um sistema onde um valor importante é relacionar. No caso dos espaços, ao excluir qualquer possibilidade de impessoalidade na sua classificação e ao impregná-los de valores estéticos e sociais (da mesma forma como é feito com as alcunhas), hierarquizavam-se coisas, ao mesmo tempo que se trata de juntar essas mesmas coisas. A cidade destes tempos mostrava, usando uma expressão de Centurião (op. cit.: 288), o princípio básico da harmonia entre opostos, num contexto que, “se por um lado, 276 abria espaço para a contradição e o antagonismo, por outro lado enfatizava a harmonia, a amálgama e a convergência” (Idem: 287). Assim, não é que os espaços sejam indiferenciados. É que a forma de classificá- los é outra, diferente daquela que realizamos hoje. Poderia arriscar uma proposição e ir um pouco adiante: é possível que o espaço também fosse diferenciado pela variedade de sons e odores que povoavam os ares da cidade. Ainda que, talvez, não fossem produtos intencionais da ação humana e, quem sabe, meros subprodutos não-intencionais, é bom lembrar, como Hall (op. cit.) bem lembrou, que a percepção do espaço está amarrada aos sentidos, que são, ao menos, mais três além da visão e do tato sobre os quais as arqueólogos tem fixado a atenção. Se hoje fazemos o possível para suprimir odores e sons, considerados indesejáveis no espaço público, isto nem sempre foi assim 187 . Como produto incidental de ações culturais, a paisagem também sofreu modificações. Foi assim que odores provenientes de águas paradas, do lixo e dos despejos, característicos da cidade do século XIX, passaram a ser, pouco a pouco, considerados indesejáveis e vistos como emanações que promoviam doença física e moral, numa associação direta entre pobreza, insalubridade, desordem espacial, doença e corrupção moral. O imaginário moderno, instrumentalizado pelo discurso higienista e por modelos de reordenação urbana forjados num amplo processo que situou-se muito além de limites regionais e nacionais, decretou que eles deveriam ser suprimidos. As transformações ocorridas na estruturação ordenação e articulação dos espaços de Porto Alegre foram vagarosas e inserem-se em um processo extremamente 187 Sobre esta questão há o interessante estudo feito por Curbin (1987). 277 complexo envolvendo mudanças na estrutura econômica, social e política, conforme tentei mostrar no primeiro capítulo deste trabalho. A lentidão com que se realizaram tais alterações, ao contrário do que possa parecer quando se trata de descrever este processo, é ainda mais evidente quando se considera que elas envolveram componentes imaginários. A emergência de valores burgueses e de uma visão de mundo burguesa, que desencadearam ações conscientes que marcaram a paisagem urbana da Porto Alegre do final do século XIX, realizou-se neste processo. 3.2 Os Espaços da Porto Alegre do Final do Século XIX: Olhando a distribuição das atividades na planta de 1896 verificamos que houve uma multiplicação de práticas que se realizam em espaços distintos. As áreas públicas de lazer se multiplicaram. Antes, praticamente restritas aos dias de festa na Praça da Matriz, os passeios das famílias incluíram a Praça da Harmonia no noroeste da península, a Praça da Alfândega bem ao centro, a Praça XV de Novembro, mais ao leste e a Própria Praça da Matriz, além das ruas da cidade. A Praia do Riacho ganhou status de balneário, onde as famílias iam banhar-se nos dias de calor. “Muitas famílias de trato alugavam casas em todo aquele trecho fronteiro à praia do Riacho para terem banho à mão. Outros, que não dispunham de meios para isso, formavam ranchos, e quase sempre depois do toque de 278 silêncio, encaminhavam-se para o Riacho, onde iam cumprir uma prescrição médica, uma necessidade higiênica ou simplesmente refrescar os ardores da canícula. E como era deliciosa aquela ablução, numa praia limpa e arenosa” (Porto Alegre, op. cit.: 145). Mas a praia do Riacho foi, também, lugar onde se lavava a roupa, conforme é possível observar em fotografia da virada do século. As Lavadeiras da Praia do Riacho. Irmãos Ferrari, final do século XIX (FSB – MJJF) As fontes de captação da água viraram elementos estéticos: ainda que os chafarizes continuassem fornecendo água a uma parte considerável da população, sua principal função era decorativa. A hidráulica instalou-se junto ao centro do Poder, na Praça da Matriz. 279 As ruas possuíam placas e as casas números. Porém, como é possível observar na planta cadastral de 1895, tratava-se de uma numeração absolutamente caótica: números que se repetiam, números ímpares e pares alternando-se no mesmo lado da rua, ou numeração não-seqüencial. A fim de procurar uma diferenciação na localização de atividades econômicas diversas, foi realizado um amplo levantamento nos livros de impostos no ano de 1895 (AHMV). Nestes livros foi possível saber que tipo de negócio era feito e o endereço onde ele se realizava 188 . A idéia era plotar essas diversas atividades no mapa cadastral de 1895, utilizando-se a numeração da edificações que constavam ali. Este esforço, na prática, evidenciou ser absolutamente inútil pois, uma mesma quitanda, por exemplo, poderia estar localizada em três pontos distintos da mesma rua, onde a numeração se repetia em edificações diferentes. Além disso, muitos números que constam nos livros, não existem no mapa 189 . A solução encontrada foi dividir as ruas em segmentos, tomando como referência dois números limites em cuja seção, assim definida, se pudesse localizar, de forma ampla, uma certa quantidade de atividades. Por exemplo, na Rua da Praia, do seu início até a esquina da General Câmara a numeração das edificações varia entre os nº s 1 e 359, alguns deles se repetindo em prédios diferentes. Daí até a rua de Bragança a numeração varia entre os nº s 176 e o 479. 188 Infelizmente essas informações só foram possíveis de obter para o final do século, já que não encontrou-se documentação contendo estes dados relacionados a épocas mais antigas. 189 Provavelmente este fato esteja ligado à questão de que a planta deve ter levado um tempo relativamente longo para ser produzida. A data de finalização é o ano de 1895, o que não quer dizer que o levantamento das edificações corresponda a esta data. 280 Assim, sabemos que todo número menor que 176 encontra-se no primeiro segmento da rua e todo maior que 359 está no segundo segmento. Um grande número de atividades (aquelas que se localizam em edificações numeradas entre os nº s 176 e 359), ficou, de qualquer forma, sem localização podendo estar tanto num quanto no outro segmento. Em algumas ruas a confusão de números não era tanta, permitindo uma localização mais precisa. A partir desta delimitação de atividades em seções determinadas das ruas, elaboraram-se tabelas que resultaram em gráficos que tiveram como finalidade procurar estabelecer possíveis diferenciações na ocupação das ruas por atividades diversas. Para atingir este objetivo, as atividades econômicas foram divididas em duas amplas categorias: a) atividades ligadas ao comércio e à prestação de serviços e b) atividades que envolvam um pequeno e médio artesanato 190 . Existe uma óbvia dificuldade em estabelecer uma divisão deste tipo, uma vez que muitas atividades envolvem tanto a produção quanto a comercialização de produtos. É o caso, por exemplo, de restaurantes e padarias. Assim, optou-se por levar em conta aquilo que deveria ter sido atividade principal. Neste sentido, no caso do restaurante, por exemplo, a atividade comercial sobrepõe-se à atividade de produção. Ainda com relação a estas atividades, houve a preocupação em tentar acercar-se do entendimento