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A Cartomante

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A Cartomante, Machado de Assis 
 
Fonte: 
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. 
 
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> 
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo 
Permitido o uso apenas para fins educacionais. 
 
Texto-base digitalizado por: 
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística 
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html) 
 
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as 
informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para 
<bibvirt@futuro.usp.br>. 
 
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. 
Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e 
saiba como isso é possível. 
 
A Cartomante 
 
HAMLET observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que 
sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao 
moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, 
por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia 
por outras palavras. 
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que 
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe 
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora 
gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as 
cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você 
me esquecesse, mas que não era verdade... 
— Errou! interrompeu Camilo, rindo. 
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua 
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... 
 Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe 
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, 
quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, 
repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela 
podia sabê-lo, e depois... 
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. 
— Onde é a casa? 
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa 
ocasião. Descansa; eu não sou maluca. 
 Camilo riu outra vez: 
— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. 
 Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que 
havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não 
acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que 
mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. 
 Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as 
ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um 
arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos 
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e 
ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os 
ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação 
total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não 
possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque 
negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do 
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. 
 Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser 
amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, 
correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de 
sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, 
onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das 
Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da 
Guarda Velha, olhando de passagcm para a casa da cartomante. 
 Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação 
das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela 
seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a 
vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo 
preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No 
princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama 
formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. 
Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. 
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como 
meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. 
 Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. 
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não 
desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, 
olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que 
ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. 
Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, 
enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a 
ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de 
alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. 
 Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a 
mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes 
amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita 
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. 
 Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que 
gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase 
uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o 
que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam 
os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as 
damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser 
agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os 
olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os 
consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. 
Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e 
de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então 
que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do 
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo 
menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez 
passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. 
Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. 
 Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma 
serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos 
num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e 
subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a 
batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o 
sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, 
pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada 
mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A 
confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. 
 Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava 
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve 
medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de 
Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma 
paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-
se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso 
um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do 
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. 
 Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante 
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-
a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu 
mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser 
advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião 
de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: 
— a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse 
é ativo e pródigo. 
 Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse 
ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que 
era possível. 
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das 
cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... 
 Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se 
sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao 
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à 
casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de 
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses 
era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, 
sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se 
corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. 
 No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de 
Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de 
meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural 
chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a 
letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas 
essas cousas com a notícia da véspera. 
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com 
os olhos no papel. 
 Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e 
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo 
de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha 
medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de 
recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar 
algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem 
ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez 
mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa 
que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma 
suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto 
fútil, viria confirmar o resto. 
 Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as 
palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era 
ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. 
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela 
voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? 
Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. 
Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. 
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando 
que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois 
rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção 
do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou 
seguir a trote largo. 
 "Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..." 
 Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo 
voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da 
Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma 
carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No 
fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, 
ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele 
desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando 
todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. 
Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. 
 Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era 
grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns 
fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O 
cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele 
respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois 
fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao 
longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e 
tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a ponco moveu outra vez as asas, 
mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, 
safando a carroça: 
— Anda! agora! empurra! vá! vá! 
 Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, 
pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as 
palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. 
A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se 
diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de 
tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos 
extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe 
dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que 
perdia ele, se... ? 
 Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e 
rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus 
comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. 
Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era 
tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele 
tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. 
Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por 
uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma 
salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. 
Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do 
que destruía o prestígio. 
 A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com 
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no 
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e 
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de 
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, 
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas 
sobre a mesa, e disse-lhe: 
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande 
susto... 
 Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. 
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... 
— A mim e a ela, explicou vivamente ele. 
 A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra 
vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas 
descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; 
depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso. 
— As cartas dizem-me... 
 Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-
lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; 
ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: 
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de 
Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as 
cartas e fechou-as na gaveta. 
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendedo a mão por 
cima da mesa e apertando a da cartomante. 
 Esta levantou-se, rindo. 
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... 
 E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camiloestremeceu, 
como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante 
foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho 
destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de 
dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha 
um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava 
o preço. 
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer 
mandar buscar? 
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela. 
 Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante 
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. 
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do 
senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... 
 A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, 
falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a 
escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava 
acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua 
estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. 
 Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o 
céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que 
chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram 
íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu 
também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser 
algum negócio grave e gravíssimo. 
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. 
 E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; 
parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à 
antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as 
palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o 
estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O 
presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as 
velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o 
com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; 
mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, 
vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e 
graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, 
uma fé nova e vivaz. 
 A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas 
felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo 
olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão 
um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, 
interminável. 
 Daí a ponco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro 
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, 
e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. 
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? 
 Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e 
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito 
de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. 
Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no 
chão. 
 
FIM

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