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Desclassificados do ouro_ a pobreza mineira no século XVIII-Ouro sobre azul (2017)

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DE SCL ASSIFICA DOS
DO OU RO
Laura de Mello e Souza
DE SCL ASSIFICA DOS
DO OU RO
,
Ouro sobre Azul | Rio de Janeiro 2015
à memoria de Sérgio Buarque de Holanda
PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO 9
AGRADECIMENTOS 17 
ABREVIAÇÕES 17 
INTRODUÇÃO , Problemas e opções 21
I. O FALSO FAUSTO 33
II. DA UTILIDADE DOS VADIOS 77
1 , O processo de desclassificação social no Ocidente 77
2 , Império Colonial, ergástulo de delinquentes 84
3 , Brasil: estrutura econômica 
 e processo de desclassificação social 87
4 , O processo de desclassificação nas Minas 96
5 , As várias formas da utilidade dos desclassificados 103
III. NAS REDES DO PODER 131
1. , Administração e Estado 131
2. , As diferentes formas do exercício do poder nas Minas 144
3. , Oligarcas e potentados 197
IV. OS PROTAGONISTAS DA MISÉRIA 203
1. , Aspectos gerais da população 203
2. , A fluidez da camada 207
3. , Infratores e infrações: os casos individuais 241
4. , Infratores e infrações: aspectos de grupo 74
CONCLUSÃO , A ideologia da vadiagem 295
1. , As metamorfoses do ônus e da utilidade 295
2. , A humanidade inviável 300
FONTES E BIBLIOGRAFIAS 307
CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES 318
9
, PREFÁCIO À 4a. EDIÇÃO
Destinado à obtenção do título de mestre, Desclassificados do ouro 
foi escrito no início de 1980. O título foi concedido em outubro da-
quele ano, mas o livro só veio a público no final de 1982, e, desde en-
tão, ao longo destes 21 anos, teve algumas reimpressões. A presente 
edição não pode ser considerada como “revista”, pois, exceto por 
algumas correções formais, nada se alterou do conteúdo. O editor, 
entretanto, possibilitou o acréscimo de uma bela iconografia e deste 
Prefácio, onde, sustentando a argumentação central do livro, faço 
alguns esclarecimentos.
Como já lembrei em outras ocasiões1Desclassificados foi con-
cebido num contexto de hipertrofia do estado brasileiro nos seus 
aspectos mais nefastos e negativos. As liberdades individuais não 
existiam, o medo era constante e geral o desalento, pelo menos en-
tre jovens que, como eu, saíam da adolescência. Meus trabalhos de 
pesquisa com vistas ao mestrado começaram em 1976, embalados 
pelo capitulo Vida Social, de Caio Prado Jr, em Formação do Bra-
sil Contemporâneo, e pelas três ou quatro conferências de Michel 
Foucault no Departamento de Filosofia da USP, logo interrompidas, 
pelo seu protesto ante o assassinato de Wladmir Herzog e, mais 
tarde, sistematizadas na obra Histórica da Sexualidade – vol. 1 – A 
vontade de saber. Nos anos seguintes, foi – como boa parte de mi-
nha geração na USP – leitora assídua de Antonio Gramsci e, ainda, 
de obras sociológicas sobre a questão da força de trabalho. Havia 
na época, grande fascínio pelas formas alternativas de viver e de 
1 , Entrevista dada a Luís Carlos Villalta, Renato Pinto Venâncio e Fábio Faversan 
para a LPH Revista de História, n.5, Ouro Preto: UFOP, 1995, p.5-12. Entrevista dada 
a José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego em Conversas com historiadores 
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p.363-82 (ver sobretudo p.373-4).
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
10
pensar, as desconstruções parecendo bem mais promissoras do que 
se afigurariam depois. Estudar os vencidos, os de baixo, não era, no 
Brasil de então, mero modismo, mas forma de situar-se no mundo 
de divergir e buscar caminhos novos. Quando todos os meus com-
panheiros mais chegados ou quase toda a minha geração estudava 
o escravismo, focalizando de várias formas os seus protagonistas 
principais – os escravos –, pensei poder contribuir à discussão pelo 
seu avesso, ou seja, trazendo à baila um vasto contingente humano 
afeito ao trabalho assistemático e esporádico: homens livres pobres, 
sempre prestes a se tornarem desocupados, habituados ao biscate e à 
incerteza de um eterno ser-e-não-ser. No mundo onde os extremos 
– senhores e escravos – eram bem definidos e capazes de definir, o 
homem livre pobre era, parecia-me o marginal entre os marginais.
Apesar da repercussão favorável e da acolhida generosa que, no 
geral, o trabalho suscitou, surgiram, ao longo dos anos, algumas 
críticas e reparos. O avanço impressionante da pesquisa histórica 
em Minas Gerais, em grande parte tributária da consolidação dos 
cursos universitários e dos programas de pós-graduação, revificou 
a historiografia regional. Documentos que eram de difícil consulta, 
como o Códice Costa Matoso, receberam edições críticas cuidado-
síssimas, facilitando o acesso dos pesquisadores a fontes primárias 
preciosas.2 
Muitos estudos mais verticais e recortados trouxeram novo ma-
triz à análise da sociedade mineira setecentista, a ênfase à agricul-
tura e à constituição de um mercado interno tornando-se, de certa 
forma, os carros-chefes dessa renovação.3 Contribuições interes-
2 , Na publicação dessas fontes, ressalte-se o trabalho magnifico da Fundação 
João Pinheiro, que trouxe a público edições críticas de clássicos como José Joaquim 
da Rocha, Teixeira Coelho e Vieira Couto. Destaco aqui duas importantes publica-
ções mais recentes: Códice Costa Matoso – edição coordenada por Luciano Raposo 
de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Belo Horizonte, Fundação Pi-
nheiro, 1999, 2 v. Luís Gomes Ferreira, Erário Mineral. Edição organizada por Júnia 
Ferreira Furtado, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2002.
11
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
3 , Carla Maria Carvalho de Almeida, Alterações nas unidades produtivas mi-
neiras – Mariana, 1750-1850. Dissertação de Mestrado, Departamento de História, 
UFF, 1994. Francisco Eduardo de Andrade, A enxada complexa: roceiros e fazendei-
ros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. Dissertação de Mestrado, 
Departamento de História, FAFICH-UFMG, Belo Horizonte, 1994. Ângelo Alves 
Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de 
Doutorado, Departamento de História – UFRJ, Rio de Janeiro, 1997. Cláudia Maria 
das Graças Chaves, Perfeitos negociantes – mercadores das Minas setecentistas. São 
Paulo: Annablume, 1999. Júnia Ferreira Furtado, Homens de negócio – a interiori-
zação da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec 1999. 
José Newton Coelho de Menezes, O continente rústico: abastecimento alimentar na 
Comarca do Serro do Frio – 1750-1810. Belo Horizonte: Maria Fumaça, 1997. Sô-
nia Maria de Magalhães, A mesa de Mariana – produção e consumo de alimentos 
em Minas Gerais (1750-1850). Dissertação de Mestrado, Departamento de História, 
Unesp/Franca1998. Flávio Marcus da Silva, Subsistência e poder – a política do abas-
tecimento alimentar nas minas setecentistas. Tese de Doutorado, Departamento de 
História, FAFICH-UFMG: Belo Horizonte, 2002. Sobre aspectos mais gerais da so-
ciedade, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, O avesso da memória – coti-
diano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José 
Olympio, Brasília: EDUNB, 1993; do mesmo autor, Barrocas famílias – vida familiar 
em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec 1997; Marco Antônio Silveira, 
O universo indistinto – estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808), São 
Paulo: Hucitec, 1997; do mesmo autor, Fama publica – poder e costume nas Minas se-
tecentistas. Tese de Doutorado Departamento de História, FFLCH-USP, 2000; Júnia 
Ferreira Furtado, Chica da Silva e o contratador dos diamantes, São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2003; Luís Carlos Villalta, Reformismo ilustrado, censura e práticas 
de leitura: usos do livro na América Portuguesa. Tese de Doutorado, Departamento 
de História, FFLCH-USP, 1999; Álvaro de Araújo Antunes, Espelho de cem faces; o 
universo relacional do advogado setecentistas José Pereira Ribeiro. Dissertação de 
Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG, 1999. Sobre urbanização, ver 
Maria Aparecida Menezes Borrego, Códigos e práticas – o processo de constituição 
urbana em Vila Rica colonial (1702-1748), São Paulo: Annablume, 2004, e ClaudiaDamasceno Fonseca, Des Terres aux Villes de l’Or. Pouvoirs et Territoires Urbains 
au Minas Gerais (Brésil, XVIIIe siècle), Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 
2003. Sobre a questão indígena, ver Maria Leonia Chaves de Resende, Gentios Bra-
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
12
santes também se verificaram na análise do escravismo, onde in-
fluência anglo-saxônica – com o apreço pela capacidade de os es-
cravos conduzirem sua existência por meio dos poros e interstícios 
do sistema – se faz notar de modo especial. O estratagema, a nego-
ciação, a esperteza passaram a sobrenadar, relativizando a ideia da 
escravidão-cárcere, da qual era impossível sair.4 Eu mesma acabei 
por rever concepções que endossara antes, como a analogia entre 
o aumento das alforrias e o “sucateamento’ da força de trabalho.5 
Estudos específicos mostraram, afinal, que a obtenção de alforrias 
constituíra um processo complexo, composto por variáveis como 
a sazonalidade, o gênero, a idade.6 Por fim, cabe destacar a relati-
sílicos – índios coloniais em Minas Gerais Setecentista. Tese de Doutorado, Depar-
tamento de História, Unicamp, 2003; ver ainda Hal Langfur, The Forbidden Lands: 
Frontier Settlers, Slaves, and Indians in Minas Gerais, Brazil, 1760-1830. Tese de 
Doutorado, Universidade do Texas, 1999. Sobre o papel dos paulistas na formação 
dos currais de gado do médio São Francisco, ver Márcio Roberto Alves dos Santos, 
Bandeirante Paulistas no sertão do São Francisco e do Verde Grande – 1688-1732. 
Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG, 2004. Como 
obra de referência, ver Adriana Romeiro e Angela Viana Botelho, Dicionário Histó-
rico das Minas Gerais – período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
4 , Eduardo França Paiva, Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII – 
estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. Do 
mesmo autor, Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789. 
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. Julita Scarano – Negro nas terras do ouro – 
cotidiano e solidariedade – século XVIII, São Paulo: Brasiliense, 2002. Liana Maria 
Reis, Por ser público e notório: escravos urbanos e criminalidade na capitania de Mi-
nas (1720-1800). Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH-USP, 2002; 
Para as relações entre escravidão e protoindustrialização, já no século XIX, Douglas 
Cole Libby, Transformação e trabalho em uma economia escravista – Minas Gerais 
no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
5 , Laura de Mello e Souza – Coartação: problemática e episódios referen-
tes a Minas Gerais no século XVIII, em: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), 
Brasil – colonização e escravidão, Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2000, p.275-95.
6 , Kathleen Joan Higgins, The Slave Society in Eighteenth-century Sabara: a com-
13
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
vização do peso opressor do Estado, não apenas capaz de cooptar 
agentes locais como, também, de se mostrar rígido na letra mas ine-
ficiente na execução. O trabalho de Júnia Ferreira Furtado sobre o 
Distrito Diamantino ressaltou justamente essa capacidade de ação 
cotidiana dos habitantes do Tijuco, que nenhum Regimento conse-
guiu, na prática, neutralizar.7
Em graus variáveis, muitos dos trabalhos acima citados relativi-
zaram, pois, alguns pontos de Desclassificados do ouro. Tal é, afinal, 
o destino de todo estudo de História, e entendo que o fato deve ser 
visto como positivo: o contrário – a permanência de verdades ina-
baláveis – significaria estagnação desalentadora da vida intelectual 
do país. Por meio de um ou outro acréscimo, sobretudo nas notas, 
eu poderia ter incorporado, nesta edição, os reparos que conside-
ro significativos. Não o fiz porque acredito que um livro é também 
filho de seu temo, e não quis tirar-lhe este caráter. E resto, como 
afirmei em outro Prefácio, escrito para um outro livro meu, não sou 
mais capaz de escrever como então, e o tom geral do livro reflete 
uma juventude que já não possuo, expressa também na adjetivação 
e nos juízos de valor que, hoje, eu manejaria com maior prudência.
Há pontos, contudo em que minhas posições foram mal compre-
endidas ou mesmo distorcidas. No limite, houve quem confessasse 
espanto por Desclassificados endossar “amplamente as considera-
ções das ‘camadas dominantes’”, nada havendo que diferenciasse 
qualitativamente as análises de Gilberto Freyre, as de Caio Prado 
Jr. e a minha, sobretudo porque as fontes utilizadas, quase sempre 
munity study in colonial Brazil. Tese de doutorado, Universidade de Yale, 1987. UMI 
Dissertation Services, 1994. Laird W. Bergard – Slavery and the Demographic and 
Economic History of Minas Gerais, Brazil. 1720-1888. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1999.
7 , Furtado, Júnia Ferreira, O livro da Capa Verde. O Regimento Diamantino 
de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: 
Anablume, 1996. Mais recentemente, ver, sobre as relações entre o âmbito público 
e o privado do poder político na capitania, Maria Veronica Campos, Governo de 
Mineiros – de como meter as Minas numa moenda e beber lhe o caldo dourado – 
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
14
de natureza oficial, se encarregaram de me trair.8 Em mais de uma 
obra sua, Carlo Ginzburg defendeu, muito melhor do que eu pode-
ria fazê-lo, a posição de que os testemunhos – históricos, literários, 
iconográficos – podem e devem ser lidos ao revés.9 A meu ver, acre-
ditar que fontes seriais propiciem abordagens mais “objetivas” ou 
democráticas seria, no primeiro caso, ingenuidade e, no segundo, 
uma certa demagogia. Por muito que me honre figurar ao lado de 
dois dos grandes “explicadores do Brasil”, acredito que Desclassifi-
cados do ouro, sem dúvida muito influenciado pela perspectiva ana-
lítica de Caio Prado Jr. – nos 1970, uma das mais oxigenadoras que 
havia -, problematizou de modo inovador a ambiguidade constituti-
va do trabalho e do homem livre no mundo do escravismo colonial. 
Numa perspectiva histórica, a desclassificação – vocábulo que não 
apresenta qualquer caráter pejorativo, mas meramente analítico, 
ancorado na sociologia – fora abordada sobretudo para os contex-
tos da industrialização. Vê-la no mundo do capitalismo nascente e 
antes do advento da indústria foi, a meu ver, um avanço. Por outro 
lado, associar a desclassificação social ocorrida na colônia com os 
processos mais amplos de pauperização do Ocidente destacando 
o papel neles desempenhado pelas colônias, amplificou o escopo e 
teve por objetivo mostrar que o recorte específico não deve, nunca, 
1693 a 1737. Tese de Doutorado, Departamento de História, FLCH-USP, 2002; sobre 
o visionarismo político e a conflitualidade na capitania, ver Adriana Romeiro, Um 
visionário na corte de D. João V – revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo 
horizonte: Editora UFMG, 2001. Sobre a administração da capitania, Virginia Maria 
Trindade Valadares, A sombra do poder – Martinho de Melo e Castro e a administra-
ção da capitania de Minas Gerais (1770-1795). Dissertação de Mestrado, Faculdade 
de Letras, Universidade de Lisboa, 1997, 2 vol.
8 , Sheila de Castro Faria, A colônia em movimento – fortuna e família no cotidia-
no colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998, p. 395-6.
 9 , Entre outros: O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas 
implicações, em: A micro-história e outros ensaios. Tradução Portuguesa, Lisbo: 
Difel, 1991, p. 203-14 Estranhamento – pré-história de um procedimento 
literário, em: Olhos de madeira – nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Com-
15
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
deixar de lado o enquadramento geral. Usando uma terminologia 
que, então, não se achava em voga, penso ser cabível dizer que Des-
classificados do ouro ajuda a pensar a globalização da pobreza – ob-
jeto que não fazia parte das cogitações de Freyre e de Prado Jr. Por 
fim, parece não ter ficado claro para muitos que este livro aborda 
não apenasa constituição e o modo de vida dos homens livres po-
bres em Minas Gerais, mas também a ideologia da vadiagem, ou 
seja, o olhar raivoso e desqualificador que as elites – agora é delas 
mesmo que se trata – lançaram, séculos afora, sobre o mundo do 
não-trabalho e sobre os mestiços de vário matiz, que teimosamente 
se desejava branquear.
Outra crítica recorrente diz respeito a uma possível hipertrofia 
que o setor aurífero recebeu neste trabalho.10 Minas não era só ouro: 
passadas as primeiras crises – terríveis, na virada do século XVII – 
havia, desde o início do povoamento, cultura de subsistência, mui-
to alambique, monjolo, criação de porcos e currais de gado. Havia, 
igualmente, fortunas feitas no comércio de secos e molhados, na 
venda de carne, no transporte de mulas. Se é inegável a diversifi-
cação da estrutura econômica desde muito cedo no século XVIII, 
continuo acreditando que foi o ouro o grande dinamizador da eco-
nomia das Minas, o elemento que lhe deu a cor e a especificidade. 
Os homens que abriram fazenda ao longo do Caminho Novo – uma 
das quais chegou até os dias de hoje, sempre na mesma família – não 
o fizeram porque achassem boas as terras dali, mas porque foram 
atraídas pela mineração.11 Os que, como aquele célebre Castro de 
panhia das Letras, 2001, p. 15-41; Os andarilhos do bem – feitiçarias e cultos agrários 
nos séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
10 , Veja, por exemplo, Liana Maria Reis e Carlos Magno Guimarães, Agricul-
tura e escravidão em Minas Gerais (1700-50), em: Revista do Departamen-
to de História, Belo Horizonte, FAFICH-UFMG, n.2, 1986, p.7-36; Agricultura e 
caminhos de Minas (1700-50), em: Revista do Departamento de História, Belo 
Horizonte, FAFICH-UFMG, n.4, 1987, p.85-99.
11 , Ver André Figueiredo Rodrigues, Um potentado na Mantiqueira: José Aires 
Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. Dissertação de Mestrado, Depar-
tamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 2002.
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
16
Sabará, morreram milionários com o comércio, foram ter às Mi-
nas para vender fazendas e comestíveis aos mineradores. Quando 
a mineração caiu irreversivelmente, ocorreu, por um lado, a di-
áspora mineira e, por outro, a ruralização profunda da região. A 
nomenclatura da capitania, depois província e hoje estado, acusa 
o nexo profundo da economia, e é bom lembrar que, no Brasil, só 
Minas Gerais derivou o nome da atividade econômica principal: a 
cana-de-açúcar, o café ou o gado não foram capazes de nomear as 
regiões onde mais se desenvolveram. O ouro, pois, marcou indele-
velmente a velha capitania: mais do que à agricultura, é a ele que se 
deve a identidade colonial da região.
A capitania de Minas Gerais foi um de meus principais objetos 
de estudo durante quase 30 anos. Protegida pelo âmbito regional, 
ensaiei os primeiros passos de historiadora e fui ganhando familia-
ridade com os problemas complexos que essa prática impõe. Entre-
tanto, a fase aberta com Desclassificados foi-se fechando, e vejo-me 
agora envolvida com preocupações muito diferentes. Por todos es-
ses motivos, deixo aqui o mesmo livro publicado em 1982. Cabe ao 
leitor julgar sobre o interesse que ele ainda possa ter, e suplantar as 
lacunas que ele certamente não preencheu.
, , , 
17
, AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi possível devido ao auxílio de amigos, de colegas, ao 
interesse que por ele manifestaram pessoas com as quais até então 
eu nunca tivera contato. As sugestões feitas por elas, o apoio rece-
bido acham-se presentes nestas páginas, e a todas deixo aqui meu 
reconhecimento.
Nos arquivos em que trabalhei, encontrei compreensão e espírito 
de solidariedade por parte dos funcionários; ao lado da Fundação 
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que com 
uma bolsa de mestrado me possibilitou trabalhar dois anos e meio 
em regime de dedicação integral, eles foram os responsáveis pelas 
condições materiais que viabilizaram a pesquisa.
Sem querer hierarquizar meus débitos, gostaria de mencionar es-
pecialmente cinco amigos: Fernando A. Novais, que durante todos 
esses anos me deu o privilégio de sua orientação; Maria Inês e Sílvio 
de Mello Carvalho, que com sua acolhida encantaram minhas esta-
dias mineiras; Samir Curi Meserani, que abriu espaço em sua casa 
para que eu pudesse ali instalar um escritório de emergência; Sérgio 
Buarque de Holanda, que acompanhou a pesquisa com generosi-
dade e o interesse que o caracterizavam, enriquecendo-a inestima-
velmente com conversas e observações. A ele, este livro é dedicado. 
19
, ABREVIAÇÕES
1. Arquivos 
APM \ Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte. Foram utiliza-
dos códices (= cód.) de duas seções:
SC \ Seção Colonial
CMOP \ Câmara Municipal de Ouro Preto
AEAM \ Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Mariana.
2. Publicações 
ABN \ Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
DH \ Documentos Históricos, Rio de Janeiro.
DI \ Documentos interessantes para a História e Costumes de São 
Paulo, São Paulo.
HAHR \ Hispanic-American Historical Review.
RAPM \ Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte.
RBEP \ Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte.
RH \ Revista de História, São Paulo.
RHMC \ Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris.
RIHGB \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio 
de Janeiro.
RIHGMG \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Ge-
rais, Belo Horizonte.
RSPHAN \ Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, Rio de Janeiro.
21
INTRODUÇÃO
, PROBLEMAS E OPÇÕES
Além de tantas outras viradas bruscas, os anos 1960 e 1970 do século 
XX revelaram um interesse súbito pelas minorias, pela marginalida-
de, pela exclusão – a tal ponto que, no futuro, ao lado da revolução 
comportamental, do movimento estudantil, da incorporação (latu 
sensu) do Oriente, talvez fique este súbito interesse dos estudos aca-
dêmicos pelo louco, pelo criminoso, pelo mendigo, pelo migrante 
miserável que o capitalismo selvagem dos países latino-americanos 
despejou sobre os seus principais centros urbanos.
Objeto de estudo recentemente incorporado ao repertório temá-
tico da Universidade, o marginal carecia, entretanto, de estatuto 
teórico. Como definir um elemento que pertence e não pertence à 
sociedade, que é parte e negação do sistema, enfim, que vive a cava-
leiro de dois mundos, na encruzilhada de vários caminhos? No que 
difere dos outros, dos não-marginais, e no que lhes é semelhante?
Os sociólogos latino-americanos debruçaram-se detidamente 
sobre a marginalidade – Nun, Quijano, Murmis, Veckemans, Ko-
warick, Berlinck, para citar apenas alguns –1 e algumas instituições 
1 , Aliás, no conjunto da produção cientifica sobre marginalidade, é interessante 
destacar o papel e o vulto dos estudiosos latino-americanos, para quem o problema 
é especialmente vivo e doloroso. Alguns exemplos: Manuel Berlinck, Marginalida-
de social e relações de classe em São Paulo: Petrópolis, Vozes, 1975; Lúcio F. Kowa-
rick, Capitalismo e marginalidade na América Latina, Rio de Janeiro: Paz e Terra 
1975; José Nun, Superpoblación Relativa, Ejército Industrial de Reserva 
y Masa Marginal, em: Revista Latinoamericana de Sociologia, julho, 1969; Aní-
bal Quijano, Polo Marginal de la Economia y Mano de Obra Marginada, 
Lima, 1971; A. Quijano, Notas sobre el Concepto de la Marginalidad Social. Santiago, 
1971; Roger Veckermans, Marginalidad y Pleno Empleo, Santiago, 1970; R. Vecker-
mans, Una estrategia para la miseri”, Santiago: DESAL, 1967 e ainda: Margina-
lidad, incorporación y integración, Santiago: DESAL, Boletin n.37, 1967.
aldairrodrigues
Texto digitado
CEPAL, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Sem Editora
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
22
também privilegiaram esse campode estudo, como a CEPAL e a DE-
SAL. Além da questão do marginal na sociedade, surgiram deba-
tes cujo articulador comum foi a questão do “exército de reserva”.2 
Por mais que surgissem discordâncias e aflorassem contradições, 
imprecisões e dificuldades, o conceito foi despido do psicologismo 
com que o revestiu um de seus progenitores, Stonequist,3 e tornou-
-se definitivamente dependente das formulações feitas por Marx 
em O Capital.4 Não era mais possível compreender o processo de 
marginalização sem pensar na expropriação, na acumulação pri-
mitiva, na constituição da mão-de-obra para a indústria e, uma vez 
configurada a sociedade industrial, na função do exército de reserva 
enquanto elementos de contenção salarial. A sociedade industrial 
contemporânea é, pois, o cimento comum de tantas interpretações 
diferentes.
Entre os historiadores, o problema se delineou de modo diverso. 
Mendigos, vagabundos, marginais em geral têm sido estudados – ou 
pelo menos mencionados – já há muitos anos, mas só recentemente 
é que se tornaram uma espécie de febre acadêmica.5 Infelizmente, a 
indefinição do objeto é incomparavelmente maior entre os estudos 
de História do que entre os de Ciências Sociais, atingindo níveis 
quase insuportáveis. Os colóquios ou edições coletivas surgidos re-
2 , Fernando Henrique Cardoso, Comentário sobre os conceitos de super-
população relativa e marginalidade, em: Sobre teoria e método em Sociolo-
gia, CEBRAP: São Paulo, 1971.
3 , E. V. Stonequist, O homem marginal, (1937), trad., São Paulo, 1948.
4 , Karl Marx, O Capital, Rio de Janeiro, 1975, livro 1, v.2, c. XXIII.
5 , Entre os precursosres nesse campo: Ribbon Turner, A History of Vagrants and 
Vagrancy, and Beggars and Begging, Londres, 1887; C. Paultres, De la Répression de 
la Mendicité et du Vagabondage en Frances sous l'Ancien Régime, Paris, 1907; W.H. 
Dawson, The Vagrancy Problem, Londres, 1910. Mais recentemente destacam-se 
as seguintes obras: Eric J. Hobsbawn, Primitive Rebels – Studies in Archaic Forms 
of Social Movement in the 19th and 20th Century. Londres, 1959; e ainda: Bandits, 
Londres, 1969; J. R. Poynter, Society and Pauperism – English Ideas on Poor Relief, 
1795 – 1834, Londres-Toronto, 1969; José Luís Alonso Hernandez et al., Culture et 
aldairrodrigues
Texto digitado
 Livraria Martins Editora,
aldairrodrigues
Texto digitado
Civilização Brasileira, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Chapman and Hall
aldairrodrigues
Texto digitado
L. Larose & L. Tenin,
aldairrodrigues
Texto digitado
P.S. King & Son
aldairrodrigues
Texto digitado
Manchester, Manchester University Press
aldairrodrigues
Texto digitado
Weidenfeld and Nicolson
aldairrodrigues
Texto digitado
London : Routledge and Kegan Paul ; Toronto : University of Toronto press, 
23
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
centemente refletem essa indefinição, o conceito de marginalidade 
apresentando elasticidade suficiente para abrigar feiticeiras, alqui-
mistas, loucos, seres monstruosos, autores tratados de oniromancia, 
pícaros, mendigos (falsos e verdadeiros), vagabundos, indígenas, 
“hippies”, “apaches”.6 De onde começa a surgir outra discussão: 
marginal seria antes o insólito, o exótico, do que o elemento vomi-
tado por uma ordem incapaz de o conter? O marginal seria aquele 
que, deliberadamente, se coloca à margem, ou o que é colocado à 
margem? Mais ainda: porque não entender o marginal como o que 
está mal integrado na sociedade? Em outras palavras: o que está mal 
classificado?
Atendo-se frequentemente ao estudo dos canais institucionais, 
dissociando marginalidade e pobreza, esses estudos pouca luz 
lançam sobre o conceito, e, se comparados aos estudos dos soció-
logos, apresentam um nível de articulação bastante inferior, dada 
a heterogeneidade dos períodos abordados. Não há, para uni-los, 
um substrato comum, e o problema de especificidade histórica faz 
com que o elemento mal aceito num dado contexto possa perfeita-
mente sê-lo em outro. Daí a enorme gama de categorias abarcadas 
pelo conceito que, nessa variedade, acaba por se esvaziar e perder o 
sentido: um conceito que é tudo ao mesmo tempo acaba não sendo 
rigorosamente nada. Outro vicio curioso presente nos estudos his-
toriográficos da marginalidade é a omissão constante – talvez, re-
Marginalités au XVI Siécle, Paris, 1973; Olwen H. Hufton, The Poor of Eighteenth 
Cenury France – 1750-1789, Oxford, 1974; Pierre Deyon, Le Temps des Prisions, Paris, 
1975; Guy-H. Allard et al., Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d.; 
Douglas Hay et al., Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century 
England, Londres, 1975; Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens au XIV et 
XV siècles, Paris 1976; Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, 
Paris, 1976; Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978; 
vários, Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979. Há ainda inúmeros 
artigos nas revistas especializadas.
6 , G. Allard (org.), Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d. Vários, 
Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 10-18, 1979.
aldairrodrigues
Texto digitado
C. Klincksieck,
aldairrodrigues
Texto digitado
Clarendon Press
aldairrodrigues
Realce
aldairrodrigues
Realce
aldairrodrigues
Texto digitado
L'Aurore, 1975
aldairrodrigues
Texto digitado
Allen Lane
aldairrodrigues
Texto digitado
Flammarion, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Éditions du Seuil, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Hachette, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Union Générale d’éditions
aldairrodrigues
Texto digitado
L'Aurore, 1975.
aldairrodrigues
Texto digitado
Union Générale d’éditions
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
24
cusa sistemática – em incorporar as boas contribuições dos estudos 
sociológicos modernos, o que os acaba levando a delírios empíricos 
pouco frutíferos. Nesse contexto, não chega a provocar assombro a 
constatação final de Michel Mollat, grande autoridade francesa em 
história da marginalidade que, de uma vez por todas, decidiu pela 
perenidade da Pobreza.7
A partir dessas constatações, o conceito de marginalidade usa-
do pelos sociólogos ganha nova configuração: mesmo quando vago 
e impreciso, essas características não chegam a incomodar muito, 
nem a escamotear a verdadeira natureza do conceito, que é a sua 
historicidade. De fato, parece difícil – para não dizer impossível 
– dissociá-lo da sociedade industrial que o engendrou, e bastante 
problemático aplicá-lo a realidades históricas que não sejam as da 
industrialização, como é o caso deste trabalho, que tem por objeto 
os desclassificados sociais da mineração no período colonial.
Já desclassificado social é uma expressão bastante definida. Reme-
te, obrigatoriamente, ao conceito de classificação, deixando claro 
que, se existe uma ordem classificadora, o seu reverso é a desclas-
sificação. Em outras palavras: uns são bem mais classificados por-
que outros não o são, e o desclassificado só existe enquanto existe o 
classificado social, partes antagônicas e complementares do mesmo 
todo. Nesse contexto, é impossível pensar em desclassificação social 
sem pensar na vinculação que esta oferece com o nível infra-estrutu-
ral, parte fundante do processo de desclassificação. Contrariamente 
ao que acontece com o conceito de marginalidade conforme tem 
sido empregado por historiadores, não há, neste modo de ver, am-
plitude ilimitada nem dissociação entre marginalidade e pobreza, 
entre o fenômeno e aquilo que o engendrou. Além disso, fica clara a 
7 , A misericórdia pode mudar de nome e de face; sua natureza continua sendo 
a Caridade, perene como a Pobreza”, Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age, 
Paris, 1978, p.359. Ressalva seja feita aos excelentes trabalhos do historiador polonês 
Bronislaw Geremeck, dentre os quais destaca-se Les Marginaux Parisiens au XIVe et 
XVe siècles, Paris, 1976.
aldairrodrigues
Texto digitado
Hachette
aldairrodrigues
Texto digitado
Flammarion
25
PR E FÁC IO À 4 A EDIÇ ÃO
orientação subjacente: não é qualquer não-inserção que conta – a da 
feiticeira, a do louco, a do oniromancista, todas elas circunstanciais 
e episódicas –, mas a não-inserção motivada por dados estruturais: 
a pobreza torna-se, assim, o primeiro – mas não o único – dentre os 
agentes desclassificatórios.
Marginalidade pode ainda fazer pensar em algo que se separa de 
um todo uniforme, constituído, no caso, pela sociedade. Já desclas-
sificação sugere a exterioridade ante a classificação e o distancia-
mento em face de um todo heterogêneo e diversificado.
Outro ponto favorável ao emprego do conceito de desclassifica-
ção social como adequado ao tratamento da realidade colonial é o 
fato da sociedade de então apresentar-se definida em termos esta-
mentais, ou seja, de status, de honra (o que remete a classificação) 
e de, ao mesmo tempo, atravessar um processo de constituição de 
classes (o que remete a desclassificação). Assim, os dois princípios 
antagônicos e convergentes da classificação e da desclassificação 
conviviam no seio da sociedade colonial. O objeto de estudo desta 
pesquisa será, pois, definido, de agora em diante, como desclassifi-
cado social. A sua dimensão espaço-temporal é a região de Minas 
Gerais no século XVIII. O objetivo máximo é a compreensão dos 
processos que levam ao seu engendramento e à sua posição no seio 
da sociedade colonial.
O desclassificado social é um homem livre pobre – frequente-
mente miserável –, o que, numa sociedade escravista, não chega a 
apresentar grandes vantagens com relação ao escravo. Objeto de es-
tudo bastante problemático, não costuma povoar as preocupações 
dos nossos pesquisadores. Excetuando-se o período republicano, – 
cujos estudiosos se voltam cada vez mais para a história da classe 
operária nacional –, torna-se difícil reunir títulos que tratem espe-
cificamente das populações pobres. O grande marco neste assun-
to continua sendo Homens livres na ordem escravocrata, de Maria 
Sylvia de Carvalho Franco, estudo magistral sobre os homens livres 
do Vale do Paraíba nas suas relações com o poder e com a economia 
mercantil. E para frisar o atraso que apresentamos neste campo, é 
preciso não esquecer que foi Caio Prado Jr. Quem até hoje – tendo-
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
26
-se passado quase 40 anos – melhor colocou o problema do papel da 
“camada intermediária” na nossa história.8
Como explicar essa ausência?
Difícil não colocar a questão em termos ideológicos, mesmo por-
que o tratamento tangencial dado pelas grandes obras historiográfi-
cas às populações pobres assim o exige. Em seu clássico Casa Gran-
de & Senzala, Gilberto Freyre fornece um exemplo modelar desse 
procedimento. Preocupado com a família enquanto unidade básica 
da colonização, nega a importância que porventura apresentasse a 
colonização por indivíduos – “os soldados de fortuna, aventureiros, 
degredados, cristãos-novos fugidos à perseguição religiosa, náu-
fragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira” –,9 afir-
mando não terem estes elementos deixado traço algum na “plástica 
econômica” do Brasil. Ora, entre muitos outros, Emília Viotti da 
Costa e Raymundo Faoro apontam a existência de elementos social-
mente desclassificados desde os primórdios de nossa colonização; a 
primeira analisando as penas de degredo e relativizando a noção de 
crime; o segundo indicando a imagem paradisíaca da colônia que o 
estamento dominante em Portugal divulgava entre a arraia miúda 
como chamariz de gente.10
Essa extrema reserva com relação às camadas pobres encontram 
uma explicação – mesmo que esfarrapada – na natureza da do-
cumentação dos nossos arquivos, abundantes em fontes oficiais e 
extremamente pobres em fontes coletivas – as sources massives dos 
franceses. Realmente, são poucos e bastante danificados os docu-
mentos relativos a assentos de nascimentos, óbitos, casamentos – 
sem falar na documentação que, de uma forma ou de outra, deixava 
entrever o modo de vida dessa gente. Este problema se agrava para 
8 , Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo, (1942), 13.a ed., São Paulo, 
1973. Especialmente a parte intitulada Vida Social.
9 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala 9a ed. Rio de Janeiro, 1958, p.25.
10 , Emília Viotti da Costa, Primeiros povoadores do Brasil, em: Revista 
de História, n. 27, 1956, p.3-22. Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2a ed., Porto 
Alegre, 1974.
aldairrodrigues
Texto digitado
Brasiliense, 
aldairrodrigues
Texto digitado
José Olympio, 
aldairrodrigues
Texto digitado
Globo
27
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
o Brasil colonial, onde os indivíduos alfabetizados eram pouquíssi-
mos e a situação social se achava bastante complicada pelo escravis-
mo: como esperar registro escrito de mestiços miseráveis, de forros 
recém-egressos da escravidão, de “caribocas” e “carijós” que vaga-
vam pelos engenhos e pelas lavras? 
O historiador só pode trabalhar com documentos que existem: 
não pode inventá-los, mas pode re-inventá-los, lê-los com novos 
olhos. Um documento oficial pode conter dados sobre camadas so-
ciais que não entravam na cogitação das pessoas que, durante sécu-
los, procuraram nele informações sobre administração ou política. 
Para esta pesquise, utilizei não só a documentação oficial – a cor-
respondência administrativa das autoridades – como documentos 
que vem sendo publicados pela Revista do Arquivo Público Mineiro 
há quase cem anos. Consultei também documentos publicados por 
outras revistas, e uma grande parte desta pesquisa é composta por 
manuscritos lidos no próprio Arquivo Público Mineiro, em Belo 
Horizonte, e no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, 
em Mariana, onde, aceitando o desafio colocado pelo tema, procu-
rei levantar as fontes coletivas disponíveis, trabalhando assim com 
assentos de prisões, autos de querelas e de devassas, estas tanto civis 
como eclesiásticas. As Memórias – publicadas, na sua maior parte 
entre os anos 80 do século XVIII e o início do século XIX –, as esta-
tísticas e os escritos dos viajantes dos primeiros vinte anos do século 
XIX completam o quadro documental.
A sugestão do cenário – economia do ouro – veio com a leitura de 
Caio Prado Jr, que associa o aumento da camada intermediária co-
lonial à evolução “por arrancos, por ciclos, em que se alternam, no 
tempo e no espaço, prosperidade e ruina”,11 e que, sendo caracterís-
tica da história econômica da colônia, teria atingido sua dimensão 
mais catastróficas e profunda nos distritos da mineração.
O ouro dominou todo o nosso século XVIII, lançando raízes no 
século XVII e apresentando ecos ainda no século XIX. Tratava-se, 
portanto, de um largo espaço de tempo, o que impunha de imediato 
11 , Caio Prado Jr., ob. cit., p.286.
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
28
o problema da periodização: como dar conta, numa pesquisa, de 
mais de cem anos?
Já se tem dito com frequência que a periodização não deve ser 
apenas cronológica, mas também lógica. A história de um movi-
mento social deve, dada a própria natureza do tema, apresentar 
uma circunscrição cronológica bastante rígida, permitindo, quando 
muito, uma margem de oscilação para o delineamento de seus ante-
cedentes e de suas decorrências. Quando se trata, contudo, de traçar 
o painel de um processo, não há como evitar os largos espaços de 
tempo. O mesmo se dá para um trabalho que busca a compreensão 
de uma camada social em toda a sua complexidade, o que só pode 
ser conseguido através da compreensão do seu processo de consti-
tuição. Assim, a análise dos desclassificados sociais só poderá ser 
bem-sucedida se iluminada pela percepção do processo de desclassi-
ficação que os engendra.
EM artigo intitulado “Periodização da História de Minas”,12 
Francisco Iglésias propõe duas periodizações – uma, com ênfase no 
político, outra com ênfase no econômico – a serem cruzadas para se 
poder obter uma periodização final, mais correta. Com base no pri-
meiro critério, distingue sete momentos – dos primórdios aos dias 
atuais –, dos quais apenastrês dizem respeito ao período abrangido 
por esta pesquisa: dos primeiros tempos a 1693 – época das entra-
das para o sertão e dos primeiros descobertos do ouro –; de 1693 a 
1720, quando impera a instabilidade da ordem, o aventureirismo e 
as rebeliões; de 1720 a 1822, período marcado pela urbanização, pela 
instalação da máquina administrativa e pelo pico e declínio da mi-
neração.13 Levando em conta o segundo critério, a periodização se 
apresenta um pouco diferente: são quatro os momentos destacados, 
dos quais cabe mencionar os dois primeiros: 1693-1770, surgimento, 
esplendor e declínio da atividade mineratória, e 1770-1830, quando o 
declínio da mineração norteia a busca de outra atividade.14
12 , Francisco Iglésias, Periodização da História de Minas Gerais, in: Re-
vista Brasileira de Estudos Políticos, v.29, julho de 1970.
13 , Ibid, p.188.
29
Retomando esta periodização, e levando adiante a sua proposta, 
o marco inicial adotado nesta pesquisa foi 1693, ano em que se criou 
a capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, sendo Antonio 
Pais de Sande designado para governá-la. 1805 foi a data escolhida 
para fechar aproximadamente o período, uma vez que a decadência 
da atividade mineradora e suas consequências já podiam ser então 
adequadamente avaliadas; aliás, 1804 e 1805 são os anos de publica-
ção de duas memórias significativas sobre o estado da miséria da 
capitania: respectivamente, a de Azeredo Coutinho e Basílio Teixei-
ra de Saavedra.15
Entre um e outro marco, alguns momentos se destacam como 
especialmente significativos pelas transformações estruturais que 
acarretam: 1709, término da Guerra dos Emboabas, nomeação de 
Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho para o governo da 
capitania e primeira grande investida da Coroa no sentido de es-
tabelecer sua autoridade na zona mineradora, de que a separação 
entre as capitanias de São Paulo-Minas e Rio de Janeiro será uma 
consequência direta, como o seria também o início oficial do movi-
mento urbanizador (1711); 1720, ano da revoltada frustrada de Feli-
pe dos Santos, violentamente sufocada por Assumar que, então, se 
torna o primeiro governador da capitania independente de Minas, 
fechando o período conturbado dos primeiros descobertos e inau-
gurando a fase de autoridade consolidada; 1732-1736, marcado pelo 
apogeu aurífero que a festa do “triunfo Eucarístico” reflete, e pelo 
14 , Ibid, p.192.
15 , Cf. J. J. Da Cunha de Azeredo Coutinho, Discurso sobre o estado atual 
das minas do Brasil (1804), em: Obras economicas..., introd. de Sérgio Buarque de 
Holanda, São Paulo, 1966, p.187-229. Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da 
capitania de Minas Gerais, em: Revista do Arquivo Público Mineiro, v.II, 1897. À 
p.673, o seguinte trecho: “A capitania de Minas Gerais, que fez as grandes riquezas 
dos felizes Reinados do Senhor D. João o 5º e do Senhor D. José 1º de feliz memória, 
se acha em estado de pobreza, e de miséria; a abundancia das suas minas se fez 
sensível no abatimento do valor da moeda da Europa inteira, foi inveja de muitas 
nações, e este País se acha agora num extremo de miséria”.
aldairrodrigues
Texto digitado
Companhia Editora Nacional
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
30
início do Governo de Gomes Freire de Andrada, uma das maiores 
figuras do império colonial português; 1748-1752, quando a festa do 
“Áureo Trono Episcopal” marca o início da decadência, expressa 
também no fim do imposto da capitação e na isenção da penhora 
para os senhores de lavras com mais de 30 escravos; 1788-89, quan-
do os colonos mineiros exprimem seu descontentamento ante a si-
tuação econômica e política através da Inconfidência.
Composta a cronologia – sempre tão importante para qualquer 
trabalho de História –, é preciso ir além dela. E endossar, para a 
análise da desclassificação social nas Minas do século XVIII brasilei-
ro, o procedimento teórico proposto por R. Nardeau e C. Panaccio 
na conclusão do colóquio canadense sobre marginalidade, e que os 
estudiosos do assunto raramente adotam: “Parece-nos importante 
reconhecer que a análise da marginalidade é sempre função de uma 
rede de relações, e que não poderia se limitar a uma simples des-
crição neutra de objetos empíricos reais tomados em si mesmos.”16
16 , R. Nardeau e C. Panaccio em: G. Allard, ob. cit., p.168.
31
I , O FALSO FAUSTO
E apesar de tudo o que se expõe, e que tanto cons-
pira para se julgarem estas minas as mais pobres, e 
desgraçadas das que vivem em sociedade; não é tão 
fácil afirmar delas este conceito, não se olhando mais 
que para o seu desmarcado comércio de importação, 
e vendo ao longe por entre a escassa luz de narrações 
adulteradas o seu luxo descomedido. Mas se atentar 
qualquer para o modo por que vivem e comerciam os 
vassalos de Sua Majestade neste país, verá que o ordi-
nário deles pensa mal, e olha tão-somente para uma 
falsa reputação, e trabalha por um falso brilhante no 
que pertence aos seus que início de s de longe quer se 
lhe atribuam: pretendendo, à imitação dos cômicos 
e figuras teatrais, fingir com palhetas douradas ouro 
maciço, e com vidros lapidados preciosa pedraria. 
Representação da Câmara de Mariana, 1789.
, Em 1733, houve em Vila Rica uma festividade religiosa que re-
tirou o Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário e o conduziu 
triunfalmente para a Matriz do Pilar. O acontecimento ocorreu 
no dia 24 de maio, mas foi antecedido por um longo período de 
preparativos, desde a proclamação oficial da festa até os “seis dias 
sucessivos de luminárias” que precederam imediatamente a procis-
são. Esta se achava programada para ter lugar no dia 23, sábado, que 
amanheceu sereno e assim continuou até o momento em que a ceri-
mônia deveria ter início. Foi então que, súbita e inexplicavelmente, 
“os desejos de todo o concurso” foram esvanecidos por uma chuva 
repentina, “muda voz do Céu” que provocou o adiamento da festa 
para o dia seguinte.
As janelas foram adornadas com colchas de seda e damasco, e 
as ruas se enfeitaram com arcos, para além dos quais foi montado 
um altar “para descanso do Divino Sacramento, e deliberado ato da 
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
32
pública veneração”. Completavam o quadro muitas flores, aromas e 
uma verdadeira explosão cromática, tudo isto segundo o testemu-
nho de Simão Ferreira Machado, autor do Triunfo Eucarístico, texto 
em que a trasladação é narrada.
Parece não ter tido limites a pompa então presenciada por Vila 
Rica: danças, alegorias, cavalhadas, figuras a cavalo representando 
os Quatro Ventos, todos luxuosamente vestidos e enfeitados com 
pedras preciosas. O bairro de Ouro Preto, onde se situava a Matriz, 
também foi representado, ao lado da Lua, das Ninfas, de Marte, de 
Vênus, de Mercúrio, de Júpiter, do Sol, da Estrela d'Alva e da Ves-
pertina, entre muitas outras figuras. O Conde das Galvêas, gover-
nador de Minas, assistiu às festas juntamente com “toda a Nobreza, 
e Senado da Câmara”, e Simão Ferreira Machado diz não haver lem-
brança “que visse o Brasil, nem consta, que se fizesse no América 
ato de maior grandeza”. E continua o autor se dentre os povos os 
portugueses se destacam pelos seus atos admiráveis, “agora se vêm 
gloriosamente excedidos dos sempre memoráveis habitadores da 
Paróquia do Ouro Preto”, que com “majestosa pompa e magnífi-
co aparato” transladaram o Santíssimo da Igreja do Rosário para a 
nova Matriz do Pilar.1
Minas estava então no seu apogeu. Vila Rica era, “por situação 
da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas 
a pérola preciosa do Brasil”.2 Os diamantes tinham sido descober-
tos havia pouco, e em 1729 D. Lourenço de Almeida comunicara 
oficialmente à Coroa o seu achado. O Fisco lançava vistas gordas 
sobre o ouro e preparava o terreno para estabelecer a capitação, o 
que seria feito em 1735. Os primeiros resultados da ação do aparelho 
administrativo – cujas bases Antonio de Albuquerque Coelho de 
1 , Cito a publicação fac-símile feita por Affonso Ávila em Resíduos Seiscentistasem Minas – textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Belo Horizon-
te, 1967, v.1. As passagens citadas encontram-se entre as páginas 131-283, sendo estas 
referentes à numeração original.
2 , Prévia Alocutória ao Triunfo Eucarístico, em: Affonso Ávila, ob cit. v.1, 
p.s25.
aldairrodrigues
Texto digitado
Centro de Estudos Mineiros, 
33
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
Carvalho plantara em 1711 – começavam a aparecer, e a inquieta 
sociedade mineradora dos primeiros tempos já se apresentava mais 
acomodada. As festas e as procissões religiosas contavam entre os 
grandes divertimentos da população, o que se harmoniza perfeita-
mente com o extremo apreço pelo aspecto externo do culto e da 
religião que, entre nós, sempre se manifestou.3 Mais do que expres-
são de uma religiosidade intensa, a festa religiosa era um aconteci-
mento que propiciava o encontro e a comunicação; aliás, este seu 
aspecto acabava, muitas vezes, por sobrepujar os eventuais anseios 
místicos, como deixa entrever o último bispo mineiro do período 
colonial, Frei Cipriano de São José, ao retratar a romaria do Senhor 
Bom Jesus de Matosinhos: “... tal era a confusão e tão descomposto 
o tumulto, que a capela de Matosinhos mais parecia praça de touros 
que Igreja de fiéis”.4
Atrelando-se à tradição exaltatória do mito edênico que carac-
teriza a crônica colonial,5 o Triunfo Eucarístico retrata muito bem 
o estado de euforia da sociedade mineradora numa festa “mais de 
regozijo dos sentidos do que propriamente de comprazimento espi-
ritual”.6 O que está sendo festejado é antes o êxito da empresa aurí-
fera do que o Santíssimo Sacramento, e nessa excitação visual carac-
teristicamente barroca, é a comunidade mineira que se celebra a si 
própria, esfumaçando, na celebração do metal preciso, as diferenças 
3 , As festividades religiosas absorviam recursos extraordinários. Boxer diz que, 
como as Câmaras da Metrópole, as da colônia esbanjavam dinheiro nessas festas, fi-
cando sem fundos para seus encargos costumeiros (conservação de estradas e pon-
tes etc.). A Câmara de Lisboa teria ido à bancarrota com festa de Corpus Christi de 
1719. The Portuguese Seaborne Empire, Londres, 1969, p.282-3. Portuguese Society in 
the Tropics – the Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda – 1510-1800, 
Madison, 1965, p.143. Para as festividades religiosas na Bahia, ver p.89-91
4 , Segundo José Ferreira Carrato, Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais, 
São Paulo, 1968, p.37.
5 , A observação é de Affonso Ávila em O lúdico e as projeções do mundo barroco, 
São Paulo, 1971, p.114.
6 , Affonso Ávila, ob. cit., p.117.
aldairrodrigues
Texto digitado
aldairrodrigues
Texto digitado
Hutchinson & Co
aldairrodrigues
Texto digitado
University of Wisconsin Press
aldairrodrigues
Texto digitado
Companhia Editora Nacional
aldairrodrigues
Texto digitado
Perspectiva, 
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
34
sociais que separam os homens que buscam o ouro daqueles que 
usufruem do seu produto. A festa tem, assim, uma enorme congra-
çadora, orientando a sociedade para o evento e a fazendo esquecer 
da sua faina cotidiana; é o momento do primado do extraordinário 
– o sobrenatural, o mitológico, o ouro – sobre a rotina. No momento 
de sua maior abundância, é como se o ouro estivesse ao alcance de 
todos, a todos iluminando com o seu brilho na festa barroca.
O ano de 1748 corresponde a outro grande momento de efusão 
barroca: a festa do Áureo Trono Episcopal, que celebra a criação do 
Bispado de Mariana. Na verdade, a criação se dera em 1745, sendo 
designado D. Frei Manuel da Cruz, então bispo do Maranhão, para 
ocupar o cargo pela primeira vez. O prelado deixaram a sua antiga 
diocese em agosto de 1747, empreendendo uma fantástica travessia 
dos sertões que só terminaria em outubro de 1748, “vencendo doen-
ças, perigos e privações, confortando religiosamente as almas larga-
das no imenso vale do São Francisco, escassas populações que des-
conheciam a assistência regular da Igreja e que acorriam das partes 
mais remotas daqueles sertões em busca de bênçãos e sacramentos 
que o bispo ia distribuindo em sua passagem”.7 Sabendo que a sua 
chegada provocaria festividades e gastos excessivos, o bispo pro-
curou evitar que se ventilasse a notícia, pois, segundo um cronista 
anônimo, o ouro já estava em decadência.8 Não se sabe se o bispo 
agiu assim por prudência ou se recebeu ordens das autoridades me-
tropolitanas. O fato é que a festa não pôde ser evitada e, como a do 
Triunfo Eucarístico, foi extremamente luxuosa.
7 , Affonso Ávila, Resíduos seiscentistas..., p.27.
8 , “... mas foi com o desígnio oculto de não o avisar, senão na véspera de sua 
chegada, para não dar lugar aos excessivos gastos de pompa, e lustre, com que os 
habitantes daquele dourado Empório da América costumam ostentar-se em seme-
lhantes funções, sem embargo de ser tanta a decadência do mesmo país, que por 
acaso se acha nele quem possa com o dispêndio necessário para a conservação da 
sua pessoa, e fábricas”. Áureo trono episcopal, p.35. O grifo é meu. Cito pela edição 
fac-símile de Affonso Ávila.
9 , Triunfo eucarístico, p.97.
35
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
Se o texto da festa de 1733 fala de pretos e pardos enquanto inte-
grantes de Irmandade próprias9, o Áureo Trono Episcopal, retra-
tando os pajens mulatinhos, “iguais na estatura” e luxuosamente 
ataviados com sedas, fitas, ouro e diamantes, procura integrar esses 
elementos na sociedade, fazendo deles os acompanhantes de uma 
das figuras principais.10 Há ainda referência a uma dança indígena 
executada por mulatinhos, que assim faziam as vezes do gentio da 
terra.11
Mais do que o ouro, é aqui a sociedade mineradora o principal 
protagonista: uma sociedade que já se assentara razoavelmente e 
que passava a contar com sua própria sede eclesiástica. Mas se o 
caráter de acampamento aurífero não mais persistia, se as casas co-
meçavam a se requintar e as vilas ganhar edificações, o ouro escas-
seava. Neste mesmo ano de 1748, terminavam as obras do Palácio 
dos Governadores em Vila Rica, ampliava-se o antigo palácio do 
Conde de Assumar na cidade Mariana, onde também se construi-
ria, no ano seguinte, o primeiro chafariz de repuxo, um e outro 
empreendimento fazendo parte da reformulação urbanística então 
sofrida pela cidade mineira.12 A capitação dos escravos e o censo das 
indústrias renderia, entre 1735 e 1751, pouco mais de 2.066 arrobas – 
10 , Áureo tronco..., p.100-1
11 , “Seguia-se às sobreditas figuras uma dança de Carijós, ou gentio da terra. Era 
esta ajustada de onze mulatinhos de idade juvenil, nus de cintura para cima, a qual 
cingiam várias plumas cinzentas caídas até os joelhos, formando saiote; rodeavam 
as cabeças penachos das mesmas plumas, e outros cingidos de papel pintado, e latas 
crespas; nos braços e nas pernas tinham várias prisões de fitas, maravilhas, e gui-
zos; na variedade das mudanças usavam de uns arcos, com que formavam diversos 
enleios, cantando ao mesmo tempo célebres toadas ao som de tamboril, flautas e 
pífaros pastoris, tocados por outros carijós mais adultos, que na grosseria natural 
dos gestos excitavam motivo de grande jocosidade.” – ob.cit., p.108-9.
12 , Dados levantados em Carrato, ob.cit. Mariana é a única cidade de Minas Ge-
rais no século XVIII, as demais aglomerações urbanas sendo vilas e arraiais.
13 , Fonte: J.J. Teixeira Coelho, Instrução para o governo da Capitania de 
Minas Gerais, RAPM, v. VIII, p. 495.
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
36
rendimento máximo até então alcançado –, 13 mas a decadência já 
era sensível e só por acaso encontraria o observador alguém capaz 
de arcar com o “dispêndio necessário para a conservação da sua 
pessoa e fábricas”.14 
Tudo leva a crer ter sido este o momento em que se encerrou o 
apogeu e começou, lentamente, a decadência, que os anos 1770 pre-
senciaram já evidente e palpável. As duas festas barrocas serviriam, 
assim, para periodizar o período áureo das Minas, constituindouma e outra dois grandes monumentos ao luxo e à ostentação.
Endossando-se a ideia de que a festa funciona como mecanismo 
de reforço, de inversão e de neutralização,15 teríamos no Áureo Tro-
no a ritualização de uma sociedade rica e opulenta – reforço – que 
procura, através da festa, criar um largo espaço comum de riqueza – 
riqueza que é de poucos mas que o espetáculo luxuoso procura apre-
sentar como sendo de muitos, de todos, desde os nobres senhores do 
Senado até o mulatinho e o gentio da terra. O verdadeiro caráter 
da sociedade é, aqui, invertido: a riqueza já começava a sumir, mas 
aparece como pródiga; ela era de poucos, e aparece como de todos. 
Por fim, a festa cria uma zona (fictícia) de convivência, proporcio-
nando a ilusão (barroca) de que a sociedade é rica e igualitária: está 
criado o espaço da neutralização dos conflitos e diferenças. A festa 
seria, como o rito, um momento especial construído pela sociedade, 
situação surgida “sob a égide e o controle do sistema social”, e por 
ele programada.16 A mensagem social de riqueza e opulência para 
todos ganharia, com a festa, enorme clareza e força persuasória. 
Mas a mensagem viria como que cifrada: o barroco se utiliza da 
ilusão e do paradoxo, e, assim, o luxo era ostentação pura, o fausto 
14 , Este documento foi citado à nota 8.
15 ,Cf. Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis, Rio de Janeiro, 1979, ca-
pítulos 1, 2 e 3.
16 , Roberto da Matta, ob.cit. p.56.
17 , José Veríssimo Álvares da Silva, Memória Histórica sobre a Agricultu-
ra Portuguesa, segundo Fernando Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo 
Sistema Colonial, São Paulo, 1979, p.205. O autor citado faz estas considerações so-
bre a realidade metropolitana, na época dos descobrimentos.
37
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
era falso, a riqueza começava a ser pobreza e o apogeu, decadência. 
“Em tal abundância, quem poderia ver, começamos a ser pobres”.17
Em 1789, a Representação da Câmara de Mariana acusava a per-
cepção de que os espetáculos teatrais usam de artifícios para indu-
zir o espectador a uma falsa consciência, fazendo as palhetas dou-
radas passarem por ouro maciço e os vidros lapidados por preciosa 
pedraria. O que subjaz a este documento extraordinário é a ideia 
do paradoxo, do fausto que é falso, ideia que pode ser rastreada ao 
longo de todo o século XVIII mineiro.
 O grande paradoxo inicial é o signo da fome que marcou o nas-
cimento das minas de ouro. O nobre metal – cuja “figura”, segun-
do Domingos Vandelli, aparece “em pó, em pequenas lâminas, em 
grãos angulares em cristais quadrangulares, octógonos, e pirami-
dais, em laminas aplicadas às vezes uma em cima da outra; ou se 
acha também algumas vezes em pedaços, como fundidos” –18 pro-
vocou um afluxo formidável de gente, não só da Metrópole como 
das capitanias vizinhas. Da praça de Santos fugiam soldados em 
busca de riqueza das Minas, o mesmo acontecendo com os da guar-
nição do Rio de Janeiro, que, em troca da defesa da cidade, recebiam 
o soldo e uma ração diária de farinha.19 Durante os 60 primeiros 
anos do século XVIII, a corrida do ouro provocou na Metrópole a 
saída de aproximadamente 600 mil indivíduos, em média anual de 
8 a 10 mil indivíduos.20 Em 1730, o governador do Rio de Janeiro 
18 , Domingos Vandelli, Memória III. Sobre as minas de ouro do Brasil, 
ABN, XX, 1898, p.267.
19 , Carta da rainha ao governador da praça de Santos – 27-IX-1704, 
DI, n.XVI, 1895, p.37-8; Carta régia estabelecendo providências a fim de se 
evitar a deserção de soldados da guarnição do Rio de Janeiro para as 
Minas – 28-III-1711 – DI, v.XLIX, 1929, p.20-2.
20 , Vitorino M. Godinho, A estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, 
1971, p.43-4. Sobre o assunto, diz Caio Prado Jr.: “...um rush de proporções gigan-
tescas que relativamente às condições da colônia é ainda mais acentuado e violento 
que o famoso rush californiano do século XIX”. – História econômica do Brasil, 11ª 
ed., São Paulo, 1971, p.64.
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dava notícia de dois navios do Porto “com muita gente, que não se 
deve apartar deles, antes voltar para o reino, mas o seu desígnio é 
passar para as Minas, o que intentaram fazer por mil modos”.21 Na 
expressão já tão conhecida de Antonil, “a mistura” foi “de toda a 
condição de pessoas”, para desespero das autoridades, que tenta-
vam, a todo custo, refrear a onda migratória.22 Em 1709, era 30 mil o 
número das pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrícolas 
e comerciais, sem falar dos escravos vindos da África e das zonas 
açucareiras em retração.23 
Com os olhos voltados para o ouro, improvisando alojamentos 
numa região deserta – até então, país das “serranias impenetráveis, 
dos rios enormes, das riquezas minerais, das feras e dos monstros, 
uma espécie das Hespéridas antigas guardadas por dragões” –,24 
pode-se imaginar a fome que assolou essas populações. Os anos de 
1697-98 e 1700-01 foram os das maiores crises, quando, ainda na 
imagem popular de Antonil, os mineiros morriam à mingua “com 
uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento”.25 A 20 
de maio de 1698, em carta ao rei, escrevia Artur de Sá e Menezes, 
governador da capitania do Rio, São Paulo e Minas:”... é sem dúvi-
da que rendera muito grande quantia, se os mineiros tiveram mi-
nerado este ano, o que não lhes foi possível pela grande fome, que 
experimentaram, que chegou a necessidade a tal extremo, que se 
21 , Carta do governador do Rio de Janeiro ao Capitão Francisco Men-
des Galvão sobre a tentativa de deserção para as minas de muitos indi-
víduos recém-chegados do reino...”– 25-X-1730 – DI, v. XLIX, 1929, p.203.
22 , Muitos historiadores mineiros oscilam entre o privilegiamento do compo-
nente reinol (baianos) e o do paulista da formação inicial da população mineradora. 
Salomão e Sylvio de Vasconcellos adotavam a primeira posição, enquanto Diogo de 
Vasconcellos ressaltava nas suas Histórias o papel do paulista, seguindo a tradição 
de Cláudio Manuel da Costa.
23 , Boxer, A idade de ouro do Brasil, trad., São Paulo, 1969.
24 , Diogo de Vasconcellos, História antiga de Minas Gerais, Belo Horizonte, 
1904, p.85.
25 , Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas, introd. A. P. 
Canabrava, São Paulo, 2ª ed., s.d., p.267.
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aproveitaram dos mais imundos animais, e faltando-lhes estes para 
poderem se alimentar a vida, largaram as minas e fugiram para os 
matos com seus escravos e sustentaram-se das frutas agrestes que 
neles achavam...”.26 Com a falta de alimentos, as Minas se trans-
formaram no centro de inflação da colônia: o alqueire de milho era 
vendido por vinte oitavas de ouro; o de farinha, por 32, assim como 
o de feijão, a galinha alcançava 12 oitavas, e um gatinho ou cachorri-
nho chegavam a 32; o prato de sal custava 8 oitavas, e quem quisesse 
fumar teria de pagar 5 oitavas pela vara de fumo. Morria-se de fome, 
“tapanhunos e carijós, por comerem bichos de taquara, que para os 
comer é necessário estar um tacho no fogo bem quente, e aliás vão 
botando os que estão vivos logo bolem com a quentura, que são os 
bons, e se come algum que esteja morto é veneno refinado”.27
Estes anos foram aqueles em que a fome atingiu os seus limites 
extremos, e muito povoado foi deixado para trás pelos mineiros. 
Conhecem-se entre outros, os casos de abandono do Ribeirão do 
Carmo e da Serra do Ouro Preto, a deserção desta dando origem 
a muitos outros arraiais; até os fundadores debandaram: o Padre 
26 , Segundo Diogo de Vasconcellos, ob.cit. Belo Horizonte, 1904.
27 , Documento do Códice Costa Matoso segundo Mafalda Zemella, O abasteci-
mento da capitania de Minas Gerais, São Paulo, 1951, p.223.
28 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit. p.120 e segs. Para o autordo Diálogo das gran-
dezas do Brasil (1618), o problema da mineração consistia, mais do que em encontrar 
metais, na dificuldade de alimentar os mineiros. Sugestão feita: “... o primeiro que 
se devia fazer antes de bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, 
houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, 
e como os houvesse em abundância, tratar-se-ia da lavoura das minas; mas isto se 
faz pelo contrário, porque, se m terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e 
como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento 
necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura que tinham come-
çado. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de si”. 
– Diálogos das grandezas do Brasil, introd. Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo 
Garcia, Rio de Janeiro, 1930, p.63. O autor não está se referindo às Minas Gerais, pois 
estas ainda não haviam sido descobertas.
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Faria foi para Guaratinguetá, Antonio Dias foi para São Paulo. 
Passou-se, a partir de então a cultivar roças conjugadas às lavras.28 
Procurou-se também atentar mais cuidadosamente para o abasteci-
mento da capitania, suprido pela Bahia – onde eram numerosos os 
currais – e, a partir da construção do Caminho Novo – terminado 
em 1725 –, pelas capitanias do Sul.29 A fome nunca mais chegou a 
ter tal alcance, pois a concentração de riquezas e a crescente estra-
tificação social fizeram com que ela voltasse a atuar no seu círculo 
costumeiro: o da pobreza.
Entretanto, apesar de superado parcialmente o fantasma da fome, 
apesar da imagem de uma sociedade rica, eufórica e democrática 
que chegou até nós pelas festas barrocas, tudo indica que as coisas 
se passaram diferentemente. Por certo, existiram nababos, e a histo-
riografia tradicional fixou a imagem do capitão-mor Antonio Alves 
Pereira presenteando a Viscondessa de Condeixa – esposa do gover-
nador da capitania em 1808 – com uma terrina de canjica aurífera; 
do contratador dr. João Fernandes de Oliveira mandando construir 
um lago com navio e tudo para Chica da Silva que não conhecia o 
mar.30 Mas, em proporção aos que se viam privados dela, a riqueza 
era distribuída por um número limitado de pessoas.31 A sociedade 
29 , Mafalda Zemella, ob.cit. c. III, passim. A autora arrola os gêneros consumidos 
em 4 categorias: 1) essenciais à subsistência (cereais, sal, açúcar, carne, toucinho); 
2) essenciais ao trabalho nas Minas (utensílios de ferro e aço, pólvora, armas, es-
cravos); 3) artigos para vestimenta, mobiliário e artigos domésticos, arreios para 
animais, cavalgaduras; 4) pinga e tabaco. Cf. p.189-90.
30 , João Domas Filho, O ouro das Gerais e a civilização da capitania, São Paulo, 
1957, p.18-23. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., 
Rio de Janeiro, 1952, p.161-2.
31 , “A nobreza do oficio e a do dinheiro eram evidentemente uma minoria que se 
concentrava nas vilas ou em suas imediações, nas grandes propriedades rurais, en-
quanto a massa escrava e os libertos, brancos, pardos ou pretos, todos pés-rapados, 
constituíam uma imensa multidão de oprimidos pelas extorsões de todos os gêne-
ros”. Augusto de Lima Jr. A capitania das Minas Gerais, 2ª ed., Belo Horizonte-São 
Paulo, 1978, p.82.
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3. E N T R E V IS TA A WA L N IC E NO GU E I R A G A LVÃO
era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do século XVIII 
tenham sido grandemente responsáveis por uma manipulação “au-
toritária” da estrutura social na medida em que uma das visões pos-
síveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade, a que 
mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a visão de 
riqueza e de opulência.
Dentre os historiadores mineiros, talvez tenha sido Eduardo Friei-
ro o primeiro a formular conscientemente a crítica a este equívoco, 
num artigo intitulado “Vila Rica, Vila Pobre”: “Uma das patranhas 
da nossa história, tal como usualmente se conta nas escolas, é a da 
pretendida riqueza e até mesmo opulência das Minas Gerais na épo-
ca da abundância do ouro. Em boa e pura verdade nunca houve a 
tão propalada riqueza, a não ser na fantasia amplificadora de escri-
tores inclinados às hipérboles românticas. (…) A realidade foi bem 
diversa. Nem riqueza, nem grandezas. Apenas o atraso econômico 
e a pobreza, como herança dum desvairamento fugaz, próprio de 
todas as Califórnias”.32
Na sociedade mineradora – como, de resto, nas outras partes da 
colônia –, eram privilegiados os elementos que tivessem maior nú-
mero de escravos. Mais da metade das lavras estavam concentradas 
nas mãos de menos de 1/5 dos proprietários de negros; o próprio 
critério de concessão de datas assentava-se na quantidade de cati-
vos possuídos, as maiores extensões indo para as mãos dos grandes 
senhores. Para estes, o luxo e a ostentação existiram de fato – não 
como sintomas de irracionalidade, conforme disseram muitos, mas 
como sinal distintivo do status social, como instrumento de domi-
nação necessário à consolidação e manutenção do mando. Acumu-
lação de escravos e luxo aparecem, aqui, como características de 
32 , Eduardo Frieiro, Vila Rica, Vila Pobre, em: O Diabo na Livraria do Cônego 
– Como era Gonzaga? E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1957, p.164. Numa 
geração mais recente, Sylvio de Vasconcellos O ouro proclama riquezas, mas 
os mineradores continuam pobres” – Mineiridade. Ensaio de caracterização, 
Belo Horizonte, 1968, p.30.
33 , O capitalista experimentado controla o seu consumo pessoal. Ja o escravis-
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uma sociedade escravista especifica, própria ao sistema colonial, 
e indicam o seu caráter extremamente restritivo.33 Poucos foram, 
pois, nas Minas os grandes senhores de escravos e lavras. Sylvio de 
Vasconcellos cita documento que calcula em três a média de escra-
vos dos senhores de Rio Acima, sendo que, dos 96 proprietários de 
São João del Rei, apenas 7 possuíam mais de 12 negros.34 A partir de 
dados como este, foram feitas inferências sobre a maior distribui-
ção da riqueza na sociedade mineira, que, por sua vez, seria mais 
democrática. Tentarei mostrar que as coisas se passaram de modo 
diferente.
Em análise recente, Wilson Cano35 contestou com brilho a asso-
ciação entre a capacidade dinamizadora da economia mineira e a 
sua alta produtividade. Diz o autor que, apesar de ter gerado efeitos 
produtivos na economia do sul e desenvolvido a urbanização, o apa-
relho burocrático e o militar, o ouro não engendrou segmentos pro-
dutivos in loco, pois importava-se a maior parte dos meios de sub-
sistência e quase não havia produção interna ou retenção local do 
excedente produzido. Por outro lado, a pequena necessidade de ma-
quinário condicionou os investimentos maciços em mão-de-obra, 
originando uma economia de densidade elevada na qual o escravo, 
utilizado em larga escala, representava grande porcentagem de ca-
pital imobilizado. As relações entre os gastos com mão-de-obra e o 
total de ouro produzido seriam do seguinte teor:
total de ouro produzido 644,1 t/ouro
gastos quantificáveis com mão-de-obra 331,2 t/ouro
saldo e gastos não quantificados 312,9 t/ouro
ta assume dividas crescentes, tornando-se dependente do mercador-usurário e se 
endividando. Jacob Gorender, Escravismo Colonial, São Paulo, 1978, p.432. É em 
Genovese que se encontra admiravelmente formulada a função do luxo e dos gastos 
suntuários na sociedade escravista patriarcal. Economia Política de la esclavitud, 
trad., Barcelona, s.d., p.24-5
34 , Sylvio de Vasconcellos, ob.cit. p.61.
35 , Economia do ouro em MinasGerais (século XVIII), em: Contexto n.3, 
São Paulo, 1977, p.91-109.
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Ática, 
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3. E N T R E V IS TA A WA L N IC E NO GU E I R A G A LVÃO
A produção bruta de ouro foi elevada, e Minas representou 70% 
da produção da colônia no século XVIII (ver tabelas, p.70-5); entre-
tanto, o sistema colonial fez com que o fisco, a tributação sobre os 
escravos, o sistema monetário implantado e as importações – que se 
faziam pelo exclusivo de comércio – consumissem a sua maior par-
te. Deduzidos pelos gastos de compra e manutenção da escravaria 
e os gastos não quantificáveis, o saldo se tornava negativo. Dado o 
baixo nível da renda, poucos foram, nestas condições, os que fize-
ram fortuna.
Conforme rareava o ouro, os mineradores se viam impossibili-
tados de suportar o ônus dos custos de manutenção da escravaria, 
situação que o mínimo contingente de mão-de-obra voltada para 
a subsistência não podia contornar.36 Máquina dispendiosa, com 
pequena capacidade de produzir excedente para sua reprodução, o 
escravo certamente não seria capaz de engendrar o superexcedente 
necessário à compra de sua liberdade, o que implica uma revisão 
das análises das alforrias empreendidas normalmente: estas não te-
riam sido obtidas através de recompensas pagas a alguma gema ou 
pepita gigantesca que os escravos encontrassem eventualmente nas 
lavras, nem com o ouro que, artificiosamente, escondiam na cara-
pinha;37 ela foi, isso sim, a saída possível para os empreendedores, a 
maneira encontrada para conservar parte do antigo capital. Assim, 
as alforrias não se deveram à capacidade apresentada pela escrava-
ria em comprar a própria liberdade – o que só poderia ocorrer com 
a produção de um excedente –; não foram, portanto, conseguidas 
pelos escravos, e sim concedidas pelos senhores que, com sua deca-
dência das atividades mineradoras, passaram a ter nos gastos com a 
reprodução da força de trabalho um encargo pesado demais. Como 
36 , Segundo os cálculos de W. Cano, 80% da população se dedicava à mineração, 
os 20% restantes não dando conta da oferta alimentar.
37 , Esta tese é endossada, entre outros, por João Camilo de O. Torres, ob.cit. e 
Eschwege, Pluto Brasiliensis.
38 , W. Cano, ob.cit. p.103.
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decorrência desse estado de coisas, “sucateava-se compulsoriamen-
te a 'maquina'!”.38
Conclui-se que a economia mineira apresentava baixos níveis de 
rende distribuídos de uma maneira menos desigual do que no caso 
do açúcar.39 Mas se a sociedade mineira foi das mais abertas da co-
lônia, essa abertura teria se dado por baixo, pela falta – quase au-
sência – do grande capital e pelo seu baixo poder de concentração. 
Daí o número de pequenos empreendedores, daí o mercado maior 
constituído pelo avultado número de homens livres – homens esses, 
entretanto, de baixo poder aquisitivo e pequena dimensão econômi-
ca. Em suma, levando-se adiante essas considerações, a constituição 
democrática da sociedade mineira poderia se reduzir numa expres-
são: um maior número de pessoas dividiam a pobreza.
“Copiosas de ouro para os desejos da cobiça”, dadivosas em rique-
zas, proporcionando a “felicidade da fortuna” e “afluência do ouro” 
a quem elas recorresse, heis como o Triunfo Eucarístico descreve 
as terras do ouro. Nelas os homens viviam “com as abundancias do 
Maurício Goulart em A escravidão no Brasil – Das origens à extinção do tráfico, 3ª 
ed., São Paulo, 1975, apresenta interpretação convergente à de Cano: “À medida que 
perece a empresa, aumenta o número de libertos; já lhes vimos as porcentagens sur-
preendentes sobre a população, a partir de 1786. Seriam as consequências de proble-
mas íntimos, de remorsos de última hora, de pavor do inferno como castigo da car-
ne. Mas também o eram da situação financeira: valeria mais alforriar os cativos que 
sustentá-los. A explicação sentimental, decorrente das concubinagens, calha bem 
para os mulatos; pode chegar sem dissonância até as negras; não explica, porém, a 
magnanimidade para com os retintos. Atente-se, além disso, no número de forros 
em 1739 e 1786: lá, a situação próspera, mal passavam de 1,2% sobre a escravaria; 
eram agora, na vazante, mais de 35%. Não morreriam supersticiosos àquele tempo, 
seriam menos retas as consciências, ou menor o medo? Nada disso. Apenas, os acer-
tos de contas eram mais onerosos. Gerando prole farta, a concupiscência fora fonte 
de pecúnia; e quando resgatar pecados ou mestiços chegava a custar 300 oitavas 
por arrependimento, os acordos com o céu deviam parecer menos urgentes”. p.169.
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Alfa-Ômega
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3. E N T R E V IS TA A WA L N IC E NO GU E I R A G A LVÃO
ouro”: “os de Portugal pelo comércio participantes, os da América 
neste Brasil do manancial possuidores; uns e outros persuadidos, 
que depois das antigas, e sempre sucessivas glórias militares, come-
çavam a contar séculos de riquezas”.40
As opulentas Minas haviam sido agraciadas com “tesouro de ri-
quezas as mais finas”,41 mas os habitantes do Tijuco as viam, em 
1738, com olhos diferentes: impedidos pela administração diaman-
tina de minerarem ouro, achavam-se “arruinados e perdidos”; arca-
dos sob o peso de “grandes prejuízos e ruinas”, começaram a deser-
tar para as capitanias vizinhas. Muitos outros acabariam seguindo 
este exemplo, e, concluíam os autores de uma súplica dirigida a D. 
João V, “esta comarca, que era uma das mais abundantes e ricas, 
ficará reduzida a miserável estado”.42
Alusões à pobreza, à ruina, ao abandono a que ficavam relegadas 
as populações mineradores representam a tônica dominante dos 
documentos do século XVIII mineiro, sejam eles oficiais ou não. Os 
dois textos que descrevem as festas barrocas apresentam-se, portan-
to, como extremamente destoantes no concerto geral: quase que se 
poderia dizer constituírem os únicos registros que fazem menção 
à riqueza e à opulência. Mais um motivo, pois, para se acreditar 
na inversão ideológica operada através da visão que as festividades 
39 , “... a economia da mineração, muito embora tenha apresentado um perfil 
distributivo menos desigual da renda, tal distribuição, na realidade, tem muito mais 
a ver com uma distribuição de baixos níveis de renda do que de níveis médios ou 
de altas rendas. Como certamente operou a custos elevados, provavelmente suas 
margens de lucro eram baixas para os medianamente bem-sucedidos, altas, para os 
pouco bem-afortunados, isto é, para aqueles de maior sorte no encontro do minério, 
e ínfimas, e até mesmo negativas, para muitos, para os malsucedidos”. – W. Cano, 
ob.cit. p.105-6.
40 , Cf. Prévia alocutória ao Triunfo eucarístico, p.15-20.
41 , Áureo trono episcopal, p.184.
42 , Súplica dos habitantes do Tijuco dirigida a D. João V, segundo Joaquim Fe-
lício do Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio, 1956; as passagens 
citadas acham-se respectivamente nas p.75, 76 e 78.
aldairrodrigues
Texto digitado
Edições O Cruzeiro
DE SCL AS SIFIC A DOS DO OU RO
46
conferiam à sociedade. Sendo, como já ficou dito acima, mecanismo 
de reforço, inversão e neutralização, a festa servia admiravelmente 
à perpetuação de um estado de coisas que interessava tanto ao lado 
metropolitano quanto à sociedade escravista colonial: em um e ou-
tro, é o mando que se legitima, igualando as diferenças e, ao mesmo 
tempo acentuando-as; é o poder que se faz autêntico por conferir 
um espaço às populações pobres – o mulato, o gentio da terra – e, 
simultaneamente, mantê-las a uma distância respeitosa que a pom-
pa ajuda a delimitar.
Tendo sido um dos temas preferidos pelos homens da época, é 
curioso que a pobreza mineira transparecesse tão pouco na histo-
riografia, onde sempre foi escamoteada e substituída pelo tema da 
decadência, território vago que, na maior parte das vezes, aparece 
como definido na década de 1770. Foi no ano de 1763 em que a cota 
anual das cem arrobas pode ser preenchida pela última vez, mas 
tudo indica que a decadência vinha de antes,

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