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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA AS PAISAGENS DA CIDADE: arqueologia da área central da Porto Alegre do século XIX. Beatriz Valladão Thiesen Trabalho apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, área de concentração em Arqueologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Pro. Dr. Arno Alvarez Kern. Porto Alegre, setembro de 1999. 2 Para Waldemar Thiesen, meu avô (em memória daquelas manhãs quando andávamos pela cidade do Rio Grande e eu, ainda menina, podia ouvir as histórias que ele contava sobre as construções antigas, as lápides do cemitério ou as bancas do mercado. Mais tarde, no seu escritório, aprendia que os objetos – o barômetro, o tinteiro, o relógio de parede, as moedas e os selos das coleções – contavam sobre gentes que haviam feito tantas coisas) e, também, para Fernando Lopes Thiesen, meu pai e Zoah Valladão Thiesen, minha mãe. Porque me ensinaram o prazer e a importância de conhecer o que passou. E porque me mostraram, com o exemplo de suas vidas, que é preciso abrir os próprios caminhos, romper os próprios limites ...e tantas vezes recomeçar. (“Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se sobre mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta de tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.” Julio Cortázar) Aos meus filhos Guilherme (“A mim ele ensinou-me tudo. Ele me ensinou a olhar para as coisas. Ele me aponta todas as cousas que há nas flores E me mostra como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas.” Fernando Pessoa) & Vitória (“Obrigada, meninazinha, por esse olhar confiante Belo teu beijo como uma estrelinha... Há muito que eu não me sentia assim, tão bem comigo...” (Mário Quintana) ...que me ensinaram a ser feliz. 3 AGRADECIMENTOS A todas as pessoas que foram envolvidas por mim neste trabalho, sou grata. Embora seja um tanto injusto não mencionar todas, gostaria de expressar meu particular reconhecimento a algumas. Minha gratidão é especial para com a arqueóloga Me. Fernanda Tocchetto, com quem me encontrei, depois de muitos anos, num domingo de primavera de 1996 no Brique da Redenção. Foi ela quem me incentivou a voltar para a Arqueologia, foi ela quem primeiro me mostrou como poderia ser interessante fazer um estudo de Arqueologia Histórica Urbana. Os primeiros textos e as primeiras idéias desenvolvidas neste trabalho foram discutidos com ela. E nossas discussões duraram o tempo que durou esta pesquisa (e há de durar muito mais). Trabalhamos, percorremos muitas ruas, tomamos muito café (ela chá) juntas. Ela apresentou- me pessoas, abriu espaços, facilitou todas as coisas. Agradeço por tudo isto, e, acima de tudo, pela sua grande generosidade e amizade: aquela, para todas as horas. Muitas pessoas deram-me boas idéias e me forneceram excelente bibliografia, em especial o arqueólogo Luiz Cláudio Symanski, a quem sou muito grata. Algumas outras, além de me conseguirem textos excelentes, discutiram os capítulos comigo e, muito mais que colegas, foram grandes amigos: aos arqueólogos José Alberione Reis, Martial Pouguet, Maria Farias, Cristiane Oliveira da Costa e Sérgio Ozório, agradeço críticas e sugestões mas, sobretudo, a amizade traduzida no interesse, disponibilidade e nos “bons conselhos”. 4 Houve aquelas que supriram minha falta de conhecimento ou agilidade em alguns ramos: agradeço à fotógrafa Daniela Terra Vasquez pelas fotos das casas e a Pedro Ramos pelas da Planta Cadastral de 1895, à Mirian Carle pela digitação de grande parte do texto e montagem final deste trabalho, a Cesar Kieling pela finalização gráfica dos mapas e ao Diogo Menezes da Costa pelas tabelas e gráficos. Sou muito grata ao Professor Dr. Klaus Hilbert, não só pela bibliografia, pelas dicas e boas idéias, mas também por ter me encorajado a vencer uma certa fobia em relação aos computadores, o que favoreceu a obtenção de informações que não teriam sido possível obter de outra forma, de maneira tão rápida. Um reconhecimento especial deve ser dado ao meu orientador, Professor Dr. Arno Alvarez Kern, responsável pela organização dos primeiros cursos de extensão em Arqueologia na PUCRS, na década de 1980 e, subseqüentemente, pela organização desta área de concentração dentro do curso de Pós-Graduação nesta Universidade, que forneceram, em um, as primeiras noções do nosso ofício e, em outro, a necessária qualificação para exercê-lo. Agradeço, ainda, a orientação dada a esta pesquisa e a sua confiança em mim como pesquisadora, depois de tantas idas e vindas. Meu reconhecimento estende-se às secretárias do curso e do CEPA, Rosana Sanches, Carla Carvalho Pereira e Márcia Lara da Costa, sempre prontas a quebrar algum galho. Ao Museu Joaquim José Felizardo, agradeço todo apoio institucional e aos seus funcionários, as informações, a disponibilidade e toda ajuda que me concederam. Essas pessoas fizeram com que o trabalho de pesquisa se tornasse mais ameno e mais interessante. 5 Sou muito grata, ainda, ao pessoal da EPAHC, pelas informações que me forneceram e aos funcionários do Arquivo Público Municipal e do Arquivo Histórico Moisés Velhinho, pela paciência que tiverem em explicar “n” vezes o funcionamento e organização das coisas. Agradeço a CAPES, pela bolsa que me concedeu, viabilizando, o curso e a pesquisa. Seria extremamente injusto deixar de reconhecer o trabalho e a dedicação de Eliane Luft: por seu carinho e atenção para com os meus filhos durante as minhas ausências, por algum café quentinho no meio de uma tarde fria e, até, por ter se prontificado a copiar um documento, quando eu não podia faze-lo, minha gratidão. Quero agradecer, finalmente, aos meus pais, pelo esforço que realizaram para segurar a barra do dia a dia, com apoio material e emocional, pela confiança e pelo incentivo. Sem eles, certamente, este trabalho teria sido impossível. 6 ABREVIATURAS: AHMV – Arquivo Histórico Moisés Velhinho APM – Arquivo Público Municipal CPM – Código de Posturas Municipais FSB – Fototeca Sioma Breitman MCSHJC – Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa MJJF- Museu Joaquim José Felizardo SMOV – Secretaria Municipal de Obras e Viação 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10 1. A CONSTITUIÇÃO E EXPANSÃO DA PAISAGEM URBANA DE PORTO ALEGRE........................................................................................................................ 43 2. OS LUGARES............................................................................................................80 2.1 As Estruturas Arquitetônicas.......................................................................... 81 2.1.1 As Casas: A Arquitetura Vernácula........................................................ 86 2.1.2 A Arquitetura Acadêmica....................................................................... 222 2.2 As Ruas, as Praças e Outros Lugares............................................................. 236 3. OS ESPAÇOS............................................................................................................. 266 3.1 Os Espaços da Porto Alegre do Início a Meados do Século XIX.............. 269 3.2 Os Espaços da Porto Alegre do Final do Século XIX.................................... 278 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 323 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ ANEXO........................................................................................................................... 306 308 8 ÍNDICE DE MAPAS - Unidades Arqueológicas Levantadas na Área central de Porto Alegre, Remanescentes do Século XIX...................................................................................... 265 - Distribuição de Atividades Sobre a Planta de 1839.................................................... 318 - Distribuição de Atividades Sobre a Planta de 1896.................................................... 319 - Planta Parcial de Porto Alegre de 1881 - Breton......................................................... 320 - Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 3................................................................ 321 - Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 4................................................................ 322 - Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 5................................................................ 323 9 Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado [...] Mas a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára- raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. [...] As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. Italo Calvino 10 INTRODUÇÃO As pesquisas de Arqueologia Histórica na cidade de Porto Alegre começaram a ser desenvolvidas pelo Museu Joaquim José Felizardo a partir de 1994 com objetivos de salvamento (áreas que estavam sendo ameaçadas por construções ou reformas) – como é o caso do Solar Travessa Paraíso 120 , o Mercado Público, a Praça Rui Barbosa e o Solar Lopo Gonçalves 121 – ou direcionadas para a efetivação do Corredor Cultural da Rua da Praia, como é o caso da escavação na Praça Brigadeiro Sampaio. Todas essas pesquisas vinham sendo realizadas tratando cada uma dessas unidades como um sítio arqueológico autônomo. Em 1997, o Museu Joaquim José Felizardo elaborou o Programa de Arqueologia Urbana do Município de Porto Alegre 122 que pretende “integrar as diversas pesquisas sobre patrimônio arqueológico e histórico visando a compreensão dos processos de apropriação dos espaços, modos de vida e relações dos diferentes grupos humanos que ocuparam este território assim como a valorização e divulgação destes testemunhos” (Tocchetto, 1997: 3) Este programa, em fase de implementação, toma a cidade como um sítio arqueológico, e é através desta perspectiva que a proposta que apresento se coloca. O conceito de “cidade-sítio” (Cressey e Stephens,1982:50) é fundamental por permitir estabelecer inter-relações das diversas unidades presentes na cidade vista como um todo. 120 O Solar da Travessa Paraíso foi escavado por Cláudio B. Carle em projeto junto ao Museu Joaquim José Felizardo e Equipe do Patrimônio Histórico do Município - EPHAC. 121 . O Solar Lopo Gonçalves foi escavado em outro momento por Luiz Cláudio Pereira Symanski para a realização de sua dissertação de mestrado (apresentada em 1997). 122 Este Programa tem a coordenação de Fernanda Tocchetto e a colaboração de Luiz Cláudio Symanski e Shirley M. dos Santos. 11 No entanto, o conceito de cidade-sítio, em si, não dá conta do problema de pensar o sítio- arqueológico-cidade como objeto a ser compreendido. É preciso, para além disto, situar a problemática da pesquisa na própria questão urbana. Isto significa ver a cidade para além de um cenário onde diferentes fenômenos se desenrolam, e tentar compreender a influência que uma cidade pode exercer nesses fenômenos. Isto não quer dizer tomar a cidade como se ela fosse causa última e única do que ocorre aí: cidade, por si só, não tem poder de criar ou gerar mudanças sociais e culturais 123 . Significa, de forma diversa, considerar a importância que o processo de urbanização tem em muitos aspectos da vida social e tomar a cidade como algo a ser compreendido sob uma perspectiva histórica, vendo-a como parte de uma sociedade mais ampla, observando as influências que diferentes cidades, situadas em determinado tempo e determinado local, podem exercer sobre a sociedade ali estabelecida. Assim, penso que fazer Arqueologia Urbana, no sentido estrito da expressão, não é fazer arqueologia na cidade, mas fazer arqueologia da cidade 124 . Considero que se não estivermos vendo a cidade como um sítio cujas diversas partes estão inter-relacionadas, se não considerarmos que ela está inserida em uma totalidade maior, situada em um contexto histórico e espacial específico, e que pode influenciar de diferentes maneiras os fenômenos 123 Segundo Oliven, o enfoque que vê a cidade como uma variável explicativa, ou “como uma potência social capaz de gerar com sua influência os mais variados efeitos na vida social” (1984:20), está ligado à corrente da ecologia humana representada por alguns membros da Escola de Chicago, que inaugurou a Sociologia Urbana. Esta abordagem ecológica é essencialmente a-histórica, postulando uma relação causal entre formas ecológicas (cidades) e estruturas sociais e culturais. Sobre os diversos enfoques utilizados para estudar a cidade do ponto de vista sociológico, ver Oliven, 1984. 124 Staski (1982:97) definiu Arqueologia Urbana “como o estudo das relações entre cultura material, comportamento humano e cognição num assentamento urbano”. Este autor lembrou que muitos arqueólogos discutiram a questão da arqueologia na cidade versus arqueologia da cidade, e considerou que a “primeira consiste em dirigir questões de pesquisa num assentamento urbano, enquanto a segunda implica em utilizar métodos arqueológicos para contribuir com a compreensão do fenômeno urbano”. Juliani (1996), seguindo a proposta de Cressey e Stephens (1982) aborda a “cidade-sítio” sob esta última perspectiva. 12 sociais e culturais que ocorrem aí, então estamos fazendo arqueologia na cidade e não da cidade. A opção por este tipo de abordagem relaciona-se diretamente à possibilidade de realizar uma nova leitura do fenômeno urbano, ou seja,olhar a cidade pelo viés arqueológico. Aqui surgem condições de reconstituir o sentido deste importante aspecto da cultura material – o espaço urbano – “solidariamente com a vida cotidiana da cultura” (Vogel e Mello, 1984:47-8), uma vez que este é o espaço onde se desenrolam as rotinas, o habitual da cidade, onde se expressam diferentes grupos e diferentes valores. Esta Arqueologia Urbana permite, assim, a reapropriação pelos indivíduos que vivem na cidade, do seu patrimônio, da sua história, da sua dimensão temporal, da sua memória. “A grande virtude da Arqueologia Urbana seria, pois, a de reconstituir para os membros da sociedade em questão, o sentido de sua existência sócio-histórica, portanto, de sua identidade”(Idem). O trabalho que apresento de uma Arqueologia Urbana procura compreender processos culturais pelo estudo sincrônico e diacrônico das organizações espaciais de uma sociedade em um período histórico. Tratou-se de buscar uma perspectiva transdisciplinar 125 onde são utilizados conhecimentos gerados no campo da história, antropologia, arquitetura, etc., mas mantendo o olhar que é específico da Arqueologia e buscando responder questões que lhes são próprias. Esse olhar implicou em considerar a cidade como um sítio, cujos artefatos possuem formas e técnicas próprias que correspondem a idéias da sociedade que 125 O termo interdisciplinaridade parece ter perdido seu sentido original na própria prática do trabalho científico, tornando-se uma forma de, segundo Reis (1997:52), tomar “empréstimos a outras disciplinas”, realizando uma justaposição de abordagens. Em contraposição a isto, o termo transdisciplinaridade tem sido empregado, segundo este autor, no sentido de ir “a outros campos, abrangendo-os [e voltar] ao território informacional obtido na própria arqueologia para co-produzir o conhecimento”. 13 os produziu. Talvez o grande desafio deste tipo de arqueologia seja o de não perder de vista, no emaranhado de informações fornecidas pelas diversas disciplinas e por uma imensa gama de documentos escritos (primários e secundários) e iconográficos, a especificidade do trabalho arqueológico: o estudo do comportamento humano através dos seus vestígios materiais. A pesquisa partiu do levantamento sistemático dos elementos arqueologicamente significantes que compunham o espaço urbano na área central de Porto Alegre no século XIX. Em áreas onde as escavações não são possíveis (ninguém teria a pretensão de realizar “open areas” no centro de Porto Alegre) e onde as possibilidades desse tipo de intervenção reduzem-se a escavações pontuais, muitas vezes dependentes de obras públicas e com caráter de salvamento, é necessário buscar outras formas de chegar ao objeto. Além disto, como bem colocou Tânia Andrade Lima (1989:96), referindo-se às diferenças entre a pesquisa arqueológica histórica e a pré-histórica : “a maior complexidade cultural, as tecnologias avançadas e um menor espaço de tempo decorrido faz com que o arqueólogo histórico atue mais sobre o terreno, já que os vestígios são eminentemente estruturas verticais, construções e outros tipos de depósitos não encobertos, podendo em muitos casos dispensar a escavação. Daí a necessidade do desenvolvimento de abordagens específicas para sítios históricos, já que, em muitos casos, as meticulosas técnicas utilizadas por pré-historiadores podem ser totalmente ineficientes”. Neste caso, em termos de técnica de campo, a prospecção não é mais uma etapa do trabalho a ser realizada em função da escavação. Aqui, esta prática é o próprio trabalho de campo e utiliza a observação dos vestígios de superfície, através de caminhadas, em 14 associação ao uso de mapas, plantas, fotografias, com o objetivo de obter, de forma mais ampla possível, as informações sobre o objeto, o sítio, prescindindo das escavações. A própria Carta Internacional para a Gestão do Patrimônio Arqueológico – ICOMOS, recomenda, em seu capítulo 4º (In: SAB, 1996:43), que se obtenha o maior conhecimento possível dos sítios, sua extensão e natureza. Kern (1996) realizou uma tradução dos diversos critérios existentes neste documento, que ressalta a importância dos “inventários do patrimônio arqueológico, existente ou em potencial,[que] são instrumentos de trabalho essenciais para que se possam elaborar as diversas estratégias de proteção, nos inúmeros sítios arqueológicos” (Idem:29). Além disto, a Carta aprovada em Lausanne, em seu artigo 5º (IN: SAB, op. cit.:43), é clara: técnicas não destrutivas devem prevalecer, sempre que possível, sobre as destrutivas. “As intervenções arqueológicas em um sítio, implicam em diversos tipos de abordagens, tais como a coleta superficial de amostras, as sondagens em áreas limitadas, a observação aérea e a observação sobre o próprio terreno” (Kern, op. cit.:29) Vogel e Mello (1984: 47 –8) também enfatizaram que: “embora não se deva confundir arqueologia com escavação, o propósito de investigar o urbano partindo de uma perspectiva arqueológica vem a ser o de exumar, no sentido metafórico, trazendo-os à luz e evitando destruí-los ou entregá-los ao esquecimento [...] sistemas de relações que fundam a lógica operativa e simbólica de espaços, elementos, conjuntos e equipamentos urbanos”. 15 Essa arqueologia que não envolve necessariamente escavação 126 , essa arqueologia do andar, do observar, é a arqueologia que tenho empregado para reconhecer os espaços da cidade. E é no andar e no olhar a cidade que é possível constatar algo simples, porém básico: os grupos sociais demarcam seus espaços através da construção de fronteiras (visíveis ou não) e essas fronteiras que separam e dividem espaços são percebidas e classificadas por oposições (casa - rua, público – privado, nosso – deles, sagrado – profano,...) 127 . É assim que a cidade se estrutura em ruas, praças, mercados, casas. Lugares onde se vive, mora, comercia, reza, brinca. Espaços que são, para além da coisa física, como bem observou Roberto Da Matta (1987:59), “esferas de sentido” “que contêm visões de mundo ou éticas que são particulares”. Os grupos sociais, e cada sociedade, precisam, assim, ainda seguindo este autor, de uma gramática de espaços 128 para poder existir. Ou, dito de outra forma, as sociedades precisam realizar uma ordenação lógica entre essas esferas de sentido (Da Matta: 1983, 75). E aí se chega ao problema central desta pesquisa. As sociedades articulam seus espaços através de atividades que, segundo Da Matta (1987: 39) se ordenam por “oposições diferenciadas, permitindo lembranças ou memórias 126 Isto não significa perder de vista a importância da escavação na pesquisa arqueológica. Pelo contrário, considero-a fundamental no sentido de que permite aprofundar os conhecimentos obtidos num primeiro momento onde se leva em conta os vestígios de superfície. Estes, no entanto, são fundamentais, até mesmo para que se realize uma escavação criteriosa. 127 Parto do pressuposto, compartilhado com muitos antropólogos estruturalistas, incluindo Lévi-Strauss (1975), cujas idéias derivam de argumentos originalmente formulados na lingüística estrutural – particularmente por Jakobson (Leach, 1977:29) – que o cérebro humano possui mecanismos que o tornam capaz de “realizar distinções +/-, para tratar os pares binários assim formados como pares afins e para manipular essas „relações‟ como numa matriz algébrica”(Idem.:51). Assim é possível segmentar e ordenar o mundo externo e, através da cultura, formular um sistema de contrastes próprio que pode ser ordenado tanto na forma de uma oposição binária, quanto em gradações. 128 O termo gramática é tomado aqui como aquele conjunto de regras compartilhado por uma cultura que, presidindo a criação de qualquerforma de expressão (seja na língua falada ou num artefato) permite que ela possa ser aceita por qualquer membro da cultura que a produziu. Utilizo a expressão “gramática espacial” no sentido de conjunto de regras que formam a lógica que permite uma determinada ordenação dos elementos que compõem o sistema espacial de uma sociedade. 16 diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização”. Conforme este antropólogo, isto permite ordenar espaços, separar contextos, estabelecer atitudes. No entanto, e mais além, o espaço entendido como esferas de sentido, constitui “a própria realidade [...] [que] permite normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas próprias” (Idem 51-2). Assim, o que precisamos descobrir são essas esferas de significação social e a ordenação lógica entre elas, observando que modificações podem ter ocorrido no transcurso do século XIX. As perguntas que decorrem deste amplo problema são inúmeras: como se estruturava o espaço urbano no centro de Porto Alegre? Onde estão e como se configuram as praças, as ruas, os mercados, os espaços institucionais de poder? E como se configuravam as casas? Como se dá a passagem do espaço privado (casa) para o espaço público (rua), ou seja, onde estão e como são as portas, as janelas e os jardins? Como estão ordenados e articulados esses espaços? A que grupos sociais eles estão ligados e como? Que modificações ocorreram quanto à configuração, ordenação e articulação desses espaços no transcurso de um processo histórico? Para tentar responder algumas destas questões, sugiro que os diferentes grupos sociais que constroem suas diferentes realidades e diferentes normas espaciais, buscam “fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (Chartier, 1991 :183) e é através de “formas institucionalizadas e objetivadas” que é possível marcar “de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe” (idem). 17 Surge, daí, o conceito de representações coletivas, conforme proposto por Chartier (1991), como uma ferramenta capaz de dar conta de uma problemática que inclui a compreensão dos espaços centrais de Porto Alegre, sua ordenação e articulação e, portanto, das próprias divisões e hierarquizações da organização social. As representações coletivas são sistemas de referência que incorporam a cosmologia 129 e o sistema classificatório de uma sociedade e que orientam as práticas, as ações concretas, onde elas estão imbricadas e onde elas se nutrem. Elas são, segundo Chartier, “as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social” (ibidem). Se isto é correto, e eu penso que é, então as representações coletivas estão na base da construção dos espaços cuja gramática encontra sua expressão nas práticas sociais. Colocado desta forma, representações e práticas sociais são inseparáveis: não são nem contraditórias e nem uma é mais verdadeira que a outra. São como as duas faces de uma mesma moeda, pistas diferentes, mas complementares para se chegar a compreender os espaços sociais. Assim, recuperar e compreender os espaços do centro da Porto Alegre oitocentista é um processo de reconstituição a partir de fragmentos. E que fragmentos são estes? São as representações coletivas, inscritas nos discursos, na arquitetura, nos traçados das ruas, nos espaços vazios. São, também, os diferentes grupos sociais que se ligam a essas representações, e são, ainda, as práticas vividas por esses grupos que possuem, também, sua matriz nas representações coletivas. 129 O termo cosmologia quer significar “uma teoria ou filosofia das origens e estrutura geral do universo, seus componentes, elementos e leis, especialmente aquelas relacionadas a algumas variáveis como espaço, tempo e causalidade. A forma como o cosmos é estruturado, afeta a religião e a ideologia” (Flannery e Marcus, 1993:267). 18 A dificuldade de fazer esta reconstituição a partir destes fragmentos situa-se no fato de que, por um lado, as representações não são obtidas de forma direta, ou seja, as representações não afloram espontaneamente dos discursos. E, por outro lado, está a questão de que os aspectos não-materiais da cultura não são necessariamente correlacionados aos aspectos materiais desta cultura. A chave para resolver este problema está em buscar no discurso e na prática, em instituições e em condutas, vestígios diferentes, mas complementares, como se fossem duas faces de uma mesma moeda, levando em conta um recorte social onde elas estão inseridas. O problema seguinte diz respeito ao estabelecimento deste recorte social. Serão grupos econômicos, classes sociais, grupos étnicos? É Chartier (1991:180), novamente, quem fornece o caminho: “É preciso, creio, recusar esta dependência que refere as diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori, tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo, entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das diferenciações menores (por exemplo entre grupos sociais hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais). De fato, as clivagens sociais não estão forçosamente organizadas segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comandaria tanto a presença desigual dos objetos, como as diferenças nas condutas”. A proposta de Chartier é de inverter a questão e traçar a área de circulação de objetos, formas, códigos ou normas culturais, buscando o recorte mais apropriado que considere que as diferenciações sociais não são meramente de classe econômica, mas que podem ser também de gênero, religiosas, profissionais, territoriais, etc. (Idem:180-1). 19 Mas para chegar a isto, precisamos, antes de mais nada, delinear o contexto histórico onde as coisas acontecem. O contexto histórico permite identificar, avaliar e interpretar mais facilmente os vestígios arqueológicos, ainda que os mesmos vestígios possam levar, em contrapartida, a reavaliar e redesenhar o contexto histórico. O passo seguinte é o de realizar um amplo levantamento das estruturas físicas, do universo material urbano, que aqui é o objeto principal e que, em última análise, serve de suporte às representações e local onde se dão as práticas sociais urbanas A pesquisa arqueológica da cidade e, sobretudo, da própria cidade, reveste-se de peculiaridades que merecem que se teçam algumas considerações, que são importantes para esclarecer questões relativas à especificidade deste tipo de pesquisa, situando-a no âmbito da ciência Arqueológica como um todo. Uma das características mais marcantes do fazer arqueológico é o trabalho de campo. Munidos de um instrumental aparentemente bizarro - pelo menos para cientistas mais acostumados a ambientes assépticos - o arqueólogo costuma deixar sua casa e seu cotidiano para coletar seus dados em campo. Ele busca, em geral, culturas diferentes da sua, distantes principalmente em tempo e, na maioria dos casos, em espaço. Esse deslocamento geográfico, associado à busca de elementos distantes temporalmente, parece ser responsável pela imagem por demais conhecida do arqueólogo envolvido nas mais diversas aventuras, cujos estereótipos tem sido motivo de riso e prazer, mesmo entre nós. Percorrem-se lugares exóticos, enfrentam-se intempéries, atravessam-se oceanos e desertos (a bem da verdade, na maioria das vezes, são apenas alguns banhados). Essa imagem romântica tem servido, por um lado, de atrativo a muitos que se iniciam nesta ciência e, por 20 outro, de elemento que inspira aversão àqueles mais ligados às bibliotecas, aos arquivos, aos ambientes isentos de barro, água, muito sol e vários tipos de insetos. Talvez por necessidade de demarcar fronteiras e estabeleceruma identidade frente a outras ciências sociais – que no nosso meio acadêmico ainda insistem em considerá-la como uma espécie de apêndice 130 (desnecessário, é claro) – a Arqueologia assume e “vende” esta sua imagem romântica e esse seu interesse pelo que poderia ser chamado de o outro-remoto. O estudo da própria cultura em um tempo extremamente recente, do ponto-de-vista de quem está acostumado a tratar com milênios e com povos exóticos, é causa de, no mínimo, um certo desdém e, às vezes, de um grande espanto 131 . E mais, aqui se perde a imagem, que nos é tão cara (veja-se com que alegria essas peripécias são contadas nas mesas de bar), do arqueólogo que se defronta com todo tipo de dificuldades, desconfortos e intempéries a fim de salvar o que, sem ele, estaria para sempre perdido. Pesquisar o que nos é tão familiar e tão próximo como a cidade onde nascemos e sempre vivemos, faz com que os problemas a serem enfrentados sejam bem diferentes daqueles que são pelo “típico” arqueólogo. 130 Kern (1996:35) argumenta: “Para muitas pessoas, inclusive profissionais de nível superior, a arqueologia é ainda hoje apenas vista como uma técnica de pesquisa praticada por alguns especialistas. Entretanto, ela é muito mais do que isto, pois atualmente ela adquire um papel importante como meio de cultura essencial, base do conhecimento das Ciências Humanas e – portanto – elemento fundamental na formação de um humanismo moderno.” 131 Esta observação refere-se particularmente ao caso brasileiro e não deve ser entendida como uma generalização que vá além destes limites. É sabido que na Europa, por exemplo, onde a arqueologia surgiu mais ligada à história, pesquisas como esta são cotidianas e incluem a arqueologia medieval, gallo-romana, ou mesmo das cidades do século XIX. 21 No entanto, quem pensa que é difícil atravessar zonas alagadiças em campo, experimente tentar observar um prédio do centro de Porto Alegre (você estará olhando para cima) às 15 horas de uma tarde de dezembro (lembra o calor e o Natal?). Se for uma rua onde há tráfego de carros, há o risco de atropelamento, se for onde só passam pedestres, o risco é o mesmo, acrescentando-se que a pessoa a dizer impropérios não estará se afastando em um carro. Além disto, há os gerentes das lojas a pedirem que se saia da frente das vitrines e solícitos transeuntes sempre dispostos a fornecerem as mais descabidas informações à quem eles supõem ser uma entrevistadora dos mais insólitos temas. Isto para não falar dos terrenos repletos de caliça e lixo (atual), que se faz acompanhar de um odor característico, e onde é preciso andar, sempre em busca de mais algum vestígio; ou, ainda, de proprietários pouco amistosos que estariam mais felizes se você estivesse bem longe de suas casas e terrenos. Você terá que tomar suas anotações, de preferência, caminhando (e olhando por onde anda) e o vento que encana nas esquinas durante a primavera poderá fazer com que folhas, fotos e mapas se espalhem por uma área que parecerá imensa, tendo em vista os milhares de pés que ameaçam pisotear os dados recolhidos. No entanto, os problemas não se resumem a este lado mais prosaico. Aqueles ligados ao fato de estar pesquisando algo tão familiar foram os mais importantes. Realizar o que os antropólogos chamam de “estranhamento” foi um exercício difícil. Não se tratava apenas de ver com outros olhos um espaço tão conhecido, mas para além disto e como alertou Gilberto Velho (1980:17), perceber sistemas de classificação e representações de uma sociedade que, em muitos aspectos, é a minha própria sociedade. Colocava-se a 22 questão de enfrentar os meus próprios limites de participante de uma cultura, de um grupo social e, portanto, com uma visão de mundo de alguma forma comprometida . Não cabe analisar aqui esse processo de transformação do familiar em exótico 132 , apenas sublinhar o fato de que a aparente facilidade de estudar um objeto já tão “conhecido” é o que torna a tarefa mais difícil e complexa: é preciso questionar aquilo que pela própria familiaridade parece ser o natural, na verdade, o senso-comum. É duvidar de conhecimentos consagrados, criticar, problematizar e questionar o objeto e a si mesmo. ...e rapidamente perceber que um povo que bebe em malgas e não em xícaras, que dorme em minúsculas peças sem ventilação (alcovas), que compra sanguessugas importadas em Barbearias, joga seu lixo pela porta dos fundos (e muitas vezes pela da frente) de casa, que compra farinha, brincos de ouro e gente (escravos) no mesmo lugar (armazém) e que coloca um cágado numa fonte (com a intenção de manter a água limpa) e um guarda para cuidar da segurança deste cágado que, ao final, acaba morto (o cágado) por um grupo de estudantes, é, sem dúvida, um povo muito exótico. E, então, é preciso compreender esse povo, a partir do reconhecimento da diferença. Porque é só a partir deste reconhecimento que surge a possibilidade de pensá-los, procurando seus próprios termos, mais que impondo nossas categorias a eles. E foi o que tentei fazer, buscando e analisando, um pouco no sentido proposto por Geertz (1999), as formas simbólicas em cujos termos aquelas pessoas representaram seus espaços, bem como a suas experiências em relação a esses espaços. Por outro lado, é preciso evitar a armadilha de tratar o objeto de pesquisa cidade- sítio como muitas vezes alguns arqueólogos pré-históricos brasileiros tratam uma “aldeia”, 132 Sobre esta questão ver Velho (1978 e 1980) e, ainda, Da Matta (1984). 23 um sítio pré-histórico: “é preciso levar em consideração a malha de relações que [o objeto] mantém com a sociedade envolvente: a dinâmica de um espaço não se esgota em seu perímetro” (Magnani, 1993:48) da mesma maneira (e parafraseando Magnani), que o significado mais amplo de uma aldeia guarani vai além dos limites da própria aldeia. Alguns dos grandes problemas enfrentados na realização de um trabalho como o que apresento aqui, situam-se no âmbito da própria Arqueologia. Historicamente, um dos primeiros objetivos perseguidos pelos arqueólogos “foi a reconstituição das culturas e de sua situação no tempo” (Kern, 1998:168). Isto implicou em atividades de campo que privilegiaram a verticalidade nas escavações e a ênfase dos trabalhos de laboratório nas tipologias (Idem). Em tempos mais recentes tem-se buscado a “inserção dos elementos da cultura material em um determinado contexto estratigráfico” e suas relações com outros contextos e outros sítios (Ibidem). Não é de hoje, portanto, que estudos de etnoarqueologia, arqueologia regional, da paisagem, entre outros, tem enfocado aspectos como hierarquias sociais, simbologia, crenças, intercâmbios, etc. Porém, a Arqueologia Histórica possui uma característica especialmente marcante: “a ampliação de seus territórios, de seus campos de atuação” (Ibidem:169). Este fato – voltar-se a um campo de estudos muito recente, a cidade, (friso: recente no Brasil) – implica, por um lado, no surgimento de problemas teóricos e metodológicos e, de outro, na resistência de alguns setores em aceitar este tipo de trabalho. Com relação aos primeiros problemas (de ordem teórico-metodológicos), as propostas apresentadas pela arqueologia da paisagem tem se mostrado como um caminho de grande potencial para a compreensão de sociedades do passado: as paisagens estão entre 24 as mais profícuas fontes de evidências sobre elas 133 . Portanto, é importante colocar alguns pontos que estão na base da construção desta pesquisa. Uma descrição da paisagem de Porto Alegre poderia começar assim: a cidade está edificada a 30º01‟57” de latitude sul e 8º07‟20” de longitude oeste do meridiano do Rio de Janeiro (só para complicar), banhada pelas águas do Guaíba.Trata-se de um lago, apesar de seus habitantes chamarem-no de rio. O terreno onde se erguem as casas é, em parte, sedimentar (na parte próxima ao lago), e em parte composto por rochas graníticas, que formam um promontório. Seguindo esta linha, poderia dizer que ela está situada na extremidade do Escudo Riograndense, descrever a geologia da área, sua vegetação e seus aspectos climáticos. Mas não creio que estivesse dizendo muita coisa que importasse para este estudo. A paisagem, aqui, não tem o sentido da geografia física. O meio físico tem apenas uma importância secundária, ainda que a paisagem possa possuir uma forma física influenciada por fatores como o relevo e o clima. Aqui a paisagem é, acima de tudo, uma paisagem social e ela pode – e deve – ser considerada como uma fonte importantíssima para compreender a vida dos porto-alegrenses do passado. A paisagem não é cenário, nem pano de fundo e “mais que um simples reflexo da organização das coisas, ou mediadora de 133 A arqueologia da paisagem vem sendo empregada no Brasil preferentemente pelos arqueólogos históricos e pode apontar importantes caminhos para a pesquisa pré-histórica, tomando o sentido inverso do que ocorreu na Europa, depois da pesquisas de Leroi-Gourhan do Magdeleniense em Pincenent, onde a pesquisa pré- histórica muito ensinou à arqueologia histórica. 25 gostos, a paisagem é uma força ativa na criação, legitimação e mudança social” 134 (Rubertone, 1989: 50). Considerar a paisagem nos termos da Arqueologia, aplicando-lhe os métodos da cultura material, implica em pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito. Neste sentido, a paisagem tem sido tratada como artefato por muitos arqueólogos. Mark Leone (1996), por exemplo, em seu trabalho em William Paca Garden, Annapolis, Maryland, mostrou como ela pode ser construída para legitimar uma hierarquia social. Neste caso específico, o arqueólogo não está tratando mais com um artefato tecnômico ou sociotécnico, como colocou Rubertone (1989:52) muito propriamente, mas com um artefato ideotécnico 135 . Muitos outros tem trilhado o mesmo caminho, embora com enfoques diversos. Patrícia Rubertone, como Leone e muitos outros, enfatiza as relações de intencionalidade entre pessoas e artefatos 136 . Isto implica em considerar a paisagem urbana como uma ação consciente que reflete comportamentos culturalmente determinados. Como ação intencional, portanto como artefato, ela promove objetivos políticos, econômicos, sociais e os expressa. Pode-se pensar, então, que através da paisagem urbana, assim 134 Os trechos que estavam originalmente em língua estrangeira foram traduzidos quando citados neste trabalho. A responsabilidade desta tradução é minha. Da mesma forma, quando foram citados documentos antigos, escritos num português da época, eles sofreram uma atualização ortográfica, que também é de minha responsabilidade. 135 Binford (1962) considerou a divisão da cultura material em 3 sub-classes, tendo em vista as funções que os artefatos desempenham em diferentes contextos: 1) artefatos tecnômicos, cuja função é fundamentalmente utilitária, ligando-se diretamente ao meio físico e à tecnologia da cultura; 2) artefatos sóciotécnicos, que tem seu contexto funcional primário no sistema social ; e 3) artefatos ideotécnicos cujo uso liga-se a contextos ideológicos do sistema social. Deetz (1977:51) chamou a atenção para o fato que os mesmos artefatos podem ter funções em todos os três níveis simultaneamente. 136 Rubertone considera que a paisagem é aquela porção do terreno “que tem sido formada e modificada por ações humanas e desenhada conscientemente para fornecer moradia, acomodando o sistema de produção, facilitando o transporte, marcando diferenças sociais e expressando estética” (Rubertone, 1989: 50). 26 definida, podemos chegar a saber sobre estruturas sociais, valores culturais e outros aspectos não materiais da cultura. Não há como duvidar que existe uma relação de intencionalidade entre o homem e o artefato-paisagem-urbana. E se não fosse assim não poderíamos pensar em conhecer, pela análise da cultura material, aspectos não materiais da cultura. 137 No entanto, Upton (1992) chamou a atenção para o perigo de reduzir essa paisagem ao resultado de uma relação puramente intencional. Para ele, e eu concordo, é necessário entendê-la para além disto, “para o produto incidental de uma ação cultural” (Idem: 52). Não se trata, portanto, de “examinar simples relações entre intenção mental e criação física, entre a mente e o artefato (mas) o estudo da cidade como cultura material obriga a investigar as relações recíprocas entre os homens e as alterações humanas do ambiente, levando em conta intenção e reação, ação e interpretação” (Ibidem). Retomando, então, uma descrição da paisagem portalegrense, eu diria que, para este fim, importa menos saber se o Guaíba é um rio ou um lago e interessa mais a forma como ele é percebido e utilizado pelos habitantes da cidade e qual a sua importância para eles. É preciso considerar os aspectos geográficos, mas apenas na medida de sua relação com as gentes do local. Por exemplo, descrevendo alguns aspectos de Porto Alegre na década de 1830: no ponto mais alto do promontório ergueu-se a Matriz e o Palácio 138 , local que é 137 Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é”fornecer acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”(Deetz, 1988 : 220) 138 Ainda que as Ordenações do Reino estabelecessem diretrizes quanto a localização de edifícios públicos e da Igreja Matriz, bem como algumas regras gerais para o traçado urbano (Rhoden, 1999:177), o que importa aqui é que este traçado e esta localização correspondem às idéias, aos planos culturais, para utilizar a expressão de Deetz (op. cit) que estão na base da construção dessa paisagem. 27 considerado como o ponto mais nobre da cidade – o Alto da Praia. Lá embaixo, junto ao “rio”, está o Largo da Quitanda, onde se pode ver os negros a venderem frutas, charque, lenha, hortaliças e outros gêneros. O Largo está junto ao prédio da Alfândega e ao trapiche, onde os comerciantes da cidade se reúnem para conversar e negociar e por onde chegam e saem os produtos de importação e exportação. Um pouco mais a oeste, e também junto ao “rio”, está o Largo da Forca, situado próximo ao Arsenal de Guerra, aonde se chega descendo o “morro” por um dos estreitos e sujos becos que ligam a elegante Rua da Igreja à comercial e militar Rua da Praia. Assim, colocado o entendimento acerca do que sejam as paisagens, o problema básico que precisa ser resolvido é de que forma podemos reconhecer essa paisagem do passado. Com óbvios fins analíticos proponho examinar a paisagem decompondo-a em dois elementos: lugares e espaços 139 . Os lugares são aqueles elementos onde mais freqüentemente os arqueólogos costumam centrar suas pesquisas: trata-se de onde as coisas estão, ou, dito de outra forma, daqueles locais cuja materialidade torna-os unidades arqueologicamente identificáveis pelos seus vestígios no solo. Pode ser uma casa, uma rua, uma praça, uma lixeira coletiva. O lugar é algo concreto e mensurável. Possui limites nítidos e bem determinados e pode ser 139 Esta divisão já foi proposta muitas vezes. Rubertone (1986) propôs uma análise utilizando essas categorias e propugnando uma visão que englobasse as ligações entre ambas. Orser (1996) também considerou esta divisão. Se, por um lado, parece que todos estão de acordo como que seja lugar ( definido de forma ampla como onde as coisas estão), o mesmo não acontece com espaço. Rubertone considera como “zonas intersticiais”, “arredores”, ou “adjacências”, da mesma forma que Dewar (apud Rubertone, 1986: 124), que definiu como “vizinhança”, ou imediações do lugar. Orser, por sua vez, considerou o espaço de outra forma: compartilhando do mesmo sentido amplo de “onde as coisas não estão”(Orser, 1996 : 135), observa, que espaço é uma realidade física, ligada ao lugar, espécies de “manchas” onde alguma coisa está situada. Orser introduz, ainda, o conceito de espacialidade, entendida como uma realidade vivida e não como uma realidade natural dada. Para Lefebvre (apud Orser, op.cit.:137), espaço pode ser algo abstrato, sem a materialidade do lugar, mais ligado à elementos de ordem mentais. 28 definido enquanto objeto (espacial) de práticas sociais (Meneses: op. cit., 15). O estudo dos lugares enfatiza as propriedades formais, os arranjos e as relações dentro de cada unidade e entre elas. Os estudos de padrão de assentamento encontram-se dentro desta perspectiva (Rubertone, op. cit. :124). O espaço, vai além do físico e mensurável. Antes de tudo, ele designa “esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disto, [é capaz] de despertar emoções, reações, leis, orações, música e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas” (Da Matta, op. cit.: 15). O espaço tem, assim, características imateriais que fazem com que a tarefa de reconhecê-los seja bem mais complexa que no caso dos lugares. O espaço inclui um componente imaginário fundamental e, como nota Roberto Da Matta, só se define através de contrastes, oposições e complementaridades e não “por meio de uma fita métrica” (Ibidem: 16). Assim, um dos caminhos para tratar o espaço são os estudos utilizando modelos de uso da terra, identificando áreas de atividades. Este tipo de pesquisa é bem conhecido em arqueologia e tem sido largamente empregado tanto em arqueologia pré-histórica, como em arqueologia histórica 140 . No entanto, os estudos de uso da terra, entendido como os “meios através dos quais as pessoas organizam e arranjam suas atividades econômicas no 140 Em arqueologia histórica cito o exemplo de Rubertone (1982 a e b ). De um outro ponto de vista e tomando uma paisagem histórica rural, cito a proposta de Adams (1990) para o estudo de fazendas norte- americanas. 29 espaço” (Rubertone, op. cit.: 51), não é o suficiente. Análises deste tipo fornecem importantes informações sobre o que foi feito, onde foi feito, ou como foi feito, mas não nos ajudam a saber porque foi feito. E esta última questão, ao final e ao cabo, é a principal, creio. Acontece que as atividades que ordenam espaços não são apenas de ordem econômicas. Elas compreendem relações sociais, relações de poder, valores, sentimentos e tantos outros aspectos que envolvem a complexidade das relações humanas. E aqui é bom lembrar que a Arqueologia não é nenhuma panacéia capaz de dar conta de tudo isto. No entanto, é possível tentar aproximar-se um pouco mais da compreensão dos espaços utilizando o conceito de representações coletivas, na medida em que elas são o sistema de referência que está na base das práticas sociais (e embebido nelas), trazendo em si a cosmologia e o sistema classificatório da sociedade, estando, portanto, na base da construção e ordenação dos espaços. Com relação ao outro nível de problemas (a resistência de alguns setores em aceitar este tipo de trabalho), é preciso dizer que existe entre os pesquisadores uma certa flexibilidade quanto às fronteiras da Arqueologia, ainda que esta seja uma questão ainda muito discutida (Kern, 1998:169). Porém, não são poucos aqueles que não aceitam falar-se numa arqueologia do não-remoto, numa arqueologia da própria cultura. Não foram poucas as vezes que, no decorrer deste trabalho, precisei explicar (para pesquisadores de arqueologia) porque se tratava de uma pesquisa arqueológica e não de uma “História da Arquitetura”, ou mesmo de uma “História Social”, isso para não citar expressões pouco lisonjeiras de setores mais ortodoxos. Como lembra Oliven (1980:25), ainda hoje a 30 academia tende a compartimentalizar artificialmente o conhecimento “em cátedras e departamentos, cujos titulares são geralmente muito ciosos de seus domínios”. Assim, aceita-se uma arqueologia urbana do século XIX, como é o caso deste estudo, mas que se utilize de técnicas clássicas envolvendo escavações, análises de fragmentos de louça, vidros, restos de alimentação. Aceitam-se trabalhos cuja pesquisa centre-se em prospecções e análises espaciais que contem apenas com vestígios de superfície, mas cuja cultura ligue- se ao que chamei de “outro-remoto” (podem ser cidades romanas, Reduções Jesuíticas, etc.). Mas é difícil aceitar uma Arqueologia sem escavação da própria cidade (leia-se da própria cultura) em um tempo tão recente. A verdade é que existe um confronto que parece ser comum a toda ciência, mas que aparece mais fortemente naquelas, como é o caso da Arqueologia, que, por vários motivos, encontram-se, ainda, no nosso meio, em processo de legitimação 141 . Independentemente de estudar horticultores, grupos caçadores-coletores, ou seu próprio grupo, o arqueólogo trabalha sempre com a cultura material, e é a natureza material da evidência arqueológica que guia a perspectiva que tomamos em nossas pesquisas. Se diferimos em nossas estratégias, se nos colocamos problemas de pesquisa também diferentes, possuímos em comum um olhar que é específico da Arqueologia. E isso não implica em perder de vista o intercâmbio com outras áreas de conhecimento. Pelo contrário, é indispensável buscar na Antropologia, na História, na Filosofia, entre outras, tudo aquilo que possa nos servir de apoio e favorecer uma abordagem mais interpretativa, que ultrapasse as descrições, que seja mais que uma coleção de tipos. 141 Se isto não é verdadeiro em escala mundial (ver, por exemplo, a Carta Internacional para a Gestão do Patrimônio Arqueológico – ICOMOS) ou nacional (ver, por exemplo, os trabalhos de Lima:1997 ou Souza, 1997), certamente é no nível regional ou, dito de outra forma, provincial. 31 Como em todas as novas áreas de pesquisa que se abrem, correm-se riscos, erra-se e encontram-se um sem-número de dificuldades. Mas creio que isto deve ser enfrentado, e vale a pena, porque nos leva a ampliar e a complexificar nosso objeto e, em última instância, nossa ciência. A Arqueologia Histórica, muitas vezes, tem a imensa vantagem, sobre a Arqueologia pré-histórica, de dispor de evidências documentais escritas. Ainda que seja preciso ter em mente que “os documentos históricos são limitados em número e parciais quanto à sua origem” (Kern, 1985:103) e, portanto, inúmeros aspectos da vida das sociedades passadas não são contempladas ai, essa documentação pode favorecer a interpretação e reconstituição do passado pela Arqueologia.. No entanto é essa vantagem que, muitas vezes, faz com que - aos olhos tanto do arqueólogo pré-histórico, como do historiador - a pesquisa em Arqueologia histórica pareça absolutamente desinteressante. Beaudry (1993) chamou a atenção para o fato de que muitas pesquisas neste campo acabam tendo uma natureza tautológica: usa-se sítios históricos para testar modelos desenvolvidos na pré-história ou, de outra forma, procura-se descobrir se a evidência arqueológica reflete o documento escrito ou vice-versa. É a forma do tratamento dado ao registro histórico pelo arqueólogo que irá fazer com que ele resulte em uma vantagem ou em uma desvantagem. O mesmo pode ser estendido às fontes iconográficas. Desta forma, vou me deter umpouco em colocar as formas através das quais as fontes foram tratadas nesta pesquisa. A primeira e mais evidente fonte foi a de natureza material: os vestígios existentes na superfície e que testemunham a organização espacial da área central de Porto Alegre no século XIX. Trata-se de ruas, praças, casas, prédios públicos, nem sempre contemporâneos 32 entre si e que hoje, misturados a construções modernas, constituem a paisagem do centro da cidade. Alguns (poucos) se mantém em sua forma original, outros sofreram modificações em sua morfologia ou em sua função, ou em ambos. É como se olhássemos um imenso depósito arqueológico totalmente perturbado, onde inúmeros artefatos sofreram processos diversos de reciclagem 142 . Como colocar isto tudo em ordem? Ou, em outras palavras, como reconhecer aí uma cronologia, padrões morfológicos e funcionais? Falta-nos, sobretudo, a estratigrafia, tão merecidamente estimada pelos arqueólogos. O primeiro passo foi o de entender cada rua, cada praça, cada prédio (cada unidade arqueológica, conforme explicitado a seguir), como um artefato. Esta consideração é fundamental porque pressupõe o entendimento de uma “coisa física, produto e vetor material da apropriação social do espaço: segmento da natureza ao qual o homem (a sociedade) impôs forma, função e sentido” (Meneses, 1997: 19). O passo seguinte, perceber que estes artefatos são, também, suportes de representações sociais. Que eles possuem propriedades intrínsecas (morfológicas, por exemplo), que “são mobilizadas diferentemente pelas sociedades, nos processos de operação de sentido”(Idem: 12). Portanto, o sentido atribuído aos artefatos é localizado histórica e socialmente. 142 Segundo Schiffer (1987) existem três tipos de reutilização dos artefatos: ciclagem lateral, onde há apenas uma mudança de usuário ou de unidade social e onde o artefato mantém sua forma e função original; o uso secundário, onde o artefato tem seu uso modificado sem ser ele mesmo totalmente modificado e a reciclagem que implica na mudança da morfologia geral do artefato. 33 O importante é perceber aqui que as formas arquitetônicas e a própria organização e articulação do espaço são vistos como um discurso através do qual se pode ter acesso às representações sociais dos grupos que viveram e construíram esse espaço. Finalmente, foi preciso desenvolver um método de levantamento e organização desses dados de natureza material. A proposta foi elaborada tendo em vista esta pesquisa e o Projeto de definição de zonas de interesse arqueológico e levantamento do potencial arqueológico do município de Porto Alegre desenvolvido pelo Museu Joaquim José Felizardo, dentro do Programa de Arqueologia Urbana do Município de Porto Alegre, referido anteriormente 143 . Assim, o Bairro Centro da cidade (divisão política) foi definido como uma Zona de Interesse Arqueológico. Esta definição leva em consideração critérios históricos (ex: local onde surgiu a cidade) e arqueológicos (ex: alta densidade de vestígios significantes). Para esta pesquisa foi tomada uma parte desta zona como amostra. A partir disto, tratou-se de levantar cada unidade presente na amostra, registrando-as em um mapa. O trabalho foi iniciado tomando-se como ponto de partida o levantamento realizado pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural da Prefeitura Municipal de Porto Alegre no centro da cidade através do Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre – Bens Imóveis. 144 Com este levantamento em mãos, percorreu-se a área registrando as Unidades Arqueológicas significantes, já que o inventário da EPHAC utilizou critérios diferentes 143 Esta pesquisa é coordenada pela arqueóloga Fernanda Tocchetto e tem a participação de Beatriz Thiesen e Diogo Menezes da Costa. 144 O Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre – Bens Imóveis é um trabalho da EPAHC, feito para atingir todos os bairros da cidade, e está sob a responsabilidade da arquiteta Elena Graef e tem o apoio do arquiteto Luiz Merino Xavier. 34 daquele adotado aqui. Se, por um lado, naquele levantamento interessaram critérios que representassem um valor para preservação, tais como valor arquitetônico, ambiental, de raridade formal ou funcional, recorrência regional, etc., por outro lado – do ponto de vista desta pesquisa – o critério básico é que represente um testemunho de ocupação do espaço. Assim, qualquer testemunho é importante. Desde o mais portentoso prédio público, até a mais simples casa de porta e janela, resguardando os critérios de significância. As Unidades Arqueológicas registradas são as manifestações pontuais (ex: residências, prédios públicos, praças). Os problemas para identificar quais unidades arqueológicas pertenciam de fato ao século XIX foram muitos, e discutirei os critérios de seleção no capítulo 2. Os documentos escritos serviam, entre outras coisas, de guia ou controle para o estabelecimento de uma cronologia e isto também será discutido no mesmo capítulo. Ao registro das unidades arqueológicas em um mapa, associou-se o registro das diferentes atividades que ocorriam na área de pesquisa no decorrer do século. Isto permitiu que se estabelecesse diferentes Áreas, definidas em termos de padrões de atividades, comportamento e uso da terra. Essas áreas não necessitam ser absolutamente homogêneas (ex: áreas unicamente residenciais). As áreas podem ter segmentos diferenciados, que, em conjunto, devem demonstrar uma dinâmica própria e peculiar, devem estar agrupados e articulados por valores, atividades e significados que lhes dêem coesão. Teremos, assim, áreas comerciais, residenciais, de descarte, de poder, etc. 35 Em Arqueologia Urbana, como de resto em toda a Arqueologia Histórica, somos, muitas vezes, colocados frente a um número massivo de vestígios arqueológicos e, ao mesmo tempo, a uma rica e abundante documentação escrita e iconográfica. Este fato acentua-se quando se trata de pesquisar um momento de rápido crescimento da população urbana que ocorre junto à expansão de uma sociedade capitalista, que por suas próprias características produziu imensos arquivos escritos (Cressey e Stephens, op. cit, 1982). Isto implica na necessidade de se tomar decisões sobre que dados são necessários, quais os documentos que devem ser analisados, a que nível de detalhe é preciso ir. As opções feitas levaram em conta a possibilidade de obter dados sobre o conjunto da área pesquisada, abandonando-se documentos que referiam-se a lugares específicos (com exceção das Plantas e dos Processos para construção ou reforma de prédios). Este tipo de documento (testamentos, inventários, escrituras, etc.) constitui um volume imenso, cuja análise seria contraproducente, correndo-se o risco de “obscurecer a floresta pelas árvores” (Idem). Os registros escritos analisados foram tanto documentos primários, como secundários. A documentação secundária foi tomada (lembrando uma obviedade um tanto fugaz) como considerações recentes sobre o passado e não o que aconteceu no passado, sendo necessário, portanto, manter sua análise ligada ao seu contexto de produção. Os documentos primários analisados foram Livros Prediais – imóveis urbanos (1893, 1895 e 1928), Livros Receita e Despesa : Comércio pelo Valor Locatício (1894 e 1895 e 1998), Processos para construção e reformas de prédios (vários anos entre 1893 e 1929), Códigos de Posturas de 1829 a 1888, Projeto de Posturas de 1850, Código de Construções de 1893, Documentos avulsos relacionados à Construção e Melhoramentos do 36 fundo “Câmara Municipal” (1830 a 1900), Livro Caixa da empresa Fraeb e Cia. (1830) e Jornais. Estes últimos foram: O Constitucional Rio-Grandense (1830), O Mensageiro (1835 e 1836), Jornal do Comércio(1867), Fígaro (páginas avulsas de 1878 e 1879), A Gazeta de Porto Alegre ( 1880), A Gazetinha (de novembro de 1891 a março de 1892 e de setembro de 1895 a dezembro de 1896) e A Federação (1896). Além disto, foram utilizados os relatos de diversos viajantes e de cronistas, bem como um dicionário impresso no ano de 1848. Essa massa documental foi tratada diferentemente, conforme sua origem e objetivos. Assim, os documentos oficiais produzidos com o intuito de controlar impostos e ações dos cidadãos foram tomados mais em seu conteúdo informativo, fornecendo pistas sobre o uso do solo. Outros foram mais importantes no sentido de apresentar indícios para se chegar às representações dos diversos grupos sociais e suas ações concretas: Códigos de Posturas e jornais, principalmente. Quanto a estes últimos é importante fazer alguma distinção entre eles: os jornais do início do século foram mais importantes por seus anúncios que mostram, até certo ponto, a ocupação do espaço. As matérias são, em geral, de cunho político e oficial. Como o “Mensageiro”, que tinha por objetivo “dar publicidade aos Atos da Administração Provincial das Estações Públicas, e bem assim anúncios que se limitarem a benefício público” ( O Mensageiro, 3.11.1835: 1), ou “O Constitucional Rio- Grandense” que se propunha ser um jornal político e literário. Também na análise dos anúncios, buscou-se o sistema classificatório da sociedade para esses espaços. O dicionário também foi importante neste sentido. 37 Quanto aos periódicos humorísticos, surgidos a partir da segunda metade do século XIX (portanto junto com uma nova ordem burguesa que se instaura), pode-se dizer que foram encarados como uma fonte riquíssima, na medida em que se propunham a criticar os costumes locais: eles forneceram pistas importantes acerca da relação dos habitantes com a cidade e dos esquemas de organização do comportamento urbano. A informação iconográfica (gravuras, mapas, fotografias) é de importância fundamental neste trabalho. Ela foi encarada como uma fonte capaz de testemunhar aspectos da estrutura espacial da cidade, bem como do imaginário social. Assim como os documentos escritos, o documento iconográfico deve ser submetido à crítica que, na sua essência não difere da crítica histórica tradicional (Cardoso,1990: 17). Isto significa que é necessário sempre manter ligados a imagem ao seu contexto social. A fotografia constituiu-se numa fonte de grande interesse e que mereceu maior atenção e onde eu gostaria de me deter, tecendo algumas considerações importantes. O fato é que o século XIX foi o século do surgimento da fotografia 145 . Este acontecimento é de extrema importância pelas suas conseqüências e pelo que elas significam no uso que se possa fazer da imagem fotográfica como fonte de pesquisa deste período: pense-se no impacto causado pelo seu surgimento numa sociedade ávida por racionalidade, objetividade e informação. 145 Se a câmara escura era conhecida desde o Renascimento, o Daguerreótipo é anunciado ao mundo em 1839 e é apenas a partir da segunda metade do século XIX que aparece a fotografia em papel. 38 O discurso associado à fotografia era o da possibilidade de retratar o real, e neste sentido representava a mentalidade objetivista e cientificista do século XIX. Essa nova técnica permitia a decomposição e a racionalização da produção de imagens numa série de operações ordenadas e simples, onde a criação de imagens não é mais mediada pelo artista, mas vista como uma série de processos mecânicos e químicos. A fotografia se aproxima, neste sentido, da lógica industrial. Por outro lado, a burguesia ascendente é ávida por imagens: retrata a si mesma (veja-se a proliferação dos retratos de família) e ao seu mundo. É uma forma de disseminar informação numa sociedade ainda composta, em grande parte, por analfabetos. Seu poder de sedução encontra-se justamente na possibilidade de reproduzir o real e no custo muito mais baixo que as obras artísticas tradicionais. A verdade é que esta imagem real é algo idealizado e, sobretudo, uma construção na medida que traz consigo o código visual da perspectiva que é, antes de tudo, um código estético e estratificador. Estas considerações são fundamentais para a utilização da fotografia como fonte, principalmente no período em questão: ela permite a interpretação de um espaço culturalmente constituído, através da análise da organização dos elementos que compõem a imagem e de sua articulação interna, considerando sempre em que rede significativa eles estão inseridos. A fotografia possui, portanto, um duplo código: de informação e de expressão. Ela contém uma realidade empírica que está na base das imagens e, também, aspectos ligados ao imaginário da sociedade que a produziu. “O ponto de partida é compreender a natureza técnica do ato fotográfico, a sua característica de marca luminosa; daí a idéia de indício, de resíduo da realidade sensível impressa na imagem 39 fotográfica. Em virtude desse princípio, a fotografia é considerada como testemunho: atesta a existência de uma realidade. Como corolário desse momento de inscrição do mundo na superfície sensível, seguem-se as convenções e opções culturais historicamente realizadas” (Mauad, 1996:79). Neste sentido, a análise das fotografias partiu, conforme proposto por Miriam Moreira Leite (1992), de uma leitura interna, articulando suas partes e relacionando-as a um contexto histórico e social particular. Assim como as fotografias, a análise dos mapas e das ilustrações considerou a observação dos seus contextos e a confrontação com outros documentos da mesma natureza. As fotografias analisadas fazem parte do acervo da Fototeca Sioma Breitman do Museu Joaquim José Felizardo e abarcam aquelas produzidas durante o século passado e o início deste século. As gravuras analisadas incluem apenas as produzidas no século passado. É importante que se explique a abrangência temporal dessas análises e se estabeleça, para tanto, o marco temporal da pesquisa, bem como a área estabelecida para este estudo. O estudo centra-se no século XIX por ser possível ver aí a lenta transformação de uma sociedade senhorial e escravista para outra burguesa e capitalista 146 . Sabe-se que, a 146 Utilizo as expressões senhorial e escravista e burguesa e capitalista para designar momentos diferentes de um processo histórico dominados não apenas por características econômicas, materiais e sociais próprias, mas, sobretudo por valores e visões de mundo diferentes entre si. A título de exemplo pode-se ponderar que enquanto no primeiro são considerados valores importantes os laços de sangue e as distinções honoríficas características “de uma sociedade estamental apoiada na tradição da nobiliarquia portuguesa” (Centurião, 1999:245), no segundo valoriza-se o “individualismo, [...] a acumulação de capital tanto real quanto 40 partir da segunda metade do século XIX, as transformações ocorridas pelo desenvolvimento do Capitalismo em nível mundial são introduzidas no Brasil e, em menor escala, no Rio Grande do Sul (Pesavento,1996). Às transformações econômicas e sociais, corresponderam mudanças culturais que se expressaram também na cultura material e, conseqüentemente, na organização e estruturação dos espaços urbanos de Porto Alegre. O que se buscou foi a possibilidade de realizar um estudo comparativo, procurando as diferenças na organização, estruturação e articulação do espaço em seus aspectos físicos, sociais e imaginários, neste período, pela existência de duas ordens sociais distintas (Idem). Sabe-se, no entanto, que não é possível estabelecer uma data que seja um marco de instauração ou encerramento de uma determinada ordem social, ou deuma determinada forma de organizar o espaço. Assim, o que se considerou importante foi a possibilidade que este vasto período oferece de, por suas próprias características, favorecer o estudo aqui proposto. E por ser um período tão vasto, não seria possível fazer nenhum tipo de levantamento exaustivo de documentação. Por isto, procurei me deter onde esta documentação era mais facilmente acessível e que abarcasse as duas ordens sociais que se busca enfocar. Assim, a atenção maior recaiu sobre as décadas de 1830, 1870 e 1890, não significando que outros momentos não tenham sido contemplados aqui. Alguma documentação do início do século XX, que diz respeito mais de perto às formas arquitetônicas (Plantas e Processos para reformas e construções e, mesmo, fotografias) foram utilizadas para verificar em que medida e a que velocidade o processo iniciado na segunda metade do século XIX se desenrolava. simbólico), os critérios de „respeitabilidade‟, a fetichização do consumo e a ascensão social” (Lima: 1997: nota 2). 41 O local estabelecido para realizar a pesquisa situa-se na península, onde teve início a cidade, abrangendo a área que limita-se ao Norte com o Rio Guaíba (atual rua Sete de Setembro), a Oeste com a Rua da Passagem ( atual Volta do Gasômetro), ao Sul com a Rua da Prainha (atual Washington Luiz), e a Leste com a Ladeira do Liceu e Rua de Bragança (atual Marechal Floriano). Este recorte espacial foi escolhido por quatro razões: 1) situa-se no centro, onde a cidade começou; 2)insere-se em uma área na qual a densidade de testemunhos é elevada; 3) trata-se de uma área de potencial arqueológico, ou seja, uma área de “probabilidades de ocorrência de vestígios arqueológicos significantes 147 para a compreensão da ocupação do território” (Juliani, 1996: 2); 4) abrange ruas de moradia e atividades ligadas à classe dominante (Duque de Caxias, Riachuelo e Rua da Praia), uma área bem definida onde distribuem-se os espaços de poder (atualmente Praça da Matriz), uma série de becos onde estavam os pobres, os bordéis, o “perigoso”, como o Beco do Mandinga (atual General Canabarro), ou o Beco do Jogo de Bola (trecho da atual Bento Martins), ruas com habitações populares, como a rua do Arvoredo (atual Fernando Machado) ou a rua da Varzinha (atual Demétrio Ribeiro), além de uma série de áreas públicas como a Praça da Harmonia ou Largo do Arsenal (atual praça Brigadeiro Sampaio), o Alto da Praia ( Praça da Matriz), o Mercado Público, a beira do Rio (local de despejo de lixo por excelência), etc. Porto Alegre iniciou o século XIX como um pequeno núcleo urbano, contando com 3 rua principais (as atuais Rua da Praia, Riachuelo e Duque de Caxias) que a cortavam 147O grifo é meu. O critério para avaliar significância arqueológica é dado por Juliani (1996:103) que considera que é o “caráter informativo que uma determinada ocupação do solo possa conter em termos de vestígios culturais e o grau de visibilidade e preservação desses vestígios.” 42 longitudinalmente e quatro ruas transversais (Symanski, 1997:20). Segundo Escosteguy (1993:29), em 1804 a cidade tinha “apenas 7 ruas com edificações”. Porém, devido a sua localização privilegiada que a tornou centro escoadouro da produção da Província e de seu acelerado desenvolvimento econômico, Porto Alegre cresceu rapidamente, pulando de 3.927 habitantes em 1803 para 12.000 em 1820, 18.465 em 1858 e 52.000 habitantes em 1890 (Symanski, 1997:20). A este aumento populacional acelerado correspondeu uma expansão do núcleo urbano inicial, nem sempre na mesma proporção, o que ocasionou uma série de problemas. É esse espaço urbano que se constrói, que é apropriado de formas diferentes, dotado de significados e é, também, ressignificado durante o desenrolar do século XIX, que é alvo desta pesquisa. A primeira etapa deste trabalho consistiu em delinear o contexto histórico: as origens da cidade, a forma como se deu o seu crescimento, e estabelecer as ligações desse processo com as estruturas econômicas e sociais. Isto é importante não apenas para situar os dados materiais levantados em campo, mas também porque é necessário referir e manter ligadas as interpretações e reconstruções aos contextos históricos concretos. A par disto passei a examinar os Lugares da cidade em diferentes momentos, procurando suas modificação surgidas no transcurso de um processo histórico. Foram descritas e analisadas as diferentes unidades arqueológicas levantadas que incluem as estruturas arquitetônicas remanescentes do século XIX, além de praças, ruas, etc. Neste momento foram, também, apresentados os critérios adotados e as propostas teórico- metodológicas utilizadas no levantamento e análise dessas unidades. 43 Tomando outro ângulo de análise, tratei, num terceiro momento, dos Espaços em seus aspectos de ordenação e articulação, onde as representações sociais assumem papel fundamental. Também foram discutidos aí os aspectos teóricos e metodológicos utilizados na análise. 1. A CONSTITUIÇÃO E EXPANSÃO DO ESPAÇO URBANO DE PORTO ALEGRE O processo de constituição e expansão do espaço urbano de Porto Alegre está vinculado ao próprio processo de constituição e desenvolvimento da ordem social e econômica da região e, por isto, é preciso situá-lo. Assim, tentarei ordenar os aspectos que considerei importantes para delinear o contexto e o processo histórico. De início, quando o território do Rio Grande do Sul era uma fronteira a ser defendida e conquistada, toda atividade subordinava-se aos interesses da coroa portuguesa. A instalação das primeiras sesmarias, em 1740, no espaço hoje ocupado pela cidade de Porto Alegre, visou o gado que aqui se reproduzia livremente após a dissolução das estâncias do Tape. Dito de outra forma, essas sesmarias, antes de terem uma intenção de povoamento da região, faziam parte da política portuguesa que buscava participação no comércio do Rio da Prata (Monteiro, 1995). A disputa entre espanhóis e portugueses pelo território levou à assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que acarretou importantes conseqüências nas formas tomadas pela ocupação do espaço. 44 Em 1752 Gomes Freire, então governador da Capitania e comandante do exército demarcador do Tratado de Madri, determinou que parte dos homens que deveriam iniciar a demarcação das terras ficassem em Viamão, com o fim de construírem barcos para o transporte até as Missões (Martini, 1997:14). A necessidade de ocupação do território, neste contexto, levou a coroa portuguesa a implementar, ao lado da ocupação rarefeita representada pela sociedade pastoril, uma colonização “constituída de pequenos agricultores dedicados à lavoura e capazes de propiciar a urbanização de pontos fortificados” (Silva,1979:58). Daí a vinda dos açorianos. Não se sabe ao certo quantos deles teriam vindo para a região. Martini (1997: 16- 7), fala num número que varia de 181 a 278 famílias que representariam entre 833 e 1.400 pessoas, e que teriam chegado ao Porto do Dorneles um mínimo de 433 indivíduos, em 1752. De qualquer forma, o fato é que algumas famílias ficaram estabelecidas na área que deu origem à cidade de Porto Alegre. Como o destino desses açorianos era o território das Missões ( deveriam povoá-lo em decorrência dos acertos firmados no Tratado de Madri) e como o assentamento desses colonos nunca foi efetivado ali (por causa da Guerra Guaranítica), os primeiros habitantes do pequeno núcleo populacional situado à beira do Guaíba, abandonados pela Coroa, iniciaram o povoamento do lugar sem que houvesse intenção ou planejamento de espécie alguma. Neste período não há ruas, os lotes ainda não foram
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