermos latino-americanos para reescrevê-la de forma mais autônoma, solidária e propositiva. Ao nos comprometermos com esse projeto, estaremos nos fazendo múltiplos e fraternos. Índios, negros, imigrantes, amarelos, brancos, mestiços, todos estaremos compondo alianças e desenvolvendo práticas que afirmem a justiça e a cidadania. A proposta deste primeiro capítulo é reconhecer, em primeiro lugar, que a América Latina tem um passado comum marcado pela exploração e pela organização de estruturas injustas, o que permanece presente em muitos aspectos da realidade atual. Abordá-las criticamente, e refletir sobre como podemos superá-las, é um dos objetivos desse capítulo. Os outros dois objetivos são propor, em primeiro lugar, que a diversidade cultural é uma característica que nos identificae que deve ser resgatada e promovida e, em segundo lugar, que a visão dos indígenas – primeiros habitantes desta terra – sobre a vida e o mundo, na perspectiva de pensar que todos somos irmãos em um mundo maior que nos transcende, deve inspirar os latino-americanos a aprenderem uns com os outros. 1.1 Contextualização histórica Quando o nome América apareceu, pela primeira vez, no mapa de Waldseemüller, identificando a parte do globo que viria a ser chamada de Novo Mundo, configurava uma unidade geográfica sem fronteira. Mais tarde, o conhecimento acerca de seus acidentes geográficos, clima e população, demonstraram a extrema diversidade do continente. A evolução das sociedades americanas viria a destacar e aprofundar as suas diferenças, apesar das semelhanças dos seus processos históricos. (AQUINO; LEMOS; LOPES, 2008, p. 1) Falar em histórias da América Latina é remontar à aventura europeia em direção a terras desconhecidas. Um espírito guerreiro, marcado por conquistas e pela dominação por parte de umas nações em relações a outras, carcaterizava a história da época – séculos XV e XVI. Ao mesmo tempo, as Cruzadas ainda estavam presentes na memória europeia. As lutas pela libertação da Terra Santa1, além do dito objetivo religioso, representaram, para muitos burgueses da época, a possibilidade da retomada do comércio com as riquezas do Oriente e uma possível liberação das rotas para as chamadas Índias Orientais (via Mar Mediterrâneo), berço das especiarias, o que acabou não sendo alcançado. No entanto, mantinha-se acesa a vontade de desbravar outras rotas e também de buscar novas terras com riquezas para abastecer o mercado europeu. Além disso, os reinos e monarcas europeus buscavam solidificar o seu poder e era interessante uma aliança com a burguesia mercantil. Como se diz, uma mão lavaria a outra, ou seja, enquanto para os reis era importante a provável riqueza que viria com as atividades comerciais desenvolvidas pela burguesia, o que fortaleceria o poder dos monarcas na relação de forças com a nobreza, para os burgueses era importante que houvesse um Estado, sua estrutura e possíveis mecanismos de defesa que dessem segurança e estabilidade às suas atividades. Em meio a esse contexto estavam as terras desconhecidas que, diante da evolução dos conhecimentos geográficos, era cada vez mais um iminente espaço a ser descoberto e explorado. Esse continente desconhecido estava no meio do caminho para as Índias. O que se buscava nas Índias eram riquezas fáceis, imediatamente negociáveis. A circunstancial descoberta da América se revelava, diante deste contexto, um possível incremento em relação ao acúmulo de metais preciosos e de produtos que abasteceriam a Europa e serviriam para alimentar o comércio das metrópoles e da burguesia. Ou seja, deveria ser procedido um movimento por parte dos países ibéricos de posse das terras desconhecidas e de suas riquezas, antes que outra nação europeia o fizesse. O pensamento é de que a nação que fincasse primeiro a bandeira nas novas terras seria a proprietária da mesma. Por isso, ao desembarcar, Colombo faz algo mais do que pôr nomes às coisas: dita uma ata notarial, sob o signo da coroa e da cruz, que o declara descobridor do que viu e designou e proprietário perpétuo do que descobriu […] O discurso colonial subordina epistemológica, ética e juridicamente o existente a uma categoria inanimada de objeto e dominação como processo de objetivação. Eis aqui o núcleo racional do processo colonial moderno: processo de dominação indiferencial do real; e processo igualizador da civilização. (SUBIRATS apud NOVAES, 2006, pp. 122-123) Desde o início, como vemos, o discurso colonial ignorava o outro. Terras e riquezas do novo continente eram concebidas como objetos a serem dominados e registrados como posse da referida nação europeia. Porém, como sabemos, a América Latina não era terra de ninguém, desabitada. Aqui viviam povos ameríndios, os donos da terra, que junto com a riqueza natural, comungavam, em geral, de um só cosmos. Mais adiante, veremos como esses ditos indígenas2 desenvolviam sua visão singular da vida e do mundo e o quanto podemos aprender com sua cultura. Por ora, importa destacar aqui que esses povos originários acabaram saqueados e dizimados, sofrendo as mais variadas formas de ataque e humilhação. De forma semelhante, a partir do momento em que passaram a se desenvolver atividades produtivas na América, populações negras passaram a ser trazidas em navios negreiros3 para servir de mão de obra escrava, em especial nos grandes latifúndios, onde sofriam diferentes processos de exploração e de castigos, no caso de não se conformarem com o trabalho escravo. Mesmo que possamos afirmar que, historicamente, ultrapassamos a lógica formal da escravidão, sabemos que permanecemos durante muito tempo, e ainda hoje, com relações de trabalho que carregam consigo sintomas dessa relação de poder, ou seja, alguém que é dono e senhor, enquanto o outro é empregado e deve prestar serviços para suprir a sua sobrevivência, sendo que cabe ao dono do negócio usufruir dos lucros da atividade. Além desse aspecto social que se estende para os modos de produção, devemos destacar que, economicamente, predominou, no processo de colonização, uma estrutura agrária monocultora em latifúndios, cujo objetivo principal era abastecer o mercado europeu (a metrópole). As atividades agrárias que deveriam abastecer o mercado interno eram secundárias. Ou seja, da mesma forma como anteriormente destacamos a manutenção de certas relações de trabalho que permanecem presentes em atividades produtivas atuais, podemos destacar que a lógica de privilegiar as mercadorias e atividades que abastecem o mercado externo, em termos de produtos agrários, até hoje tem seus privilégios (subsídios). Talvez possamos afirmar, diante do quadro atual, que estamos vivendo uma transição para o fortalecimento do mercado interno. Porém, no que se refere ao agronegócio, não podemos deixar de ignorar o privilégio dado às atividades exportadoras. Da mesma forma, a questão fundiária atravessou a história da América Latina, ou seja, a concentração de terras por parte de grandes proprietários é uma questão a ser pensada. O incentivo aos pequenos proprietários deve ser prioridade política, assim como as iniciativas ligadas ao cooperativismo devem ser incentivadas como forma de preservar as pequenas colônias e descentralizar a economia agrária. Além das questões sociais e econômicas, também podemos destacar questões políticas, ou seja, a lógica de poder que caracteriza a história dos países latino- americanos. Durante a colonização, todo poder estava concentrado nos representantes enviados das metrópoles, que detinham o controle sobre as decisões administrativas. Com o tempo, os descendentes de europeus nascidos nas colônias espanholas da América, os criollos4, geralmente senhores das terras, começaram a exercer influência sobre as decisões políticas, tanto que o processo de independência da maioria das nações latino-americanas foi conduzido por seus interesses. Após os processos de libertação, na maioria das novas nações independentes da América Latina, o poder continuava sob seu controle. Constituíram-se donos do poder, donos das terras, mantendo o controle quase absoluto do poder durante todo o século XIX e por boa parte do início do século XX. Mais recentemente, essa lógica de poder desemboca em históricos governos populistas de caudilhos5 ou políticos salvacionistas. Aproveitando-se desse contexto, nas décadas de sessenta e setenta, ditaduras militares se impuseram diante de possíveis reações e revoluções populares, as ditas revoltas comunistas6. Muito recentemente, boa parte dos países latino-americanos passa a experimentar a democracia, ainda frágil e a ser solidificada. A aprendizagem democrática é o grande desafio político que nos compete e depende diretamente do reconhecimento da diversidade e da valorização da cidadania, ou seja, que cada indivíduo deve ser potencializado e desafiado a ser coautor danova história latino-americana, mais justa e solidária e, ao mesmo tempo, que associações e entidades civis atuem de maneira autônoma em projetos de alcance social. 1.2 Diversidade e identidade Um dos fatores de diferenciação é a diversidade étnica e cultural das sociedades americanas. Trezentos anos de colonização desencadearam um processo migratório que se prolonga até nossos dias. Às comunidades indígenas, em si tão diversas em termos de desenvolvimento cultural, vieram juntar-se os colonizadores brancos e a grande massa de negros africanos trazidos à força como escravos. Esse processo contribui desigualmente para a formação dos perfis das sociedades nacionais. (AQUINO; LEMOS; LOPES, 2008, p. 1) Se, politicamente, podemos destacar como identidade latino-americana uma história comum de dominação e exploração em relação à qual devemos nos libertar a cada nova ação política e cidadã, em relação aos aspectos culturais e populacionais, podemos destacar que é a diversidade que nos caracteriza como latino-americanos, ou seja, somos índios, negros, brancos, amarelos e mestiços, de diferentes etnias e com experiências históricas particulares. Podemos falar de diferentes experiências indígenas, diferentes origens africanas, diferentes correntes migratórias europeias e asiáticas, ou seja, o continente latino-americano é múltiplo. Essa é nossa outra identidade, ou nossa contra-identidade, aquilo que caracteriza a América Latina como terra de ninguém e, ao mesmo tempo, como terra de todo mundo. Usar termos como terra de ninguém e ao mesmo tempo terra de todo mundo não significa falar de terra a ser saqueada pelo malfeitor ou por uma lógica de rapina, mas de uma terra que pertence ao mundo, a todos os seres, em que as fronteiras não são registros de divisão e separação, mas geografias de encontro e aliança. Somos latino-americanos não porque temos uma identidade definida, mas porque somos negros, índios, brancos, amarelos e trançados ao mesmo tempo. Somos únicos e diversos, reconhecemos as particularidades e desejamos promover e experimentar alianças abertas e afirmativas com o outro. Essa diversidade também é um grito contra toda forma de poder vertical, contra a imposição de modelos ou formas de vida exteriores, contra um conceito civilizador que significava impor ao outro um dito modo mais sofisticado de existir. Devemos denunciar que toda lógica de poder em que uma força tenta se impor ou se submete à outra, representa a negação da liberdade e da possibilidade da construção de uma identidade livre e afirmativa. A memória em relação ao passado que deve nos unir é a força que resiste à imposição de qualquer modelo. É pertinente assinalar, contra todo esse pano de fundo histórico e atual, que a questão de identidade na América Latina é, mais do que nunca, um projeto histórico, aberto e heterogêneo, não só e talvez nem tanto uma lealdade à memória do passado. Porque essa história permitiu ver que na verdade são muitas as lembranças e muitos os passados, sem contudo um caminho comum e compartilhado. Nessa perspectiva e nesse sentido, a formação da identidade latino-americana implica, desde o início, uma trajetória de inevitável destruição da colonialidade do poder, uma forma muito específica de descolonização e liberação. (QUINJANO apud NOVAES, 2006, p. 85) A ausência de uma identidade específica latino-americana não torna impossível a existência de uma unidade. A realidade sócio-espacial pode ser diversa e plural e pode, ao mesmo tempo, representar um processo histórico comum. Este processo histórico é a linha que aproxima os latino-americanos em relação a um projeto em favor da diferença, da diversidade e de relações de poder cooperativas. A necessidade de preservar a diversidade das culturas num mundo ameaçado pela monotonia e pela uniformidade não escapou certamente às instituições internacionais. Elas compreendem também que não será suficiente, para atingir este fim, animar as tradições locais e conceder uma trégua aos tempos passados. É a diversidade que deve ser salva, não o conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma poderia perpetuar para além de si mesma […] A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada um seja uma contribuição para a maior generosidade das outras. (LÉVI-STRAUSS, 2010, pp. 66-67) 1.3 Os latino-americanos As independências, apesar de suas contradições, significaram um momento de recriação da visão continental, supra-étnica, de uma territorialidade que já compartilhava não só um passado pré-colombiano de interações e histórias paralelas ou cruzadas, mas também a história comum de uma colonização selvagem que, a essa altura, ofendia inclusive seus herdeiros crioulos. (CECEÑA apud NOVAES, 2006, p. 232) O sonho de Simon Bolívar, o herói das lutas de libertação de diferentes nações latino-americanas, era, a partir da independência, conseguir formar a Grande América. Esse sonho do início do século XIX atravessa a história dos países da América Latina até os dias atuais. Discursos em favor da autonomia e do fortalecimento do nacionalismo continuam a ser emitidos na história latino-americana. Resistências históricas diante do peso da colonização, da tentativa da Inglaterra de manter o poder de influência sobre as economias dos países recém-libertos, da famosa intenção dos Estados Unidos em estender seu campo de influência sobre a América Latina através da Doutrina Monroe (a América para os Americanos) usando o argumento de que deveríamos nos libertar das influências europeias7, alimentaram e alimentam o desejo de liberdade e de fortalecimento da autonomia por parte das nações latino-americanas. Esse contexto de resistência a poderes externos de exploração, aliado à vontade de afirmação da autonomia nacional, assim como alimentou historicamente o espírito de solidariedade, serviu de justificativa para o surgimento de movimentos populistas e autoritários, em que governantes assumiam a bandeira em nome do povo, mas mantinham estruturas de poder em que as decisões eram autoritárias e a participação popular não existia. Apesar dessa consideração, penso que não devemos ignorar esse traço que nos aproxima. Somos semelhantes no desejo de forjar a autonomia e diminuir os traços de dependência (e diversos movimentos locais atestam esse desejo). Devemos resistir aos poderes salvacionistas que se intitulam representantes populares e arrogam para si a ação política em favor do outro. O outro, se não é fortalecido e afirmado em sua cidadania, continua ignorado. Somente a democracia radicalizada na participação popular, com o fortalecimento de projetos educacionais que promovam a autonomia e a capacidade dos cidadãos em tomar parte das ações políticas a partir de diferentes processos de participação, pode representar verdadeiros processos de evolução política da América Latina. Essa deve ser nossa bandeira na defesa da cidadania. O espírito de participação de todos, cooperativamente, com um projeto político maior em relação ao bem comum, não é descoberta ou invenção dos civilizados. Proponho que retomar a veia aberta da América Latina é reconhecer a força do espírito dos povos que habitavam a América antes da espoliação europeia e branca. Os ameríndios nos ensinam a ser desde sempre outros, participantes do espírito universal e mestiços de alma. Os ameríndios nos oferecem um modo outro de ver o mundo e de estar nele. Para além do valor intrínseco que qualquer forma cultural humana possui – e que faz das visões ameríndias patrimônios da humanidade que como tal devem ser respeitados e protegidos por cada um de nós -, essas visões encerram uma lição. Latinos na América, podemos pensar adiferença como um problema, ou como potencial gerador […]. (PERRONE-MOISÉS apud NOVAES, 2006, pp. 256-257) Respeitar e proteger o que é de todo mundo, a vida de cada um, é comprometer cada cidadão a pensar em sua ação cotidiana, em como seu gesto favorece a vida para além de si mesmo. Os índios viam o mundo em sua diversidade e acreditavam que ele era belo e se mantinha em função dessa dinâmica. O bem comum não será alcançado porque alguém, imperativamente, afirma que faz o que deve ser feito em favor do povo. O que devemos denominar de politicamente alternativo e inovador são as práticas que conseguem promover a participação afirmativa de mais pessoas. Nessa perspectiva, reconhecer a diferença de habilidades é fundamental. Cada um pode, a partir de seus movimentos e aprendizagens, fazer parte dessa nova história da América Latina. Estar fixado em uma identidade comum, como se fosse possível produzir um pensamento homogêneo, nos torna reféns do atraso político. Estamos marcados na América Latina por diferentes histórias, por diferentes experiências, e se alimentar criativamente das mesmas não significa tentar conjugá-las ou reduzi-las em um único modo de representação. Ratifico que o que nos identifica e produz a afirmação de um novo projeto para os desafios atuais é abandonar a ideia romântica de que somos todos os mesmos latino-americanos e assumir que as diferentes lutas e experiências, em seus diferentes tempos e características, devem alimentar o espírito mestiço, cruzado, trans-cultural, que alimenta uma participação dinâmica de cada nação e de cada cidadão na promoção de uma América Latina livre e criativa. Com base nos resultados de várias pesquisas, percebeu-se que a questão de integração latino-americana tem origens históricas e sociais, e complicações que atualmente dificultam o pensar em uma identidade latino-americana. Para Laclau (1996), há que se abandonar a idéia de uma identidade unificada e coerente, aceita na modernidade, por não se considerar mais viável a existência de um núcleo essencial do eu, estável, que passe, do início ao fim, sem mudança, pelos tropeços da história. O que se tem é um sujeito fragmentado, descentrado, deslocado tanto de seu lugar no mundo social como de si mesmo, composto de várias identidades, mutáveis, contraditórias ou mesmo não resolvidas. Somos mestiços, somos índios, somos negros, somos brancos, somos amarelos, mas, sobretudo, somos latinos e americanos […]. (ALVAREZ, 2010) REFERÊNCIAS ALVAREZ, Maria Luísa Ortiz. (DES)Construção da Identidade Latino-Americana: heranças do passado e desafios futuros. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/ pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf> Acesso em: 01 abr. 2013. AQUINO, Rubim Santos de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2008. BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BEYHAUT, Gustavo. Dimensão cultural da integração na América Latina. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. ÍNDIOS NO BRASIL 3. Cadernos da TV Escola. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001987.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. KLIKSBERG, Bernardo. Dez falácias sobre os problemas sociais na América Latina. Disponível em: <http://www.ipardes.gov.br/pdf/revista_PR/98/bernardo.pdf>. Acesso em 01 abr. 2013. 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Sugere-se assistir ao filme Amistad. 4 Crioulos na colônia portuguesa, termo também cunhado para os descendentes de africanos. 5 Podemos destacar como lideranças caudilhistas – quando o poder muitas vezes ultrapassa o respeito às leis e às constituições – Getúlio Vargas no Brasil e Juan Domingo Perón na Argentina. 6 Empreendeu-se na época a caça às bruxas, ou seja, os golpes militares se justificavam em virtude de possíveis movimentos que estavam em marcha e instituiriam nas nações latino-americanas o comunismo. Pesquisas recentes vêm ratificando o apoio dos Estados Unidos a muitos desses golpes de Estado, dentro da chamada Guerra Fria, em que se colocavam frente a frente os interesses dos Estados Unidos (capitalista) e da antiga União Soviética (comunista). 7 Sabemos como os Estados Unidos se tornaram, durante a transição do século XIX para o século XX, importantes parceiros comerciais dos países latino-americanos e, a partir das duas Grandes Guerras Mundiais, passaram a exercer tamanha influência econômica e política sobre os mesmos, que muitos golpes de estado tiverem participação, direta ou indiretamente, de forças americanas. CAPÍTULO 2 AMÉRICA LATINA: FORMAÇÃO NACIONAL E INTEGRAÇÃO Muitos surtos de autoritarismo foram justificados pela necessidade de colocar ordem no caos, de impor um equilíbrio em relação às diferenças. Em lugar de um Estado conciliador e negociador, a América Latina experimenta, predominantemente, a imposição de Estados autoritários, que arrogavam para si o direito de, coercitivamente, manter a ordem. A ausência de experiências democráticas na maior parte de suas histórias fez que com que a geografia política das nações latino-americana fosse marcada por relações de poder verticais. Não será somente pela ação do Estado e muito menos de forma autoritária que se chegará a uma integração verdadeira e responsável na América Latina. A perspectiva de que experiências mais espontâneas e recentes, por parte das pessoas e grupos, se constituam como força cultural alternativa no processo de integração latino-americana, é apresentada nesse capítulo. Vivemos a era da comunicação aberta, da troca de cultura, de espaços geográficos cujas fronteiras são cada vez mais flexíveis e esse fato vem sendo experimentado e podeser potencializado ainda mais na América Latina. A lembrança de Mercedes Sosa, de Dante Ramon Ledesma, entre outros, por exemplo, não faz mais parte da memória deste ou daquele país, mas de toda a memória latino-americana. No campo da arte, da música e da literatura, linhas de integração se constituem espontaneamente. Tais expressões trazem consigo também a memória política, social e econômica, cujas lutas e esperanças são inerentes às expressões culturais. São reconhecidas as diferenças culturais, históricas e sociais, mas se experimenta, sem a necessidade ideológica de instituir um Estado único, a integração continental. 2.1 Formação nacional Na América Latina, a história estaria atravessada pelo precário, provisório, inacabado, mestiço, exótico, deslocado, fora do lugar, folclórico. Nações sem povo, nem cidadãos; apenas indivíduos e população. Por isso, dizem, o Estado é forte, a democracia episódica, a ditadura recorrente. São as elites deliberantes – militares, civis, oligárquicas, empresariais, tecnocráticas – que sabem e podem. Chega-se a afirmar que um poder estatal esclarecido, apoiado na sabedoria da ciência, ou iluminado pela vontade política, poderá educar a sociedade, dinamizar a economia, conferir responsabilidade aos partidos, criar a opinião pública, lançar o país no leito da legalidade, legitimidade, democracia. O autoritarismo congênito e recorrente seria uma contingência da transição do caos à ordem, dos séculos de patrimonialismo escravista à república democrática, do poder oligárquico ao racional, do absolutismo ibérico à liberal-democracia. Assim, a sociedade civil seria retirada da sua debilidade essencial; do vício para a virtude. (IANNI, 1987, p. 5-6) O significado de ordem contém em si muitas vezes o avesso da participação e da diversidade. Não devemos ignorar aspectos positivos que estão relacionados com o conceito de ordem, porém, em termos políticos, a ideia de ordem esteve atrelada, muito vezes, na América Latina, a formas de poder que impõem o controle e o ajuizamento das diferenças. Como podemos deduzir da afirmação de Octavio Ianni, a lógica de poder de Estado muitas vezes justificou a verticalidade do poder em função da necessidade de colocar ordem no caos, como se fosse impossível pensar o diálogo a partir do diverso. Essa racionalidade, instituída na lógica do Estado civilizador, não consegue constituir linhas de aliança com a identidade múltipla da história latino-americana. Com isso, não se aprende a construir relações na dinâmica criativa do tempo. O Estado é concebido hermeticamente, como detentor de um corpo jurídico que determina, imperativamente, o papel social de cada indivíduo ou população. Não ignoro a necessidade de ordens legais mínimas que estabelecem o ajuizamento de regras comuns. No entanto, ao se justificarem poderes e se instituírem normas legais, muitas vezes coercitivamente, sem participação ativa dos diversos grupos que compõem a sociedade, a dita ordem legitimará poderes autoritários. Talvez tenhamos que reconhecer que tivemos até o momento, do ponto de vista histórico, poucas experiências efetivas de democracia em que mais grupos participassem de maneira alternativa e consistente da organização do Estado. Esse Estado foi dominado, predominantemente, por poderes verticais, reduzidos a interesses econômicos ou ideológicos, ou ainda, a interesses populistas de alguma liderança emergente. O discurso de que alguém deve ser instituído de poderes que lhe outorguem o direito de impor normas e decisões, sem consulta e diálogo, compõe boa parte da história política da América Latina e fragiliza o espírito democrático. O desafio que se impõe é pensar e propor um Estado que se fortalece pela ampliação da participação dos cidadãos nas decisões e na própria estruturação do Estado, através de associações que atuam cooperativamente na elaboração e execução de projetos públicos. Reconheço que não teremos um estado ideal em que a diversidade seja plenamente contemplada, mas a proposta é que avancemos na conjunção de forças, e que os interesses particulares sejam distendidos em favor de acordos que privilegiem o bem comum. O espírito de nação está em movimento, e o verdadeiro Estado estará cada vez mais vinculado a um projeto de permanente reconstrução. Como destaca Octavio Ianni: O nacionalismo, portanto, não é um só; cria-se e recria-se, no âmbito das conjunturas históricas, segundo o jogo das forças sociais internas e externas. Continuaremos presenciando a luta por interesses privados e corporativos, o que faz parte do jogo político, porém, essas forças não podem sufocar o Estado social e democrático. Nossa história, a dos latino-americanos, no que se refere à construção dos Estados nacionais, passou à margem do reconhecimento da multiplicidade e poucas experiências e projetos diferenciados, do ponto de vista coletivo e cooperativo, foram desenvolvidos. Podemos analisar projetos econômicos e projetos educacionais, entre outros, e veremos como a lógica de modelos únicos caracterizam essas iniciativas, geralmente burocratizadas (desenvolvidas por técnicos de plantão) e com pouco envolvimento das populações locais. O discurso sobre a diversidade não avançou em relação ao Estado e à sua forma de organização. A multiplicidade não aparece na organização do Estado nacional, a não ser como ideologia, colorido, folclore. Ao contrário, a multiplicidade não só esconde desigualdades como pode ser manipulada em favor dos que detêm o poder econômico, político, militar. Por isso a história das formas da Nação esconde-se na história das formas do Estado. São diversas e surpreendentes as formas da Nação na América Latina. Pode ser oligárquica, liberal, populista, autoritária, democrática. O que cabe ressaltar é que a forma da Nação muda ou consolida-se, nesta ou naquela ocasião, conforme o jogo das forças sociais internas e externas. A constituição, hino, bandeira, idioma, mercado, heróis e santos são apenas alguns elementos de uma realidade histórico-social complexa, contraditória, em movimento. (IANNI, 1987, p. 14) Reconhecer que a afirmação acima reflete a realidade, não deve nos enfraquecer diante do fato. Se o Estado, historicamente, caracterizou-se por essa limpeza, pela lógica em que não se reconhece a diversidade, como se hinos e outros símbolos não conseguissem revelar a diversidade como elemento constitutivo básico das nações latino-americanas, devemos enfrentar o tema e avaliar o que perdemos, além de pensar o que podemos ganhar com uma reflexão e uma proposta que acolhe a multiplicidade, pensando a nação e a formação do Estado a partir de uma lógica da participação efetiva dos diferentes grupos e suas diferentes experiências. Devemos revisar as formas como narramos a história para os nossos estudantes, em que certos personagens e culturas são privilegiados, enquanto outros grupos e culturas acabam marginalizados. De forma semelhante, devemos revisitar a forma como fazemos política e construímos a lógica do poder. Assim como podemos e devemos revisitar a história, buscando estudar e compreender o que aconteceu no passado a partir de outras histórias, percebendo e reconhecendo o mundo a partir de mais ângulos e perspectivas, resistindo ao preconceito que é fruto da visão unilateral da própria história, também podemos e devemos revisar a lógica de poder que marcou o passado latino-americano. Pensar o Estado democrático é radicalizar em relação à maneira como cada um de nós desenvolve sua relação e suas atividades de forma aberta ao outro e à diversidade, radicalizando em relação ao processo dialógico. O Estado do bem comum não é aquele que, de maneira assistencialista, atende as populações mais carentes, mas aquele que promove a participação e permite que projetos alternativos se aliem a um Estado promovedor da cidadania. Temos muito a experimentar e a aprender em relação às maneiras como pensamos nossas identidades comuns, e às formas como podemos compor alianças criativas. Esse exercício é o desafio permanente para profissionais de nossotempo. 2.2 Integração cultural Não são unicamente as maiores instituições, nem os acordos governamentais, que favorecerão esta integração com tão grandes limites para a consecução de êxitos efetivos. Estudos recentes mostram que devem ser consideradas formas mais espontâneas e, no entanto, de maior profundidade, nas quais a origem social popular apareça como favorável à adoção de medidas verdadeiramente integradoras. (BEYHAUT, 2004, p. 194) A lógica patriarcal está presente em nossa memória. Acreditamos, por muito tempo, que algum poder iria nos salvar. Temos isso presente em nosso imaginário e acreditamos que a integração viria a partir de algum princípio comum que seria estabelecido. Acreditávamos que um Estado comum, que uma religião comum, que algum Deus comum, poderia ser a linha de integração entre os diferentes povos. Essa lógica mental fez com que por muito tempo vivêssemos sob o manto de uma identidade homogênea, de um princípio comum, de uma ideia de cultura e de nação em que todos fossem conduzidos, coletivamente, por uma mesma ideologia. A história vem demonstrando que as grandes nações e a verdadeira riqueza da humanidade são fruto do diverso e da capacidade de conviver com a diferença, com a abertura para a multiplicidade. Sociedades fechadas e ideologias ortodoxas tendem ao enfraquecimento. Logo, devemos pensar a integração a partir da capacidade que vamos desenvolvendo em nos fazermos mestiços. Miscigenação essa que se dá não na perda de sua tradição e de sua história, mas na habilidade de conhecer a si mesmo e se desafiar a compor alianças com as outras culturas e as dinâmicas do tempo. Considerando que a integração cultural se apresenta como um processo muito variado, fundamentalmente espontâneo, pouco afetado até agora pela adoção de medidas de governos, devemos levar em conta que a civilização industrial e a expansão dos modelos difundidos por economia e tecnologia ocidentais não implicam criar um mundo sempre igual, sem variações locais e com participação mínima das sociedades dependentes. Se o grande dilema que devemos resolver é a busca de uma nova ordem internacional, necessária para a paz e a harmônica integração de todos os povos, ele não será solucionado através da imposição de uma forma cultural qualquer. Estamos em uma etapa de agitações e conflitos, de reivindicações das diversidades, de busca de fórmulas renovadoras, de saudável relação entre as especificidades interiores das raízes de cada povo. (BEYHAUT, 2004, p. 197) 2.3 Desafios atuais A integração da América Latina enfrenta dificuldades e obstáculos devido à diversidade de culturas, às características específicas do Poder Estatal de cada país e às diferenças de seus modelos de desenvolvimento. A integração avança a partir de fenômenos culturais que fundamentalmente são espontâneos. O êxito desse processo exige o respeito às diversidades de cada região e a busca de fórmulas renovadoras. (BEYHAUT, 2004, 198) As três características destacadas no recorte acima deixam evidente que tentar encontrar um modelo comum a ser seguido pelos países da América Latina é inviável. A diversidade cultural é um fato. Em cada país ocorreu um movimento singular e específico de evolução histórica, em que diferentes grupos humanos foram se desenvolvendo diante das circunstâncias e dos contextos. Algumas nações com forte tradição e influência indígena, cujos idiomas ainda são marcantes na linguagem, como o guarani no Paraguai e o aimará e quíchua na Bolívia e no Peru. Outros países já apresentam outras particularidades, como o Brasil, em que há grande participação negra na história, além de imigrantes europeus (italianos e alemães) e asiáticos (japoneses) no século XIX e início do século XX. De forma semelhante, cada nação se envolve singularmente com sua evolução política. Existem semelhanças, mas podemos, por exemplo, destacar que o Brasil, diferentemente da maioria dos países latino-americanos, não experimenta uma luta de independência e muito menos vê grupos locais levantarem armas para compor a resistência no processo de libertação de Portugal. Um príncipe português assume a transição do período colonial para o período independente, o que fez com que o Brasil fosse o único Estado monárquico da América durante quase todo o século XIX. Além disso, o Estado brasileiro manteve a escravidão, enquanto a maioria das ex-colônias da América Latina, junto com a independência (e a república), aboliram a escravidão. A própria economia local de cada nação vai percorrer – apesar de semelhanças – velocidades e características diferenciadas de desenvolvimento. Sabemos como, atualmente, o Brasil, por exemplo, vem se tornando referência de poder econômico na América Latina e com poder de influência em decisões continentais. No entanto, mesmo reconhecendo as singularidades históricas com que cada nação vem experimentando sua evolução, há lutas e perfis de envolvimento com os desafios globais que aproximam as culturas latino-americanas. Falar em resistência ao poder hegemônico global, pensar alternativas em relação às políticas afirmativas em favor dos povos indígenas e dos afro-descendentes, compor alianças em especial dentro de blocos econômicos como o Mercosul, são experiências que nos aproximam. Discursos em favor da autonomia, em defesa de uma cultura nacional valorizada, resistência contra um Estado que não se revela a partir de dentro, ou seja, da participação popular, mantendo uma lógica de poder centralizada, populista e assistencialista, aproxima as lutas dos povos do continente. Quando pensamos que muitas leis são feitas e refeitas e várias constituições atravessam a história política dos países da América Latina, sabemos que algo nos aproxima. Na América Latina, a Nação parece encontrar-se sempre em formação. Não está no começo, avançou muito, mas continua a articular-se e rearticular-se, buscando o seu lugar. Quase todos os países contam com várias, ou muitas, constituições em sua história. Tiveram que começar de novo, recomeçar muita coisa, ou tudo. Os golpes, os surtos de autoritarismo, as ditaduras perpétuas povoam a história. A democracia floresce e fenece. O povo continua a formar-se, se compreendemos que povo é uma coletividade de cidadãos. (IANNI, 1987, p. 33-34) Essa lógica nos aproxima: a história mal acabada que deve ter o seu enredo retrabalhado em favor de um Estado e de ações públicas que atendam o bem-estar social, que possam ampliar a participação dos cidadãos no empreendimento de fazer com que as nações evoluam positivamente. Nessa perspectiva, a prioridade à educação de qualidade, em que se reconheça que o incentivo à inserção de mais jovens no exercício do domínio das tecnologias digitais, aliada à crítica aos modelos massivos de alienação ao consumo barato e sem critério de nossas populações jovens, deve fazer com que tenhamos um laço de integração. Insistindo sobre os sistemas educativos, mostra-se evidente estarem submetidos à enorme pressão, que faz dos diplomas um meio fundamental para incorporar os jovens ao mercado de trabalho, tão conturbado pela adoção de tecnologias que afetam a mão-de-obra tradicional. Da mesma forma, deve-se dar prioridade à instrumentação de controle e defesas contra a imposição de normas de consumo e modelos de vida difundidos pelos novos meios de comunicação de massa. Nesta situação de mudanças e de sombrias perspectivas, as reservas culturais da América Latina proporcionarão os elementos para resistir à simples imitação e ao automatismo passivo. (BEYHAUT, 2004, p. 198) REFERÊNCIAS ALVAREZ, Maria Luísa Ortiz. (DES)Construção da Identidade Latino-Americana: heranças do passado e desafios futuros. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/ 24h/pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf> Acesso em: 01 abr. 2013. AQUINO, Rubim Santos de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2008. BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BEYHAUT, Gustavo.Dimensão cultural da integração na América Latina. 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Porém, além de perceber a importância de recontar histórias que foram, não poucas vezes, ignoradas em escritos oficiais e escolares, o comprometimento com a educação das relações étnico-racias nos convida a pensar e refletir sobre a diversidade e a importância da educação para uma cultura da diversidade. Temos o que resgatar historicamente e o que produzir de narrativas alternativas em relação às histórias esquecidas. O objetivo que anima esta luta é o compromisso de projetar uma sociedade mais justa e fraterna, em que as diferenças mais nos aproximam do que nos afastam na construção de uma sociedade mais justa e rica em estética cultural. Lembramos, por fim, que a Lei 10.639 de 2003, que tornou obrigatório o estudo da cultura afro-brasileira em nossas escolas, completa dez anos e nos desafia a pensar também em como no ensino superior nos comprometemos em estender o estudo, a reflexão e o debate sobre a diversidade e a partilha cultural. CAPÍTULO 3 QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS INDÍGENAS A produção histórica da América Latina começa com a destruição de todo um mundo histórico, provavelmente a maior destruição sociocultural e demográfica da história que chegou ao nosso conhecimento. Esse é, obviamente, um dado conhecido por todos. Mas raras vezes, se houve alguma, pôde ser encontrado como elemento ativo na formulação das perspectivas que competem ou convergem no debate latino-americano pela produção de nosso próprio sentido histórico. E suspeito que agora mesmo seria um argumento inapreensível, se não houvesse no presente o atual movimento dos chamados “indígenas” e não estivesse começando a emergir o novo movimento “afro-latino-americano”. (QUINJANO apud NOVAES, 2006, p. 60) O discurso civilizador sufocou a multiplicidade e, historicamente, marginalizou narrativas históricas diferentes. Predominantemente fixada num projeto racionalizante, evolucionista e linear, classificava as outras culturas a partir de um juízo baseado em um progresso essencialmente material. Nessa perspectiva, populações indígenas que sobreviviam de atividades da subsistência e tinham seus valores fundados sobre mitos, eram consideradas atrasadas. A denominação até hoje corrente de ‘primitivos’, cunhada pelos colonizadores europeus, além de uma interpretação preconceituosa em relação ao conceito de selvagens, muito mais relacionado a populações rudes do que pensada em relação a populações das selvas, atesta o juízo depreciativo do colonizador. Justificava-se a colonização (a imposição cultural) em virtude do atraso dessas populações que deveriam ser civilizadas pelo europeu (branco) mais evoluído. Esse capítulo propõe a crítica à visão reducionista e etnocêntrica dos civilizados e a muitos dos juízos atuais que reproduzem o mesmo sintoma, propondo, diante da mesma, uma leitura da visão de vida e de mundo dos povos ameríndios com a qual podemos aprender a pensar de maneira fraterna, solidária e múltipla a existência, redimensionando nossos projetos de desenvolvimento. 3.1 A visão dos civilizados No continente americano, encontraram-se, ou melhor, desencontraram-se modos radicalmente diversos de conceber o mundo. Não por acaso, se considerarmos o que nos mostra Lévi-Strauss, os europeus desde o início se propuseram, de várias formas e com graus diferentes de violência, a erradicar a diferença indígena. Quando encarada como um problema, a diferença tem de ser eliminada, e os índios tinham de ser não-brancos. E isso não é apenas parte de nosso passado: ecoa no presente, de formas não menos violentas, diga-se de passagem. Também não por acaso, os ameríndios, ao contrário, mostraram-se, desde os primeiros contatos, interessados na diferença dos europeus, abertos, como sempre, para mais essa figura da alteridade e para o poder gerador de seus afastamentos diferenciais. A diferença é, para eles, tudo menos um problema a ser anulado ou superado. (PERRONE-MOISÉS apud NOVAES, p. 256, 2006) A lógica do discurso civilizador ignora a diferença e outras possibilidades de se fazer história. A história linear que está submetida ao progresso do poder tecnológico e à sofisticação das formas de dominação da natureza e do outro, parecem identificar o discurso da dominação europeia sobre a América e sobre os seus verdadeiros representantes, os indígenas. A América Latina como experiência da diferença, da multiplicidade, não faz parte do discurso colonizador. A colonização, a própria forma de organização dos Estados independentes em modelos autoritários e excludentes, diversos golpes de Estado que levaram a regimes ditatoriais, fazem parte de um discurso homogeneizante, em que uma ideia de Estado moderno, europeu, da ordem coercitiva, deveria compor o estado das coisas. Essa não é a lógica da visão indígena. A capacidade de encontrar criativamente o outro e a partir daí compor uma ideia de nação ou Estado, pressupostos da história da maioria dos indígenas, vai contra o racionalismo vertical e ortodoxo da Europa absolutista. A diferença não é um problema para os índios. Ao contrário, é a possibilidade, é a porta aberta para o mistério de estender a vida e as coisas da vida. Geralmente, o olhar civilizador olha para o outro já com um princípio ajuizador, pensando em enquadrá-lo em um estado de coisas pré-determinado. É uma maneira tradicional de colonização do outro, dos corpos, do ensino. Não desenvolvemos aprendizagens a partir do encontro com os outros, mas imaginamos que devemos ensinar ao outro como ele pode ser como a gente, como ele pode ser um civilizado. Um civilizado sabe o que quer, sabe o que quer do outro, sabe que deve impor ao mundo a sua razão. Essa noção de controle e domínio temea diferença, pois esta coloca em questão todo modelo, toda forma de relação em que há juízos anteriores que devem ser impostos. O índio assusta, porque sua vida não se dá na relação de força em que um indivívuo ou um grupo deve se impor ao outro, tão comum na época na Europa. Os índios e seus conhecimentos trabalham, em geral, com a partilha, e partilhar significa saber sair de si, encontrar-se com o outro. Os mitos indígenas são convites à reflexão em movimento e não tentativas dogmáticas de explicar a razão da vida e da morte. Ademais, o discurso que faz dos índios seres ingênuos, afirmando que seu desenvolvimento é primitivo, ou que não aconteceu, é etnocêntrico. Aprendemos muitas vezes em nossas escolas que os índios ainda não tinham alcançado um nível mais desenvolvido nas atividades produtivas. Sabemos hoje que é bem possível que os índios tenham feito uma opção de vida pela subsistência1, que o trabalho e a evolução econômica e tecnológica não eram o fim último de sua história. Mesmo que reconheçamos que a história do progresso econômico e tecnológico se impõe por certa lógica de força, entender e compreender que os índios abraçaram uma lógica singular em relação ao desenvolvimento deve fazer com que tenhamos mais prudência na forma como nos jogamos ao progresso insano e sem escrúpulos. Além disso, há maneiras equivocadas de narrar a história indígena e de conceber seu desenvolvimento, muitas vezes presentes num discurso dos coitados, dos fracos, dos pouco desenvolvidos. Trata-se de uma maneira de contar a história dos índios por um discurso que os enfraquece. Essa maneira de contar a história dos índios contém algumas armadilhas. A primeira é a que imagina a história dos índios começando apenas com a chegada dos europeus, como se não houvesse uma história das populações locais antes da suposta descoberta. O segundo equívoco é considerar que, para os índios, a história dos contatos se reduz necessariamente a uma história de perdas, tornando sua versão da história uma visão de vencidos. Outro erro comum nos leva a pensar que, como resultado desse contato, existe apenas uma ‘política indigenista’, a nossa política, sem considerar que existe também uma política dos índios, ou ‘política indígena’, pela qual eles constroem seu relacionamento com a sociedade nacional. (ÍNDIOS NO BRASIL 3). Há uma história indígena muito anterior à chegada dos europeus e seu reconhecimento equivale a uma ação ética. Quem não reconhece a história do outro e percebe o mesmo somente a partir de um olhar parcial, imediato, desenvolve sempre preconceitos e juízos limitados. Não reconhecendo o outro a partir de sua história, ignora que a história de cada ser humano e de cada grupo ou sociedade tem o mesmo valor. Existe uma história anterior à chegada dos europeus que é pouco narrada em muitos livros, e geralmente é narrada de forma exótica e pixotesca. Mesmo que reconheçamos que os índios foram saqueados e explorados, naturalizar o discurso dos vencidos, dos coitados, é ignorar suas resistências. Talvez a maior resistência esteja escondida. Muito pouco se fala sobre o quanto os índios resistiram em não se entregar (vender) para a cultura e o modo de vida europeu. Suicídios em massa, para nós, podem representar uma negação da vida; porém – peço licença para a provocação -, assim como Cristo aceitou morrer – negação de certa vida – muitos índios aceitaram morrer, suicidando-se em favor da vida que não aceitavam que lhes fosse tirada. Além dessa resistência, há várias outras a serem contadas. Em especial, podemos aqui nos lembrar das Missões e das lutas de resistência. Mais contemporaneamente, também deve ser destacada a luta dos índios em favor de sua cultura, de suas terras, de leis que pudessem protegê-los das invasões indiscriminadas. O índio resiste, o índio faz escola, o índio é autônomo em muitas de suas lutas. Novamente, o discurso de que nós brancos devemos lutar pelos índios fracos, pode conter um discurso de enfraquecimento do outro. 3.2 Lições indígenas […] a antropologia tem muito a dizer sobre as visões latino-americanas, e uma das mais originais nos é dada por Claude Lévi-Strauss nas Mitológicas e em reflexão de Beatriz Perrone-Moisés. Em seu ensaio, ela analisa as várias formas de narrativas que assume, nos mitos, o princípio central do pensamento ameríndio: a ideia de que a dualidade, a diferença, são fundamentos do cosmos e condição de sua existência que se expressa nas formas de organização social na relação com o outro. Uma filosofia ameríndia que se contrapõe, portanto, ao princípio da unidade e da identidade do pensamento ocidental. Princípio que resultou em uma vasta empresa de erradicação das alteridades nativas. (NOVAES, 2006 p. 15) A visão do cosmo como multiplicidade e diversidade dinâmica é uma lição radical indígena para qualquer projeto humano em relação ao seu desenvolvimento. Na medida em que predominaram na história da humanidade projetos de dominação, de conquista sobre o outro, de imposição de mundos, de negação da diferença, essa lição indígena é mais atual do que nunca. É atual no que diz respeito à espécie humana e seu desafio em pensar a globalização atual como um processo de aproximação fraterna entre os povos e da conjunção para uma fraternidade terrestre (cooperativa e não predatória dos ditos mais fracos), e também diante da perspectiva de um movimento ecológico diferenciado, em que o reconhecimento do diverso propõe uma alfabetização ecológica radical. Todos os mitos mesoamericanos falam da necessária conjunção dos diferentes elementos. Nem muito fogo nem muita água, mas uma combinação de ambos. Nenhum elemento deve prevalecer sobre os demais, mas é preciso a interação de todos. A zanga dos deuses muitas vezes se relaciona com a presença excessiva de algum desses elementos e com as catástrofes que ela provoca no complexo macrocósmico e microcósmico. (CECEÑA apud NOVAES, 2006, pp. 224-225) Nenhum elemento deve prevalecer sobre os demais. O Grande Espírito está presente em todas as formas de vida e a natureza está em harmonia consigo mesma na medida em que essas forças conseguem se conjugar e não uma se sobrepor à outra. Podemos relacionar essa concepção com as relações de poder entre pessoas e grupos humanos. Quando uma pessoa ou qualquer grupo tenta ser mais do que o outro ou busca se impor, está infringindo a lógica da harmonia e provocando a morte do espírito cósmico. O espírito humano deve compor uma relação com o espírito maior da natureza cósmica. O ser humano é um entre vários seres do planeta. Não foi o primeiro e nem será o último, como afirmava Lévi-Strauss2. Deve reconhecer que é um passageiro do cosmo e, como tal, se colocar em movimento de aprendizagem com o outro, com a diversidade, com as diferentes formas de vida e de movimento do planeta. Vamos continuar a desenvolver as nossas tecnologias, vamos inventar computadores cada vez mais sofisticados, programas capazes de ler movimentos do planeta de forma mais eficaz. Porém, de que serve isso se não for para compor alianças com a vida? Se for para controlar, dominar, ignorar o que está para além da razão humana, o nosso projeto tecnocientífico, penso eu, estará colaborando para o fracasso da história humana e de sua passagem no planeta. Porém, se soubermos compor alianças com as forças do planeta, poderemos estender as possibilidades da vida humana e dos outros seres, além de presenciar a beleza da vida emergindo para além de nosso círculo tecnocientífico. Ratifico que sou otimista em relação ao desenvolvimento das tecnologias e considero bárbara essa capacidade humana, porém, ao mesmo tempo, penso que qualquer técnico que estiver reduzindo sua visão da vida e do mundo aos programas de computador, por exemplo, sem reconhecer que sua vida vai além disso no encontro com outras dimensões da vida, tende a se tornar um autômato, reduzindo suas potencialidades. Aprendamos com os indígenas que a vida é entrelaçamento de mundos, que a minha vida e a vida de cada pessoa é um entrelaçamento de mundos, quea vida da espécie humana não pode ignorar seu entrelaçamento com as outras formas de vida do planeta e que o próprio planeta tem sua relação com outras forças cósmicas. Colocar- se nesse pensar, representa também estar aberto para o outro. Essa visão de mundo e da vida pelos indígenas evidencia um projeto de colaboração, de partilha planetária, de compreensão de forças que se complementam dinamicamente. De acordo com López Austin e López Luján, a dimensão das histórias particulares estava sempre entrelaçada com a das histórias “globalizadoras”, que “produziram formas de coesão em amplos cenários supra-étnicos”. A visão cósmica do devir punha o universo como primeiro horizonte de inteligibilidade. Era o sentido cósmico que orientava os sentidos mundanos e permitia a conexão entre mundo e inframundo, entre o lugar dos vivos e o dos mortos, assim como entre as diferentes formas de vida ou expressões do sujeito.. (CECEÑA apud NOVAES, 2006, p. 226) Essa extensão de mundo, essa linha aberta, um horizonte sem limites e fronteiras, pode ser relacionada com a forma como os indígenas concebem suas terras. Não são suas terras, mas são um espaço do mundo onde é possível estar em contato com a diversidade, com a multiplicidade. Não é um pequeno terreno, uma pequena terra que me pertence. O mundo e os indígenas se complementam. Preciso de muito espaço territorial para sobreviver? Não, preciso de muito espaço para viver a relação com o de fora, com o outro. É claro que, atualmente, nós estendemos nosso mundo através de conexões virtuais, e de alguma forma a floresta atual é a internet. É bacana a gente trazer esse exemplo. O que seria de nós se nos fosse cortada a conexão? Se só pudéssemos conversar com pessoas a um raio de 30m? É interessante pensar que a internet pode ser esse amplo espaço indígena que ressurge como forma de nos fazermos habitantes dessa nova floresta, em que não há fronteiras e em que nos relacionamos com toda forma de cultura e de concepção de mundo. Consequentemente, a bela navegação se dá com aqueles que sabem e conseguem aprender a aprender, compor cooperações, desenvolver trocas cada vez menos preocupadas com o juízo, com o controle e sim com a possibilidade de potencialização coletiva e cooperativa. Por mais que sofressem perseguições, por mais que sua cultura não recebesse consideração, os índios continuavam a acreditar no diverso, no encontro com a liberdade e com o espírito coletivo. Talvez também nós, quando acreditamos que as novas tecnologias podem favorecer mais a troca, resistimos a perseguições que podem estar presentes na superficialidade de alguns internautas, no uso indevido da internet, em sistemas de controle dos programas. Desejamos um mundo livre e criativo. Menos tecnologia como forma de lucrar em relação ao outro, de se tornar capaz de ser melhor do que o outro e mais para compor com o outro. Informação aberta para todo mundo, uma reforma no acesso aos saberes e na produção de conhecimento. Da mesma forma como ainda cabe na memória dos índios uma resistência ao domínio que muitos buscam ter sobre a terra e sobre o lucro que ela possa proporcionar. O maior lucro deve ser social, porém, aqui está a nossa luta: que reconheçamos que enquanto pensarmos o lucro como sucesso pessoal e não como possibilidade de melhorias sociais e da afirmação da dignidade de um maior número de cidadãos, estaremos no caminho da morte. Apesar de tantas adversidades e da opressão que lhes é imposta, os modos de ser e de viver dos guaranis nos mostram que é possível a existência de um mundo onde sejam respeitadas as diferenças e a pluralidade de culturas e povos. O modo de ser guarani – essa teimosia histórica em viver, em se movimentar num amplo espaço territorial, em proferir sua palavra – nos permite problematizar certas maneiras de pensar e de viver, nos questionando sobre a estrutura fundiária concentradora, injusta, violenta, as relações com o meio ambiente que se baseiam na lucratividade e não no equilíbrio. (LIEBGOTT; BONIN, 2010) 3.3 Questões contemporâneas Quero propor a leitura abaixo como forma de provocar uma reflexão radical em relação à contradição que pode estar presente na forma como pensamos o desenvolvimento: Trata-se, por outro lado, de uma crítica dionisíaca no sentido de que o herói revela ao longo de suas peripécias a desumanização da civilização industrial: através de suas fraturas e feridas corporais, da frustração erótica e da violência física inerentes à vida cotidiana da metrópole social. O anti-herói Macunaína mostra a inumanidade da civilização moderna através da corrupção de seu corpo e de sua alma, e das sucessivas rupturas da unidade cósmica que integrava o universo indígena numa harmonia parasidíaca. Macunaína é um herói negativo num duplo sentido. Porque não estabelece uma ordem, não erige o poder da lei, não funda uma civilização, nem representa nenhum tipo de exemplaridade. É o que o distingue dos heróis clássicos […]. Mas esse herói de Mário de Andrade é negativo também ou sobretudo porque, ao regressar da metrópole à selva, faminto, extenuado e gravemente ferido, e espiritualmente derrotado por esse mundo de máquinas e leis desumanizadas que representa São Paulo, já não encontra suas profundezas misteriosas, nem pode falar com seus seres espirituais, nem brincar eroticamente com suas libidinosas mulheres. O cosmo parasidíaco de suas origens tinha desaparecido sem deixar rastro. Era apenas um páramo. (SUBIRATS apud NOVAES, 2006, pp. 99-100) Mesmo quem não leu sobre Macunaína ou não assistiu ao filme, ou mesmo quem leu outras análises e críticas em relação ao livro ou filme em questão, não deixará de refletir a partir do recorte acima mencionado. Pensar em como estamos perdendo a sensibilidade que nos aproxima da natureza, dos afetos para com as coisas mais simples da vida que estão presentes na maneira dos índios conceberem a suas vidas e as suas relações, deve nos fazer refletir sobre o peso com que podemos estar carregando a vida a partir do ritmo alucinante das grandes metrópoles. Aqui não quero tecer uma crítica à vida nas cidades e uma possível apologia à vida no campo, mas tensionar o quanto deixamos que as nossa vidas estejam marcadas por certa superficialidade moderna. Vivemos muitas vezes tão alucinados pela velocidade, pelo controle do tempo e das coisas, por resultados que devem ser alcançados, que perdemos o espírito espontâneo e natural dos encontros. Os encontros acabam agenciados e ajuizados, automatizados. É outro o fluxo da natureza e da espontaneidade – da gratuidade. Mas quando tentamos voltar ao tempo da preguiça, ao tempo que se perde para se encontrar novamente com a possibilidade do pensamento e da reflexão, já não conseguimos, pois o mundo ao qual nos submetemos, nos condicionou a tal ponto que devemos continuar a luta pela sobrevivência e deixamos de viver o que fazemos. Autômatos, não somos forças que compõem possibilidades no encontro com as coisas que fazemos. Somos meros mecanismos reprodutores do sistema. Um capitalismo selvagem em que a lógica do ganho é que faz o sucesso dos indivíduos, não cabe na tradição indígena. A visão solidária em relação ao mundo é radicalmente oposta ao discurso do lucro e da competição predatória. Talvez seja estranho propor a visão indígena como alternativa ao capitalismo predador, pois podemos pensar que o movimento é irreversível. Porém, acredito que teremos que enfrentar a violência de um sistema que ignora o outro como irmão espiritual. O outro é alguém com quem nos unimos na luta pela vida, que nele se revela tanto quanto em mim. Essa visão afirmativa deve ser resgatada, mesmo que seja em meio aos modos de produção capitalista em que trabalhamos. Enfim, os recentes movimentos político-sociais dos “indígenas” e dos “afro-latino-americanos” puseram definitivamente em questão a versão europeia da modernidade/racionalidade ao propor sua própria racionalidade como alternativa. Negam a legitimidade teórica e social da classificação “racial” e “étnica”, propondo de novo a ideia deigualdade social. Negam a pertinência e a legitimidade do Estado-nação baseado na colonialidade do poder. Enfim, embora menos clara e explicitamente, propõem a afirmação e reprodução da reciprocidade e de sua ética de solidariedade social como alternativa às tendências predatórias do capitalismo atual. (QUINJANO apud NOVAES, 2006, p. 84) Eis o desafio: conceber que as políticas afirmativas em favor das populações índias e negras abrem espaço para a discussão propositiva sobre a solidariedade entre as pessoas. Numa visão privada, em que pensamos somente nos nossos direitos, é possível que qualquer política em favor de grupos que histórica e socialmente tenham sofrido diferentes formas de exploração, marginalização e exclusão, seja mal interpretada e concebida. Ao falar em cotas, por exemplo, de imediato as vozes de discussão se colocam, de diferentes maneiras, a defender ou a atacar tal projeto. Quero propor que a discussão sobre as cotas é uma discussão menor, pois a questão é maior. Penso que o tema das cotas, positivamente, faz com que a gente discuta de fato o problema social, mesmo que muitas vezes ainda de forma preconceituosa. Também é possível que reduzamos a discussão às cotas, quando ela é muito mais extensa. Proponho, novamente, que a discussão fundamental é sobre toda forma de exploração e de falta de políticas de afirmação das pessoas. Os índios, por exemplo, afirmavam que não aceitavam a morte, mesmo que seus deuses tivessem sido mortos pelos civilizados, que suas cidades santas tenham sido destruídas… Da mesma forma, não morramos para a proposta de um estado de poder em que as relações sejam mais igualitárias e menos injustas, de partilha e cooperação, propositivas e implicativas, reconhecendo que somos diferentes e que cada um, em sua diferença, mais do que respeitado, deve ser acolhido e comprometido, inclusive, a trazer suas reflexões e demandas para o debate sobre uma participação mais cidadã por parte de todos. Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido compreendia ao mesmo tempo a negação do não-ser e a primeira expressão ontológica da resistência anti-colonial. (SUBIRATS apud NOVAES, 2006, p.138) REFERÊNCIAS ALVAREZ, Maria Luísa Ortiz. (DES)Construção da Identidade Latino-Americana: heranças do passado e desafios futuros. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/ 24h/pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf> Acesso em: 01 abr. 2013. AQUINO, Rubim Santos de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2008. BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BEYHAUT, Gustavo. Dimensão cultural da integração na América Latina. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. ÍNDIOS NO BRSAIL 3. Cadernos da TV Escola. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001987.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. KLIKSBERG, Bernardo. Dez falácias sobre os problemas sociais na América Latina. 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Ser negro no Brasil hoje: um olhar enviesado. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm>. Acesso em: 01 abr. 2013. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/ index.php/faced/article/viewFile/2745/2092>. Acesso em: 01 abr. 2013. 1 Em sua obra A Sociedade contra o Estado, o antropólogo francês Pierre Clastres desenvolve uma crítica ao juízo europeu em relação à ideia de que os índios viviam da subsistência por necessidade e não por opção, ou seja, que a lógica do trabalho não era prioridade para eles, diferentemente da lógica europeia. Na mesma obra, o autor desenvolverá uma comparação entre a lógica de poder dos ditos civilizados e das populações indígenas por ele estudadas, demonstrando como o poder pode ser propositivo e coletivo (índios) e não somente vertical e coercitivo (europeus). 2 Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) foi professor, antropólogo e filósofo francês que desenvolveu pesquisas e estudos no Brasil e com índios brasileiros. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3448&secao=340 http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1774&secao=257 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/2745/2092 CAPÍTULO 4 QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS NEGROS Os filhos de escravos, ao longo de um lento processo que se arrasta por três séculos, verão gradualmente se perder no horizonte a noção de que são jejes, ambacas, quissamas, bolos, mbundos, mbwelas, tekes, nsundis, ou tantas outras etnias que poderiam ter sido afirmadas como diferenças culturais. (BARROS, 2009, p. 91) O horizonte que se perde é a África, de onde os negros1 foram desterrados. A América assinala para os negros africanos o território da escravidão, do registro dessa identidade. O presente capítulo propõe o reconhecimento da trágica relação de senhores e escravos, experimentada na colonização da América e estendida, no Brasil, até o final do século XIX. Da mesma forma, propõe o enfrentamento propositivo e não ressentido dos efeitos da escravidão negra que se fazem presentes nas relações sociais e econômicas na América e, em especial no Brasil, até o presente. Um projeto afirmativo deve ser pensado a partir de uma abolição concebida por toda a sociedade e não somente como uma luta parcial de um grupo étnico. O olhar enviesado trazido para o debate a partir do geógrafo negro Milton Santos desafia cada cidadão a compreender como cada um de nós, negros, brancos, índios, amarelos, mestiços, entre outros, trazemos, inconsciente ou conscientemente conosco, preconceitos sutis na maneira de olhar e sentir a negritude. O discurso de que vivemos numa democracia racial precisa ser tensionado, pois a realidade social revela que não houve muita mudança em termos de desigualdade social entre brancos e negros desde os períodos escravocratas até hoje. Ao final, a proposta de afirmarmos a estética social a partir da multiplicidade dos corpos revela que é na educação para a diferença e para a diversidade que reside a maior resistência aos preconceitos. 4.1 A condição negra Por outro lado, se para fins de censo e controle era preciso classificar de algum modo os negros despejados pelo tráfico no Brasil, também se operava a construção de novas diferenças, muito pouco coincidentes com as realidades étnicas originais. Incorporava-se à identidade do negro uma procedência geográfica que via de regra relacionava-se aos portos africanos de tráfico que os haviam exportado para o Brasil, independente de sua verdadeira origem. (BARROS, 2009, p. 48) Destituídos de sua história, classificados a partir dos portos em que foram recolhidos para se tornarem escravos na
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