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1999 THIESEN_Arqueologia da área central de Porto Alegre

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Trata-se de um lago, apesar 
de seus habitantes chamarem-no de rio. O terreno onde se erguem as casas é, em parte, 
sedimentar (na parte próxima ao lago), e em parte composto por rochas graníticas, que 
formam um promontório. Seguindo esta linha, poderia dizer que ela está situada na 
extremidade do Escudo Riograndense, descrever a geologia da área, sua vegetação e seus 
aspectos climáticos. Mas não creio que estivesse dizendo muita coisa que importasse para 
este estudo. 
 
A paisagem, aqui, não tem o sentido da geografia física. O meio físico tem apenas 
uma importância secundária, ainda que a paisagem possa possuir uma forma física 
influenciada por fatores como o relevo e o clima. Aqui a paisagem é, acima de tudo, uma 
paisagem social e ela pode – e deve – ser considerada como uma fonte importantíssima 
para compreender a vida dos porto-alegrenses do passado. A paisagem não é cenário, nem 
pano de fundo e “mais que um simples reflexo da organização das coisas, ou mediadora de 
 
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 A arqueologia da paisagem vem sendo empregada no Brasil preferentemente pelos arqueólogos históricos 
e pode apontar importantes caminhos para a pesquisa pré-histórica, tomando o sentido inverso do que ocorreu 
na Europa, depois da pesquisas de Leroi-Gourhan do Magdeleniense em Pincenent, onde a pesquisa pré-
histórica muito ensinou à arqueologia histórica. 
 
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gostos, a paisagem é uma força ativa na criação, legitimação e mudança social”
134
 
(Rubertone, 1989: 50). 
 
Considerar a paisagem nos termos da Arqueologia, aplicando-lhe os métodos da 
cultura material, implica em pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito. 
Neste sentido, a paisagem tem sido tratada como artefato por muitos arqueólogos. Mark 
Leone (1996), por exemplo, em seu trabalho em William Paca Garden, Annapolis, 
Maryland, mostrou como ela pode ser construída para legitimar uma hierarquia social. 
Neste caso específico, o arqueólogo não está tratando mais com um artefato tecnômico ou 
sociotécnico, como colocou Rubertone (1989:52) muito propriamente, mas com um artefato 
ideotécnico
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. Muitos outros tem trilhado o mesmo caminho, embora com enfoques 
diversos. 
 Patrícia Rubertone, como Leone e muitos outros, enfatiza as relações de 
intencionalidade entre pessoas e artefatos
136
. Isto implica em considerar a paisagem urbana 
como uma ação consciente que reflete comportamentos culturalmente determinados. Como 
ação intencional, portanto como artefato, ela promove objetivos políticos, econômicos, 
sociais e os expressa. Pode-se pensar, então, que através da paisagem urbana, assim 
 
134
 Os trechos que estavam originalmente em língua estrangeira foram traduzidos quando citados neste 
trabalho. A responsabilidade desta tradução é minha. Da mesma forma, quando foram citados documentos 
antigos, escritos num português da época, eles sofreram uma atualização ortográfica, que também é de minha 
responsabilidade. 
 
135
 Binford (1962) considerou a divisão da cultura material em 3 sub-classes, tendo em vista as funções que os 
artefatos desempenham em diferentes contextos: 1) artefatos tecnômicos, cuja função é fundamentalmente 
utilitária, ligando-se diretamente ao meio físico e à tecnologia da cultura; 2) artefatos sóciotécnicos, que tem 
seu contexto funcional primário no sistema social ; e 3) artefatos ideotécnicos cujo uso liga-se a contextos 
ideológicos do sistema social. Deetz (1977:51) chamou a atenção para o fato que os mesmos artefatos podem 
ter funções em todos os três níveis simultaneamente. 
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 Rubertone considera que a paisagem é aquela porção do terreno “que tem sido formada e modificada por 
ações humanas e desenhada conscientemente para fornecer moradia, acomodando o sistema de produção, 
facilitando o transporte, marcando diferenças sociais e expressando estética” (Rubertone, 1989: 50). 
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definida, podemos chegar a saber sobre estruturas sociais, valores culturais e outros 
aspectos não materiais da cultura. 
 
Não há como duvidar que existe uma relação de intencionalidade entre o homem e o 
artefato-paisagem-urbana. E se não fosse assim não poderíamos pensar em conhecer, pela 
análise da cultura material, aspectos não materiais da cultura.
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 No entanto, Upton (1992) 
chamou a atenção para o perigo de reduzir essa paisagem ao resultado de uma relação 
puramente intencional. Para ele, e eu concordo, é necessário entendê-la para além disto, 
“para o produto incidental de uma ação cultural” (Idem: 52). Não se trata, portanto, de 
“examinar simples relações entre intenção mental e criação física, entre a mente e o 
artefato (mas) o estudo da cidade como cultura material obriga a investigar as relações 
recíprocas entre os homens e as alterações humanas do ambiente, levando em conta 
intenção e reação, ação e interpretação” (Ibidem). 
 
Retomando, então, uma descrição da paisagem portalegrense, eu diria que, para este 
fim, importa menos saber se o Guaíba é um rio ou um lago e interessa mais a forma como 
ele é percebido e utilizado pelos habitantes da cidade e qual a sua importância para eles. É 
preciso considerar os aspectos geográficos, mas apenas na medida de sua relação com as 
gentes do local. Por exemplo, descrevendo alguns aspectos de Porto Alegre na década de 
1830: no ponto mais alto do promontório ergueu-se a Matriz e o Palácio
138
, local que é 
 
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 Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um 
conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é”fornecer 
acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”(Deetz, 1988 : 220) 
138
 Ainda que as Ordenações do Reino estabelecessem diretrizes quanto a localização de edifícios públicos e 
da Igreja Matriz, bem como algumas regras gerais para o traçado urbano (Rhoden, 1999:177), o que importa 
aqui é que este traçado e esta localização correspondem às idéias, aos planos culturais, para utilizar a 
expressão de Deetz (op. cit) que estão na base da construção dessa paisagem. 
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considerado como o ponto mais nobre da cidade – o Alto da Praia. Lá embaixo, junto ao 
“rio”, está o Largo da Quitanda, onde se pode ver os negros a venderem frutas, charque, 
lenha, hortaliças e outros gêneros. O Largo está junto ao prédio da Alfândega e ao trapiche, 
onde os comerciantes da cidade se reúnem para conversar e negociar e por onde chegam e 
saem os produtos de importação e exportação. Um pouco mais a oeste, e também junto ao 
“rio”, está o Largo da Forca, situado próximo ao Arsenal de Guerra, aonde se chega 
descendo o “morro” por um dos estreitos e sujos becos que ligam a elegante Rua da Igreja 
à comercial e militar Rua da Praia. Assim, colocado o entendimento acerca do que sejam 
as paisagens, o problema básico que precisa ser resolvido é de que forma podemos 
reconhecer essa paisagem do passado. 
 
 Com óbvios fins analíticos proponho examinar a paisagem decompondo-a em dois 
elementos: lugares e espaços
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. 
 Os lugares são aqueles elementos onde mais freqüentemente os arqueólogos 
costumam centrar suas pesquisas: trata-se de onde as coisas estão, ou, dito de outra forma, 
daqueles locais cuja materialidade torna-os unidades arqueologicamente identificáveis 
pelos seus vestígios no solo. Pode ser uma casa, uma rua, uma praça, uma lixeira coletiva. 
O lugar é algo concreto e mensurável. Possui limites nítidos e bem determinados e pode ser 
 
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 Esta divisão já foi proposta muitas vezes. Rubertone (1986) propôs uma análise utilizando essas 
categorias e propugnando uma visão que englobasse as ligações entre ambas. Orser (1996) também 
considerou esta divisão. Se, por um lado, parece que todos estão de acordo com
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