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A CULTURA DO ESTUPRO COMO MANUTENÇÃO DO PATRIARCADO

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A CULTURA DO ESTUPRO COMO MANUTENÇÃO DO PATRIARCADO
Fernanda Antoniazzo Ribeiro
Universidade Federal do ABC
RESUMO
O presente ensaio tem como objetivo explicar o que é a cultura do estupro e discorrer sobre como ela trabalha como ferramenta de manutenção de um sistema regido pelo poder patriarcal através de fatos coletivos e imaginários que estão arraigados de maneira estrutural na sociedade contemporânea. Pretende-se mostrar, sob uma perspectiva feminista, como a violência sexual é naturalizada pelos indivíduos, principalmente homens, e como essa naturalização colabora com a sua perpetuidade, além de ser um mecanismo de subjugação da mulher.
Palavras-chave: Feminismo; Cultura do Estupro; Patriarcado; Violência Sexual.
Introdução
	Segundo o Anuário de Segurança Pública, a cada oito minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Em 2019, foram registradas 66.123 ocorrências de estupro em delegacias de polícia, sendo 85,7%. São estatísticas que chocam, mas que também mostram a realidade da sociedade brasileira, na qual esse crime é mais corriqueiro do que parece e mais normalizado do que se quer acreditar. Isso porque os dados sobre estupro no Brasil são extremamente subnotificados, uma vez que a maioria das vítimas prefere não denunciar ou falar sobre por diversos motivos, sejam eles a vergonha, o medo ou o vínculo formado com o agressor. Portanto, esses números ilustram apenas uma pequena parte da realidade, que acaba sendo ainda mais cruel.
	O artigo 213 do Código Penal caracteriza o crime de estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Sob a ótica de uma perspectiva feminista, esse tipo de violência sexual e sua recorrência podem ser explicadas contextualmente (CASTRO DE CARVALHO FREITAS & OLIVEIRA DE MORAIS, 2019), uma vez que não se trata de ocorrências isoladas. Por trás de cada caso de estupro, existe uma engrenagem rodando a fim de manter funcionando o patriarcado que comanda a sociedade contemporânea e manter as mulheres oprimidas e dentro dos padrões que esse patriarcado deseja.
	Essa manutenção do sistema patriarcal se dá através de comportamentos e costumes que auxiliam na normalização do estupro, como a pornografia e a popularização de mitos que estereotipam tanto o ato, quanto a vítima e o agressor.
O que é a cultura do estupro?
	Em sua origem, o estupro era um ato individual que dependia apenas dos agentes psicológicos internos do criminoso. Contudo, a partir do momento em que foram criadas civilizações, e estas colocaram o homem (pater) como a figura central e mais importante do arranjo social, a causa por trás da prática desse crime deslocou-se do âmbito individual para o âmbito coletivo. Numa sociedade em que a norma da organização é assentada na exploração e dominação dos homens sobre as mulheres, o estupro passou a ser legitimado pelos modelos e instituições sociais e tornou-se parte de uma cultura. (ALMEIDA CAMPOS, 2016)
	O dicionário define cultura como sendo o conjunto dos hábitos e costumes que caracterizam uma sociedade. A cultura do estupro, portanto, pode ser caracterizada como “um conjunto complexo de crenças que encorajam agressões sexuais masculinas e sustentam a violência contra a mulher.” (BUCHWALD et al., 1993/2005, p. XI apud CASTRO DE CARVALHO FREITAS & OLIVEIRA DE MORAIS, 2019, p. 111). São comportamentos enraizados nos indivíduos, tanto homens como mulheres, que garantem a perduração dos mecanismos de opressão de gênero e estão presentes em falas, estereótipos, hábitos e até mesmo em instâncias institucionais.
	Émile Durkheim define um fato social como sendo exterior ao indivíduo, especificamente como “toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais.” (DURKHEIM, 1895, p. 13). Os fatos sociais, portanto, podem ser tanto institucionalizados quanto correntes sociais. O estupro, visto pela ótica durkheimiana, pode ser considerado um fato social na medida em que, como já foi dito, depende mais de fatores externos ao indivíduo do que de suas condições psicológicas. Ele está fundamentado num sistema que consiste na subjugação da mulher perante o homem e é apenas mais um mecanismo dessa opressão, podendo ser explicado por outros fatos sociais e não por fatos individuais.
A pornografia e o mito do estupro
	Um dos principais comportamentos pertencentes à cultura do estupro é a pornografia. Grande parte dos vídeos que retratam relações sexuais para o prazer de terceiros apresenta cenas de violência, em que a mulher se torna submissa ao homem e este assume uma postura dominadora e violenta (CASTRO DE CARVALHO FREITAS & OLIVEIRA DE MORAIS, 2019). Esses são, na verdade, os vídeos mais procurados pelos consumidores, mostrando que há não apenas uma normalização como também uma fetichização da violência sexual. Em sites que disponibilizam esse tipo de conteúdo, é possível até mesmo encontrar vídeos reais de cenas de estupro ou outro tipo de violência sexual com milhões de acessos.
Há também um grande mito em torno do imaginário do estupro (CASTRO DE CARVALHO FREITAS & OLIVEIRA DE MORAIS, 2019). O senso comum o enxerga como um ato violento, praticado por um desconhecido da vítima e que ocorre em locais públicos (como becos, festas etc). No entanto, de acordo com o levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 84,1% dos casos de estupro registrados, o criminoso é conhecido da vítima – pai, marido, amigo, namorado. A maioria dos casos de estupro, portanto, fogem do estereótipo veiculado pela mídia e pelo senso comum, fazendo com que, quando se relata um caso cometido por uma pessoa de confiança da vítima, as pessoas considerem que aquilo não é estupro de fato. Isso se dá não só por conta desse imaginário enraizado na sociedade que acaba por normalizar os casos que não se enquadram nesse modelo, mas também porque há a ideia de que a mulher é, de certa forma, “propriedade” do homem. A mulher pertence ao marido, ao pai e, portanto, este tem o “direito” de fazer o que bem entender com sua posse (ALMEIDA CAMPOS, 2016).
Norbert Elias, em seu livro “Estabelecidos e outsiders”, busca demonstrar que a sociedade é composta por indivíduos, mas que estes só se tornam o que são a partir de suas interações sociais e longos processos culturais e institucionais. Elias afirma que todo fenômeno social tem um processo extenso de estruturação histórica e repercussões contemporâneas que influenciam nosso comportamento (ELIAS & SCOTSON, 1965). Nesse sentido, os estereótipos relacionados ao estupro que circulam no imaginário da sociedade, juntamente com o alto consumo de uma pornografia que normaliza e fetichiza a violência sexual, formam uma cultura, a do estupro, que faz parte do processo de construção histórico-estrutural do patriarcado, colaborando para a legitimação das relações de opressão entre homens e mulheres.
O estupro como adestramento das mulheres
	No sistema patriarcal que, como já foi dito, está fundamentado na subjugação das mulheres e exaltação e domínio dos homens, a cultura do estupro age como método de controle e mecanismo de manutenção da supremacia masculina (ALMEIDA CAMPOS, 2016). Quando há um relato de estupro, é muito comum ouvir indagações sobre o tipo de roupa que a mulher estava usando, se ela estava alcoolizada, se estava dançando, se estava “provocante”. Como se, caso a resposta para algumas dessas perguntas seja positiva (ou, no caso da roupa, curta), a culpa do ato passa a ser da mulher e não mais do homem. O estupro, nessa situação, funciona como punição para a mulher que cometeu o terrível ato de ser livre e fugiu às normas do que se é considerado respeitoso. Ele serve como forma de “ensinar” a mulher que aquele comportamento está errado e que, caso ela não siga a forma recatada de ser, preferível para os homens, pois trabalha em função do patriarcado, ela será punida – e essa punição vem na forma da violência sexual. O estupro,e toda a cultura que o acompanha, age, portanto, como forma de desempoderar uma mulher (ALMEIDA CAMPOS, 2016) e encaixá-la no modelo que serve ao patriarcado.
	Um caso recente e que ilustra bem essa discussão é o da catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos, que foi estuprada durante uma festa em 2018. Durante o julgamento, a defesa do estuprador, André de Camargo Aranha, humilhou a vítima ao mostrar fotos sensuais que a mesma havia postado em suas redes sociais, além de insultá-la constantemente enquanto o fazia. Essa atitude, que inundou a internet com protestos de horror e repugnância, ilustra o argumento de que, caso uma mulher não esteja de acordo com as regras impostas pela sociedade patriarcal, o estupro como punição é o esperado. Como Mariana havia ido contra o perfil de mulher recatada e exercido sua liberdade ao publicar fotos sensuais, ela “merecia” ou “pediu” para que o estupro ocorresse.
Conclusão
	Em vista dos argumentos apresentados, fica claro que o estupro não é um fato individual, mas sim uma cultura formada por mecanismos que normalizam e legitimam essa prática. A pornografia, os mitos que rondam esse tipo de crime, e até mesmo as instituições brasileiras trabalham para perpetuar e sustentar uma prática que tem como objetivo manter o funcionamento do patriarcado ao subjugar e, de certa forma, “adestrar” as mulheres para que elas continuem servindo aos interesses do falo. Em São Paulo, segundo pesquisa do Datafolha, apenas dois em cada 10 inquéritos abertos pela polícia são esclarecidos. Os casos de estupro, apesar de sua gravidade, são muitas vezes negligenciados pela justiça brasileira, levando anos para serem concluídos e, em grande parte, o agressor sai livre do processo. Além disso, o acolhimento de vítimas de estupro por parte das instituições judiciárias ainda é muito falho. O método para o recolhimento de provas é extremamente invasivo e acaba reforçando estereótipos (procura-se por marcas de agressão, pressupondo que o estupro é sempre um crime violento), o que faz com que muitas mulheres deixem de denunciar o crime.
	A cultura do estupro é um processo de estigmatização e, portanto, deve ser explicado através dos processos que levam às diferenças de poder (ELIAS & SCOTSON, 1965) entre homens e mulheres. O crime do estupro não pode ser visto como fato individual e que diz respeito somente às propriedades psicológicas do agressor, mas como parte de um processo histórico-estrutural que caminha para perpetuar a subjugação das mulheres e garantir a soberania masculina na sociedade. A relação entre estabelecidos e outsiders é feita de forma processual (ELIAS & SCOTSON, 1965), e como o estupro é uma forma de conservar essa relação de opressão entre as mulheres (outsiders) e os homens (estabelecidos), ele deve ser analisado contextualmente, como processo social e não como ato particular.
Referências bibliográficas
FREITAS, Júlia Castro de Carvalho; MORAIS, Amanda Oliveira. Cultura do estupro: considerações sobre violência sexual, feminismo e Análise do Comportamento. Acta Comportamentalia, vol. 27, n. 1, pp. 109-126, 2019.
CAMPOS, Andrea Almeida. A cultura do estupro como método perverso de controle nas sociedades patriarcais. Revista Espaço Acadêmico, n. 183, 2016.
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Estabelecidos e outsiders. “Introdução: Ensaio teórico sobre as relações estabelecidos-outsiders”, pp. 19-50. 2002.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 165 p. (Coleção tópicos).
Referências eletrônicas
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Crime de estupro. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/crime-de-estupro
SOUTO, Luiza. País tem um estupro a cada 8 minutos, diz Anuário de Segurança Pública. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/10/18/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2020.htm
ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem. Disponível em: https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/
MENEZES, Leilane. Biografia de um crime sem castigo. Disponível em: https://www.metropoles.com/materias-especiais/estupro-no-brasil-99-dos-crimes-ficam-impunes-no-pais

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