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AULA NÚMERO 11 - MARILENA CHAUÍ – CULTURA E DEMOCRACIA No início da obra, Marilena Chauí realiza um recorte histórico visando à análise dos sentidos atribuídos ao termo cultura com o decorrer dos séculos. Nesse sentido, durante o século XVIII e no início do século XIX, tendo em vista a consolidação do pensamento iluminista, cultura esteve associada à ideia de civilização. Como também retratado por José Luiz dos Santos, no século XVIII era a sustentada a existência de uma dicotomia entre povos primitivos e povos civilizados, a partir de uma classificação baseada em estágios de desenvolvimento. Nessa perspectiva, o parâmetro ideal era constituído por elementos europeus capitalistas, tais como Estado, mercado e escrita. Vale ressaltar que esse pensamento etnocêntrico baseado nas ideias de “civilizado” e “primitivo” foi utilizado como justificativa para o avanço do imperialismo sobre a África e a Ásia no século XIX. Ainda nesse século XIX, na Alemanha, o conceito de cultura passa a sofrer determinadas modificações, a partir do pressuposto de que o homem seria um agente histórico propriamente dito com o qual se inaugura a ordem do tempo e a descoberta do possível. Diante desse cenário, a noção de cultura passa a ser elaborada a partir da diferença entre natureza e história. Doravante, a partir da segunda metade do século XX, essa concepção alargada de cultura será incorporada pelos antropólogos europeus, que buscarão desfazer a ideologia etnocêntrica, inaugurando a antropologia social e a antropologia política. Assim, a cultura passa a ser entendida como o campo em que os sujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si próprios o possível e o impossível, transcendem a linha do tempo, ressignificam o seu cotidiano, entre tantas outras possibilidades. Marilena Chauí vai além desse mero conceito de que cultura é contida por símbolos e signos, criticando não somente essa concepção como também a visão iluminista de cultura. Um conceito específico da antropologia de Chauí é a divisão de culturas, ou seja, essa ideia da existência de classes – não somente dotadas de diferenças mas também de desigualdade, ilustrada na dicotomia entre cultura de elite e cultura popular. Em seguida, Chauí realiza uma distinção entre os conceitos de comunidade e sociedade, tornando um obstáculo para essa abrangência da noção de cultura uma vez que as sociedades modernas serem sociedades e não comunidades. Segundo a autora, a marca da comunidade é a indivisão interna e ideia de bem comum, ou seja, apresentando um cunho mais homogêneo. Entretanto, a sociedade é firmada a partir de um contrato entre os indivíduos, caracterizada pela divisão interna. A marca da sociedade é a existência da divisão social, conforme sintetizada por autores como Maquiavel e Marx – essa relação entre dominantes e oprimidos – e esta acaba implicando em uma divisão cultural. Daí surge uma grande questão a ser discutida pela autora: se as sociedades apresentam um caráter heterogêneo, como se pode pensar em um conceito de cultura abrangente? Para responder a essa questão, a autora discorre acerca dos termos cultura elitista, cultura popular e cultura de massa. Embora sugira que não seja tarefa fácil definir cultura popular e cultura elitista, a autora define a cultura popular como aquela inerente às camadas populares (geralmente a classe trabalhadora); e cultura elitista como aquela responsável por legitimar o exercício da exploração econômica, da dominação política e da exclusão social. Em síntese, exclusão socioeconômica é sinônimo de exclusão cultural, sendo a Indústria Cultural responsável por sobredeterminar a divisão social acrescentando-lhe a divisão entre elite “culta” e massa “inculta”. Marilena Chauí se apropria do termo Indústria Cultural, sintetizado por Adorno e Horkheimer na Escola de Frankfurt, para discorrer sobre a cultura de massa e sobre seus reflexos na contemporaneidade. Nesse sentido, Indústria Cultural refere-se à mercantilização das produções culturais, ou seja, à transformação de elementos culturais em produtos de bens de consumo. Dessa forma, a Indústria Cultural almeja a uma homogeneidade cultural, caracterizada pela manipulação das escolhas individuais, pelo atrofiamento do senso crítico dos cidadãos e pela criação de uma identidade comum. Além disso, discorrendo acerca sobre essa sociedade de consumo, a autora afirma que há uma segregação cultural evidente, pois muitos que somente se apropriam de bens baratos, encontram-se, na verdade, envolvidos por uma visão ilusória de estarem participando desse âmbito cultural. Em resumo, de acordo com Chauí, não se pode realizar esse ênfase excessivo ao consumo pois isso levaria à massificação da cultura. A autora comenta sobre como opera a Indústria Cultural. 1. Separa os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado - ao invés de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural, a IC acentua a divisão social através da dicotomia entre elite culta e massa inculta; 2. Cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, quando na verdade, liberdade de escolha consiste em uma forte ilusão da contemporaneidade uma vez que já é selecionado de antemão o que cada classe e grupo social deve consumir, inclusive no seu tempo livre (ócio); 3. Inventa figuras chamadas "espectadores médios", vendendo cultura, seduzindo e agradando o consumidor. Para isso, é necessário não chocá-lo nem fazê-lo pensar - a média é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova. 4. Define a cultura como lazer e entretenimento, embora as escolhas humanas não sejam tão livres assim. Dessa forma, a IC interfere nos modos de distração, diversão, lazer e repouso; Marilena Chauí distingue cultura de entretenimento, apontando para três características fundamentais inerentes à cultura – o trabalho (o movimento de criação do sentido); a ação de dar a pensar, dar a ver, dar a imaginar o que se esconde sob as experiências cotidianas; e também a participação, por se tratar de um direito do cidadão, direito de acesso aos bens e às obras culturais, direito de fazer cultura e de participar das decisões sobre a política cultural. A Indústria Cultural, todavia, engloba produções que tendem a se tornarem repetitivas, voltadas para o consumo, efêmeras e associadas à moda e que se tornam meios de dissimulação. Em síntese, é como se atualmente todo o processo de construção fosse reduzido basicamente à finalidade e ao ato de consumir, perdendo-se, portanto, o sentido de cultura como ação histórica. “Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer razão de continuidade e se esgota num presente sentido como instante fugaz (...) Em outras palavras, perdemos o sentido da cultura como ação histórica”. Esse trecho reflete, de forma explícita, as críticas veementes que a autora realiza em relação à atuação da Indústria Cultural e ao cenário neoliberal contemporâneo. Nessa perspectiva, é preciso ter em mente que, na lógica do mercado, a mercadoria “cultura” torna-se algo perfeitamente mensurável – medida pelo número de espectadores e de venda. A cultura antes era vista como trabalho, voltada para a produção de algo até então inexistente graças a transformação do existente em algo novo – ocorria, portanto, uma valorização do processo, das condições materiais e históricas de sua realização. Entretanto, nos dias atuais, ocorre uma supervalorização do resultado final, atribuindo-lhe o protagonismo. Conforme exposto anteriormente, exclusão social impacta em exclusão cultural e, portanto, é explícita a veracidade na tese de que o usufruto dos bens culturais não ocorre de forma homogênea. Nesse sentido, o Estado possui suma importância para conceber a cultura como um direito do cidadão e, assim, assegurar às pessoas o direitode acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, de criar as obras e de participar das decisões sobre políticas culturais. Dessa forma, a política cultural encontra- se vinculada à ideia de cidadania cultural, na qual a cultura não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões de mercado, mas se realiza como direito de todos os cidadãos que podem dialogar e trocar suas experiências, movendo todo o processo cultural. A cultura deve ser vista, portanto, como uma instituição social. Marilena Chauí busca traçar as características básicas de uma sociedade democrática. Segundo a autora, uma sociedade é dita democrática quando além de eleições, partidos políticos, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui direitos e deveres, sendo, portanto, uma criação social. Além disso, Chauí aponta sobre o valor existente na eleição uma vez que eleger trata-se da reafirmação da soberania popular e não meramente uma alternância de pessoas. Entretanto, a antropóloga esclarece que a democracia jamais poderia se limitar a uma única ação. Marilena Chauí considera que o modelo de democracia evidenciado em países como o Brasil, relacionado ao nome de participação popular, corresponde a uma incoerência. Nesse sentido, de acordo com a autora, a participação popular só será política e democrática se essa puder produzir as próprias normas. Chauí considera que vivemos muito longe de uma democracia efetiva pois nos encontramos numa sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária – igualdade e liberdade, seriam, portanto utopias da contemporaneidade. Fugindo de uma idealização, a autora busca detalhar a realidade brasileira como de fato ela é, apontando as incoerências existentes no papel das leis e no atual cenário democrático. A sociedade brasileira, segundo Chauí, é desigual e autoritária, tendo em vista que não há essa inclusão de todos – os conflitos e contrações negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Por isso, esse olhar de Chauí além de ser diferenciado, explícita essas questões de suma importância para o cenário nacional visto que traz a tona aquilo que as elites procuram esconder. Ainda de acordo com a autora “as leis sempre foram armas para preservar privilégios - para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão (...)”. Partindo desse pressuposto, Chauí busca exemplificar a sua tese, retratando a conjuntura atual brasileira, caracterizada: Pela exaltação da transgressão, às vezes, constituindo o denominado jeitinho brasileiro; Pelo fato dos partidos políticos funcionarem como clubes privados das oligarquias locais; Pelas disputas pela posse de terra são resolvidas pelas armas e assassinatos clandestinos; Pelas desigualdades econômicas que atingem a proporção de genocídio; Pelo péssimo tratamento dado aos negros, geralmente julgados como raça inferior e perigosa; Pela visão equivocada em relação aos índios, tidos como irresponsáveis, preguiçosos e que devem ser exterminados ou "civilizados"; Pela autorização da polícia a parar qualquer trabalhador nas ruas; Pelos recorrentes casos de espancamento e/ou estupro sofridos pelas mulheres; Pelos constantes ataques a prostitutas e homossexuais; Pelas pessoas que chegam a trabalhar 15 horas por dia, excluindo as horas destinadas às tarefas domésticas, visando à sobrevivência; Pela desigualdade salarial entre homens e mulheres; Pela presença de pessoas sem moradia; Pela exploração do trabalho infantil; Pela grande parcela de desempregados; Em síntese, as classes populares carregam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Por último, há novamente uma crítica enfática à economia neoliberal, julgada como antidemocrática e a demonstração de uma certa simpatia da autora com o socialismo marxista. Outrossim, Chauí corrobora a tese de que uma nova política cultural precisa começar como cultura política nova, cuja viga mestra é a ideia e a prática de participação.
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