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CARIOLOGIA O papel da dieta no controle da Cárie Dentária o Apesar da grande importância da dieta no processo carioso, muitas vezes esse aspecto do tratamento é negligenciado. o Mudanças de hábitos alimentares são frequentemente necessárias no tratamento da doença cárie, e isso por si só é um desafio para a equipe de saúde. o Tratamento não pode ser baseado apenas no controle de higiene. o A cárie dentária, como doença de causalidade complexa, é resultado da interação de um conjunto de determinantes biológicos e psicossociais. o Além do biofilme recobrindo as superfícies dentárias, a disponibilidade de substratos fermentáveis no meio bucal é indispensável para o estabelecimento da doença. o A avaliação dos hábitos alimentares deve ser realizada para todos os pacientes com atividade de cárie. o É preciso diagnosticar o que está́ causando a atividade de cárie do paciente para podermos atuar de forma eficaz. Dieta e cárie dentária Histórico o Registros históricos e estudos observacionais demonstraram claramente a associação entre o consumo de açúcar e a ocorrência de cárie dentária, como pode ser observado resumidamente abaixo: • Baixa ocorrência de cárie foi observada na Europa até a Revolução Industrial. Com a industrialização e urbanização que dela decorreram, a ampliação do consumo de açúcar e mudanças no padrão alimentar, a cárie tornou-se uma doença altamente prevalente. • Foi observada uma queda importante na prevalência de cárie na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, como um resultado da menor oferta de alimentos açucarados e processados. • Prevalência de cárie muito baixa era observada em populações isoladas da Austrália, Nova Zelândia e da Ilha de Tristão da Cunha, no Atlântico. A partir da inclusão de alimentos processados e refinados em suas dietas, a experiência de cárie passou a aumentar. • Crianças de 6 a 13 anos vivendo no orfanato Hopewood House, que recebiam uma dieta lactovegetariana e quantidades mínimas de açúcar e farinha refinada, apresentavam uma prevalência de cárie muito baixa enquanto estavam institucionalizadas. Um aumento drástico na prevalência de cárie foi observado quando deixaram o orfanato e adquiriram hábitos alimentares sem restrição. • Crianças da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que preconiza dieta vegetariana e desestimula o uso de açúcar e o hábito de comer entre as refeições, apresentavam menor experiência de cárie que a média da população. CARIOLOGIA o Além destas evidências observacionais, alguns estudos de intervenção também demonstraram a estreita relação entre consumo de açúcar e cárie dentária. • O clássico estudo de Vipeholm, realizado em um hospital para doentes mentais na Suécia, de 1946 a 1951, demonstrou claramente a relação entre dieta e cárie em 436 pacientes adultos. Este estudo comparou grupos com diferentes frequências de consumo (durante as refeições e entre refeições) e consistências de alimentos açucarados (forma líquida, pão, chocolate e balas de caramelo). Suas principais conclusões foram: ✓ O consumo de sacarose aumenta a ocorrência de cárie, porém de maneiras diferentes, de acordo com a forma de consumo. ✓ O fator mais importante para a ocorrência de cárie não é a quantidade total ingerida, mas a frequência de consumo de açúcar. ✓ A consistência do alimento desempenha um papel relevante: quanto maior o tempo em que o alimento permanecer na cavidade bucal, mais cariogênico ele será. ✓ Existe uma variabilidade individual, com alguns indivíduos sendo mais suscetíveis ao desenvolvimento da cárie dentária do que outros, mesmo sob condições alimentares semelhantes. o Em outro estudo experimental, conhecido como “Estudo de Turku”, 125 adultos foram divididos em 3 grupos de acordo com o tipo de açúcar utilizado para adoçar alimentos por um período de 25 meses: sacarose, frutose e xilitol (substituto do açúcar). • Como pode ser observado na figura, o grupo que consumiu sacarose apresentou uma experiência de cárie significativamente maior do que os indivíduos dos outros grupos. • Os grupos que consumiram frutose e xilitol apresentaram incrementos de cárie 32% e 85% menores do que o grupo que consumiu sacarose, respectivamente. Além de demonstrar claramente a relação entre consumo de açúcar e cárie, este estudo também evidenciou a maior cariogenicidade da sacarose quando comparada à frutose. • A diferença de 32% entre sacarose e frutose foi observada com a total substituição dos doces da dieta por frutose, motivo pelo qual ela não pode ser transferida diretamente para a clínica. • Na vida real, o indivíduo consome, além da frutose, a sacarose, podendo ter a formação de uma placa porosa (pelo consumo de sacarose) e ter a baixa de pH pelo consumo da frutose. • O clássico estudo de Von der Fehr e colaboradores11 denominado “Cárie Experimental em Humanos” também contribuiu para definir a relação entre consumo de sacarose e cárie, uma vez que os resultados deste estudo demonstraram que, em condições de acúmulo de biofilme semelhantes, a presença frequente de sacarose no meio bucal foi responsável por uma incidência de cárie expressivamente maior quando comparado ao grupo controle, que não fez os bochechos. Atualmente o Aumento da frequência de ingestão de açúcares e hidratos de carbono (sumos de fruta e bebidas ácidas). o Padrão alimentar alterado “fast food”. CARIOLOGIA o Elevado consumo de doces e bebidas açucaradas. Maior risco de desenvolver cárie. O efeito do flúor na relação entre dieta e cárie dentária o Estudos descritos anteriormente foram conduzidos em uma época na qual o acesso a produtos fluoretados era restrito ou inexistente. o Com a disseminação do flúor por meios de abrangência coletiva (água de abastecimento público fluoretada e sal fluoretado) e com a larga oferta de dentifrícios fluoretados, a relação entre dieta e flúor passou a se alterar gradualmente. o No Brasil, observamos modificações significativas na prevalência de cárie a partir da década de 70, com a adição do flúor na água de abastecimento público de algumas cidades, e a partir da década de 90, com a oferta de dentifrí- cios fluoretados no mercado nacional. o O efeito do flúor na relação entre dieta e cárie pode ser facilmente observado ao comparar os estudos realizados por Sreebny12 e Woodward e Walker. • Ao compilar dados de 47 países, Sreebny12 observou uma forte correlação entre o consumo de açúcar e a prevalência de cárie aos 12 anos, em um período sem acesso a produtos fluoretados. • Foi observada uma alta experiência de cárie nos países em que o consumo de açúcar era superior a 50g/pessoa/ dia, sendo que o consumo de quantidades inferiores esteve associa- do a índices CPO-D < 3. • Quando um estudo semelhante foi realizado em 1994, com amplo acesso a produtos fluoretados, esta forte associação não foi encontrada o A relação entre a frequência do consumo de açúcar, o uso de dentifrício fluoretado e a desmineralização do esmalte foi avaliada por Duggal e colaboradores e Ccahuana- Vásquez e colaboradores. • Neste estudo in situ,voluntários utilizaram aparelhos mandibulares removíveis contendo blocos de esmalte e gotejaram solução de sacarose em diferentes frequências diárias. • Um volume de 500 mL de solução de sacarose 12% foi dividido em 10X ao dia. • Foidividido em duas fases um com uso de dentifrício fluoretado e outra com dentifrício não fluoretado. • Os resultados demonstraram que,durante o uso de dentifrício fluoretado, a exposição à sacarose 7 ou 10 x/dia foi capaz de causar perda mineral. • Por outro lado, durante o uso de dentifrício não fluoretado, o uso de sacarose superior a 3 x/dia já foi capaz de causar perda mineral significativas. • Este estudo demonstra que, na presença de agentes fluoretados, uma maior frequência de ingestão de alimentos açucarados é tolerada sem resultar em perda mineral, reforçando a influência do uso de fluoretos na relação entre dieta e cárie. • O uso disseminado de fluoretos conferiu uma “margem de segurança” em relação ao consumo de açúcar. Em outras palavras, na presença de flúor no meio bucal, uma maior frequência de consumo de açúcar é necessária para o estabelecimento da doença cárie. • Esse raciocínio, de uma maior permissividade em relação ao consumo de açúcar, não pode ser utilizado no manejo dos pacientes com atividade de cárie. CARIOLOGIA • Embora o flúor tenha tido um efeito importante na redução da prevalência de cárie, ele não eliminou a doença, não tendo o poder de anular fatores causais importantes, como a dieta cariogênica e a presença de biofilme dental. Assim, a restrição do consumo de açúcar continua sendo uma parte justificável do controle da doença cárie. Metabolismo dos carboidratos o Os carboidratos podem ser classificados, quanto à sua composição química, em monossacarídeos, dissacarídeos e polissacarídeos. Do ponto de vista nutricional, são classificados como: Monossacarídeos Dissacarídeos Polissacarídeos • Os carboidratos mais fortemente associados à cárie dentária são os açúcares, por serem facilmente fermentados pelas bactérias, embora os amidos, alimentos com alto peso molecular, possam ser degradados em moléculas menores, servindo como fonte potencial de nutrientes para as bactérias do biofilme. o Diversas espécies bacterianas presentes no biofilme são capazes de metabolizar carboidratos e gerar ácidos que causam a desmineralização dos tecidos dentários. o Após o consumo de açúcar, o pH do biofilme bacteriano cai bruscamente, alcançando o nível mínimo em aproximadamente 10 minutos, quando começa a retornar vagarosa- mente à neutralidade, até atingir seus valores basais em aproximadamente 30 minutos. o Quando a oferta de carboidratos é abundante, além de causar queda de pH, eles podem ser armazenados na forma de polissacarídeos intracelulares (PIC) e extracelulares (PEC). o Os PIC podem ser formados a partir de diferentes açúcares e atuarão como reserva de nutrientes, a serem utilizados no metabolismo bacteriano em momentos de escassez, como entre as refeições. (A) biofilme formado sem a presença de sacarose, não há polissacarídeos extracelular entre as células bacterianas. o Os PEC são importantes na adesão bacteriana e alteram a porosidade da matriz do biofilme, aumentando sua permeabilidade. Desta maneira, a difusão de nutrientes das camadas mais externas do biofilme (em contado com o ambiente bucal) até suas camadas mais profundas (próximas à estrutura dentária) é facilitada. B) biofilme formado em presença de sacarose, há formação de polissacarídeo extracelular entre as células bacterianas o Diferentemente dos PIC, que podem ser formados a partir de diferentes açúcares, somente a sacarose pode servir de substrato para produção de PEC, razão pela qual ela é o açúcar mais cariogênico. o Na presença de sacarose, várias espécies bacterianas são capazes de sintetizar diversos tipos de polissacarídeos, sendo os polímeros de glicose e os polímeros de frutose os principais: Açúcares Amidos CARIOLOGIA • Polímeros de glicose (GLICANOS): ✓ Formados pela enzima glicosiltransferase, apresentando-se como uma massa gelatinosa extracelular sobre a superfície da bactéria. ✓ Podem apresentar a maioria das ligações na posição α-1.6, sendo denominados “dextranos”, ou predominância de ligações α-1.3, sendo chamados “mutanos”. ✓ Os mutanos são altamente insolúveis e rígidos e podem formar agregados fibrosos enquanto os dextranos formam cadeias flexíveis, sendo mais solúveis. • Polímeros de frutose (FRUTANOS): ✓ Formados pela enzima frutosiltransferase, são polímeros extracelulares de frutose bastante solúveis, com ligações β-2.6. ✓ Estes polímeros são formados em uma extensão menor do que os glicanos. Cariogenecidade dos alimentos o Açucares • Devido ao seu baixo peso molecular, os açúcares são rapidamente metabolizados pelas bactérias do biofilme, causando queda de pH e desmineralização dos tecidos dentários, • O consumo de glicose, maltose, frutose e sacarose gera quedas de pH semelhantes. • A lactose, porém, é menos cariogênica que os demais açúcares por ser capaz de causar uma menor queda de pH. • É válido lembrar que, conforme relatado anteriormente, a sacarose é o açúcar mais cariogênico; contudo, sua maior cariogenicidade não está relacionada à queda de pH que ela promove, mas sim à formação de um biofilme espesso e poroso devido à produção de PEC. Curvas do pH do biofilme após o uso de diferentes monossacarídeos, polissacarídeos e amidos o Amidos • Os amidos são moléculas grandes e complexas que necessitam da ação enzimática para serem degradadas em moléculas menores, passíveis de utilização no metabolismo bacteriano. • Dessa forma, sua cariogenicidade depende da forma de preparo dos alimentos. • Durante o processamento industrial, as moléculas de amido sofrem uma série de modificações denominada gelatinização, como resultado do calor e dos processos mecânicos aos quais elas são submetidas. Quanto maior o grau de gelatinização do amido, mais suscetível ele estará à degradação enzimática, aumentando o seu potencial cariogênico • Por esta razão, o amido cru promove uma menor queda de pH do que o amido cozido. CARIOLOGIA o A cariogenicidade relativa do açúcar e do amido foi investigada em um estudo longitudinal com escolares ingleses. • Ao monitorar o incremento de cárie por 2 anos, observou-se que o grupo que apresentou alto consumo de açúcar e baixo consumo de amido desenvolveu mais lesões de cárie do que o grupo que apresentou alto consumo de amido e baixo consumo de açúcar. • É importante salientar que quando estes carboidratos encontram-se associados, sua cariogenicidade é potencializada devido à maior capacidade de retenção na cavidade bucal que o amido confere aos alimentos. Alimentos protetores o Leite • Além de possuir lactose, um açúcar menos cariogênico, o leite é conhecido por apresentar fatores de proteção contra cárie como cálcio, fosfato e caseína. • Estudos epidemiológicos recentes demonstraram o efeito positivo ou nulo do consumo de leite na ocorrência de cárie. o Queijo • O consumo de queijo tem sido descrito como anticariogênico, por estimular o fluxo salivar e aumentar a concentração de cálcio no biofilme. • Além destas propriedades, o queijo apresenta fosfopeptídeos de caseína e fosfato de cálcio amorfo, que parecem desempenhar um papel importante no processo de remineralização. • Um recente estudo avaliando a relação entre dieta e cárie emcrianças com baixa prevalência da doença demonstrou que o consumo de queijo foi inversamente associado à cárie dentária. o Adoçantes • Adoçantes não calóricos, como sacarina, ciclamato e aspartame são comumente utilizados para adoçar refrigerantes, sorvetes e geleias. Por não serem metabolizados pelas bactérias do biofilme, não apresentam potencial cariogênico. • Com relação aos adoçantes calóricos, o sorbitol e o xilitol são alcoóis de açúcares bastante utilizados para adoçar chocolates, gomas de mascar e outros doces livres de açúcar. ✓ O sorbitol pode ser fermentado por algumas espécies bacterianas que com- põem o biofilme (como a maioria das cepas do S. mutans e lactobacilos); no entanto, a queda de pH decorrente desta fermentação é muito lenta e não atinge o pH crítico para a desmineralização dos tecidos dentários. ✓ O xilitol, com raras exceções, não é metabolizado pela maioria das bactérias do biofilme e, além disso, possui um efeito antibacteriano contra S. mutans. Tal efeito está relacionado ao acúmulo intracelular de xilitol 5- fosfato. • A redução do consumo de doces em pacientes com atividade de cárie pode ser difícil de ser obtida durante o aconselhamento dietético. • Nessas circunstâncias, opções de adoçantes que sejam seguros para os dentes e que possam ser usados em pequenas quantidades são muito úteis na prática clínica. CARIOLOGIA • Os substitutos do açúcar podem ser recomendados, atuando como coadjuvantes no tratamento dos pacientes com cárie. Diagnóstico: como registrar as informações? o Existem diferentes métodos para registrar as informações referentes à dieta dos pacientes: o diário alimentar, a entrevista de 24 horas e questionários específicos. o Diário alimentar • Um formulário é entregue ao paciente e solicita-se que ele registre todos os alimentos e bebidas consumidos por um período que varia de 3 a 7 dias. o Entrevista de 24 horas • Neste caso, o paciente relata verbalmente ao profissional todos os alimentos e bebidas consumidos nas últimas 24 horas. • Por ser realizado sem aviso prévio, reduz- se o risco de o paciente modificar sua dieta previamente ao registro. • O uso da entrevista de 24 horas pode ficar prejudicado em pacientes idosos, os quais frequentemente relatam não se lembrar de todos os alimentos ingeridos. o Questionário • frequência alimentar (QFA) específico para a quantificação de açúcar. Neste instrumento, o indivíduo é questionado sobre o consumo de 94 itens, incluindo pães, biscoitos e cereais; leites e derivados; molhos; carnes; frutas; bebidas; cereais, tubérculos e massas; leguminosas; verduras e legumes; sopas; pratos mistos; e doces e miscelâneas. • A partir de dados referentes à frequência de consumo e à quantidade ingerida, é possível calcular em massa a quantidade de açúcar ingerido. Este QFA deverá ser validado e ter sua reprodutibilidade avaliada previamente ao seu uso na prática clínica. 2006 CARIOLOGIA Tratamento: como utilizar os dados coletados o De posse das informações coletadas, a partir do diário alimentar ou da entrevista de 24 horas, o profissional deverá avaliar a dieta do paciente cário-ativo e propor modificações que favoreçam o reequilíbrio dos processos de des-remineralização. o A substituição de balas, gomas de mascar e refrigerantes convencionais por produtos dietéticos (livres de açúcar, contendo adoçantes artificiais) é uma boa alternativa. o A substituição do açúcar por adoçantes em sucos, chás e cafés ou a redução gradual da quantidade de açúcar até atingir sua completa eliminação também pode ser negociada com o paciente. o Nos casos em que é difícil remover ou substituir o açúcar, deve-se recomendar que o paciente procure consumir alimentos açucarados nas principais refeições, reduzindo, assim, a frequência diária de consumo. o É importante que o aconselhamento dietético seja feito de maneira individualizada, com base na realidade de cada indivíduo. Somente desta forma será possível discutir com o paciente a possibilidade de modificações realistas. Sempre que possível, deve-se solicitar auxílio de nutricionistas e tentar associar a saúde oral à saúde sistêmica. Evidência de que o aconselhamento dietético pode modificar hábitos alimentares. o É preciso diagnosticar o que está causando a cárie do paciente para podermos atuar de forma eficaz. o O acesso ao flúor disponibilizado atualmente é importante, mas seu efeito é limitado, não permitindo ao indivíduo consumo irrestrito de açúcar. o A sacarose é o açúcar mais cariogênico o O registro de informações sobre hábitos alimentares está indicado para pacientes com atividade de cárie o Avaliar a dieta e propor modificações acessíveis
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