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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 4 Alterações nas relações e estruturas antigas MUDANÇAS A PARTIR DO ENCONTRO ENTRE ROMANOS E GERMÂNICOS A entrada e a instauração de reinos germânicos nas porções territoriais do Império Romano, como vimos, romperam a unidade romana. O eixo da vida ocidental, antes em torno do Mediterrâneo, foi deslocado para as porções Norte da Europa, e outras mudanças significativas relacionadas ao desmantelamento da estrutura fiscal romana e à dissolução do Estado igualmente ocorreram a partir do impacto ocasionado pela chegada desses povos. A unidade imperial, pouco a pouco, abriu espaço para uma intensa regionalização do poder ligada às figuras dos chefes locais. Protegido por uma rede de homens unidos por laços de fidelidade, o rei germânico era o grande guerreiro que liderava seus servidores nas conquistas territoriais e pilhagens. Sem uma distinção muito nítida entre público e privado, esses reis germânicos encaravam os reinos como seus patrimônios pessoais, podendo dispor deles conforme lhes convinha. A despeito de todas essa mudanças, não houve uma implosão total das estruturas antigas, nem mesmo a implantação de um universo totalmente novo pelos germânicos. Como salienta Jérôme Baschet, “constata-se um processo de convergência e de mistura no qual as elites romanas locais são, sem nenhuma dúvida, os atores principais” (2006, p. 53). Segundo Baschet, essa fusão entre romanos e germânicos foi marcante ao longo de toda a Alta Idade Média. Para o historiador, embora tenha sido difícil para as elites romanas negociar com povos que eram considerados “bárbaros” – homens com cabelos longos, trajados com peles de animais e distantes da cultura romana –, era comum sua união com as elites germânicas. Por isso, pouco a pouco, ambas as elites se congregaram em torno de interesses comuns, firmados, até mesmo, através de casamentos. Talvez o exemplo que mais expresse essa fusão cultural entre romanos e germânicos, ainda segundo Baschet, possa ser visto entre os francos, ilustrado pelo selo de Childerico (436- 482) da dinastia dos merovíngios. Nessa imagem, podemos observar a mistura de referências germânicas e romanas. Childerico é representado como um líder bárbaro, usando cabelos longos, mas veste uma toga romana. https://bit.ly/2TjRVpK Como enfatiza o medievalista brasileiro Marcelo Cândido da Silva, a tomada de Roma pelos germânicos não significou propriamente o fim do mundo romano, uma vez que sua porção oriental continuou a existir. Dessa forma, os francos reconheceram que ainda havia uma hierarquia imperial e a ela recorreram para legitimar seus poderes. Além de reconhecerem o poder concedido pelo império no Oriente, os francos teriam compreendido que se apropriar dos símbolos e imitar algumas práticas políticas romanas também lhes conferia legitimidade. O PROCESSO DE RURALIZAÇÃO O clima de instabilidade e insegurança trazido pelas migrações germânicas gerou também impactos na vida econômica da Europa Ocidental. Com a destruição das redes de estradas romanas, as atividades comerciais foram prejudicadas e as trocas a longas distâncias impedidas. Ademais, paralela à fragmentação política, a produção passou a ser cada vez mais regionalizada, o que acarretou o declínio das trocas. Embora as cidades não tenham deixado de existir ao longo do medievo, elas foram impactadas por essa queda das atividades comerciais e também entraram em declínio. Durante a Alta Idade Média, à medida que as cidades viram o número de seus habitantes reduzir e tornaram-se espaços cada vez mais estreitos, circundados por muralhas, o processo de ruralização ganhou força. Conforme aponta Hilário Franco Júnior, as grandes propriedades rurais, denominadas domínios (de diferentes tamanhos, que variavam de acordo com o tempo e o espaço), existiram paralelamente às pequenas e médias propriedades. O domínio tinha, geralmente, sua área dividida em duas partes: a) Terra indominicata: chamada também de reserva senhorial, era utilizada diretamente pelo senhor, que tinha nela sua casa, seu celeiro, seus pastos e suas terras cultiváveis. b) Terra mansionaria: chamada também de mansus, era a menor unidade produtiva e fiscal do domínio. Uma vez que essas áreas eram concedidas pelos senhores aos camponeses, estes deviam certas obrigações àqueles. Como relata Hilário Franco Júnior, “os mansi serviles, ocupados por escravos, deviam mais encargos do que os mansi ingenuiles, ocupados pelos camponeses livres” (2001, p. 40). DA ESCRAVIDÃO À SERVIDÃO Grandes transformações ocorreram nas estruturas dessa sociedade que se tornava cada vez mais rural. Uma delas diz respeito à troca do escravo pelo servo como força produtiva. Embora a escravidão tenha sido a base da produção no mundo romano, ela foi desaparecendo entre o fim da antiguidade e o remate da Alta Idade Média. Antes de analisarmos os motivos relacionados ao desaparecimento da escravidão, é importante que façamos uma observação. De acordo com Baschet, apesar de a escravidão, como base da produção, ter deixado de existir no intervalo de tempo indicado acima, sua versão doméstica ainda perdurou nos séculos subsequentes. Isto é, os escravos domésticos continuaram a existir durante a Idade Média e, até mesmo, com o fim do medievo. Considerando isso, vejamos quais são as justificativas mais comuns dadas pelos historiadores para compreender a transição da escravidão para a servidão. Para Baschet, os historiadores têm associado o desaparecimento da escravidão, de maneira geral, a alguns fatores: a) Religioso Embora muitos filósofos e homens de autoridade no medievo, tal como Agostinho e Isidoro de Sevilha, considerassem a escravidão um castigo divino e até mesmo alguns clérigos, inclusive papas, tenham tido escravos, o pensamento cristão imprimiu uma mudança significativa em relação a como os escravos eram vistos. Como o cristianismo permitia ao escravo alcançar a condição de cristão, ele acabou aproximando os homens não-livres daqueles que tinham liberdade. b) Militar Mesmo que o apaziguamento das conquistas romanas tenha gerado uma crise no abastecimento de escravos, sobretudo no século III, a entrada de diversos povos de origem germânica e os conflitos levados a cabo pelos reinos “bárbaros” sustentaram a escravidão. Contudo, conforme adverte Baschet, o escravo antigo não era totalmente semelhante ao escravo medieval. Enquanto o escravo antigo era, na maioria das vezes, um estrangeiro, o escravo medieval era o homem capturado numa guerra entre vizinhos e, por isso, apresentava certa proximidade com os homens livres. c) Econômico Baschet recorre aos estudos de Marc Bloch para explicar o fator econômico, pois, de acordo com as pesquisas deste último medievalista, são as causas econômicas que esclarecem o desaparecimento da escravidão. Sobre isso, Bloch explica que, ao perceberem os elevados custos de manutenção da mão de obra escrava, os proprietários, já no século III, passaram a instalá-la nas margens de seus domínios, obrigando-a a produzir para subsistir e a pagar com parte da colheita, ou com tributos, pelo uso da terra. Esse processo foi denominado por Bloch de chasement. De acordo com Bloch, a palavra chasement “vem de casa. No direito feudal, indica usufruto, por um vassalo, de uma terra concedida a título vitalício” (1982, p. 204). Foi o chasement que, segundo esse medievalista, teria levado à formação do grande domínio, considerado, nas palavras de Baschet, “a organização rural clássica da Alta Idade Média” (2006, p. 57), que, como vimos, era dividida em terra indominicata e mansu. Ou seja, para Bloch, essas mudanças de caráter econômico levaram ao desaparecimento da escravidão. d) Uma conjunção de fatores Diversos fatores ligados a mudanças econômicas, sociais e políticas que ocorreram no trânsito da antiguidade ao medievo explicam melhor, segundo Baschet, a passagemda escravidão para a servidão. Além das revoltas de escravos que ocorreram no século III e V, a ausência de um Estado forte e centralizado que garantisse, por intermédio da lei e da força, a obediência dos dominados deve ser levada em consideração, pois, de acordo com o historiador, é um fator que acabou pressionando essa transição. Ademais, segundo Baschet, é um erro associar o fim da escravidão à queda do Império Romano do Ocidente, pois essa forma de trabalho persiste em toda a Alta Idade Média, bem como é possível encontrar seus vestígios até os séculos IX e X. Durante esse processo de transição, por vezes, os escravos receberam a liberação (manumissio) acompanhada de restrições (manumissio cum obsequio), ou seja, eram liberados sob a condição de serem obedientes e prestar serviços aos seus senhores. Nesses casos, a condição de escravo e de homem liberto cum obsequio pouco diferiam. De modo geral, pouco diferiam também a condição dos homens de origem livre, submetidos às obrigações da terra, daquela vivenciada pelos homens de origem escrava. Como sintetiza Baschet: “Assim, o desaparecimento muito progressivo da escravidão se faz menos por uma baixa dos efetivos (que seria facilmente mensurável) do que por uma transformação lenta e por etapas das posições (o que torna o fenômeno muito mais difícil de ser apreendido). Continua sendo verdade que a dinâmica fundamental é a de uma extinção do grande domínio escravagista, base da economia antiga que, através de suas diversas formas de transição, levou a um novo sistema cuja forma estabilizada será claramente perceptível a partir do século XI” (2006, p. 60). FORTALECIMENTO DA IGREJA E CONVERSÃO AO CRISTIANISMO Desde a conversão do imperador Constantino, em 312, e da elevação do cristianismo à religião oficial do império, em 392, por Teodósio, a Igreja vinha crescendo apropriando-se da estrutura criada pelo Império Romano. No entanto, as migrações dos germânicos, ainda pagãos ou convertidos à doutrina ariana, representaram certa ameaça à Igreja. Os francos representam um caso diferente, pois acabaram se convertendo ao cristianismo ortodoxo logo no século V. Percebendo a força política que essa escolha representava, tendo em vista o poder dos bispos de seu reino, o rei Clóvis foi batizado por Remígio, bispo de Reims, provavelmente entre 496 e 499. Agindo desse modo, Clóvis garantiu o apoio dos clérigos para os seus empreendimentos militares e missionários. Caminho semelhante, ainda que mais tardio, trilhou o rei da Espanha visigótica, Recaredo, em 587, ao converter-se ao catolicismo. No Norte da Europa, a despeito de algumas missões evangelizadoras, tal como a de Patrício (387-461), realizada no século V, à região da Irlanda, houve bastante resistência ao cristianismo. A essa fé também se opuseram celtas e anglo-saxões, e, por isso, pode-se dizer que as conversões foram mais lentas e tardias nas porções setentrionais da Europa. Uma fonte importante sobre esse período, que narra a história da Igreja nessas plagas, é a Historia ecclesiastica gentis anglorum (731), escrita por Beda (673-735), monge inglês que viveu em Jarrow (Inglaterra). Manuscrito da História Eclesiástica da Inglaterra https://bit.ly/2ThznWQ REFLEXÕES FINAIS O desenvolvimento do cristianismo na Europa é, segundo Baschet, “uma longa aventura que termina por volta do ano mil, com a conversão da Polônia (966) e da Hungria (batismo do futuro rei Estevão I, em 985), da Escandinávia (batismo dos reis Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, em 960; Olavo Tryggveson da Noruega, em 995, e Olavo da Suécia, em 1008) e da Islândia (no ano mil, pelo voto da assembleia camponesa reunida em Thingvellir após um ritual de xamanismo realizado por seu chefe). (...) Mesmo se as datas indicam apenas a conversão dos líderes e não uma difusão geral do cristianismo, doravante o Ocidente é por inteiro uma cristandade (católica), e a fronteira móvel – mas sempre presente durante a Alta Idade Média –, em que cristãos e pagãos entravam em contato, só continua a existir de maneira residual” (2006, pp. 62-63). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. SILVA, Marcelo Cândido. 4 de setembro de 476. A Queda de Roma. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. QUER SABER MAIS? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • Beda https://brasilescola.uol.com.br/biografia/beda-veneravel.htm • Agostinho de Hipona https://www.infoescola.com/biografias/santo-agostinho/ • Isidoro de Sevilha https://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/article/viewFile/512/433 https://brasilescola.uol.com.br/biografia/beda-veneravel.htm https://www.infoescola.com/biografias/santo-agostinho/ https://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/article/viewFile/512/433 CONHECENDO ALGUNS TERMOS Manumissio É uma expressão latina que significa alforria, ou seja, representa a concessão da liberdade ao escravo pelo senhor. Esse termo (manu: mão), segundo o direito arcaico romano, designava poder (potestas). SUGESTÃO DE FILMES Augustine - O Declínio do Império Romano (2010) https://www.youtube.com/watch?v=XRtrLum3b0g https://www.youtube.com/watch?v=XRtrLum3b0g
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