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Análise do filme Que Horas Ela Volta - Teoria do Brasil Cordial

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CORDIALIDADE DO BRASILEIRO E O PRECONCEITO RACIAL (FILME “QUE HORAS ELA VOLTA?”)
A obra “Raízes do Brasil”, do paulista Sérgio Buarque de Holanda, no qual é desenvolvido o fundamental conceito de “homem cordial” gerou grande efervescência nas décadas de 1920 e 1930 que foram de intensa atividade intelectual e artística no Brasil. Foi nessas duas décadas que, segundo muitos estudiosos, o Brasil foi “redescoberto”, isto é, novas formas de interpretar a nossa identidade e singularidade ante às outras civilizações foram desenvolvidas, tanto no âmbito da literatura quanto no âmbito da história e das chamadas “ciências sociais”. A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Movimento Regionalista, de Pernambuco, foi um dos marcos desse esforço interpretativo sobre o que vem a ser o Brasil.
Como o próprio título do livro indica, “Raízes do Brasil”, publicado em 1936 pela editora José Olympio, é uma obra que tem por objetivo investigar o que fundamenta a história do Brasil, de seu povo e de suas instituições mais peculiares, como a família patriarcal, formada durante o período da Colônia. Vale dizer que esses temas também interessaram a outro grande intelectual brasileiro, contemporâneo de Sérgio, o pernambucano Gilberto Freyre, cujas obras “Casa Grande & Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos” (1936) são fundamentais para se pensar a formação do Brasil. 
As pesquisas para a composição de “Raízes do Brasil” começaram a ser esboçadas em 1930 por Sérgio Buarque, na Alemanha, na época em que ele havia sido enviado como correspondente brasileiro dos Diários Associados para Polônia, Rússia e Alemanha. Ao regressar ao Brasil, completou as pesquisas e, a convite do editor José Olympio (que preparava uma coleção intitulada “Documentos brasileiros”), publicou o livro em 1936.
A expressão “cordial” não indica, ao contrário do que se pensa, apenas bons modos e gentileza. Cordial vem do radical latino “cordis” (cujo significado mais remoto é cordas), isto é, relativo a coração. Sérgio Buarque acentua essa explicação etimológica da palavra para ressaltar a sua dubiedade e, a um só tempo, a sua adequação àquilo que caracteriza, segundo sua tese, o temperamento do homem brasileiro. Em suas palavras:
“Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.” [1]
Em linhas gerais, o homem cordial seria o retrato mais fiel do brasileiro. Ele seria de origem patriarcal (o pai como detentor de direito de vida e morte sobre todos), de herança rural; um homem dominado pelo coração, ou seja, um homem muito afável por um lado, mas, por outro, também muito impulsivo e por vezes até violento. Nesta visão, a rapidez com que o brasileiro passaria do caráter amável para a hostilidade seria uma das fortes características do nosso povo.
A não distinção entre o público e o privado também caracteriza o Homem Cordial. As relações sociais, sejam elas de vizinhança ou de trabalho, não consideram fronteiras entre o seio familiar e a rua.
O homem cordial, segundo Sérgio Buarque, precisa expandir o seu ser na vida social, precisa estender-se na coletividade – não suporta o peso da individualidade, precisa “viver nos outros”. Essa necessidade de apropriação afetiva do outro pode ser notada, a título de exemplo, até em expressões linguísticas. Sérgio Buarque cita o sufixo “inho”, colocado em palavras como “senhorzinho” (“sinhozinho”), que revela a vontade de aproximar o que é distante do nível do afeto. O “homem cordial” é, portanto, um artifício, um ardil psicológico e comportamental, que está encrustado em nossa formação enquanto povo. É por isso que Sérgio Buarque diz, também, que: “a contribuição brasileira para a civilização será o homem cordial”.
Fazendo um paralelo dessa representação do homem cordial com o preconceito racial existente no Brasil pode-se exemplificar com o filme “Que Horas Ela Volta?”. No filme a personagem Val (protagonizada por Regina Casé), de Pernambuco, é empregada doméstica em uma família de classe alta em São Paulo. Ela migrou de cidade a fim de poder trabalhar e ganhar algum dinheiro. Mas deixou sua filha em Pernambuco. Porém, treze anos depois, a filha chamou-lhe para falar que iria para São Paulo a fim de tentar a sorte no vestibular e acaba por adentrar a esta casa onde a mãe trabalha como empregada doméstica. Assim, dessa maneira, a menina passa a descobrir o trabalho de sua mãe.
A relação de Val com sua patroa Dona Bárbara explicita o que seria o homem cordial em menor escala e dentro de um contexto de desigualdades raciais e sociais. Em muitos momentos a patroa se mostra alguém compreensiva e sempre afirmando que Val é ‘praticamente da família’, entretanto, a empregada não pode comer na mesa junto com os patrões, não pode entrar na piscina, mora em quarto minúsculo na mesma na casa de seus patrões. Esses pequenos elementos mostram atitudes caracterizadas como cordialidade do brasileiro, que ao mesmo tempo se mostra afável e violento.
 Sobre essa tentativa de estreitar laços, característica forte do homem cordial, no filme, é possível visualizá-la na relação de “mãe e filho” entre Val e Fabinho (filho de dona Bárbara). A empregada é considerada quase como a mãe do menino porque ela influência, também, na sua educação. A relação parece muito forte entre os dois. Às vezes, eles dormem juntos, compartilham as dúvidas, os problemas, etc. Porém, por exemplo, o menino não sabe quase nada da vida dela, enquanto a empregada conhece todos os detalhes da vida dele.
Contudo, com a chegada de Jéssica, filha de Val, as relações dentro da casa começam a mudar. Jéssica, diferente da mãe, percebe que as atitudes da família e especialmente da patroa são carregadas de preconceitos sociais e raciais. Pois Jéssica não tem medo e se coloca numa posição que não era esperada por ninguém, a personagem não se sente submissa e questiona a todo momento às atitudes de conformidades da mãe. Dona Bárbara se sente muito incomodada e logo pede que Jéssica saia da casa, em uma cena marcante da trama, Jéssica entra na piscina junto com Fabinho que leva uma bronca de sua mãe, partindo disso, Bárbara pede que a piscina seja esvaziada e limpada porque havia visto um rato lá dentro, nessa fala a personagem se refere a Jéssica escancarando todo um racismo por parte de Bárbara. 
A cordialidade do brasileiro pode ser entendida como generosidade em seu sentido mais amplo, entretanto, todas essas atitudes de Bárbara não estão fora do que diz respeito ao homem cordial, visto que são movidas pelo ‘coração’, ou seja, pelo sentimento, o que traz essa ambiguidade, pois somos levados a entender que algo “movido pelo coração” significa necessariamente uma ação boa, contudo, Sérgio Buarque deixa claro quando diz que ao mesmo tempo o brasileiro se mostra bom e impulsivo chegando a ser violento especialmente por ser guiado pelos sentimentos. 
Um crítico de Sérgio Buarque de Holanda, Jessé de Souza, traz largamente a questão de que esse ‘homem cordial’ é uma forma da elite legitimar e justificar as desigualdades, uma vez que a emotividade do brasileiro o faz dividir o mundo entre amigos, os que merecem todos os favores, e inimigos, os que só merecem a letra dura da Lei. Também a relação do indivíduo com o Estado, visto como portador de todos as degenerações sociais, para Souza é deturpada a partir do pensamento de Buarque de Holanda. 
Qual é a ideia-força que domina a vida política brasileira contemporânea? Minha tese é a de que essa ideia-força é uma espécie muito peculiar de percepção da relação entre mercado, estado e sociedade, onde o Estado é visto, a priori, como incompetentee inconfiável e o mercado como local da racionalidade e da virtude. O grande sistematizador dessa ideia foi precisamente Sérigo Buarque de Holanda. Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma “civilização singular” e “inverte” o diagnóstico positivo de Freyre, defendendo que essa “civilização” e seu “tipo humano”, o “homem cordial”, são, na verdade, ao contrário de nossa maior virtude, nosso maior problema social e político (SOUZA, 2015, pág. 32).
Reconhece, ainda que com muitas ressalvas, no entanto, que tanto Buarque de Holanda como seu predecessor, Gilberto Freyre, ajudaram a criar um “mito nacional”. Esse “mito nacional” possibilita que o brasileiro, ainda que ambiguamente, se orgulhe do Brasil, o que antes era impossível. Seu objetivo é, portanto, “pragmático”: a produção da solidariedade nacional (SOUZA, 2015, págs. 42–43).	
O problema, segundo Souza, estaria no fato de Buarque de Holanda e Freyre não terem concentrado suas análises dos padrões culturais nacionais na questão da escravidão. Tanto Raízes do Brasil quanto Casa Grande & Senzala teriam atenuado o tema da escravidão (abolida em 1888). E “coube a Sérgio Buarque sistematizar todo o estoque de ideias e de representações que daria substância e poder de convencimento ao culturalismo liberal e conservador no Brasil” (pág. 43).
	O que chama atenção no caso do Homem Cordial é a solidificação da imagem do brasileiro afável, ainda que ele sirva para mascarar as diferenças e desigualdades sociais sob o manto da proximidade, da informalidade e de uma amizade teatral, quase dissimulada.
Neste sentido, podemos concordar com Jessé Souza: o Homem Cordial é uma grande idealização, um grande mito. Olhá-lo como a sintetização do brasileiro dual (bom com os amigos e duro com os inimigos) é uma forma de lançar semente germinante no solo fértil do senso comum. Em qual lugar do mundo as pessoas não dividem o mundo entre “os meus e os outros”?
Não seria exagero concluirmos que o uso desta imagem da cordialidade do brasileiro tem sido utilizada pelas forças políticas, sobretudo na direita tradicional, e midiáticas, como uma maneira de amortizar o engajamento das massas diante dos problemas estruturais da política institucional atual. Ao solidificar a ideia do homem cordial, retira-se do povo sua verve crítica/questionadora, que é uma das bases da mobilização política.

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