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America Latina e sustentabilida - Laercio Antonio Pilz

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América Latina e sustentabilidade
Laércio Antônio Pilz (org.)
COLABORAÇÃO
Angélica Massuquetti
Gisele Spricigo
Marilene Maia
Vera Lúcia S. Bemvenuti
EDITORA UNISINOS
2013
APRESENTAÇÃO
Esta obra tem como objetivo servir de apoio a alunos que desenvolvem estudos à
distância em disciplinas que abrangem o tema da contextualização histórica e social da
América Latina, a temática étnico-racial e a questão da sustentabilidade.
A UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), como universidade
associada e alinhada à AUSJAL (Associação das Universidades Jesuítas da América
Latina), assume como uma de suas prioridades acadêmicas a formação integral de seus
estudantes, em relação à qual está aliada a proposta de formação humanística que
propõe, atravessando todos os cursos e compondo alianças com as respectivas áreas,
o estudo e a reflexão sistemática a partir de três eixos temáticos:
o eixo de formação antropológica: visa conceber o ser humano em sua
totalidade para não deixar-se enganar pelo reducionismo secularista
nem por um tecnocratismo que desdenhe os delineamentos do
humanismo integral;
o eixo de América Latina: visa assumir o contexto em que vivemos a
partir do conhecimento sócio-histórico da realidade latino-americana,
sobretudo da realidade contemporânea;
o eixo de formação ética: inclui fundamentos da moralidade humana e
também a ética aplicada a cada profissão, de maneira que supere a
ideia de uma neutralidade mal entendida em exercício profissional.
Diante de diferentes contextos e áreas de estudo e ação, cada um destes eixos
propõe conteúdos e elementos conceituais que desafiam estudantes e profissionais a
pensar em um projeto relativo às suas áreas de formação, em que a dignidade das
pessoas, dos diferentes grupos humanos e da vida em geral, seja prioridade absoluta.
Acreditamos e apostamos que profissionais com uma formação humana e ética
consistente e com conhecimento da realidade latino-americana estarão melhor
preparados para responder às demandas atuais e serão fundamentais para o
desenvolvimento e ampliação dos espaços de cidadania na América Latina, em especial
no comprometimento com projetos em que a defesa da diversidade e da
sustentabilidade esteja colocada como prioridade.
A estrutura desta obra contempla três unidades: uma primeira unidade que
aborda o contexto histórico e a formação da identidade latino-americana, além da
formação nacional e a integração na América Latina; uma segunda unidade que aborda a
temática da educação das relações étnico-raciais, com ênfase no que se refere aos
grupos ameríndios (indígenas) e aos afrodescendentes (negros); e uma terceira unidade
que aborda os desafios da sustentabilidade diante do contexto atual e dos desafios
globais e locais, a relação entre economia e meio ambiente e, por fim, os indicadores da
realidade e políticas públicas para uma sociedade sustentável.
Que esta obra, junto com os conteúdos apresentados e as atividades que serão
desenvolvidas a distância, possa provocar construtivamente nosso pensamento, bem
como potencializar e animar as nossas práticas para o aprimoramento da cidadania.
Desejo uma boa leitura a todos.
SUMÁRIO
UNIDADE 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL
CAPÍTULO 1 – AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E IDENTIDADE
1.1 Contextualização histórica
1.2 Diversidade e identidade
1.3 Os latino-americanos
CAPÍTULO 2 – AMÉRICA LATINA: FORMAÇÃO NACIONAL E INTEGRAÇÃO
2.1 Formação nacional
2.2 Integração cultural
2.3 Desafios atuais
UNIDADE 2 – EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
CAPÍTULO 3 – QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS INDÍGENAS
3.1 A visão dos civilizados
3.2 Lições indígenas
3.3 Questões contemporâneas
CAPÍTULO 4 – QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS NEGROS
4.1 A condição negra
4.2 Olhar enviesado e resistência
4.3 A multiplicidade de corpos
UNIDADE 3 – SUSTENTABILIDADE
CAPÍTULO 5 – OS DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE
5.1 Introdução
5.2 Desenvolvimento: reflexões iniciais
5.3 Pensando sob uma perspectiva global/local
CAPÍTULO 6 – A RELAÇÃO ENTRE ECONOMIA E MEIO AMBIENTE – REFLEXÕES
TEÓRICAS E A AGENDA 21 LOCAL
6.1 Considerações iniciais
6.2 Contribuições de Söderbaum
6.3 Jenkins e os valores culturais
6.4 Pearce: resgate histórico
6.5 Da problematização dos autores à Agenda 21
6.6 O debate sobre desenvolvimento sustentável e o documento Agenda 21
6.7 Agenda 21 Brasileira
6.8 Agenda 21 local
6.9 Considerações finais
CAPÍTULO 7 – INDICADORES DA REALIDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA UMA
SOCIEDADE SUSTENTÁVEL
7.1 Considerações iniciais
7.2 Indicadores da realidade
7.3 Projetos societários de desenvolvimento
7.4 Poíticas públicas
CONCLUSÃO GERAL
INTRODUÇÃO
A história da América Latina e sua singularidade, as questões étnico-raciais e os
desafios contemporâneos em relação ao desenvolvimento do continente, em especial
no que diz respeito à implementação das novas tecnologias, são o foco dessa obra.
Falar sobre o contexto latino-americano significa se envolver, paradoxalmente,
com uma rica diversidade cultural e suas particularidades e, ao mesmo tempo, com
uma história sofrida que foi experimentada pela maior parte de suas populações.
Diante de um passado colonial de exploração e saque de riquezas pelas
metrópoles europeias, em que povos autóctones foram dizimados e grupos negros
escravizados, estamos desde sempre desafiados a nos comprometermos com a
libertação de todas as estruturas de poder que ainda mantêm essa lógica.
Proponho que assumir a cidadania latino-americana significa reconhecer e abraçar
a diversidade e, ao mesmo tempo, afirmar um sentimento de fraternidade em favor das
populações que, historicamente, foram escravizadas e exploradas.
Que o estudo sobre a condição histórica da América Latina e sua diversidade,
sobre os preconceitos raciais e sociais que a atravessam e sobre alternativas positivas
de desenvolvimento socioeconômico e tecnológico possa ampliar a compreensão da
realidade atual e qualificar a ação cidadã de cada um de nós.
UNIDADE 1
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL
Esta primeira unidade quer situar o leitor em relação aos principais aspectos
sócio-históricos que formaram e ainda caracterizam parte significativa do contexto
latino-americano. Muitos aspectos estudados nos levam à compreensão de certos
aspectos estruturais que têm seu nascedouro num trajeto histórico e social que foi
marcando a evolução da América Latina. Na medida em que compomos esta leitura,
vamos percebendo o quanto ainda temos que lutar contra forças de poder parasitárias
que se fazem presentes nas relações de poder atuais e na maneira com se estabelecerm
processos educativos e produtivos. Que este resto (ou muito) de colonialismo que nos
atravessa seja um desafio a ser percebido e combatido nas práticas mais próximas de
nossas relações e nos processos e mecanismos que perpassam nossas instituições e
organizações.
CAPÍTULO 1
AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E IDENTIDADE
Quem são os verdadeiros latino-americanos? As populações ameríndias que
viviam no continente antes da chegada dos europeus? Ou seriam todos aqueles que
fizeram parte das populações exploradas e injustiçadas durante sua história?
Proponho que podemos pensar que todos, atualmente, devemos assumir a história da
América Latina e nos fazermos latino-americanos para reescrevê-la de forma mais
autônoma, solidária e propositiva. Ao nos comprometermos com esse projeto,
estaremos nos fazendo múltiplos e fraternos. Índios, negros, imigrantes, amarelos,
brancos, mestiços, todos estaremos compondo alianças e desenvolvendo práticas que
afirmem a justiça e a cidadania.
A proposta deste primeiro capítulo é reconhecer, em primeiro lugar, que a
América Latina tem um passado comum marcado pela exploração e pela organização
de estruturas injustas, o que permanece presente em muitos aspectos da realidade
atual. Abordá-las criticamente, e refletir sobre como podemos superá-las, é um dos
objetivos desse capítulo. Os outros dois objetivos são propor, em primeiro lugar, que
a diversidade cultural é uma característica que nos identificae que deve ser resgatada e
promovida e, em segundo lugar, que a visão dos indígenas – primeiros habitantes desta
terra – sobre a vida e o mundo, na perspectiva de pensar que todos somos irmãos em
um mundo maior que nos transcende, deve inspirar os latino-americanos a aprenderem
uns com os outros.
1.1 Contextualização histórica
Quando o nome América apareceu, pela primeira vez, no mapa de
Waldseemüller, identificando a parte do globo que viria a ser chamada de
Novo Mundo, configurava uma unidade geográfica sem fronteira. Mais
tarde, o conhecimento acerca de seus acidentes geográficos, clima e
população, demonstraram a extrema diversidade do continente. A
evolução das sociedades americanas viria a destacar e aprofundar as suas
diferenças, apesar das semelhanças dos seus processos históricos.
(AQUINO; LEMOS; LOPES, 2008, p. 1)
Falar em histórias da América Latina é remontar à aventura europeia em direção
a terras desconhecidas. Um espírito guerreiro, marcado por conquistas e pela
dominação por parte de umas nações em relações a outras, carcaterizava a história da
época – séculos XV e XVI. Ao mesmo tempo, as Cruzadas ainda estavam presentes
na memória europeia. As lutas pela libertação da Terra Santa1, além do dito objetivo
religioso, representaram, para muitos burgueses da época, a possibilidade da retomada
do comércio com as riquezas do Oriente e uma possível liberação das rotas para as
chamadas Índias Orientais (via Mar Mediterrâneo), berço das especiarias, o que
acabou não sendo alcançado. No entanto, mantinha-se acesa a vontade de desbravar
outras rotas e também de buscar novas terras com riquezas para abastecer o mercado
europeu.
Além disso, os reinos e monarcas europeus buscavam solidificar o seu poder e
era interessante uma aliança com a burguesia mercantil. Como se diz, uma mão lavaria
a outra, ou seja, enquanto para os reis era importante a provável riqueza que viria com
as atividades comerciais desenvolvidas pela burguesia, o que fortaleceria o poder dos
monarcas na relação de forças com a nobreza, para os burgueses era importante que
houvesse um Estado, sua estrutura e possíveis mecanismos de defesa que dessem
segurança e estabilidade às suas atividades.
Em meio a esse contexto estavam as terras desconhecidas que, diante da
evolução dos conhecimentos geográficos, era cada vez mais um iminente espaço a ser
descoberto e explorado. Esse continente desconhecido estava no meio do caminho
para as Índias. O que se buscava nas Índias eram riquezas fáceis, imediatamente
negociáveis. A circunstancial descoberta da América se revelava, diante deste contexto,
um possível incremento em relação ao acúmulo de metais preciosos e de produtos que
abasteceriam a Europa e serviriam para alimentar o comércio das metrópoles e da
burguesia. Ou seja, deveria ser procedido um movimento por parte dos países ibéricos
de posse das terras desconhecidas e de suas riquezas, antes que outra nação europeia o
fizesse. O pensamento é de que a nação que fincasse primeiro a bandeira nas novas
terras seria a proprietária da mesma.
Por isso, ao desembarcar, Colombo faz algo mais do que pôr nomes às
coisas: dita uma ata notarial, sob o signo da coroa e da cruz, que o declara
descobridor do que viu e designou e proprietário perpétuo do que
descobriu […] O discurso colonial subordina epistemológica, ética e
juridicamente o existente a uma categoria inanimada de objeto e
dominação como processo de objetivação. Eis aqui o núcleo racional do
processo colonial moderno: processo de dominação indiferencial do real; e
processo igualizador da civilização. (SUBIRATS apud NOVAES, 2006,
pp. 122-123)
Desde o início, como vemos, o discurso colonial ignorava o outro. Terras e
riquezas do novo continente eram concebidas como objetos a serem dominados e
registrados como posse da referida nação europeia.
Porém, como sabemos, a América Latina não era terra de ninguém, desabitada.
Aqui viviam povos ameríndios, os donos da terra, que junto com a riqueza natural,
comungavam, em geral, de um só cosmos. Mais adiante, veremos como esses ditos
indígenas2 desenvolviam sua visão singular da vida e do mundo e o quanto podemos
aprender com sua cultura. Por ora, importa destacar aqui que esses povos originários
acabaram saqueados e dizimados, sofrendo as mais variadas formas de ataque e
humilhação.
De forma semelhante, a partir do momento em que passaram a se desenvolver
atividades produtivas na América, populações negras passaram a ser trazidas em
navios negreiros3 para servir de mão de obra escrava, em especial nos grandes
latifúndios, onde sofriam diferentes processos de exploração e de castigos, no caso de
não se conformarem com o trabalho escravo. Mesmo que possamos afirmar que,
historicamente, ultrapassamos a lógica formal da escravidão, sabemos que
permanecemos durante muito tempo, e ainda hoje, com relações de trabalho que
carregam consigo sintomas dessa relação de poder, ou seja, alguém que é dono e
senhor, enquanto o outro é empregado e deve prestar serviços para suprir a sua
sobrevivência, sendo que cabe ao dono do negócio usufruir dos lucros da atividade.
Além desse aspecto social que se estende para os modos de produção, devemos
destacar que, economicamente, predominou, no processo de colonização, uma
estrutura agrária monocultora em latifúndios, cujo objetivo principal era abastecer o
mercado europeu (a metrópole). As atividades agrárias que deveriam abastecer o
mercado interno eram secundárias. Ou seja, da mesma forma como anteriormente
destacamos a manutenção de certas relações de trabalho que permanecem presentes
em atividades produtivas atuais, podemos destacar que a lógica de privilegiar as
mercadorias e atividades que abastecem o mercado externo, em termos de produtos
agrários, até hoje tem seus privilégios (subsídios). Talvez possamos afirmar, diante do
quadro atual, que estamos vivendo uma transição para o fortalecimento do mercado
interno. Porém, no que se refere ao agronegócio, não podemos deixar de ignorar o
privilégio dado às atividades exportadoras.
Da mesma forma, a questão fundiária atravessou a história da América Latina, ou
seja, a concentração de terras por parte de grandes proprietários é uma questão a ser
pensada. O incentivo aos pequenos proprietários deve ser prioridade política, assim
como as iniciativas ligadas ao cooperativismo devem ser incentivadas como forma de
preservar as pequenas colônias e descentralizar a economia agrária.
Além das questões sociais e econômicas, também podemos destacar questões
políticas, ou seja, a lógica de poder que caracteriza a história dos países latino-
americanos. Durante a colonização, todo poder estava concentrado nos representantes
enviados das metrópoles, que detinham o controle sobre as decisões administrativas.
Com o tempo, os descendentes de europeus nascidos nas colônias espanholas da
América, os criollos4, geralmente senhores das terras, começaram a exercer influência
sobre as decisões políticas, tanto que o processo de independência da maioria das
nações latino-americanas foi conduzido por seus interesses. Após os processos de
libertação, na maioria das novas nações independentes da América Latina, o poder
continuava sob seu controle. Constituíram-se donos do poder, donos das terras,
mantendo o controle quase absoluto do poder durante todo o século XIX e por boa
parte do início do século XX. Mais recentemente, essa lógica de poder desemboca em
históricos governos populistas de caudilhos5 ou políticos salvacionistas.
Aproveitando-se desse contexto, nas décadas de sessenta e setenta, ditaduras militares
se impuseram diante de possíveis reações e revoluções populares, as ditas revoltas
comunistas6. Muito recentemente, boa parte dos países latino-americanos passa a
experimentar a democracia, ainda frágil e a ser solidificada.
A aprendizagem democrática é o grande desafio político que nos compete e
depende diretamente do reconhecimento da diversidade e da valorização da cidadania,
ou seja, que cada indivíduo deve ser potencializado e desafiado a ser coautor danova
história latino-americana, mais justa e solidária e, ao mesmo tempo, que associações e
entidades civis atuem de maneira autônoma em projetos de alcance social.
1.2 Diversidade e identidade
Um dos fatores de diferenciação é a diversidade étnica e cultural das
sociedades americanas. Trezentos anos de colonização desencadearam
um processo migratório que se prolonga até nossos dias. Às comunidades
indígenas, em si tão diversas em termos de desenvolvimento cultural,
vieram juntar-se os colonizadores brancos e a grande massa de negros
africanos trazidos à força como escravos. Esse processo contribui
desigualmente para a formação dos perfis das sociedades nacionais.
(AQUINO; LEMOS; LOPES, 2008, p. 1)
Se, politicamente, podemos destacar como identidade latino-americana uma
história comum de dominação e exploração em relação à qual devemos nos libertar a
cada nova ação política e cidadã, em relação aos aspectos culturais e populacionais,
podemos destacar que é a diversidade que nos caracteriza como latino-americanos, ou
seja, somos índios, negros, brancos, amarelos e mestiços, de diferentes etnias e com
experiências históricas particulares. Podemos falar de diferentes experiências
indígenas, diferentes origens africanas, diferentes correntes migratórias europeias e
asiáticas, ou seja, o continente latino-americano é múltiplo. Essa é nossa outra
identidade, ou nossa contra-identidade, aquilo que caracteriza a América Latina como
terra de ninguém e, ao mesmo tempo, como terra de todo mundo. Usar termos como
terra de ninguém e ao mesmo tempo terra de todo mundo não significa falar de terra a
ser saqueada pelo malfeitor ou por uma lógica de rapina, mas de uma terra que
pertence ao mundo, a todos os seres, em que as fronteiras não são registros de divisão
e separação, mas geografias de encontro e aliança. Somos latino-americanos não
porque temos uma identidade definida, mas porque somos negros, índios, brancos,
amarelos e trançados ao mesmo tempo. Somos únicos e diversos, reconhecemos as
particularidades e desejamos promover e experimentar alianças abertas e afirmativas
com o outro.
Essa diversidade também é um grito contra toda forma de poder vertical, contra a
imposição de modelos ou formas de vida exteriores, contra um conceito civilizador que
significava impor ao outro um dito modo mais sofisticado de existir. Devemos
denunciar que toda lógica de poder em que uma força tenta se impor ou se submete à
outra, representa a negação da liberdade e da possibilidade da construção de uma
identidade livre e afirmativa. A memória em relação ao passado que deve nos unir é a
força que resiste à imposição de qualquer modelo.
É pertinente assinalar, contra todo esse pano de fundo histórico e atual,
que a questão de identidade na América Latina é, mais do que nunca, um
projeto histórico, aberto e heterogêneo, não só e talvez nem tanto uma
lealdade à memória do passado. Porque essa história permitiu ver que na
verdade são muitas as lembranças e muitos os passados, sem contudo um
caminho comum e compartilhado. Nessa perspectiva e nesse sentido, a
formação da identidade latino-americana implica, desde o início, uma
trajetória de inevitável destruição da colonialidade do poder, uma forma
muito específica de descolonização e liberação. (QUINJANO apud
NOVAES, 2006, p. 85)
A ausência de uma identidade específica latino-americana não torna impossível a
existência de uma unidade. A realidade sócio-espacial pode ser diversa e plural e pode,
ao mesmo tempo, representar um processo histórico comum. Este processo histórico
é a linha que aproxima os latino-americanos em relação a um projeto em favor da
diferença, da diversidade e de relações de poder cooperativas.
A necessidade de preservar a diversidade das culturas num mundo
ameaçado pela monotonia e pela uniformidade não escapou certamente às
instituições internacionais. Elas compreendem também que não será
suficiente, para atingir este fim, animar as tradições locais e conceder uma
trégua aos tempos passados. É a diversidade que deve ser salva, não o
conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma poderia
perpetuar para além de si mesma […] A tolerância não é uma posição
contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma
atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover
o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à
nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a
seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres
correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada um seja uma
contribuição para a maior generosidade das outras. (LÉVI-STRAUSS,
2010, pp. 66-67)
1.3 Os latino-americanos
As independências, apesar de suas contradições, significaram um
momento de recriação da visão continental, supra-étnica, de uma
territorialidade que já compartilhava não só um passado pré-colombiano
de interações e histórias paralelas ou cruzadas, mas também a história
comum de uma colonização selvagem que, a essa altura, ofendia inclusive
seus herdeiros crioulos. (CECEÑA apud NOVAES, 2006, p. 232)
O sonho de Simon Bolívar, o herói das lutas de libertação de diferentes nações
latino-americanas, era, a partir da independência, conseguir formar a Grande América.
Esse sonho do início do século XIX atravessa a história dos países da América Latina
até os dias atuais. Discursos em favor da autonomia e do fortalecimento do
nacionalismo continuam a ser emitidos na história latino-americana.
Resistências históricas diante do peso da colonização, da tentativa da Inglaterra
de manter o poder de influência sobre as economias dos países recém-libertos, da
famosa intenção dos Estados Unidos em estender seu campo de influência sobre a
América Latina através da Doutrina Monroe (a América para os Americanos) usando
o argumento de que deveríamos nos libertar das influências europeias7, alimentaram e
alimentam o desejo de liberdade e de fortalecimento da autonomia por parte das
nações latino-americanas.
Esse contexto de resistência a poderes externos de exploração, aliado à vontade
de afirmação da autonomia nacional, assim como alimentou historicamente o espírito
de solidariedade, serviu de justificativa para o surgimento de movimentos populistas e
autoritários, em que governantes assumiam a bandeira em nome do povo, mas
mantinham estruturas de poder em que as decisões eram autoritárias e a participação
popular não existia.
Apesar dessa consideração, penso que não devemos ignorar esse traço que nos
aproxima. Somos semelhantes no desejo de forjar a autonomia e diminuir os traços de
dependência (e diversos movimentos locais atestam esse desejo). Devemos resistir aos
poderes salvacionistas que se intitulam representantes populares e arrogam para si a
ação política em favor do outro. O outro, se não é fortalecido e afirmado em sua
cidadania, continua ignorado. Somente a democracia radicalizada na participação
popular, com o fortalecimento de projetos educacionais que promovam a autonomia e
a capacidade dos cidadãos em tomar parte das ações políticas a partir de diferentes
processos de participação, pode representar verdadeiros processos de evolução
política da América Latina. Essa deve ser nossa bandeira na defesa da cidadania.
O espírito de participação de todos, cooperativamente, com um projeto político
maior em relação ao bem comum, não é descoberta ou invenção dos civilizados.
Proponho que retomar a veia aberta da América Latina é reconhecer a força do espírito
dos povos que habitavam a América antes da espoliação europeia e branca. Os
ameríndios nos ensinam a ser desde sempre outros, participantes do espírito universal
e mestiços de alma.
Os ameríndios nos oferecem um modo outro de ver o mundo e de estar
nele. Para além do valor intrínseco que qualquer forma cultural humana
possui – e que faz das visões ameríndias patrimônios da humanidade que
como tal devem ser respeitados e protegidos por cada um de nós -, essas
visões encerram uma lição. Latinos na América, podemos pensar adiferença como um problema, ou como potencial gerador […].
(PERRONE-MOISÉS apud NOVAES, 2006, pp. 256-257)
Respeitar e proteger o que é de todo mundo, a vida de cada um, é comprometer
cada cidadão a pensar em sua ação cotidiana, em como seu gesto favorece a vida para
além de si mesmo. Os índios viam o mundo em sua diversidade e acreditavam que ele
era belo e se mantinha em função dessa dinâmica. O bem comum não será alcançado
porque alguém, imperativamente, afirma que faz o que deve ser feito em favor do
povo. O que devemos denominar de politicamente alternativo e inovador são as
práticas que conseguem promover a participação afirmativa de mais pessoas. Nessa
perspectiva, reconhecer a diferença de habilidades é fundamental. Cada um pode, a
partir de seus movimentos e aprendizagens, fazer parte dessa nova história da
América Latina.
Estar fixado em uma identidade comum, como se fosse possível produzir um
pensamento homogêneo, nos torna reféns do atraso político. Estamos marcados na
América Latina por diferentes histórias, por diferentes experiências, e se alimentar
criativamente das mesmas não significa tentar conjugá-las ou reduzi-las em um único
modo de representação. Ratifico que o que nos identifica e produz a afirmação de um
novo projeto para os desafios atuais é abandonar a ideia romântica de que somos
todos os mesmos latino-americanos e assumir que as diferentes lutas e experiências,
em seus diferentes tempos e características, devem alimentar o espírito mestiço,
cruzado, trans-cultural, que alimenta uma participação dinâmica de cada nação e de
cada cidadão na promoção de uma América Latina livre e criativa.
Com base nos resultados de várias pesquisas, percebeu-se que a questão
de integração latino-americana tem origens históricas e sociais, e
complicações que atualmente dificultam o pensar em uma identidade
latino-americana. Para Laclau (1996), há que se abandonar a idéia de uma
identidade unificada e coerente, aceita na modernidade, por não se
considerar mais viável a existência de um núcleo essencial do eu, estável,
que passe, do início ao fim, sem mudança, pelos tropeços da história. O
que se tem é um sujeito fragmentado, descentrado, deslocado tanto de seu
lugar no mundo social como de si mesmo, composto de várias
identidades, mutáveis, contraditórias ou mesmo não resolvidas. Somos
mestiços, somos índios, somos negros, somos brancos, somos amarelos,
mas, sobretudo, somos latinos e americanos […]. (ALVAREZ, 2010)
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, Maria Luísa Ortiz. (DES)Construção da Identidade Latino-Americana: heranças do
passado e desafios futuros. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/
pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf> Acesso em: 01 abr. 2013.
AQUINO, Rubim Santos de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
BEYHAUT, Gustavo. Dimensão cultural da integração na América Latina. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013.
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<http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013.
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<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001987.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013.
KLIKSBERG, Bernardo. Dez falácias sobre os problemas sociais na América Latina. Disponível
em: <http://www.ipardes.gov.br/pdf/revista_PR/98/bernardo.pdf>. Acesso em 01 abr. 2013.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 2010.
MARTÍNEZ, Esperanza. Entrevista IHU. Disponível em:
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NOVAES, Adauto (organizador). Oito visões da América Latina. São Paulo: Editora Senac, 2006.
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<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm>. Acesso em: 01 abr. 2013.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil.
Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/ faced/article/viewFile/2745/2092>.
Acesso em: 01 abr. 2013.
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/2745/2092
1 Jerusalém tinha sido invadida e tomada pelos turcos otomanos muçulmanos, e o
discurso em favor de sua libertação tomava conta das nações cristãs da Europa,
animado pelos interesses burgueses e pelo espírito belicoso da época.
2 Nome pelo qual passaram a ser chamados os habitantes das terras desconhecidas,
na medida em que Cristóvão Colombo e os primeiros navegadores imaginavam ter
chegado às Índias.
3 Jogados nos porões dos navios, maltratados, sem condições higiênicas e sendo
infectados por diversas doenças, muitos negros morriam durante a travessia do
Atlântico. Sugere-se assistir ao filme Amistad.
4 Crioulos na colônia portuguesa, termo também cunhado para os descendentes de
africanos.
5 Podemos destacar como lideranças caudilhistas – quando o poder muitas vezes
ultrapassa o respeito às leis e às constituições – Getúlio Vargas no Brasil e Juan
Domingo Perón na Argentina.
6 Empreendeu-se na época a caça às bruxas, ou seja, os golpes militares se
justificavam em virtude de possíveis movimentos que estavam em marcha e
instituiriam nas nações latino-americanas o comunismo. Pesquisas recentes vêm
ratificando o apoio dos Estados Unidos a muitos desses golpes de Estado, dentro
da chamada Guerra Fria, em que se colocavam frente a frente os interesses dos
Estados Unidos (capitalista) e da antiga União Soviética (comunista).
7 Sabemos como os Estados Unidos se tornaram, durante a transição do século XIX
para o século XX, importantes parceiros comerciais dos países latino-americanos
e, a partir das duas Grandes Guerras Mundiais, passaram a exercer tamanha
influência econômica e política sobre os mesmos, que muitos golpes de estado
tiverem participação, direta ou indiretamente, de forças americanas.
CAPÍTULO 2
AMÉRICA LATINA: FORMAÇÃO NACIONAL E
INTEGRAÇÃO
Muitos surtos de autoritarismo foram justificados pela necessidade de colocar
ordem no caos, de impor um equilíbrio em relação às diferenças. Em lugar de um
Estado conciliador e negociador, a América Latina experimenta, predominantemente, a
imposição de Estados autoritários, que arrogavam para si o direito de, coercitivamente,
manter a ordem. A ausência de experiências democráticas na maior parte de suas
histórias fez que com que a geografia política das nações latino-americana fosse
marcada por relações de poder verticais. Não será somente pela ação do Estado e
muito menos de forma autoritária que se chegará a uma integração verdadeira e
responsável na América Latina. A perspectiva de que experiências mais espontâneas e
recentes, por parte das pessoas e grupos, se constituam como força cultural
alternativa no processo de integração latino-americana, é apresentada nesse capítulo.
Vivemos a era da comunicação aberta, da troca de cultura, de espaços geográficos cujas
fronteiras são cada vez mais flexíveis e esse fato vem sendo experimentado e podeser
potencializado ainda mais na América Latina. A lembrança de Mercedes Sosa, de
Dante Ramon Ledesma, entre outros, por exemplo, não faz mais parte da memória
deste ou daquele país, mas de toda a memória latino-americana. No campo da arte, da
música e da literatura, linhas de integração se constituem espontaneamente. Tais
expressões trazem consigo também a memória política, social e econômica, cujas lutas
e esperanças são inerentes às expressões culturais. São reconhecidas as diferenças
culturais, históricas e sociais, mas se experimenta, sem a necessidade ideológica de
instituir um Estado único, a integração continental.
2.1 Formação nacional
Na América Latina, a história estaria atravessada pelo precário,
provisório, inacabado, mestiço, exótico, deslocado, fora do lugar,
folclórico. Nações sem povo, nem cidadãos; apenas indivíduos e
população. Por isso, dizem, o Estado é forte, a democracia episódica, a
ditadura recorrente. São as elites deliberantes – militares, civis,
oligárquicas, empresariais, tecnocráticas – que sabem e podem. Chega-se a
afirmar que um poder estatal esclarecido, apoiado na sabedoria da ciência,
ou iluminado pela vontade política, poderá educar a sociedade, dinamizar
a economia, conferir responsabilidade aos partidos, criar a opinião
pública, lançar o país no leito da legalidade, legitimidade, democracia. O
autoritarismo congênito e recorrente seria uma contingência da transição
do caos à ordem, dos séculos de patrimonialismo escravista à república
democrática, do poder oligárquico ao racional, do absolutismo ibérico à
liberal-democracia. Assim, a sociedade civil seria retirada da sua
debilidade essencial; do vício para a virtude. (IANNI, 1987, p. 5-6)
O significado de ordem contém em si muitas vezes o avesso da participação e da
diversidade. Não devemos ignorar aspectos positivos que estão relacionados com o
conceito de ordem, porém, em termos políticos, a ideia de ordem esteve atrelada,
muito vezes, na América Latina, a formas de poder que impõem o controle e o
ajuizamento das diferenças.
Como podemos deduzir da afirmação de Octavio Ianni, a lógica de poder de
Estado muitas vezes justificou a verticalidade do poder em função da necessidade de
colocar ordem no caos, como se fosse impossível pensar o diálogo a partir do diverso.
Essa racionalidade, instituída na lógica do Estado civilizador, não consegue constituir
linhas de aliança com a identidade múltipla da história latino-americana. Com isso, não
se aprende a construir relações na dinâmica criativa do tempo. O Estado é concebido
hermeticamente, como detentor de um corpo jurídico que determina, imperativamente,
o papel social de cada indivíduo ou população. Não ignoro a necessidade de ordens
legais mínimas que estabelecem o ajuizamento de regras comuns. No entanto, ao se
justificarem poderes e se instituírem normas legais, muitas vezes coercitivamente, sem
participação ativa dos diversos grupos que compõem a sociedade, a dita ordem
legitimará poderes autoritários. Talvez tenhamos que reconhecer que tivemos até o
momento, do ponto de vista histórico, poucas experiências efetivas de democracia em
que mais grupos participassem de maneira alternativa e consistente da organização do
Estado. Esse Estado foi dominado, predominantemente, por poderes verticais,
reduzidos a interesses econômicos ou ideológicos, ou ainda, a interesses populistas de
alguma liderança emergente.
O discurso de que alguém deve ser instituído de poderes que lhe outorguem o
direito de impor normas e decisões, sem consulta e diálogo, compõe boa parte da
história política da América Latina e fragiliza o espírito democrático. O desafio que se
impõe é pensar e propor um Estado que se fortalece pela ampliação da participação
dos cidadãos nas decisões e na própria estruturação do Estado, através de associações
que atuam cooperativamente na elaboração e execução de projetos públicos.
Reconheço que não teremos um estado ideal em que a diversidade seja
plenamente contemplada, mas a proposta é que avancemos na conjunção de forças, e
que os interesses particulares sejam distendidos em favor de acordos que privilegiem o
bem comum. O espírito de nação está em movimento, e o verdadeiro Estado estará
cada vez mais vinculado a um projeto de permanente reconstrução. Como destaca
Octavio Ianni: O nacionalismo, portanto, não é um só; cria-se e recria-se, no âmbito
das conjunturas históricas, segundo o jogo das forças sociais internas e externas.
Continuaremos presenciando a luta por interesses privados e corporativos, o
que faz parte do jogo político, porém, essas forças não podem sufocar o Estado social
e democrático. Nossa história, a dos latino-americanos, no que se refere à construção
dos Estados nacionais, passou à margem do reconhecimento da multiplicidade e
poucas experiências e projetos diferenciados, do ponto de vista coletivo e
cooperativo, foram desenvolvidos. Podemos analisar projetos econômicos e projetos
educacionais, entre outros, e veremos como a lógica de modelos únicos caracterizam
essas iniciativas, geralmente burocratizadas (desenvolvidas por técnicos de plantão) e
com pouco envolvimento das populações locais. O discurso sobre a diversidade não
avançou em relação ao Estado e à sua forma de organização.
A multiplicidade não aparece na organização do Estado nacional, a não ser
como ideologia, colorido, folclore. Ao contrário, a multiplicidade não só
esconde desigualdades como pode ser manipulada em favor dos que
detêm o poder econômico, político, militar. Por isso a história das formas
da Nação esconde-se na história das formas do Estado. São diversas e
surpreendentes as formas da Nação na América Latina. Pode ser
oligárquica, liberal, populista, autoritária, democrática. O que cabe
ressaltar é que a forma da Nação muda ou consolida-se, nesta ou naquela
ocasião, conforme o jogo das forças sociais internas e externas. A
constituição, hino, bandeira, idioma, mercado, heróis e santos são apenas
alguns elementos de uma realidade histórico-social complexa,
contraditória, em movimento. (IANNI, 1987, p. 14)
Reconhecer que a afirmação acima reflete a realidade, não deve nos enfraquecer
diante do fato. Se o Estado, historicamente, caracterizou-se por essa limpeza, pela
lógica em que não se reconhece a diversidade, como se hinos e outros símbolos não
conseguissem revelar a diversidade como elemento constitutivo básico das nações
latino-americanas, devemos enfrentar o tema e avaliar o que perdemos, além de pensar
o que podemos ganhar com uma reflexão e uma proposta que acolhe a multiplicidade,
pensando a nação e a formação do Estado a partir de uma lógica da participação
efetiva dos diferentes grupos e suas diferentes experiências.
Devemos revisar as formas como narramos a história para os nossos estudantes,
em que certos personagens e culturas são privilegiados, enquanto outros grupos e
culturas acabam marginalizados. De forma semelhante, devemos revisitar a forma
como fazemos política e construímos a lógica do poder.
Assim como podemos e devemos revisitar a história, buscando estudar e
compreender o que aconteceu no passado a partir de outras histórias, percebendo e
reconhecendo o mundo a partir de mais ângulos e perspectivas, resistindo ao
preconceito que é fruto da visão unilateral da própria história, também podemos e
devemos revisar a lógica de poder que marcou o passado latino-americano. Pensar o
Estado democrático é radicalizar em relação à maneira como cada um de nós
desenvolve sua relação e suas atividades de forma aberta ao outro e à diversidade,
radicalizando em relação ao processo dialógico. O Estado do bem comum não é aquele
que, de maneira assistencialista, atende as populações mais carentes, mas aquele que
promove a participação e permite que projetos alternativos se aliem a um Estado
promovedor da cidadania.
Temos muito a experimentar e a aprender em relação às maneiras como
pensamos nossas identidades comuns, e às formas como podemos compor alianças
criativas. Esse exercício é o desafio permanente para profissionais de nossotempo.
2.2 Integração cultural
Não são unicamente as maiores instituições, nem os acordos
governamentais, que favorecerão esta integração com tão grandes limites
para a consecução de êxitos efetivos. Estudos recentes mostram que
devem ser consideradas formas mais espontâneas e, no entanto, de maior
profundidade, nas quais a origem social popular apareça como favorável à
adoção de medidas verdadeiramente integradoras. (BEYHAUT, 2004, p.
194)
A lógica patriarcal está presente em nossa memória. Acreditamos, por muito
tempo, que algum poder iria nos salvar. Temos isso presente em nosso imaginário e
acreditamos que a integração viria a partir de algum princípio comum que seria
estabelecido. Acreditávamos que um Estado comum, que uma religião comum, que
algum Deus comum, poderia ser a linha de integração entre os diferentes povos.
Essa lógica mental fez com que por muito tempo vivêssemos sob o manto de
uma identidade homogênea, de um princípio comum, de uma ideia de cultura e de
nação em que todos fossem conduzidos, coletivamente, por uma mesma ideologia. A
história vem demonstrando que as grandes nações e a verdadeira riqueza da
humanidade são fruto do diverso e da capacidade de conviver com a diferença, com a
abertura para a multiplicidade. Sociedades fechadas e ideologias ortodoxas tendem ao
enfraquecimento. Logo, devemos pensar a integração a partir da capacidade que vamos
desenvolvendo em nos fazermos mestiços. Miscigenação essa que se dá não na perda
de sua tradição e de sua história, mas na habilidade de conhecer a si mesmo e se
desafiar a compor alianças com as outras culturas e as dinâmicas do tempo.
Considerando que a integração cultural se apresenta como um processo
muito variado, fundamentalmente espontâneo, pouco afetado até agora
pela adoção de medidas de governos, devemos levar em conta que a
civilização industrial e a expansão dos modelos difundidos por economia
e tecnologia ocidentais não implicam criar um mundo sempre igual, sem
variações locais e com participação mínima das sociedades dependentes.
Se o grande dilema que devemos resolver é a busca de uma nova ordem
internacional, necessária para a paz e a harmônica integração de todos os
povos, ele não será solucionado através da imposição de uma forma
cultural qualquer. Estamos em uma etapa de agitações e conflitos, de
reivindicações das diversidades, de busca de fórmulas renovadoras, de
saudável relação entre as especificidades interiores das raízes de cada
povo. (BEYHAUT, 2004, p. 197)
2.3 Desafios atuais
A integração da América Latina enfrenta dificuldades e obstáculos devido
à diversidade de culturas, às características específicas do Poder Estatal
de cada país e às diferenças de seus modelos de desenvolvimento. A
integração avança a partir de fenômenos culturais que fundamentalmente
são espontâneos. O êxito desse processo exige o respeito às diversidades
de cada região e a busca de fórmulas renovadoras. (BEYHAUT, 2004,
198)
As três características destacadas no recorte acima deixam evidente que tentar
encontrar um modelo comum a ser seguido pelos países da América Latina é inviável.
A diversidade cultural é um fato. Em cada país ocorreu um movimento singular e
específico de evolução histórica, em que diferentes grupos humanos foram se
desenvolvendo diante das circunstâncias e dos contextos. Algumas nações com forte
tradição e influência indígena, cujos idiomas ainda são marcantes na linguagem, como o
guarani no Paraguai e o aimará e quíchua na Bolívia e no Peru. Outros países já
apresentam outras particularidades, como o Brasil, em que há grande participação
negra na história, além de imigrantes europeus (italianos e alemães) e asiáticos
(japoneses) no século XIX e início do século XX.
De forma semelhante, cada nação se envolve singularmente com sua evolução
política. Existem semelhanças, mas podemos, por exemplo, destacar que o Brasil,
diferentemente da maioria dos países latino-americanos, não experimenta uma luta de
independência e muito menos vê grupos locais levantarem armas para compor a
resistência no processo de libertação de Portugal. Um príncipe português assume a
transição do período colonial para o período independente, o que fez com que o Brasil
fosse o único Estado monárquico da América durante quase todo o século XIX. Além
disso, o Estado brasileiro manteve a escravidão, enquanto a maioria das ex-colônias da
América Latina, junto com a independência (e a república), aboliram a escravidão.
A própria economia local de cada nação vai percorrer – apesar de semelhanças –
velocidades e características diferenciadas de desenvolvimento. Sabemos como,
atualmente, o Brasil, por exemplo, vem se tornando referência de poder econômico na
América Latina e com poder de influência em decisões continentais.
No entanto, mesmo reconhecendo as singularidades históricas com que cada
nação vem experimentando sua evolução, há lutas e perfis de envolvimento com os
desafios globais que aproximam as culturas latino-americanas. Falar em resistência ao
poder hegemônico global, pensar alternativas em relação às políticas afirmativas em
favor dos povos indígenas e dos afro-descendentes, compor alianças em especial
dentro de blocos econômicos como o Mercosul, são experiências que nos aproximam.
Discursos em favor da autonomia, em defesa de uma cultura nacional valorizada,
resistência contra um Estado que não se revela a partir de dentro, ou seja, da
participação popular, mantendo uma lógica de poder centralizada, populista e
assistencialista, aproxima as lutas dos povos do continente. Quando pensamos que
muitas leis são feitas e refeitas e várias constituições atravessam a história política dos
países da América Latina, sabemos que algo nos aproxima.
Na América Latina, a Nação parece encontrar-se sempre em formação.
Não está no começo, avançou muito, mas continua a articular-se e
rearticular-se, buscando o seu lugar. Quase todos os países contam com
várias, ou muitas, constituições em sua história. Tiveram que começar de
novo, recomeçar muita coisa, ou tudo. Os golpes, os surtos de
autoritarismo, as ditaduras perpétuas povoam a história. A democracia
floresce e fenece. O povo continua a formar-se, se compreendemos que
povo é uma coletividade de cidadãos. (IANNI, 1987, p. 33-34)
Essa lógica nos aproxima: a história mal acabada que deve ter o seu enredo
retrabalhado em favor de um Estado e de ações públicas que atendam o bem-estar
social, que possam ampliar a participação dos cidadãos no empreendimento de fazer
com que as nações evoluam positivamente.
Nessa perspectiva, a prioridade à educação de qualidade, em que se reconheça
que o incentivo à inserção de mais jovens no exercício do domínio das tecnologias
digitais, aliada à crítica aos modelos massivos de alienação ao consumo barato e sem
critério de nossas populações jovens, deve fazer com que tenhamos um laço de
integração.
Insistindo sobre os sistemas educativos, mostra-se evidente estarem
submetidos à enorme pressão, que faz dos diplomas um meio
fundamental para incorporar os jovens ao mercado de trabalho, tão
conturbado pela adoção de tecnologias que afetam a mão-de-obra
tradicional. Da mesma forma, deve-se dar prioridade à instrumentação de
controle e defesas contra a imposição de normas de consumo e modelos
de vida difundidos pelos novos meios de comunicação de massa. Nesta
situação de mudanças e de sombrias perspectivas, as reservas culturais da
América Latina proporcionarão os elementos para resistir à simples
imitação e ao automatismo passivo. (BEYHAUT, 2004, p. 198)
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http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/2745/2092
UNIDADE 2
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Não podemos passar pela História da América Latina sem reconhecer o desafio
de recuperar muito das histórias esquecidas de índios e negros. Porém, além de
perceber a importância de recontar histórias que foram, não poucas vezes, ignoradas
em escritos oficiais e escolares, o comprometimento com a educação das relações
étnico-racias nos convida a pensar e refletir sobre a diversidade e a importância da
educação para uma cultura da diversidade. Temos o que resgatar historicamente e o
que produzir de narrativas alternativas em relação às histórias esquecidas. O objetivo
que anima esta luta é o compromisso de projetar uma sociedade mais justa e fraterna,
em que as diferenças mais nos aproximam do que nos afastam na construção de uma
sociedade mais justa e rica em estética cultural. Lembramos, por fim, que a Lei 10.639
de 2003, que tornou obrigatório o estudo da cultura afro-brasileira em nossas escolas,
completa dez anos e nos desafia a pensar também em como no ensino superior nos
comprometemos em estender o estudo, a reflexão e o debate sobre a diversidade e a
partilha cultural.
CAPÍTULO 3
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS INDÍGENAS
A produção histórica da América Latina começa com a destruição de todo
um mundo histórico, provavelmente a maior destruição sociocultural e
demográfica da história que chegou ao nosso conhecimento. Esse é,
obviamente, um dado conhecido por todos. Mas raras vezes, se houve
alguma, pôde ser encontrado como elemento ativo na formulação das
perspectivas que competem ou convergem no debate latino-americano
pela produção de nosso próprio sentido histórico. E suspeito que agora
mesmo seria um argumento inapreensível, se não houvesse no presente o
atual movimento dos chamados “indígenas” e não estivesse começando a
emergir o novo movimento “afro-latino-americano”. (QUINJANO apud
NOVAES, 2006, p. 60)
O discurso civilizador sufocou a multiplicidade e, historicamente, marginalizou
narrativas históricas diferentes. Predominantemente fixada num projeto racionalizante,
evolucionista e linear, classificava as outras culturas a partir de um juízo baseado em
um progresso essencialmente material. Nessa perspectiva, populações indígenas que
sobreviviam de atividades da subsistência e tinham seus valores fundados sobre mitos,
eram consideradas atrasadas. A denominação até hoje corrente de ‘primitivos’,
cunhada pelos colonizadores europeus, além de uma interpretação preconceituosa em
relação ao conceito de selvagens, muito mais relacionado a populações rudes do que
pensada em relação a populações das selvas, atesta o juízo depreciativo do
colonizador. Justificava-se a colonização (a imposição cultural) em virtude do atraso
dessas populações que deveriam ser civilizadas pelo europeu (branco) mais evoluído.
Esse capítulo propõe a crítica à visão reducionista e etnocêntrica dos civilizados e a
muitos dos juízos atuais que reproduzem o mesmo sintoma, propondo, diante da
mesma, uma leitura da visão de vida e de mundo dos povos ameríndios com a qual
podemos aprender a pensar de maneira fraterna, solidária e múltipla a existência,
redimensionando nossos projetos de desenvolvimento.
3.1 A visão dos civilizados
No continente americano, encontraram-se, ou melhor, desencontraram-se
modos radicalmente diversos de conceber o mundo. Não por acaso, se
considerarmos o que nos mostra Lévi-Strauss, os europeus desde o início
se propuseram, de várias formas e com graus diferentes de violência, a
erradicar a diferença indígena. Quando encarada como um problema, a
diferença tem de ser eliminada, e os índios tinham de ser não-brancos. E
isso não é apenas parte de nosso passado: ecoa no presente, de formas
não menos violentas, diga-se de passagem. Também não por acaso, os
ameríndios, ao contrário, mostraram-se, desde os primeiros contatos,
interessados na diferença dos europeus, abertos, como sempre, para mais
essa figura da alteridade e para o poder gerador de seus afastamentos
diferenciais. A diferença é, para eles, tudo menos um problema a ser
anulado ou superado. (PERRONE-MOISÉS apud NOVAES, p. 256,
2006)
A lógica do discurso civilizador ignora a diferença e outras possibilidades de se
fazer história. A história linear que está submetida ao progresso do poder tecnológico
e à sofisticação das formas de dominação da natureza e do outro, parecem identificar o
discurso da dominação europeia sobre a América e sobre os seus verdadeiros
representantes, os indígenas. A América Latina como experiência da diferença, da
multiplicidade, não faz parte do discurso colonizador.
A colonização, a própria forma de organização dos Estados independentes em
modelos autoritários e excludentes, diversos golpes de Estado que levaram a regimes
ditatoriais, fazem parte de um discurso homogeneizante, em que uma ideia de Estado
moderno, europeu, da ordem coercitiva, deveria compor o estado das coisas.
Essa não é a lógica da visão indígena. A capacidade de encontrar criativamente o
outro e a partir daí compor uma ideia de nação ou Estado, pressupostos da história da
maioria dos indígenas, vai contra o racionalismo vertical e ortodoxo da Europa
absolutista.
A diferença não é um problema para os índios. Ao contrário, é a possibilidade, é
a porta aberta para o mistério de estender a vida e as coisas da vida. Geralmente, o
olhar civilizador olha para o outro já com um princípio ajuizador, pensando em
enquadrá-lo em um estado de coisas pré-determinado. É uma maneira tradicional de
colonização do outro, dos corpos, do ensino. Não desenvolvemos aprendizagens a
partir do encontro com os outros, mas imaginamos que devemos ensinar ao outro
como ele pode ser como a gente, como ele pode ser um civilizado.
Um civilizado sabe o que quer, sabe o que quer do outro, sabe que deve impor ao
mundo a sua razão. Essa noção de controle e domínio temea diferença, pois esta
coloca em questão todo modelo, toda forma de relação em que há juízos anteriores que
devem ser impostos. O índio assusta, porque sua vida não se dá na relação de força em
que um indivívuo ou um grupo deve se impor ao outro, tão comum na época na
Europa. Os índios e seus conhecimentos trabalham, em geral, com a partilha, e
partilhar significa saber sair de si, encontrar-se com o outro. Os mitos indígenas são
convites à reflexão em movimento e não tentativas dogmáticas de explicar a razão da
vida e da morte.
Ademais, o discurso que faz dos índios seres ingênuos, afirmando que seu
desenvolvimento é primitivo, ou que não aconteceu, é etnocêntrico. Aprendemos
muitas vezes em nossas escolas que os índios ainda não tinham alcançado um nível
mais desenvolvido nas atividades produtivas. Sabemos hoje que é bem possível que os
índios tenham feito uma opção de vida pela subsistência1, que o trabalho e a evolução
econômica e tecnológica não eram o fim último de sua história. Mesmo que
reconheçamos que a história do progresso econômico e tecnológico se impõe por certa
lógica de força, entender e compreender que os índios abraçaram uma lógica singular
em relação ao desenvolvimento deve fazer com que tenhamos mais prudência na forma
como nos jogamos ao progresso insano e sem escrúpulos.
Além disso, há maneiras equivocadas de narrar a história indígena e de conceber
seu desenvolvimento, muitas vezes presentes num discurso dos coitados, dos fracos,
dos pouco desenvolvidos. Trata-se de uma maneira de contar a história dos índios por
um discurso que os enfraquece.
Essa maneira de contar a história dos índios contém algumas armadilhas.
A primeira é a que imagina a história dos índios começando apenas com a
chegada dos europeus, como se não houvesse uma história das
populações locais antes da suposta descoberta. O segundo equívoco é
considerar que, para os índios, a história dos contatos se reduz
necessariamente a uma história de perdas, tornando sua versão da história
uma visão de vencidos. Outro erro comum nos leva a pensar que, como
resultado desse contato, existe apenas uma ‘política indigenista’, a nossa
política, sem considerar que existe também uma política dos índios, ou
‘política indígena’, pela qual eles constroem seu relacionamento com a
sociedade nacional. (ÍNDIOS NO BRASIL 3).
Há uma história indígena muito anterior à chegada dos europeus e seu
reconhecimento equivale a uma ação ética. Quem não reconhece a história do outro e
percebe o mesmo somente a partir de um olhar parcial, imediato, desenvolve sempre
preconceitos e juízos limitados. Não reconhecendo o outro a partir de sua história,
ignora que a história de cada ser humano e de cada grupo ou sociedade tem o mesmo
valor. Existe uma história anterior à chegada dos europeus que é pouco narrada em
muitos livros, e geralmente é narrada de forma exótica e pixotesca.
Mesmo que reconheçamos que os índios foram saqueados e explorados,
naturalizar o discurso dos vencidos, dos coitados, é ignorar suas resistências. Talvez a
maior resistência esteja escondida. Muito pouco se fala sobre o quanto os índios
resistiram em não se entregar (vender) para a cultura e o modo de vida europeu.
Suicídios em massa, para nós, podem representar uma negação da vida; porém – peço
licença para a provocação -, assim como Cristo aceitou morrer – negação de certa
vida – muitos índios aceitaram morrer, suicidando-se em favor da vida que não
aceitavam que lhes fosse tirada. Além dessa resistência, há várias outras a serem
contadas. Em especial, podemos aqui nos lembrar das Missões e das lutas de
resistência.
Mais contemporaneamente, também deve ser destacada a luta dos índios em
favor de sua cultura, de suas terras, de leis que pudessem protegê-los das invasões
indiscriminadas. O índio resiste, o índio faz escola, o índio é autônomo em muitas de
suas lutas. Novamente, o discurso de que nós brancos devemos lutar pelos índios
fracos, pode conter um discurso de enfraquecimento do outro.
3.2 Lições indígenas
[…] a antropologia tem muito a dizer sobre as visões latino-americanas, e
uma das mais originais nos é dada por Claude Lévi-Strauss nas
Mitológicas e em reflexão de Beatriz Perrone-Moisés. Em seu ensaio, ela
analisa as várias formas de narrativas que assume, nos mitos, o princípio
central do pensamento ameríndio: a ideia de que a dualidade, a diferença,
são fundamentos do cosmos e condição de sua existência que se expressa
nas formas de organização social na relação com o outro. Uma filosofia
ameríndia que se contrapõe, portanto, ao princípio da unidade e da
identidade do pensamento ocidental. Princípio que resultou em uma vasta
empresa de erradicação das alteridades nativas. (NOVAES, 2006 p. 15)
A visão do cosmo como multiplicidade e diversidade dinâmica é uma lição radical
indígena para qualquer projeto humano em relação ao seu desenvolvimento. Na medida
em que predominaram na história da humanidade projetos de dominação, de conquista
sobre o outro, de imposição de mundos, de negação da diferença, essa lição indígena é
mais atual do que nunca. É atual no que diz respeito à espécie humana e seu desafio
em pensar a globalização atual como um processo de aproximação fraterna entre os
povos e da conjunção para uma fraternidade terrestre (cooperativa e não predatória
dos ditos mais fracos), e também diante da perspectiva de um movimento ecológico
diferenciado, em que o reconhecimento do diverso propõe uma alfabetização ecológica
radical.
Todos os mitos mesoamericanos falam da necessária conjunção dos
diferentes elementos. Nem muito fogo nem muita água, mas uma
combinação de ambos. Nenhum elemento deve prevalecer sobre os
demais, mas é preciso a interação de todos. A zanga dos deuses muitas
vezes se relaciona com a presença excessiva de algum desses elementos e
com as catástrofes que ela provoca no complexo macrocósmico e
microcósmico. (CECEÑA apud NOVAES, 2006, pp. 224-225)
Nenhum elemento deve prevalecer sobre os demais. O Grande Espírito está
presente em todas as formas de vida e a natureza está em harmonia consigo mesma na
medida em que essas forças conseguem se conjugar e não uma se sobrepor à outra.
Podemos relacionar essa concepção com as relações de poder entre pessoas e grupos
humanos. Quando uma pessoa ou qualquer grupo tenta ser mais do que o outro ou
busca se impor, está infringindo a lógica da harmonia e provocando a morte do espírito
cósmico. O espírito humano deve compor uma relação com o espírito maior da
natureza cósmica. O ser humano é um entre vários seres do planeta. Não foi o
primeiro e nem será o último, como afirmava Lévi-Strauss2. Deve reconhecer que é um
passageiro do cosmo e, como tal, se colocar em movimento de aprendizagem com o
outro, com a diversidade, com as diferentes formas de vida e de movimento do
planeta.
Vamos continuar a desenvolver as nossas tecnologias, vamos inventar
computadores cada vez mais sofisticados, programas capazes de ler movimentos do
planeta de forma mais eficaz. Porém, de que serve isso se não for para compor
alianças com a vida? Se for para controlar, dominar, ignorar o que está para além da
razão humana, o nosso projeto tecnocientífico, penso eu, estará colaborando para o
fracasso da história humana e de sua passagem no planeta. Porém, se soubermos
compor alianças com as forças do planeta, poderemos estender as possibilidades da
vida humana e dos outros seres, além de presenciar a beleza da vida emergindo para
além de nosso círculo tecnocientífico. Ratifico que sou otimista em relação ao
desenvolvimento das tecnologias e considero bárbara essa capacidade humana, porém,
ao mesmo tempo, penso que qualquer técnico que estiver reduzindo sua visão da vida
e do mundo aos programas de computador, por exemplo, sem reconhecer que sua vida
vai além disso no encontro com outras dimensões da vida, tende a se tornar um
autômato, reduzindo suas potencialidades.
Aprendamos com os indígenas que a vida é entrelaçamento de mundos, que a
minha vida e a vida de cada pessoa é um entrelaçamento de mundos, quea vida da
espécie humana não pode ignorar seu entrelaçamento com as outras formas de vida do
planeta e que o próprio planeta tem sua relação com outras forças cósmicas. Colocar-
se nesse pensar, representa também estar aberto para o outro. Essa visão de mundo e
da vida pelos indígenas evidencia um projeto de colaboração, de partilha planetária, de
compreensão de forças que se complementam dinamicamente.
De acordo com López Austin e López Luján, a dimensão das histórias
particulares estava sempre entrelaçada com a das histórias
“globalizadoras”, que “produziram formas de coesão em amplos cenários
supra-étnicos”. A visão cósmica do devir punha o universo como
primeiro horizonte de inteligibilidade. Era o sentido cósmico que
orientava os sentidos mundanos e permitia a conexão entre mundo e
inframundo, entre o lugar dos vivos e o dos mortos, assim como entre as
diferentes formas de vida ou expressões do sujeito.. (CECEÑA apud
NOVAES, 2006, p. 226)
Essa extensão de mundo, essa linha aberta, um horizonte sem limites e
fronteiras, pode ser relacionada com a forma como os indígenas concebem suas terras.
Não são suas terras, mas são um espaço do mundo onde é possível estar em contato
com a diversidade, com a multiplicidade. Não é um pequeno terreno, uma pequena
terra que me pertence. O mundo e os indígenas se complementam. Preciso de muito
espaço territorial para sobreviver? Não, preciso de muito espaço para viver a relação
com o de fora, com o outro. É claro que, atualmente, nós estendemos nosso mundo
através de conexões virtuais, e de alguma forma a floresta atual é a internet. É bacana a
gente trazer esse exemplo. O que seria de nós se nos fosse cortada a conexão? Se só
pudéssemos conversar com pessoas a um raio de 30m? É interessante pensar que a
internet pode ser esse amplo espaço indígena que ressurge como forma de nos
fazermos habitantes dessa nova floresta, em que não há fronteiras e em que nos
relacionamos com toda forma de cultura e de concepção de mundo.
Consequentemente, a bela navegação se dá com aqueles que sabem e conseguem
aprender a aprender, compor cooperações, desenvolver trocas cada vez menos
preocupadas com o juízo, com o controle e sim com a possibilidade de potencialização
coletiva e cooperativa.
Por mais que sofressem perseguições, por mais que sua cultura não recebesse
consideração, os índios continuavam a acreditar no diverso, no encontro com a
liberdade e com o espírito coletivo. Talvez também nós, quando acreditamos que as
novas tecnologias podem favorecer mais a troca, resistimos a perseguições que podem
estar presentes na superficialidade de alguns internautas, no uso indevido da internet,
em sistemas de controle dos programas. Desejamos um mundo livre e criativo. Menos
tecnologia como forma de lucrar em relação ao outro, de se tornar capaz de ser melhor
do que o outro e mais para compor com o outro. Informação aberta para todo mundo,
uma reforma no acesso aos saberes e na produção de conhecimento. Da mesma forma
como ainda cabe na memória dos índios uma resistência ao domínio que muitos
buscam ter sobre a terra e sobre o lucro que ela possa proporcionar. O maior lucro
deve ser social, porém, aqui está a nossa luta: que reconheçamos que enquanto
pensarmos o lucro como sucesso pessoal e não como possibilidade de melhorias
sociais e da afirmação da dignidade de um maior número de cidadãos, estaremos no
caminho da morte.
Apesar de tantas adversidades e da opressão que lhes é imposta, os
modos de ser e de viver dos guaranis nos mostram que é possível a
existência de um mundo onde sejam respeitadas as diferenças e a
pluralidade de culturas e povos. O modo de ser guarani – essa teimosia
histórica em viver, em se movimentar num amplo espaço territorial, em
proferir sua palavra – nos permite problematizar certas maneiras de
pensar e de viver, nos questionando sobre a estrutura fundiária
concentradora, injusta, violenta, as relações com o meio ambiente que se
baseiam na lucratividade e não no equilíbrio. (LIEBGOTT; BONIN,
2010)
3.3 Questões contemporâneas
Quero propor a leitura abaixo como forma de provocar uma reflexão radical em
relação à contradição que pode estar presente na forma como pensamos o
desenvolvimento:
Trata-se, por outro lado, de uma crítica dionisíaca no sentido de que o
herói revela ao longo de suas peripécias a desumanização da civilização
industrial: através de suas fraturas e feridas corporais, da frustração
erótica e da violência física inerentes à vida cotidiana da metrópole social.
O anti-herói Macunaína mostra a inumanidade da civilização moderna
através da corrupção de seu corpo e de sua alma, e das sucessivas
rupturas da unidade cósmica que integrava o universo indígena numa
harmonia parasidíaca. Macunaína é um herói negativo num duplo sentido.
Porque não estabelece uma ordem, não erige o poder da lei, não funda uma
civilização, nem representa nenhum tipo de exemplaridade. É o que o
distingue dos heróis clássicos […]. Mas esse herói de Mário de Andrade
é negativo também ou sobretudo porque, ao regressar da metrópole à
selva, faminto, extenuado e gravemente ferido, e espiritualmente
derrotado por esse mundo de máquinas e leis desumanizadas que
representa São Paulo, já não encontra suas profundezas misteriosas, nem
pode falar com seus seres espirituais, nem brincar eroticamente com suas
libidinosas mulheres. O cosmo parasidíaco de suas origens tinha
desaparecido sem deixar rastro. Era apenas um páramo. (SUBIRATS
apud NOVAES, 2006, pp. 99-100)
Mesmo quem não leu sobre Macunaína ou não assistiu ao filme, ou mesmo
quem leu outras análises e críticas em relação ao livro ou filme em questão, não deixará
de refletir a partir do recorte acima mencionado. Pensar em como estamos perdendo a
sensibilidade que nos aproxima da natureza, dos afetos para com as coisas mais
simples da vida que estão presentes na maneira dos índios conceberem a suas vidas e
as suas relações, deve nos fazer refletir sobre o peso com que podemos estar
carregando a vida a partir do ritmo alucinante das grandes metrópoles. Aqui não quero
tecer uma crítica à vida nas cidades e uma possível apologia à vida no campo, mas
tensionar o quanto deixamos que as nossa vidas estejam marcadas por certa
superficialidade moderna. Vivemos muitas vezes tão alucinados pela velocidade, pelo
controle do tempo e das coisas, por resultados que devem ser alcançados, que
perdemos o espírito espontâneo e natural dos encontros. Os encontros acabam
agenciados e ajuizados, automatizados. É outro o fluxo da natureza e da
espontaneidade – da gratuidade. Mas quando tentamos voltar ao tempo da preguiça,
ao tempo que se perde para se encontrar novamente com a possibilidade do
pensamento e da reflexão, já não conseguimos, pois o mundo ao qual nos submetemos,
nos condicionou a tal ponto que devemos continuar a luta pela sobrevivência e
deixamos de viver o que fazemos. Autômatos, não somos forças que compõem
possibilidades no encontro com as coisas que fazemos. Somos meros mecanismos
reprodutores do sistema.
Um capitalismo selvagem em que a lógica do ganho é que faz o sucesso dos
indivíduos, não cabe na tradição indígena. A visão solidária em relação ao mundo é
radicalmente oposta ao discurso do lucro e da competição predatória. Talvez seja
estranho propor a visão indígena como alternativa ao capitalismo predador, pois
podemos pensar que o movimento é irreversível. Porém, acredito que teremos que
enfrentar a violência de um sistema que ignora o outro como irmão espiritual. O outro
é alguém com quem nos unimos na luta pela vida, que nele se revela tanto quanto em
mim. Essa visão afirmativa deve ser resgatada, mesmo que seja em meio aos modos de
produção capitalista em que trabalhamos.
Enfim, os recentes movimentos político-sociais dos “indígenas” e dos
“afro-latino-americanos” puseram definitivamente em questão a versão
europeia da modernidade/racionalidade ao propor sua própria
racionalidade como alternativa. Negam a legitimidade teórica e social da
classificação “racial” e “étnica”, propondo de novo a ideia deigualdade
social. Negam a pertinência e a legitimidade do Estado-nação baseado na
colonialidade do poder. Enfim, embora menos clara e explicitamente,
propõem a afirmação e reprodução da reciprocidade e de sua ética de
solidariedade social como alternativa às tendências predatórias do
capitalismo atual. (QUINJANO apud NOVAES, 2006, p. 84)
Eis o desafio: conceber que as políticas afirmativas em favor das populações
índias e negras abrem espaço para a discussão propositiva sobre a solidariedade entre
as pessoas. Numa visão privada, em que pensamos somente nos nossos direitos, é
possível que qualquer política em favor de grupos que histórica e socialmente tenham
sofrido diferentes formas de exploração, marginalização e exclusão, seja mal
interpretada e concebida. Ao falar em cotas, por exemplo, de imediato as vozes de
discussão se colocam, de diferentes maneiras, a defender ou a atacar tal projeto. Quero
propor que a discussão sobre as cotas é uma discussão menor, pois a questão é maior.
Penso que o tema das cotas, positivamente, faz com que a gente discuta de fato o
problema social, mesmo que muitas vezes ainda de forma preconceituosa. Também é
possível que reduzamos a discussão às cotas, quando ela é muito mais extensa.
Proponho, novamente, que a discussão fundamental é sobre toda forma de exploração
e de falta de políticas de afirmação das pessoas. Os índios, por exemplo, afirmavam
que não aceitavam a morte, mesmo que seus deuses tivessem sido mortos pelos
civilizados, que suas cidades santas tenham sido destruídas… Da mesma forma, não
morramos para a proposta de um estado de poder em que as relações sejam mais
igualitárias e menos injustas, de partilha e cooperação, propositivas e implicativas,
reconhecendo que somos diferentes e que cada um, em sua diferença, mais do que
respeitado, deve ser acolhido e comprometido, inclusive, a trazer suas reflexões e
demandas para o debate sobre uma participação mais cidadã por parte de todos.
Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido compreendia ao
mesmo tempo a negação do não-ser e a primeira expressão ontológica da
resistência anti-colonial. (SUBIRATS apud NOVAES, 2006, p.138)
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SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil.
Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/ index.php/faced/article/viewFile/2745/2092>.
Acesso em: 01 abr. 2013.
1 Em sua obra A Sociedade contra o Estado, o antropólogo francês Pierre Clastres
desenvolve uma crítica ao juízo europeu em relação à ideia de que os índios viviam
da subsistência por necessidade e não por opção, ou seja, que a lógica do trabalho
não era prioridade para eles, diferentemente da lógica europeia. Na mesma obra, o
autor desenvolverá uma comparação entre a lógica de poder dos ditos civilizados e
das populações indígenas por ele estudadas, demonstrando como o poder pode ser
propositivo e coletivo (índios) e não somente vertical e coercitivo (europeus).
2 Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) foi professor, antropólogo e filósofo francês
que desenvolveu pesquisas e estudos no Brasil e com índios brasileiros.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3448&secao=340
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1774&secao=257
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/2745/2092
CAPÍTULO 4
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS: OS NEGROS
Os filhos de escravos, ao longo de um lento processo que se arrasta por
três séculos, verão gradualmente se perder no horizonte a noção de que
são jejes, ambacas, quissamas, bolos, mbundos, mbwelas, tekes, nsundis,
ou tantas outras etnias que poderiam ter sido afirmadas como diferenças
culturais. (BARROS, 2009, p. 91)
O horizonte que se perde é a África, de onde os negros1 foram desterrados. A
América assinala para os negros africanos o território da escravidão, do registro dessa
identidade. O presente capítulo propõe o reconhecimento da trágica relação de
senhores e escravos, experimentada na colonização da América e estendida, no Brasil,
até o final do século XIX. Da mesma forma, propõe o enfrentamento propositivo e
não ressentido dos efeitos da escravidão negra que se fazem presentes nas relações
sociais e econômicas na América e, em especial no Brasil, até o presente. Um projeto
afirmativo deve ser pensado a partir de uma abolição concebida por toda a sociedade e
não somente como uma luta parcial de um grupo étnico. O olhar enviesado trazido
para o debate a partir do geógrafo negro Milton Santos desafia cada cidadão a
compreender como cada um de nós, negros, brancos, índios, amarelos, mestiços, entre
outros, trazemos, inconsciente ou conscientemente conosco, preconceitos sutis na
maneira de olhar e sentir a negritude. O discurso de que vivemos numa democracia
racial precisa ser tensionado, pois a realidade social revela que não houve muita
mudança em termos de desigualdade social entre brancos e negros desde os períodos
escravocratas até hoje. Ao final, a proposta de afirmarmos a estética social a partir da
multiplicidade dos corpos revela que é na educação para a diferença e para a
diversidade que reside a maior resistência aos preconceitos.
4.1 A condição negra
Por outro lado, se para fins de censo e controle era preciso classificar de
algum modo os negros despejados pelo tráfico no Brasil, também se
operava a construção de novas diferenças, muito pouco coincidentes com
as realidades étnicas originais. Incorporava-se à identidade do negro uma
procedência geográfica que via de regra relacionava-se aos portos
africanos de tráfico que os haviam exportado para o Brasil, independente
de sua verdadeira origem. (BARROS, 2009, p. 48)
Destituídos de sua história, classificados a partir dos portos em que foram
recolhidos para se tornarem escravos na

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