Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Página | 1 QUINCAS BORBA MACHADO DE ASSIS O que terá o Machado feito nos 10 anos que separam este do anterior, as "Memórias Póstumas"? Certamente, usou o período para afiar seus instrumentos narrativos. Memórias é mais shandyano*: as intervenções para falar com o leitor, extensas; os capítulos em que só há reticências, as excursões do autor ao maquinário do texto &c. Aqui, tudo isso acontece, mas de forma mais contida. Machado (ou o autor-narrador-personagem) aparece aqui e ali como um coro que pontua as passagens da ação, frisando-lhes a importância relativa, "abrindo as cortinas", "deixando os personagens neste estado, para irmos ver o que acontece em tal outro lugar" &c. Quincas é personagem de "Memórias Póstumas": um dândi aloprado que passa de rico e mendigo e Página | 2 disso a remediado e filósofo, depois de ganhar uma herança. Inventa o Humanitismo que, basicamente, é: tudo é Humanitas e, assim, se um homem mata outro, tudo bem, porque é algo necessário para a maquinaria cósmica, que é uma coisa só. Logo, vem que este é o melhor dos mundos, pois tudo sempre vai pelo certo. Pangloss — o personagem de Voltaire (em "Cândido") que vê o mundo sempre como perfeito, mesmo confrontado com as mais horrendas desgraças — não faria melhor. No momento em que o encontramos, Quincas está em Barbacena, recolhido, com seu cão, e tem como discípulo/enfermeiro um professor secundário, Rubião. Quincas morre e faz de Rubião herdeiro universal. E existe mesmo uma fortuna. Este se muda para a Corte, ele e o cão do falecido, também Quincas Borba. No caminho para o Rio, já conhece Sofia e Palha. Rubião tem seus quarenta e poucos anos e Sofia, 28. Ela é linda, delicada e cosmopolita (pelo menos para os padrões de Barbacena). Rubião se apaixona. E daí a história segue. Sofia, como Virgília (de "Memórias Póstumas"), é mundana e prática. Não chega às vias de fato com Rubião, nem com ninguém que flerta com ela, mas adora os flertes. Na Corte, Rubião vai enlouquecendo: é pródigo, tem veleidades de se tornar deputado e financia um político falido, Camacho, vive pela cidade, meio sem ter o que fazer. Declara-se a Sofia, que o rechaça. Página | 3 Mas esse movimento é pendular. Ela, com o tempo, se revolta contra aquele caipira impertinente, mas também gosta de sentir que o atrai. Intervêm outras histórias, como a da prima de Sofia, Maria Benedita, que é trazida do interior e preparada para se casar bem, mas Rubião perde a vaga para Carlos Maria, um dândi mais educado. O fato é que, de uma hora para outra (algo abruptamente), Rubião enlouquece. Manda que lhe cortem a barba ao estilo de Napoleão 3º e, quando sai à rua, já se sente o próprio. Aí é a derrocada: é internado, já perdera quase toda a fortuna, é desdenhado por todos os ex-convivas e volta a Barbacena, delirante, feliz, rei. Morre em paz. Rubião jamais entendera direito uma lição do velho mentor: "Ao vencedor, as batatas". Era a conclusão de uma fábula que ilustrava Humanitas: índios massacram uma tribo rival, para ter acesso à plantação de batatas desta. Se as duas não guerreassem, sobreviveriam à míngua. Mas como uma foi massacrada, agora a vencedora tem de sobra para viver. E o quê? As batatas, o prêmio aos vencedores. Ao fechar o livro assim, Machado sugere que as batatas são o prêmio dos cortesãos, que ficam simplesmente trocando de uma atividade fútil para outra e vão envelhecendo, muito inferiores ao Rubião das batatas, que morreu imperador, ainda que em sonho. Página | 4 Machado não retrata os pobres, nem os ricos que realmente contam, o pessoal com título de nobreza, nem os intelectuais ou profissionais liberais. Toda a ação é concentrada nessa classe meio doente, sem rumo, sem aptidão alguma, em que a falta de o que fazer leva os protagonistas a aventuras tolas, flertes e uma infinidade de festas para passar o tempo. São os apêndices da corte, o "segundo escalão". Não são suficientemente independentes para fazer algo diferente, nem suficientemente ricos para ter atuação decisiva no sistema. Notemos um toque de humor bem machadiano: Quincas Borba é personagem pequeno no livro que leva seu nome! _____________________________ * Influenciado pelo romance "Tristram Shandy", de Laurence Sterne, publicado um século antes, livro do qual Machado era grande admirador. fichamento por Vittorio Pastelli
Compartilhar