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@medcomat Introdução A ascite é definida como o acúmulo de líquido de origem patológica na cavidade abdominal, podendo se manifestar de forma aguda ou crônica. Existem várias doenças que cursam com ascite, como neoplasias, doenças cardíacas, infecciosas e hepáticas. Sendo assim, a ascite não é uma doença, mas sim uma manifestação de uma patologia. A principal etiologia da ascite é a hipertensão portal, principalmente decorrente da cirrose hepática. Acredita-se que cerca de 60% dos pacientes com cirrose hepática, cursem com ascite em algum momento da doença. Achados do exame físico, como manobras semiológicas também ajudam fortemente no diagnóstico de ascite. Para o estabelecimento do diagnóstico diferencial da ascite, a análise do gradiente de albumina soro-ascite tem um papel importante no esclarecimento etiológico. Além disso, na avaliação diagnóstica da ascite, a paracentese é o principal método utilizado, independentemente da sua etiologia. A paracentese também pode ter a função de alívio nos pacientes muito sintomáticos devido a distensão abdominal provocada pelo acumulo de líquido. Através desse método é possível verificar a quantidade de polimorfonucleares existentes no líquido ascítico e com isso fornecer o diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea (PBE). A PBE é a complicação mais comum na ascite de origem hepática, tendo alta mortalidade e requerendo antibioticoterapia e às vezes antibioticoprofilaxia. Etiologia A ascite é consequência de várias alterações anatômicas, fisiopatológicas e bioquímicas que ocorrem em pacientes com cirrose hepática. Basicamente existem 3 grupos de etiologia para a ascite: Hipertensão portal, Doença peritoneal e outras causas de ascite, sendo que os mecanismos de cada grupo se convergem em vários pontos. Hipertensão portal (HP): É a principal causa de ascite. A HP pode estar presente em várias doenças. Porém sua principal causa é a cirrose hepática. Os processos patológicos que desencadeiam o aumento da pressão neste sistema pode ser localizados em três regiões: pré- hepática, intra-hepática e pós-hepática, sendo o intra-hepático ainda dividido em pré-sinusoidal, sinusoidal e pós-sinusoidal. Diversas moléculas, como fatores vasoconstrictores e vasodilatadores se associam ao fator obstrutivo mecânico. Entretanto, independente do local ou origem do insulto, para ocorrer hipertensão portal é necessário um aumento do fluxo sanguíneo portal ou aumento da resistência vascular ou de ambos. Quando ocorre o aumento da pressão no sistema porta, começa a extravasar líquido dos sinusoides hepáticos para a cavidade peritoneal e com isso, forma-se a ascite. Com isso, formação de ascite alivia a pressão no sistema porta. A cirrose hepática é a causa mais comum de HP, caracterizada pela fibrose, formação de nódulos e capilarização dos sinusoides, com alterações da microcirculação hepática, resultando no aumento da resistência vascular. Essa congestão volêmica secundária ao aumento da pressão no sistema porta leva a ascite. Em relação a cirrose hepática, algumas teorias foram formuladas com o objetivo de explicar a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e do sistema nervoso simpático, como a teoria do “underfill” (baixoenchimento), o “overflow” (super-fluxo) e da vasodilatação esplâncnica. Nessa última teoria, a fisiopatologia da hipertensão porta decorre da obstrução ao fluxo sanguíneo, insuficiência renal funcional e vasodilatação arterial esplâncnica. Além disso, outros fatores como alterações da função renal, alterações de sistemas neuro-humorais e anormalidades da microcirculação hepática estão associados. Sendo assim, na cirrose hepática ocorre desregulação hormonal, com aumento da aldosterona. Através da ativação do eixo renina- angiotensina-aldosterona há retenção de sódio devido a elevada reabsorção de sódio nos túbulos renais. Ascite @medcomat Nós sabemos que o sódio retêm água, portanto, com o aumento do sódio plasmático também ocorre a retenção excessiva de água, que por sua vez, leva ao aumento do volume extracelular. Com isso, esse volume em excesso passará, em algum momento, para a cavidade peritoneal. Na teoria underfill, nas fases iniciais da cirrose hepática haveria vasodilatação periférica e retenção renal de água e sódio. A seguir haveria “overflow” e escape de fluido para a cavidade peritoneal. Enquanto isso, após a piora da vasodilatação periférica, o “underfill” levaria a queda do volume efetivo circulante e estimulação permanente dos sistemas vasopressores. Note que a teoria da vasodilatação esplâncnica inclui as duas outras teorias. Doenças Peritoneais: A ascite por doenças peritoneais, como neoplasias, infecções e inflamações ocorre por lesões na estrutura peritoneal. Essa estrutura é formada por capilares arteriais, venosos, linfáticos, tecido intersticial e mesotélio que regulam a troca de líquido intra e extracelular. Portanto, quando ocorre lesão dessas estruturas, há alteração do fluxo normal e acúmulo de líquido na cavidade peritonial. Devido ao aumento da permeabilidade, proteínas, colesterol, glicoses e outras moléculas vasculares, passam para o líquido ascítico, determinando portanto um exsudato. Mas lembre-se, quando as neoplasias vêm associadas à hipertensão portal (carcinoma hepatocelular, metástases hepáticas maciças), estas costumam se apresentar como transudato. Aliado a esse processo de aumento da permeabilidade vascular, ocorre produção de óxido nítrico, vasodilatação esplâncnica e ativação do sistema renina-angiotensina. Outras causas de ascite: Existem outras causas de ascite que são menos comuns. Geralmente cursam com ascite de pequeno volume, diagnosticada por meio ao acaso por meio de exames de imagem e não estão associadas ao desenvolvimento de sintomas clínicos. ◊ Ascite Pancreática: Ocorre raramente após um quadro de pancreatite, sendo formada a partir da formação de uma fístula pancreática com o peritônio. Geralmente é assintomática. Entretanto, a análise do líquido ascítico evidencia aumento de proteínas, leucócitos e amilase, associada com amilase sérica normal. O tratamento normalmente é conservador, com a introdução de dieta parenteral. ◊ Ascite Biliar: Ocorre com a lesão da vesícula ou ductos biliares, levando ao extravasamento de bile e formação de peritonite. Nesses casos, o líquido ascítico normalmente é esverdeado e tem altos níveis de bilirrubina. ◊ Ascite Nefrogênica: se forma devido ao quadro de síndrome nefrótica que leva edema generalizado devido a retensão de sódio e hipoalbuminemia. Nesses casos, o líquido ascítico tem baixos níveis proteicos. ◊ Hipotireoidismo: No hipotireoidismo pode ocorrer redução da velocidade de drenagem linfática, e aumento da permeabilidade vascular, ocasionando o acúmulo de líquido em vários locais, incluindo a formação de ascite. Nesses casos, proteína da ascite encontra-se elevada. Dentro de cada grupo, estão presentes diversas etiologias. Entretanto, cerca de 5% dos pacientes apresentam uma associação de causas para a ascite, como por exemplo, cirrose hepática e insuficiência cardíaca congestiva. Veja abaixo os principais grupos etiológicos da ascite, mas lembre-se que 85% das vezes, em um quadro de ascite, estaremos diante de um paciente com cirrose hepática e hipertensão portal. @medcomat Quadro clínico A ascite se manifesta com a junção de sinais e sintomas típicos das doenças de base que ocasionam a ascite, associada a sintomas próprios do quadro ascítico. O exame físico de um paciente com ascite pode ser normal em pacientes com ascites pequenas ou extremamente rico, em pacientes com doença hepática avançada, por exemplo. Nesses casos de doença hepática avançada, podemser encontrados desnutrição, hepatoesplenomegalia, icterícia, ginecomastia, aranhas vasculares, eritema palmar e circulação colateral, conhecidas como “cabeça de Medusa”. Lembre-se, a circulação colateral se forma pela hipertensão porta que promove a recanalização da veia umbilical devido a alta pressão no sistema. Enquanto que o eritema palmar, ginecomastia e telangectasias do tipo “aranhas vasculares” é resultado da hiperproliferação e dilatação de capilares cutâneos, gerado pela alteração da homeostase dos hormônios sexuais, gerando hiperestrogenismo e hipoandrogenismo. A ictericia é encontrada principalmente nos pacientes que tem como causa da ascite uma cirrose hepática decorrente de obstruções das vias biliares. Quando a hepatoesplenomegalia, esse achado será encontrado principalmente nos pacientes com hipertensão portal, levando ao aumento desses órgãos por congestão. Ademais, um dos principais sintomas associados a ascite é a distensão abdominal que ocorre quando acumulo de líquido na cavidade visceral. Quando há grande quantidade de líquido ascítico, os órgão intratorácicos podem ser pressionados, levando ao desconforto respiratório. Além disso, a ascite costuma ser indolor, porém, diante de uma ascite muito significante, estruturas podem ser pressionadas e levar ao desconforto abdominal. Outro item importante é o ganho de peso, que serve inclusive para o monitoramento da resposta terapêutica na ascite. Diante de um quadro de neoplasia, além do quadro consumptivo, também podemos encontrar linfonodomegalia em região supraclavicular ou umbilical, nesse último caso, o linfonodo é conhecido como “linfonodo de Irmã Mary Joseph”, sugere câncer como causa da ascite. Nos quadros de etiologia renal ou devido a mixedema, geralmente o quadro ascítico faz parte do contexto de anasarca. Em relação a insuficiência cardíaca, a ascite podem vir acompanhada de turgência de jugular, congestão pulmonar ou edema periférico. Uma complicação importante da ascite é a peritonite bacteriana espontânea (PBE). Nesses casos, o paciente pode apresentar além do quadro ascítico, febre, alteração no estado mental e hipersensibilidade abdominal. @medcomat Diagnóstico Para o diagnóstico, é preciso exame físico e imagem abdominal, como ultrassonografia (USG). Além disso, é necessária a avaliação do líquido ascítico a partir de uma paracentese. A classificação da ascite pode ser feita através do sistema proposto pelo International Ascites Club: - Grau 1: Ascite leve apenas detectável através da USG; - Grau 2: Ascite moderada manifestada por distensão simétrica moderada do abdome; - Grau 3: Ascite grande com acentuada distensão abdominal. Um sistema mais antigo classifica a ascite em 1+, para ascite minimamente detectável, 2+, para moderada, 3+ massivo e não tenso e 4+, massivo e tenso. Além dos achados da história e do exame físico, é necessário exame de imagem para confirmação da ascite e procura da sua causa. A ultrassonografia (USG) de abdome total é o principal exame utilizado, mas a TC visualiza o líquido ascítico mais facilmente. A paracentese abdominal é um exame importante para determinar a causa da ascite ou confirmar a presença de PBE. Determinando a causa da ascite Abordagem geral: É importante, inicialmente, avaliar se o fluido está infectado e/ou se há hipertensão portal no paciente. Os testes iniciais destinados ao líquido ascítico são: avaliação da aparência do mesmo, determinação do gradiente de albumina entre o soro e a ascite (SAAG), contagem de células e diferencial e concentração total de proteínas. A aparência clara é comum em pacientes com cirrose, fluido turvo pode indicar infecção e leitoso, ascite quilosa. As causas mais comuns de ascite quilosa são câncer e cirrose. Ascite sanguinolenta pode indicar malignidade ou trauma. O SAAG é calculado subtraindo o valor da albumina do líquido ascítico do valor da albumina sérica e a presença de um gradiente > 1,1 g/dL indica hipertensão portal (97% de precisão). A contagem de células com diferencial é o principal exame para diagnostico de infecção, devendo ser solicitado em cada amostra e o tratamento antibiótico deve ser iniciado se a contagem de neutrófilos for > 250/mm³. Em casos de amostras de sangue, é necessário realizar a contagem de glóbulos brancos corrigida, bem como de neutrófilos: um glóbulo branco deve ser subtraído do total de glóbulos brancos para cada 750 glóbulos vermelhos encontrados e um neutrófilo deve ser subtraído do total de neutrófilos para cada 250 glóbulos vermelhos, respectivamente. @medcomat A concentração total de proteína permite classificar o líquido ascítico em exsudato, caso a mesma tenha valor ≥ 2,5g/dL, ou transudato, caso esteja abaixo desse limite. Este parâmetro, caso demonstre um valor abaixo de 1 g/dL, indica alto risco de o paciente desenvolver PBE. Além disso, ajuda a diferenciar uma possível perfuração intestinal de uma PBE. Caso o resultado apresente proteínas totais > 1 g/dL, glicose < 50 mg/dL e LDH > limite superior normal para soro (pelo menos duas dessas características), além de contagem de neutrófilos > 250 células/mm³, indica uma possível perfuração intestinal no contexto da ascite. Ainda, para diferenciar ascite não complicada de ascite cardíaca, ambas com SAAG > 1,1 g/dL, a proteína total nas ascites cardíacas é > 2,5g/dL; na cirrose é < 2,5g/dL. Por fim, pacientes com ascite nefrótica apresentam SAAG < 1,1g/dL e proteína total < 2,5g/dL. Outros testes do líquido ascítico incluem avaliação de cultura, concentração de glicose, lactato desidrogenase, amilase, coloração de Gram, concentração de triglicerídeos, bilirrubina, citologia, esfregaço de tuberculose e análise de peptídeo natriurético pró-cerebral sérico. Tais testes podem ser realizados na paracentese inicial ou em alguma subsequente, caso haja suspeita de alguma etiologia específica. Culturas do líquido ascítico devem ser realizadas em pacientes que são admitidos em hospitais com ascite e naqueles que cursam com febre, dor abdominal, azotemia, confusão ou acidose. A concentração de glicose baixa pode indicar carcinomatose peritoneal ou outras situações em que células brancas do sangue ou bactérias a consomem. Nesse sentido, a concentração normal da glicose no líquido ascítico é semelhante à do soro. A relação da concentração de lactato desidrogenase (LDH) presente no líquido ascítico e no soro, se maior que 1, geralmente indica infecção, perfuração intestinal ou tumor. A coloração de Gram só é positiva se há enorme contagem de bactérias, o que geralmente não ocorre na PAS. Esse exame é útil para determinar se há perfuração livre do intestino em pacientes com ascite, quando há grande quantidade de bactérias. A concentração de amilase geralmente eleva-se acima de 40 UI/L (geralmente, nesses casos, é aproximadamente 2000 UI/L. A citologia é um método cuja sensibilidade para detecção de ascite maligna varia de 58% a 75%. Nesse contexto, 100% dos pacientes com carcinomatose peritoneal terão citologia positiva devido a presença de células malignas. Em casos de líquido ascítico leitoso, uma concentração de triglicérides deve ser obtida e indica ascite quilosa se for maior que 200mg/dL. Se o líquido ascítico, no entanto, apresenta coloração marrom, é importante avaliar a concentração de bilirrubina, a qual indica perfuração intestinal ou biliar se o valor estiver maior do que aquele encontrado no soro. Por fim, valores maiores de peptídeo natriurético são encontrados na insuficiência cardíaca quando comparados com valores encontrados na cirrose. @medcomat Tratamento O tratamento da ascite envolve compensação da causa base, associadaa redução do volume do líquido ascítico. Por exemplo, em casos de ascite por tuberculose peritoneal, a ascite só será tratada com o tratamento da tuberculose. O mesmo serve para neoplasias. Para o tratamento da ascite dos cirróticos, recomenda-se repouso e restrição de sal na dieta. A restrição de sódio mais utilizada é a de 88 meq/dia (cerca de 2 gramas de sal), incluindo a soma do sal de todos os alimentos, líquidos e medicações. A restrição hídrica de 1 a 1,5 litros/ dia, deve ser instituída somente nos pacientes com [Na] entre 120 e 125 meq/L. Ou seja, a restrição hídrica não é rotina no tratamento da ascite. Em alguns casos é necessário o uso de diuréticos. Para isso, devemos dosar o sódio sérico e urinário desse paciente para nos guiar no quanto de diurético ele necessitará. Além disso, com o uso do diurético intrahospitalar, a função renal do paciente deve ser monitorizada a cada dois dias. Pacientes com ascite de recente começo, necessita de pouco estímulo diurético (apenas espironolactona) para eliminar o excesso de líquido. Já os pacientes com ascite crônica deve receber tanto diuréticos de alça, quanto espironolactona. A opção terapêutica que tem mais sucesso é a combinação de doses únicas matinais de espironolactona e furosemida, iniciando com 100mg e 40 mg, respectivamente. Deve-se sempre estar atento aos níveis séricos de potássio, já que diurético de alça espolia potássio, enquanto a espironolactona o poupa.. Estas doses podem ser dobradas a cada três dias se o efeito obtido não for satisfatório. Em alguns casos, pode-se usar a espironolactona isoladamente, porém o uso crônico de espironolactona pode levar a ginecomastia dolorosa. Na indução de diurese, o líquido é perdido inicialmente do espaço vascular. Após a queda da pressão intravascular, o edema periférico passa a ser mobilizado para repor o volume plasmático. Sendo assim, preferencialmente deve-se tratar os pacientes com restrição de sal e diuréticos e não com paracenteses seriadas. Em casos de necessidade do paciente perder um volume ascítico muito grande, como no desconforto respiratório por ascite volumosa, pode-se realizar a paracentese de alívio. Sempre que for retirado acima de 5 litros de líquido ascítico, devemos repor albumina na proporção de 8 a 10 gramas de albumina para cada litro de ascite, para evitar complicações. Pacientes que não apresentam diminuição da ascite mesmo com o consumo de menos de 78 meq/dia de sódio, e já estiver recebendo dose máxima dos diuréticos por, pelo menos, uma semana, tem resistência aos diuréticos, ou ascite refratária. Nesses pacientes deve ser considerado o transplante de fígado. Diante da suspeita de encefalopatia os diuréticos devem ser suspensos e sua introdução debe ser reavaliada. Pacientes com outras causas para formação da ascite (não cirrose) usualmente não respondem ao tratamento administrado aos cirróticos. Em pacientes com cirrose por conta de álcool é necessário a cessação do consumo.
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