Trata-se de um lago, apesar de seus habitantes chamarem-no de rio. O terreno onde se erguem as casas é, em parte, sedimentar (na parte próxima ao lago), e em parte composto por rochas graníticas, que formam um promontório. Seguindo esta linha, poderia dizer que ela está situada na extremidade do Escudo Riograndense, descrever a geologia da área, sua vegetação e seus aspectos climáticos. Mas não creio que estivesse dizendo muita coisa que importasse para este estudo. A paisagem, aqui, não tem o sentido da geografia física. O meio físico tem apenas uma importância secundária, ainda que a paisagem possa possuir uma forma física influenciada por fatores como o relevo e o clima. Aqui a paisagem é, acima de tudo, uma paisagem social e ela pode – e deve – ser considerada como uma fonte importantíssima para compreender a vida dos porto-alegrenses do passado. A paisagem não é cenário, nem pano de fundo e “mais que um simples reflexo da organização das coisas, ou mediadora de 133 A arqueologia da paisagem vem sendo empregada no Brasil preferentemente pelos arqueólogos históricos e pode apontar importantes caminhos para a pesquisa pré-histórica, tomando o sentido inverso do que ocorreu na Europa, depois da pesquisas de Leroi-Gourhan do Magdeleniense em Pincenent, onde a pesquisa pré- histórica muito ensinou à arqueologia histórica. 25 gostos, a paisagem é uma força ativa na criação, legitimação e mudança social” 134 (Rubertone, 1989: 50). Considerar a paisagem nos termos da Arqueologia, aplicando-lhe os métodos da cultura material, implica em pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito. Neste sentido, a paisagem tem sido tratada como artefato por muitos arqueólogos. Mark Leone (1996), por exemplo, em seu trabalho em William Paca Garden, Annapolis, Maryland, mostrou como ela pode ser construída para legitimar uma hierarquia social. Neste caso específico, o arqueólogo não está tratando mais com um artefato tecnômico ou sociotécnico, como colocou Rubertone (1989:52) muito propriamente, mas com um artefato ideotécnico 135 . Muitos outros tem trilhado o mesmo caminho, embora com enfoques diversos. Patrícia Rubertone, como Leone e muitos outros, enfatiza as relações de intencionalidade entre pessoas e artefatos 136 . Isto implica em considerar a paisagem urbana como uma ação consciente que reflete comportamentos culturalmente determinados. Como ação intencional, portanto como artefato, ela promove objetivos políticos, econômicos, sociais e os expressa. Pode-se pensar, então, que através da paisagem urbana, assim 134 Os trechos que estavam originalmente em língua estrangeira foram traduzidos quando citados neste trabalho. A responsabilidade desta tradução é minha. Da mesma forma, quando foram citados documentos antigos, escritos num português da época, eles sofreram uma atualização ortográfica, que também é de minha responsabilidade. 135 Binford (1962) considerou a divisão da cultura material em 3 sub-classes, tendo em vista as funções que os artefatos desempenham em diferentes contextos: 1) artefatos tecnômicos, cuja função é fundamentalmente utilitária, ligando-se diretamente ao meio físico e à tecnologia da cultura; 2) artefatos sóciotécnicos, que tem seu contexto funcional primário no sistema social ; e 3) artefatos ideotécnicos cujo uso liga-se a contextos ideológicos do sistema social. Deetz (1977:51) chamou a atenção para o fato que os mesmos artefatos podem ter funções em todos os três níveis simultaneamente. 136 Rubertone considera que a paisagem é aquela porção do terreno “que tem sido formada e modificada por ações humanas e desenhada conscientemente para fornecer moradia, acomodando o sistema de produção, facilitando o transporte, marcando diferenças sociais e expressando estética” (Rubertone, 1989: 50). 26 definida, podemos chegar a saber sobre estruturas sociais, valores culturais e outros aspectos não materiais da cultura. Não há como duvidar que existe uma relação de intencionalidade entre o homem e o artefato-paisagem-urbana. E se não fosse assim não poderíamos pensar em conhecer, pela análise da cultura material, aspectos não materiais da cultura. 137 No entanto, Upton (1992) chamou a atenção para o perigo de reduzir essa paisagem ao resultado de uma relação puramente intencional. Para ele, e eu concordo, é necessário entendê-la para além disto, “para o produto incidental de uma ação cultural” (Idem: 52). Não se trata, portanto, de “examinar simples relações entre intenção mental e criação física, entre a mente e o artefato (mas) o estudo da cidade como cultura material obriga a investigar as relações recíprocas entre os homens e as alterações humanas do ambiente, levando em conta intenção e reação, ação e interpretação” (Ibidem). Retomando, então, uma descrição da paisagem portalegrense, eu diria que, para este fim, importa menos saber se o Guaíba é um rio ou um lago e interessa mais a forma como ele é percebido e utilizado pelos habitantes da cidade e qual a sua importância para eles. É preciso considerar os aspectos geográficos, mas apenas na medida de sua relação com as gentes do local. Por exemplo, descrevendo alguns aspectos de Porto Alegre na década de 1830: no ponto mais alto do promontório ergueu-se a Matriz e o Palácio 138 , local que é 137 Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é”fornecer acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”(Deetz, 1988 : 220) 138 Ainda que as Ordenações do Reino estabelecessem diretrizes quanto a localização de edifícios públicos e da Igreja Matriz, bem como algumas regras gerais para o traçado urbano (Rhoden, 1999:177), o que importa aqui é que este traçado e esta localização correspondem às idéias, aos planos culturais, para utilizar a expressão de Deetz (op. cit) que estão na base da construção dessa paisagem. 27 considerado como o ponto mais nobre da cidade – o Alto da Praia. Lá embaixo, junto ao “rio”, está o Largo da Quitanda, onde se pode ver os negros a venderem frutas, charque, lenha, hortaliças e outros gêneros. O Largo está junto ao prédio da Alfândega e ao trapiche, onde os comerciantes da cidade se reúnem para conversar e negociar e por onde chegam e saem os produtos de importação e exportação. Um pouco mais a oeste, e também junto ao “rio”, está o Largo da Forca, situado próximo ao Arsenal de Guerra, aonde se chega descendo o “morro” por um dos estreitos e sujos becos que ligam a elegante Rua da Igreja à comercial e militar Rua da Praia. Assim, colocado o entendimento acerca do que sejam as paisagens, o problema básico que precisa ser resolvido é de que forma podemos reconhecer essa paisagem do passado. Com óbvios fins analíticos proponho examinar a paisagem decompondo-a em dois elementos: lugares e espaços 139 . Os lugares são aqueles elementos onde mais freqüentemente os arqueólogos costumam centrar suas pesquisas: trata-se de onde as coisas estão, ou, dito de outra forma, daqueles locais cuja materialidade torna-os unidades arqueologicamente identificáveis pelos seus vestígios no solo. Pode ser uma casa, uma rua, uma praça, uma lixeira coletiva. O lugar é algo concreto e mensurável. Possui limites nítidos e bem determinados e pode ser 139 Esta divisão já foi proposta muitas vezes. Rubertone (1986) propôs uma análise utilizando essas categorias e propugnando uma visão que englobasse as ligações entre ambas. Orser (1996) também considerou esta divisão. Se, por um lado, parece que todos estão de acordo com