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1999 THIESEN_Arqueologia da área central de Porto Alegre

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uma identidade frente a 
outras ciências sociais – que no nosso meio acadêmico ainda insistem em considerá-la 
como uma espécie de apêndice
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 (desnecessário, é claro) – a Arqueologia assume e 
“vende” esta sua imagem romântica e esse seu interesse pelo que poderia ser chamado de o 
outro-remoto. 
 
O estudo da própria cultura em um tempo extremamente recente, do ponto-de-vista 
de quem está acostumado a tratar com milênios e com povos exóticos, é causa de, no 
mínimo, um certo desdém e, às vezes, de um grande espanto
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. E mais, aqui se perde a 
imagem, que nos é tão cara (veja-se com que alegria essas peripécias são contadas nas 
mesas de bar), do arqueólogo que se defronta com todo tipo de dificuldades, desconfortos e 
intempéries a fim de salvar o que, sem ele, estaria para sempre perdido. 
 
Pesquisar o que nos é tão familiar e tão próximo como a cidade onde nascemos e 
sempre vivemos, faz com que os problemas a serem enfrentados sejam bem diferentes 
daqueles que são pelo “típico” arqueólogo. 
 
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 Kern (1996:35) argumenta: “Para muitas pessoas, inclusive profissionais de nível superior, a arqueologia 
é ainda hoje apenas vista como uma técnica de pesquisa praticada por alguns especialistas. Entretanto, ela é 
muito mais do que isto, pois atualmente ela adquire um papel importante como meio de cultura essencial, 
base do conhecimento das Ciências Humanas e – portanto – elemento fundamental na formação de um 
humanismo moderno.” 
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 Esta observação refere-se particularmente ao caso brasileiro e não deve ser entendida como uma 
generalização que vá além destes limites. É sabido que na Europa, por exemplo, onde a arqueologia surgiu 
mais ligada à história, pesquisas como esta são cotidianas e incluem a arqueologia medieval, gallo-romana, ou 
mesmo das cidades do século XIX. 
 
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No entanto, quem pensa que é difícil atravessar zonas alagadiças em campo, 
experimente tentar observar um prédio do centro de Porto Alegre (você estará olhando para 
cima) às 15 horas de uma tarde de dezembro (lembra o calor e o Natal?). Se for uma rua 
onde há tráfego de carros, há o risco de atropelamento, se for onde só passam pedestres, o 
risco é o mesmo, acrescentando-se que a pessoa a dizer impropérios não estará se afastando 
em um carro. Além disto, há os gerentes das lojas a pedirem que se saia da frente das 
vitrines e solícitos transeuntes sempre dispostos a fornecerem as mais descabidas 
informações à quem eles supõem ser uma entrevistadora dos mais insólitos temas. Isto para 
não falar dos terrenos repletos de caliça e lixo (atual), que se faz acompanhar de um odor 
característico, e onde é preciso andar, sempre em busca de mais algum vestígio; ou, ainda, 
de proprietários pouco amistosos que estariam mais felizes se você estivesse bem longe de 
suas casas e terrenos. Você terá que tomar suas anotações, de preferência, caminhando (e 
olhando por onde anda) e o vento que encana nas esquinas durante a primavera poderá 
fazer com que folhas, fotos e mapas se espalhem por uma área que parecerá imensa, tendo 
em vista os milhares de pés que ameaçam pisotear os dados recolhidos. 
 
No entanto, os problemas não se resumem a este lado mais prosaico. Aqueles 
ligados ao fato de estar pesquisando algo tão familiar foram os mais importantes. Realizar o 
que os antropólogos chamam de “estranhamento” foi um exercício difícil. Não se tratava 
apenas de ver com outros olhos um espaço tão conhecido, mas para além disto e como 
alertou Gilberto Velho (1980:17), perceber sistemas de classificação e representações de 
uma sociedade que, em muitos aspectos, é a minha própria sociedade. Colocava-se a 
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questão de enfrentar os meus próprios limites de participante de uma cultura, de um grupo 
social e, portanto, com uma visão de mundo de alguma forma comprometida . 
 
Não cabe analisar aqui esse processo de transformação do familiar em exótico
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, 
apenas sublinhar o fato de que a aparente facilidade de estudar um objeto já tão 
“conhecido” é o que torna a tarefa mais difícil e complexa: é preciso questionar aquilo que 
pela própria familiaridade parece ser o natural, na verdade, o senso-comum. É duvidar de 
conhecimentos consagrados, criticar, problematizar e questionar o objeto e a si mesmo. ...e 
rapidamente perceber que um povo que bebe em malgas e não em xícaras, que dorme em 
minúsculas peças sem ventilação (alcovas), que compra sanguessugas importadas em 
Barbearias, joga seu lixo pela porta dos fundos (e muitas vezes pela da frente) de casa, que 
compra farinha, brincos de ouro e gente (escravos) no mesmo lugar (armazém) e que coloca 
um cágado numa fonte (com a intenção de manter a água limpa) e um guarda para cuidar da 
segurança deste cágado que, ao final, acaba morto (o cágado) por um grupo de estudantes, 
é, sem dúvida, um povo muito exótico. E, então, é preciso compreender esse povo, a partir 
do reconhecimento da diferença. Porque é só a partir deste reconhecimento que surge a 
possibilidade de pensá-los, procurando seus próprios termos, mais que impondo nossas 
categorias a eles. E foi o que tentei fazer, buscando e analisando, um pouco no sentido 
proposto por Geertz (1999), as formas simbólicas em cujos termos aquelas pessoas 
representaram seus espaços, bem como a suas experiências em relação a esses espaços. 
 
Por outro lado, é preciso evitar a armadilha de tratar o objeto de pesquisa cidade-
sítio como muitas vezes alguns arqueólogos pré-históricos brasileiros tratam uma “aldeia”, 
 
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 Sobre esta questão ver Velho (1978 e 1980) e, ainda, Da Matta (1984). 
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um sítio pré-histórico: “é preciso levar em consideração a malha de relações que [o 
objeto] mantém com a sociedade envolvente: a dinâmica de um espaço não se esgota em 
seu perímetro” (Magnani, 1993:48) da mesma maneira (e parafraseando Magnani), que o 
significado mais amplo de uma aldeia guarani vai além dos limites da própria aldeia. 
 
Alguns dos grandes problemas enfrentados na realização de um trabalho como o 
que apresento aqui, situam-se no âmbito da própria Arqueologia. Historicamente, um dos 
primeiros objetivos perseguidos pelos arqueólogos “foi a reconstituição das culturas e de 
sua situação no tempo” (Kern, 1998:168). Isto implicou em atividades de campo que 
privilegiaram a verticalidade nas escavações e a ênfase dos trabalhos de laboratório nas 
tipologias (Idem). Em tempos mais recentes tem-se buscado a “inserção dos elementos da 
cultura material em um determinado contexto estratigráfico” e suas relações com outros 
contextos e outros sítios (Ibidem).
 
Não é de hoje, portanto, que estudos de etnoarqueologia, 
arqueologia regional, da paisagem, entre outros, tem enfocado aspectos como hierarquias 
sociais, simbologia, crenças, intercâmbios, etc. Porém, a Arqueologia Histórica possui uma 
característica especialmente marcante: “a ampliação de seus territórios, de seus campos de 
atuação” (Ibidem:169). Este fato – voltar-se a um campo de estudos muito recente, a 
cidade, (friso: recente no Brasil) – implica, por um lado, no surgimento de problemas 
teóricos e metodológicos e, de outro, na resistência de alguns setores em aceitar este tipo de 
trabalho. 
 
Com relação aos primeiros problemas (de ordem teórico-metodológicos), as 
propostas apresentadas pela arqueologia da paisagem tem se mostrado como um caminho 
de grande potencial para a compreensão de sociedades do passado: as paisagens estão entre 
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as mais profícuas fontes de evidências sobre elas
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. Portanto, é importante colocar alguns 
pontos que estão na base da construção desta pesquisa. 
 
Uma descrição da paisagem de Porto Alegre poderia começar assim: a cidade está 
edificada a 30º01‟57” de latitude sul e 8º07‟20” de longitude oeste do meridiano do Rio de 
Janeiro (só para complicar), banhada pelas águas do Guaíba.
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