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Mód. VIII – Nascimento, Crescimento e Desenvolvimento 1 Trio Help Med – Ana Luísa Uzêda CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO No conceito ampliado da desnutrição, entende-se que o estado de deficiência ou excesso tanto de macronutrientes quanto de micronutrientes causa desequilíbrio entre o suprimento de energia, de nutrientes e a demanda do organismo, alterando a garantia na manutenção, no crescimento e nas funções metabólicas. Exemplo: uma criança obesa com deficiência de ferro também apresenta desnutrição de acordo com esse conceito. A desnutrição energético-proteica (DEP) pode ser classificada como: PRIMÁRIA Quando não há outra doença associada (relacionada à insegurança alimentar); SECUNDÁRIA Quando há doença relacionada (geralmente por baixa ou inadequada ingestão alimentar; por alteração na absorção ou por necessidades nutricionais aumentadas e/ou perdas aumentadas de nutrientes. P.ex., DEP associada a cardiopatias congênitas, doença celíaca ou síndrome da imunodeficiência adquirida). Com relação à forma clínica, o tempo e a gravidade contribuem para a definição e a classificação da desnutrição. Identificam-se indivíduos emagrecidos (wasted) e/ou com parada de crescimento (stunted), conforme o tempo de curso. Em 2012, a World Health Assembly Resolution aprovou um plano de implementação global sobre saúde materna, nutrição de lactentes e crianças pequenas, que especificava seis metas nutricionais globais para 2025. Essa proposta tem como uma das metas a redução de 40% no número de crianças menores de 5 anos que apresentam déficit estatural (stunting). Quanto à gravidade, há as formas moderada e grave. Esta última baseia-se em critérios clínicos e laboratoriais e é dividida em: marasmo, kwashiorkor e kwashiorkor-marasmático. FISIOPATOLOGIA O conhecimento da clínica e da fisiopatologia da DEP é fundamental para a redução da mortalidade e o êxito da terapia nutricional. A criança com DEP vive um delicado equilíbrio homeostático, limítrofe ao colapso endócrino-metabólico. A intrínseca relação das vias de utilização energética promove mudanças intensas em múltiplos sistemas orgânicos: endócrino, imune, nervoso central, gastrointestinal, cardiovascular e renal. A escassez de nutrientes, na DEP moderada e grave, favorece hipoglicemia, lipólise, glicólise, glicogenólise e neoglicogênese, secundárias às alterações nos eixos da insulina, com diminuição da produção e aumento da resistência periférica pela ação dos hormônios contrarreguladores (hormônio de crescimento, epinefrina e corticosteroides). Além disso, há redução no metabolismo com alterações na via tireoidiana de aproveitamento de iodo e conversão hormonal (formas ativas), a fim de reduzir o gasto de O2 e conservar energia. A redução na oferta de fosfatos energéticos promove alterações nas bombas iônicas de membrana celular, cursando com sódio corporal elevado e hiponatremia, hipopotassemia, hipercalcemia e maior tendência a edema intracelular. Ajustado à época de aparecimento e ao grau da DEP, alterações morfofuncionais do sistema nervoso central (SNC) são esperadas, com mudanças no processo de mielinização do SNC, nas atividades Desnutrição Energético-proteica Mód. VIII – Nascimento, Crescimento e Desenvolvimento 2 Trio Help Med – Ana Luísa Uzêda mitóticas dendríticas, produção de neurotransmissores e no amadurecimento da retina. De forma marcante, as alterações gastrointestinais envolvem insuficiência pancreática, crescimento bacteriano, atrofia das vilosidades intestinais, com redução da capacidade absortiva do organismo, e comprometimento na produção das dissacaridases, com ênfase na lactase. Por muito tempo, o kwashiorkor, forma grave, não foi reconhecido como desnutrição. Foi graças à descrição de Williams, em 1933, que se passou a reconhecer o quadro como desnutrição. A etimologia da palavra, na língua de Ghana, significa “doença do primogênito, quando nasce o segundo filho”. As causas do kwashiokor são complexas, mas, de acordo com Golden, a causa primária da DEP grave, em geral, associa-se a uma dieta com qualidade nutricional pobre (incluindo deficiência de zinco, fosforo e magnésio), com consequente perda do apetite, comprometimento do crescimento e resposta desfavorável a infecções, modificando a resposta da criança diante do estresse ambiental. QUADRO CLÍNICO MARASMO Acomete crianças menores de 12 meses, com emagrecimento acentuado, baixa atividade, irritabilidade, atrofia muscular e subcutânea, com desaparecimento da bola de Bichat (último depósito de gordura a ser consumido, localizado na região malar), o que favorece o aspecto envelhecido (fáscies senil ou simiesca), com costelas visíveis e nádegas hipotróficas. O abdome pode ser globoso e raramente com hepatomegalia. Mód. VIII – Nascimento, Crescimento e Desenvolvimento 3 Trio Help Med – Ana Luísa Uzêda MARASMO KWASHIORKOR Acomete crianças acima de 2 anos; caracteriza-se por alterações de pele (lesões hipercrômicas, hipocrômicas ou descamativas), acometimento de cabelos (textura, coloração, facilidade de soltar do couro cabeludo), hepatomegalia (esteatose), ascite, face de lua, edema de membros inferiores e/ou anasarca e apatia. O edema geralmente é bilateral simétrico, começa nos pés (marcado 1+ edema), progride para os pés e as mãos baixas (2+ edema) e, em casos graves, pode envolver a face (3+ edema). + Observação: Também existe o tipo misto de desnutrição, o Kwashiokor-marasmático. DIAGNÓSTICO Para o diagnóstico da desnutrição, é fundamental considerar os aspectos geográficos heterogêneos no Brasil, pois há áreas com: Fome por escassez de recursos econômicos (p.ex., região Nordeste e alguns bolsões de pobreza das grandes cidades): prevalecem as formas graves tipo marasmo. Riqueza de recursos naturais (fauna e flora – como na região Norte, Amazônia), mas com desconhecimento da oferta adequada dos alimentos regionais disponíveis para as crianças. Por vezes, há práticas inadequadas, como a oferta de mingaus contendo apenas água e farinha, pobres em proteínas e micronutrientes (insegurança alimentar): prevalecem as formas graves tipo kwashiorkor. Deficiência de micronutrientes: fome oculta. A avaliação nutricional pode ser realizada por meio de quatro procedimentos básicos: anamnese, exame físico, incluindo a aferição de medidas antropométricas, como medida da circunferência braquial (CB), escore Z de peso para estatura (ZPE) e exames laboratoriais. Mód. VIII – Nascimento, Crescimento e Desenvolvimento 4 Trio Help Med – Ana Luísa Uzêda ANAMNESE Deve-se dar ênfase aos antecedentes neonatais (prematuridade, crescimento intrauterino restrito), nutricionais (aleitamento materno – sim ou não; se sim, qual o tempo de exclusivo e total; se não – registrar o motivo; na história ali- mentar, identificar se há deficiência na quantidade e/ou qualidade); aspectos psicossociais, condições de saneamento e moradia, presença ou não de doenças associadas. Inicialmente, avalia-se a forma da desnutrição considerando os seguintes questionamentos: • quem é esta criança (condições gestacionais maternas, ante- cedentes neonatais e pessoais); • quando começou a alterar seu peso e/ou altura; • onde mora (qual a região, condições de moradia e entorno), integração com equipe de saúde. Na DEP grave, avalia-se a presença de complicações clínicas e metabólicas que justifiquem a internação hospitalar. Na ausência de medidas antropométricas, a desnutrição grave também pode ser diagnosticada com base na avaliação clínica, verificando-se a presença de emagrecimento intenso visível; alterações dos cabelos; dermatoses (mais observadas no kwashiorkor), hipotrofia muscular (p.ex., na região glútea) e reduçãodo tecido celular subcutâneo. Com base na ANTROPOMETRIA, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define desnutrição grave como CB < 11,5 cm, ZPE abaixo de -3, ou pela presença de edema nos pés bilateral em crianças com kwashiorkor. Quando os recursos estão disponíveis, é preferível avaliar tanto CB quanto ZPE. Contudo, na ausência de recursos, a aferição da CB é simples e confiável para o diagnóstico de desnutrição grave. TRATAMENTO Didaticamente, a terapia nutricional pode ser dividida em: 1ª FASE: ESTABILIZAÇÃO Tratar as morbidades associadas com risco de morte, corrigir as deficiências nutricionais específicas, reverter anormalidades metabólicas, iniciar a alimentação. Após estabilização hemodinâmica, hidreletrolítica e acidobásica (suporte metabólico), inicia-se a alimentação: fornecer no máximo 100 kcal/kg/dia (iniciando com taxa metabólica basal acrescida de fator de estresse que varia de 10 a 30%, fornecendo de 50 a 60 kcal/kg/dia no primeiro dia e aumentando de acordo com a avaliação clínica e laboratorial da criança), 130 mL/kg/dia de oferta hídrica e 1 a 1,5 g de proteína/kg/dia, dieta com baixa osmolaridade (< 280 mOsmol/L) e com baixo teor de lactose (< 13 g/L) e sódio. Se a ingestão inicial for inferior a 60 a 70 kcal/kg/dia, indica-se terapia nutricional por sonda nasogástrica. De acordo com os dias de internação e a situação clínica da criança, são recomendados aumento gradual de volume e diminuição gradativa da frequência. Nessa fase, pode ser utilizado um preparado alimentar artesanal contendo 75 kcal e 0,9 g de proteína/100 mL ou fórmula infantil polimérica isenta de lactose. Em situações de doenças associadas que cursam com má absorção grave, pode ser necessária a utilização de fórmulas extensamente hidrolisadas ou à base de aminoácidos. Não é prevista recuperação do estado nutricional, e sim sua conservação e a estabilização clínico-metabólica. 2ª FASE: REABILITAÇÃO Progredir a dieta de modo mais intensivo, visando a recuperar grande parte do peso perdido, estimular física e emocionalmente, orientar a mãe ou cuidador da criança e preparar para a alta. Mód. VIII – Nascimento, Crescimento e Desenvolvimento 5 Trio Help Med – Ana Luísa Uzêda Devem ser ofertadas 1,5 vez a recomendação de energia para a idade (cerca de 150 kcal/kg/dia), oferta hídrica de 150 a 200 mL/kg/dia e proteica de 3 a 4 g/kg/ dia e menor teor de lactose. Nesta fase, pode-se utilizar preparado artesanal sugerido pela OMS contendo 100 kcal e 2,9 g de proteína para cada 100 mL, fórmula infantil com menor conteúdo de lactose ou dieta enteral polimérica pediátrica isenta de lactose para crianças com idade inferior a 1 ano (1 kcal/mL). Para ajuste da densidade energética de fórmulas infantis (0,7 kcal/mL), podem ser utilizados módulos de polímeros de glicose e lipídios (óleos vegetais), adição máxima de 3%. Esse procedimento permite que a dieta oferecida apresente melhor densidade energética, mas compromete o fornecimento de minerais e micronutrientes. É importante o fornecimento de preparados com multivitaminas (1,5 vez a recomendação para crianças saudáveis) e de zinco, cobre e ferro; 3ª FASE: ACOMPANHAMENTO (AMBULATORIAL PARA PREVENIR RECAÍDA) Pode ser realizado em hospitais-dia ou ambulatórios e tem por objetivo prosseguir na orientação, monitoração do crescimento (vigilância dos índices peso por estatura e esta- tura por idade) e desenvolvimento da criança, especialmente da relação estatura/idade e intensificação do trabalho da equipe multiprofissional. REFERÊNCIA SBP. Tratado de Pediatria. 4. ed. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). São Paulo: Manole, 2017. Imagens, organogramas: internet.
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