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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 5 Feudalismo e feudalidade DIFERENTES LINHAS INTERPRETATIVAS A questão do feudalismo na Idade Média é analisada, desde o século XIX, por diversas linhas interpretativas. Conforme destaca o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior, o debate sobre esse tema gira em torno de dois sentidos atribuídos ao termo feudalismo: o lato e o estrito. Segundo o sentido lato (amplo), o feudalismo designa um tipo de sociedade com formas específicas de organização social, econômica, política e cultural. Já em relação ao sentido estrito, esse termo se refere aos vínculos feudo-vassálicos, ou seja, às relações político-militares estabelecidas entre membros da aristocracia. De saída, é importante que façamos uma observação: o termo feudalismo, ou regime feudal, não era utilizado pelos homens medievais. Como bem lembrou o medievalista Marc Bloch, no seu livro A Sociedade Feudal (1939), remonta à Idade Média apenas a forma latina feodalis. Alguns pensadores do século XVII, pautados em uma abordagem estritamente jurídica, consideraram o feudo como um modo de posse dos bens reais. Dessa forma, segundo eles, feudal se referia àquilo que se relacionava com o feudo, e feudalidade dizia respeito não só à qualidade do feudo, como também aos encargos relacionados a esse tipo de posse. Alain Guerreau, historiador francês, destaca que os termos feudalismo e regime feudal começaram a ser mais utilizados no século XVIII, ou seja, no contexto de queda da chamada antiga ordem (absolutista), na qual negava-se os supostos males do Antigo Regime. ABORDAGENS AMPLAS François Guizot (1787-1874) e Karl Marx (1818-1883) foram os principais responsáveis pelo debate sobre feudalismo/feudalidade no século XIX e ambos orientaram suas análises sobre o tema em direção ao sentido lato. François Guizot Karl Marx Guizot, por exemplo, acreditava que o feudalismo representava apenas uma forma passageira e instável de equilíbrio social. Por isso, não considerava importante descrevê-lo no seu sentido estrito, mas compreendê-lo em sua dinâmica de organização da aristocracia e no modo como ela exercia sua dominação. História da Civilização na Europa https://bit.ly/2FjWRH7 Marx, por sua vez, ofereceu uma posição secundária ao feudo em sua análise. Todavia, privilegiou a posse da terra pelo senhor, bem como a expropriação que o senhor realizava de uma parcela do produto elaborado pelos camponeses instalados em suas porções territoriais. Segundo essa perspectiva, o fundamento do senhorio (terra) era a exploração do camponês. Ao analisar os textos de Karl Marx, o historiador Alain Guerreau chamou à atenção para o fato de o pensador não elaborar propriamente uma teoria sobre o modo de produção feudal. Como o alvo de Marx era compreender o modo de produção capitalista, o feudalismo foi descrito por ele, como alerta Guerreau, apenas como um estágio da história que precedia o capitalismo. Dessa forma, a sociedade medieval foi vista por Marx a partir dos conceitos de classe e de luta de classes, isto é, por meio da oposição entre senhores e camponeses. Dentre as abordagens realizadas no século XIX, aquela que se revelou mais fértil historiograficamente, de acordo com Hilário Franco Júnior, foi a marxista. Considerada uma análise fundamental sobre o sistema feudal no século XX, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, escrita por Perry Anderson (1938-atual) no ano de 1974, é, por exemplo, uma das obras do século XX que teve inspiração marxista. Para esse historiador inglês, o modo de produção feudal que surgiu na Europa Ocidental pode ser definido como uma unidade complexa. De acordo com Perry Anderson, esse modo de produção foi regido pela terra e por um tipo de economia em que o trabalho e os produtos não eram vistos como bens. Nesse sistema, o camponês (produtor) estava unido ao meio de produção por um tipo de relação social específica. Ligados à terra, os servos tinham mobilidade restrita. Já à classe dos senhores feudais cabia o controle sobre a propriedade agrícola e sobre o excedente de produção gerado pelos camponeses, os quais estavam ligados aos senhores por uma relação político-legal de coação. Essa relação incluía diversas obrigações por parte dos servos, dentre elas: a) A Corveia: trabalho por três dias que os servos cumpriam exercendo atividades ligadas à terra, à construção e à manutenção. b) A Talha: taxa cobrada pelo senhor para proteção e para que o servo pudesse usufruir a terra. c) As Banalidades: taxa cobrada pelo senhor ao servo pelo uso de moinhos, do lagar e do forno. d) A Mão-morta: taxa paga pelo servo quando um membro de sua família morria, causando redução de mão de obra e produção ao senhor. Segundo essa análise, ao mesmo tempo em que o camponês estava sujeito à jurisdição do senhor, os direitos de propriedade deste sobre a terra estavam condicionados a uma escala. Dito de outro modo, investido por um nobre superior, o senhor passava a dever-lhe serviços e apoio militar em tempos de conflito: suas propriedades eram mantidas como um feudo (cessão de direitos). Como um senhor feudal geralmente era vassalo de outro senhor feudal, havia uma relação em cadeia de posses dependentes que, muitas vezes, chegavam a um monarca (a quem de início pertencia toda a terra). Ao jurar fidelidade a seu senhor (suserano), o vassalo comprometia- se a garantir-lhe: proteção, segurança, honra, interesse, liberdade e faculdade. O suserano, por sua vez, devia a contrapartida de todos esses pontos ao vassalo. Ou seja, tratava-se de uma relação de dependência entre iguais. Como sintetiza Perry Anderson: “A consequência deste sistema era que a soberania política nunca estava enfocada num único centro. As funções do Estado desagregavam-se em concessões verticais sucessivas, e a cada nível estavam integradas as relações econômicas e políticas. Esta parcelarização da soberania seria constitutiva de todo o modo de produção feudal” (1991, p. 144). https://bit.ly/2uaxa5E Outro estudo relevante sobre esse tema, que tentou conciliar a abordagem lato com a estrita, foi desenvolvido por Alain Guerreau (1948-atual), em O feudalismo: um horizonte teórico. Nesse livro, Guerreau apresenta quatro eixos importantes sobre o feudalismo. 1) Da relação entre senhores e camponeses Fugindo de análises simplistas acerca dessa relação, Guerreau considera que é importante tentar compreender as relações feudais em termos de poder, uma vez que sua especificidade se encontra no poder sobre a terra e sobre os homens. O historiador não desconsidera, todavia, que as práticas normativas, estruturas estáveis e atividades judiciais específicas tenham sido conhecidas pela Europa feudal. ALAIN GUERREAU: CONCILIANDO PONTOS DE VISTA Para entendê-las, Guerrau recorre ao vocabulário da época. Chega à conclusão de que a relação de dominium ou seignorie era uma relação de poder que visava homens e terra e que o camponês estava atrelado ao estatuto servi e à residência como agricolae. 2) Do parentesco artificial De acordo com Guerreau, as relações de parentesco eram a princípio naturais (ligadas por laços sanguíneos), mas no medievo foram sendo criados vários níveis de parentesco concretizados através de rituais comandados pela Igreja. As alianças, o apadrinhamento, a vassalagem, a irmandade/fraternidade religiosa são exemplos desses vários níveis de parentesco citados pelo autor. 3) Do alicerce na guerra Na lógica feudal, a guerra servia para pilhagem, sequestro e obtenção de terras, transferindo, assim, poder e riqueza. Segundo Guerreau, a guerra, prática fundamentalmente realizada pela nobreza, foi o principal fator de coesão do sistema feudal. 4) Do poder da Igreja A Igreja controlava, de acordo com o medievalista, diversas esferas da vida do homem medieval. Desde o tempo – através do calendário, do badalar dos sinos, das festas santas e dos momentosde abstinência –, até os rituais de investidura, casamento e sagração dos reis. Estendia igualmente sua atuação ao sistema de ensino e à assistência hospitalar. Em suma, para compreender o feudalismo, nas palavras de Guerreau, devemos necessariamente refletir sobre as relações entre camponeses e senhores, as novas formas de parentesco criadas no medievo, o papel das guerras como lugar de estabelecimento de poderes e a relevância da Igreja nos diversos âmbitos da vida medieval. Em uma abordagem de sentido mais lato, Georges Duby considera que o feudalismo foi um estado de espírito constituído por um grupo de guerreiros que foram se tornando nobres. Esses homens compartilhavam a consciência de que pertenciam a um estado superior, especializado em atividades militares, e de que cabia a eles garantir a prática de certas virtudes. No livro As três ordens ou o imaginário do feudalismo, publicado em 1978, Duby enfatiza que o imaginário medieval foi regido por uma divisão em três ordens. Georges Duby e As três ordens ou o imaginário do feudalismo Levando em consideração os escritos do bispo francês Aldaberão de Laon (947-1030), realizados entre 1025 e 1027, e outros escritos da época, Duby apontou que o imaginário medieval estava dividido entre oratores, bellatores e laboratores. Ou seja, entre os que oram, os que guerreiam e os que trabalham. Segundo essa perspectiva, os oradores eram responsáveis pela mediação entre os homens e as forças sobrenaturais. Composta inicialmente pelos homens das antigas linhagens, a ordem dos guerreiros (bellatores) era responsável pela proteção das terras e dos homens. Frente à necessidade de defender suas terras da ameaça dos invasores nos séculos IX-X, esses homens passaram a se armar e a sustentar outros de origem mais humilde. Como usavam cavalos nas batalhas eram conhecidos por milites – cavaleiros. Os trabalhadores (laboratores) possuíam condições diversas conforme os locais e os momentos. Existiam camponeses livres, que haviam escapado dos vínculos feudais nos alódios. Escravos eram utilizados como mão obra sobretudo nas porções meridionais, embora já a partir do século X a mão de obra predominante fosse a servil. Os servos recebiam lotes de terra de seus senhores para que produzissem os próprios alimentos e, em troca, eram obrigados a pagar taxas aos senhores. A feudalização deve ser vista, de acordo com Duby, como uma fragmentação do poder público, que havia sido dividido em diversas partículas. Cada casa era um micro Estado em que o poder era exercido, ou seja, o poder público se encontrava em cada senhorio. UMA DISCUSSÃO SOBRE A FEUDALIDADE Pensando o feudalismo em um sentido mais estrito, o medievalista belga François Louis Ganshof (1895-1980) lançou, em 1944, um trabalho, hoje considerado clássico, sobre direito feudo-vassálico: Qu’est-ce que la féodalité? A tradução para o português, O que é o feudalismo?, trouxe uma imprecisão terminológica, já que a expressão escolhida pelo autor foi feudalidade e não feudalismo. O belga, ao utilizar o termo feudalidade, aponta para sua proposta que consistia em analisar as relações que vinculavam as famílias aristocráticas com base na suserania e vassalagem, concentrando-se no direito feudal que regia essas relações. Desse modo, o uso do termo feudalidade limitava a reflexão ao regime feudal, exclusivamente aristocrático. Assim, é somente por meio de um equívoco de tradução grosseiro que se pode tomar feudalité (feudalidade) como sinônimo de feudalismo, conceito que é mais amplo e abrangente. https://bit.ly/2Jzsf91 De acordo com Ganshof, a feudalidade pode ser considerada como: “As regras que estabelecem relações de homem para homem, costumes não escritos, transmitidos oralmente e ligados a cerimônias, rituais, fórmulas e palavras cujos sentidos variam no espaço e no tempo” (1979). REFLEXÕES FINAIS Sem desconsiderar as diferentes abordagens sobre o feudalismo, poderíamos defini-lo retomando a fala de Hilário Franco Júnior: “Do ponto de vista político, representa a pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária e pressionada por inimigos externos (vikings, magiares, etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o século IV, quando manifestaram e aceleraram o debilitamento do Império Romano. Naquele momento, com a busca da autossuficiência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações, acentuou-se a ruralização da economia e da sociedade, levando os representantes do imperador a se verem limitados nas suas possibilidades de atuação. Os grandes proprietários puderam, assim, usurpar atribuições do Estado [...]” (1986, p. 82). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, P. Passagens da antiguidade ao feudalismo. Lisboa: Afrontamento, 1991. DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. GANSHOF, F. L. Que é o feudalismo? Lisboa: Publicações Europa-América, 1979. GUERREAU, A. O feudalismo. Um horizonte teórico. Lisboa: Edições 70, 1980. QUER SABER MAIS? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • Aldalberão de Laon https://pt.wikipedia.org/wiki/Adalber%C3%A3o_de_Laon • François Guizot https://brasilescola.uol.com.br/biografia/francois- pierre-guillaume.htm • Alain Guerreau • https://pt.wikipedia.org/wiki/Alain_Guerreau • François Louis Ganshof https://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois-Louis_Ganshof https://pt.wikipedia.org/wiki/Adalber%C3%A3o_de_Laon https://brasilescola.uol.com.br/biografia/francois-pierre-guillaume.htm https://pt.wikipedia.org/wiki/Alain_Guerreau https://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois-Louis_Ganshof CONHECENDO ALGUNS TERMOS Feudo O feudo era, quase sempre, um ou mais senhorio (porções de terras). No entanto, o feudo também podia ser a cessão de um direito, de um cargo e sua remuneração, ou ainda uma quantia de moedas e produtos. SUGESTÃO DE VÍDEOS • Passagens da Antiguidade para o Feudalismo. Perry Anderson. Aula Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos https://www.youtube.com/watch?v=Y0uSeQ47sKI • Feudalismo https://www.youtube.com/watch?v=u2AJdkIis7k https://www.youtube.com/watch?v=Y0uSeQ47sKI https://www.youtube.com/watch?v=u2AJdkIis7k
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