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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 2 Periodizações O milênio medieval O recorte temporal mais comum aplicado à Idade Média delimita esse período histórico entre os séculos V e XV. Tradicionalmente, a data de 476 é vista pelos historiadores como um marco do início do medievo, uma vez que é representativa da deposição do último imperador romano do Ocidente (Rômulo Augústulo). Mas, como nos lembra o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior, alguns historiadores já chegaram a indicar outras datas. Algumas dessas datas são 330 (em virtude do reconhecimento pelo Império Romano da liberdade de culto aos cristãos), 392 (oficialização do cristianismo como religião do império) e 698 (conquista muçulmana de Cartago). O evento que simboliza o recorte final desse período histórico também não é unânime entre os historiadores. Para alguns estudiosos, a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) representou o fim do Império Romano do Oriente, a despeito da forte resistência que esse império havia apresentado às invasões estrangeiras ao longo de sua existência. Para outros historiadores, o ano de 1492 tem maior peso para a Europa Ocidental, já que a tomada de Granada e a expulsão dos judeus dos reinos hispânicos impactaram não só no Velho continente, mas também na “descoberta” de um Novo (o continente americano). Toda periodização, como nos lembra o historiador Jerôme Baschet, trata-se de uma convenção e, como tal, é arbitrária e artificial. Certamente é complicado pensar que mil anos de história apresente apenas homogeneidade e/ou imobilidade. Quando pensamos em uma periodização interna desse período, não são menores os problemas. Os usos e recortes, como enfatiza Baschet, podem variar de acordo com os países ocidentais e gerar confusões terminológicas. Bipartição Alguns historiadores, sobretudo na Espanha e Itália, distinguem a Idade Média em dois períodos: 1. Alta Idade Média: corresponde ao arco temporal que vai do século V ao século X; 2. Baixa Idade Média: diz respeito ao intervalo temporal entre os séculos XI e XV. Essa periodização, nas palavras de Jêrome Baschet, além de uma aparente vantagem de simetria (duas metades de século iguais) atribui uma relevância considerável ao ano mil. O ano mil é visto, segundo essa perspectiva, como representativo da reversão de uma tendência, pois uma época marcada por crises, recuos e constantes invasões de povos estrangeiro é sucedida por um momento de expansão, crescimento e dinamismo. Embora a reversão dessa tendência ganhe corpo no Ocidente de maneira paulatina após o ano mil, a escolha desse momento como símbolo desse fenômeno funciona como todas as outras periodizações. Quadripartição Segundo alguns historiadores, a exemplo de Hilário Franco Júnior, o período entre os séculos IV e VIII possui características que não são mais antigas, nem claramente ainda medievais. Por acreditarem que nesse período houve o início de uma convivência entre três elementos que comporiam o medievo (a herança romana clássica, a herança germânica e o cristianismo), esses historiadores acreditam que ele pode ser chamado de Primeira Idade Média. Conforme salienta Hilário Franco Júnior, em Idade Média - O Nascimento do Ocidente, após a crise profunda que assolou o Império Romano no século III, Roma teve que estabelecer novas formas de organização para sobreviver, como integrar os germânicos ao seu exército, aumentar a fiscalização sobre o campo e desenvolver uma nova espiritualidade associada ao cristianismo. A presença dos povos germânicos acarretou mudanças e reacomodações. A unidade romana deu lugar à fragmentação do poder, assim como ganharam força as relações de obrigação entre chefes e guerreiros. Sem contar que, nas palavras de Hilário Franco Júnior, o cristianismo produziu uma síntese entre romanos e germânicos através da espiritualidade. Passado esse período de mudanças e reacomodações, o historiador aponta ter surgido um outro momento significativo e particular da história medieval: a Alta Idade Média ( séculos VIII-X). Esse período teria sido marcado, segundo o historiador, pela composição de uma nova forma de poder representada pelo governo carolíngio em associação com a Igreja. Ademais, a Alta Idade Média foi o momento em que surgiram os textos em língua vulgar e em que a Europa teve que enfrentar as invasões dos vikings, muçulmanos e magiares. Hilário Franco Júnior, todavia, aponta mais duas rotulações para indicar os séculos posteriores à Alta Idade Média: a Idade Média Central (XI-XIII) e Baixa Idade Média (XIV-meados do XVI). A Idade Média Central, considerada pelo historiador a fase mais rica e diversificada do medievo, teria sido marcada pelas expansões territorial e populacional. Além disso, ela foi marcada pelo movimento das Cruzadas e por uma pujante produção cultural em diversos âmbitos, a saber: arte, literatura, ensino, filosofia e ciência. Como salienta Jerôme Baschet a propósito da transição entre a Alta Idade Média e a Idade Média Central, é possível perceber e mapear um contraste entre essas duas épocas, uma inversão de tendências, um rearranjo no que diz respeito ao direcionamento das forças. “Os séculos IV e X mostram uma Europa que padece, uma Europa entregue às migrações de numerosos povos vindos do exterior, principalmente germânicos e árabes. Enquanto as flechas apontam, nesse momento, para o coração da Europa Ocidental, [...] nos séculos XI a XIV elas se invertem. A Europa Ocidental torna-se, então, conquistadora; em vez de ceder terreno, ela avança de um triplo ponto de vista, militar (cruzadas e reconquista), comercial (estabelecimento de entrepostos e trocas com o Oriente) e religioso (desenvolvimento de ordens religiosas, cristianização da Europa Central e da área báltica)” ( BASCHET, 2009, pp. 35-44) Esses dois movimentos ficam mais claros a partir da observação dos mapas a seguir. No primeiro deles, as flechas indicam as invasões que a Europa Ocidental sofreu de diferentes povos, fator que gerou um ambiente de instabilidade e recuo territorial. Já no segundo, podemos analisar o movimento das cruzadas, expedições militares e religiosas que promoveram um grande deslocamento de pessoas e foram importantes para a abertura de novas rotas comerciais e de peregrinação religiosa. https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=657&tbm=isch&sa=1&ei=CN7_W7jNBYS- wATD2IygCw&q=Europa+s%C3%A9culos+IX+e+X&oq=Europa+s%C3%A9culos+IX+e+X&gs_l=img.3... 48511.58132..58466...6.0..0.164.3529.0j27......1....1..gws-wiz- img.......0j0i67j0i10i19j0i19j0i5i30j0i8i30j0i24.1Xj0fWf_hLU#imgrc=pB_VpRyheeUV_M: Mapa das invasões Mapa das Cruzadas https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=657&tbm=isch&sa=1&ei=Ht__W_KvOYP9wQT_2rTgCA&q=Europa+s%C3%A9culos +XI+XV+cruzadas+e+com%C3%A9rcio&oq=Europa+s%C3%A9culos+XI+XV+cruzadas+e+com%C3%A9rcio&gs_l=img.3...25416.2846 3..28742...0.0..0.183.2608.0j20......1....1..gws-wiz-img.vNR2am097ww#imgrc=Iu0nzHWx-U6I3M: A sociedade medieval hierarquizada, agrária e fragmentada politicamente passava a conviver, pouco a pouco, com outros setores ligados à vida urbana e mercantil. Gradativamente, as cidades foram crescendo, as universidades se constituindo e as monarquias nacionais se formando. A Baixa Idade Média representou, segundo Franco Júnior, justamente a gestação de novos tempos. Marcada por uma grande crise demográfica e econômica no século XIV, a Europa Ocidental recuperou-se e deu ensejo ao Renascimento, às viagens marítimas e à centralização política. Outro aspecto importante destacado pelo medievalista brasileiro e que acaba marcando as rotulações internas da Idade Média diz respeito à quantidade de informações sobre esses períodos. Comparando os períodos, a Alta Idade Média possui menos fontes documentais, enquanto a documentação do que o autor chama de maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (séculos XIV-XVI) medievais émais abundante. Uma longa Idade Média Mais atento às permanências e à longa duração, o medievalista francês Jacques Le Goff levantou a hipótese de uma longa Idade Média. Segundo o historiador, esse período compreenderia do século IV ao XVIII, isto é, entre o fim do Império Romano do Ocidente e a Revolução Industrial. https://www.google.com.br/search?q=le+goff+p or+uma+longa+idade+m%C3%A9dia&source= lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiD1Li_ 3vneAhWEg5AKHQj5D7MQ_AUIDigB&biw =1366&bih=657#imgrc=9GB7iyPYV4z6vM: • Nas palavras de Jacques Le Goff: “As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia)... O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente – sinal de mudanças das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações – com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. É também o momento em que se chega à construção de uma nova ciência que já não é medieval (Galileu, Harvey, Newton, etc...)” (LE GOFF, 2005, pp. 66-67). Na perspectiva desse autor, a longa Idade Média é um extenso período marcado por grandes mudanças de caráter qualitativo e quantitativo, mas que apresenta certa unidade e coerência ao longo dos seus quase quinze séculos de existência. Ou seja, sem negar as transformações ao longo dos séculos, essa análise enfatiza a persistência de estruturas fundamentais, tais com a sacralidade do poder real, o papel da Igreja e as relações de dependência social. • Novamente retomando as palavras de Le Goff para sintetizar nossa reflexão: “A Idade Média foi dinâmica, fortemente criadora. Mas não o declara. Se nossas sociedades qualificam alegremente de ‘históricos’ os acontecimentos mais desimportantes (um score de futebol, uma baixa na Bolsa), a Idade Média evita de modo absoluto celebrar as novidades. Ao contrário, na Igreja – e a Igreja abrange então toda a vida intelectual – a palavra novitas, novidade, enche de medo e de hostilidade aquele que a ouve” (LE GOFF, 2005, p. 67). Portanto, a longa Idade Média de Le Goff rompe com as noções de Renascimento e Tempos Modernos, os quais compõem parte dessa fase medieval. Além de destacar a indissociabilidade do renascimento ao medievo, Le Goff defende a ideia de que não se pode falar apenas em um renascimento, mas em vários renascimentos. • Conforme destaca o historiador: “Não se compreenderá a Idade Média se não a integrarmos à ideia de renascimentos sucessivos, e de reformas sucessivas - são necessidades constantes, pelo menos desde o tempo de Carlos Magno! A Reforma de Lutero se inscreve numa longa sequência de reformas” (LE GOFF, 2005, p. 67). Para Le Goff. não se pode falar em uma ruptura a propósito do século XVI, uma vez que os renascimentos foram recorrentes ao longo do medievo. Isso quer dizer que se pode falar dos renascimentos carolíngio, do século XII e dos séculos XV e XVI. O Renascimento não representa, dessa forma, o fim da Idade Média, mas a constitui de maneira plural. Reflexões Finais Como adverte Jêrome Baschet, além de ser bastante desafiador lidar com um recorte temporal tão extenso, esse esforço esboçado por Le Goff de defender a proximidade da Idade Média do mundo contemporâneo não deve colocar em segundo plano as especificidades daquele momento histórico. “É por isso que o estudo da Idade Média é uma experiência de alteridade, que nos obriga a nos desprendermos de nós mesmos, a abandonar nossas evidências e a engajar um paciente trabalho para captar um mundo do qual mesmo os aspectos mais familiares dizem respeito a uma lógica que se tornou estranha para nós” (BASCHET, 2006, p. 45). Referências Bibliográficas BASCHET, Jérome. A civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979. Quer saber mais? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • Uma outra Idade Média - Le Goff http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/medio/o-autor-de- uma-outra-idade-media/ http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=22 • As múltiplas Idades Médias de Jacques Le Goff https://www.ricardocosta.com/artigo/multiplas-idades- medias-de-jacques-le-goff-1924-2014 http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/medio/o-autor-de-uma-outra-idade-media/ http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=22 https://www.ricardocosta.com/artigo/multiplas-idades-medias-de-jacques-le-goff-1924-2014 Conhecendo alguns termos Longa Duração É um conceito histórico que foi desenvolvido pelo historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), representante da chamada segunda geração da Escola dos Annales. Em suas pesquisas, Fernand Braudel realizou recortes amplos e análises pautadas nas recorrências e permanências. Escreveu grandes obras, tais como: O Mediterrâneo no tempo de Filipe II e Civilização Material: Economia e Capitalismo. Sugestão de Vídeos • Tempos na História. Tempos da História https://www.youtube.com/watch?v=QW9TTtbfpws https://www.youtube.com/watch?v=QW9TTtbfpws
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