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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 9 As Cruzadas DISCUTINDO O TERMO Desde a Idade Média, as Cruzadas despertaram um lugar de destaque na memória coletiva, uma vez que envolveram grandes personagens da época, tais como papas, imperadores e reis. Em diversos momentos da história, as Cruzadas inspiraram filmes, músicas e diferentes representações artísticas. Segundo as palavras da medievalista brasileira Néri de Almeida Barros, “a palavra cruzada tem um lugar importante em nosso vocabulário ora aplicando-se à violência do fanatismo religioso, ora à firme reunião de forças benéficas em torno de uma causa nobre, geralmente ligada a um ideário de salvação. [...] A ambivalência que a ideia de cruzada ainda comporta em suas evocações cotidianas expressa a própria complexidade do fenômeno” (2013, p. 449). Como destaca o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior, assim como muitos termos históricos estabelecidos extemporaneamente, a palavra Cruzada não era conhecida entre os medievos, pelo menos não antes do século XIII. Os termos mais comuns utilizados nos textos desse período eram: peregrinação, guerra santa, passagem e expedição da Cruz. A propósito disso, Franco Júnior salienta que “a expressão Cruzada, quando surgiu, derivava do fato de seus participantes considerarem-se soldados de Cristo, marcados pelo sinal da Cruz, e, por isso, bordavam uma cruz na sua roupa.” (1989, p. 7). https://rapg.wordpress.com/cruzada/ O uso do termo Cruzada, conforme destaca Cécile Morrisson, passou a ser corrente entre os estudiosos sobretudo a partir do século XVIII. Assim, foi entendido como peregrinações militares que, com a autorização papal, entre os séculos XI e XIII, concediam benefícios temporais e espirituais àqueles que se dispusessem a libertar Jerusalém dos infiéis. No entanto, essas expedições militares contra os infiéis não ficaram restritas ao Santo Sepulcro, dado que incluíram o Oriente Médio, a Península Ibérica e qualquer parte da Europa onde muçulmanos ou pagãos tivessem avançado. Muitos historiadores questionam se é possível equiparar as expedições para o Oriente às lutas contra os islâmicos na Península Ibérica, ou se as cruzadas também se aplicam à oposição aos hereges e pagãos da Europa Oriental. Outro ponto de discussão refere-se aos diferentes fatores que podem ter fomentado as cruzadas. Ou seja, têm-se discutido sobre questões relacionadas aos âmbitos: espiritual, teológico, bélico e político. UMA IDEIA CRISTÃ ANTIGA Preocupado em compreender de que maneira a Igreja tornou-se deflagradora de diversos conflitos bélicos e como passou originalmente de uma comunidade pacifista a articuladora de práticas de violência, o historiador Jean Flori escreveu Guerra Santa: a formação da ideia de cruzada no Ocidente Cristão. Nesse livro, Flori defende a tese de que deve-se compreender as cruzadas a partir de uma ideia cristã, que surgiu no século IV. De acordo com esse historiador, a Igreja, em meio ao processo de institucionalização iniciado no século IV, defendeu que determinados conflitos podiam ser compreendidos como efeitos da vontade de Deus, ou seja, eram representativos dos desígnios divinos. Logo, algumas querelas, guerras e conflitos, conforme essa ideia propagada pela Igreja, eram passíveis de serem encarados como sagrados ou santos. Para explicitar melhor o desenvolvimento da ideia de guerra santa e justa, Flori, em Guerra Santa, Jihad e Cruzada, recorre aos textos de Agostinho de Hipona (354-430), filósofo que, apoiando-se no Antigo Testamento e em outras autoridades, havia destacado que até Deus, em certos momentos, autorizava as guerras. Embora uma definição canônica de guerra justa só tenha sido elabora nos séculos XII e XIII, Flori aponta Santo Agostinho como responsável por criar os fundamentos dessa nova ética cristã. Assim, remetendo-se ainda a Santo Agostinho, Flori elenca os elementos que deveriam ser levados em conta para que uma guerra fosse considerada justa: a) Deve ser guiada por fins puros e de acordo com a justiça: impedir o inimigo de fazer dano, matar, saquear, mas também reestabelecer o estado de justiça que foi quebrado pelo inimigo. b) Deve ser feita com amor, sem ódio, sem interesses pessoais. c) Deve ser pública, ou seja, declarada pela autoridade legítima ( 2004, p. 29). Nas palavras de Jean Flori: “Apesar das reticências, o imenso prestígio de Santo Agostinho colaborou para o desaparecimento das suspeitas duradouras dos cristãos em relação à Guerra e sua função militar. As invasões bárbaras, e depois as dos árabes, tanto no Oriente como no Ocidente, reforçaram ainda mais essa tendência, contribuindo para a elaboração futura do conceito de guerra santa cristã. Uma noção que fundia suas raízes no Antigo Testamento, mas que havia sido rechaçada com firmeza por Jesus e pelo cristianismo primitivo. Um conceito que alcançou seu pleno desenvolvimento no século XI, na época da cruzada” (2004, p. 30). Entendido como uma guerra santa, o movimento das cruzadas deve ser analisado, de acordo com Flori, por intermédio dos elementos que integram a trama que o tornou possível. Para esse historiador, alguns fatores, entre o século IV e o ano de 1096, momento em que o papa Urbano II conclama a primeira cruzada por meio do Concílio de Clermont, compõem essa trama. Dentre eles, Flori destaca enfaticamente três: 1. A elevação do Império, na Antiguidade Tardia, à autoridade militar protetora da comunidade cristã; 2. Já na Idade Média, o amparo que a igreja de Roma buscou no poder secular para obter proteção armada contra seus opositores; 3. As reformas que a Igreja empreendeu entre os séculos XI e XII, na tentativa de afirmar o papa como vigário de Deus e o poder papal como autoridade superior, bem como seu empenho em delimitar o que estava sob a sua esfera de atuação e o que cabia ao poder secular. MOTIVAÇÕES MATERIAIS Outros historiadores, como o medievalista Hilário Franco Júnior, viram, todavia, as cruzadas como uma espécie de saída para os problemas colocados pela desestruturação do sistema feudal. Segundo essa perspectiva, mudanças internas do feudalismo geraram condições específicas para o surgimento das cruzadas. Dito de outro modo, as cruzadas teriam funcionado como válvula de escape para as tensões sociais, políticas e econômicas do feudalismo. O medievalista Hilário Franco Júnior cita uma passagem interessante do discurso do Papa Urbano II, em 1095, no Concílio de Clermont, que expressa as motivações materiais ligadas às cruzadas. Nela podemos perceber também que um dos privilégios concedidos àqueles que se dispunham a lutar pela Igreja era o recebimento da indulgência, ou seja, o perdão pelos pecados. Sobre isso, Urbano diz: “A todos os que partirem e morrerem no caminho, em terra ou mar, ou que perderem a vida combatendo os pagãos, será concedida a remissão dos pecados. Que combatam os infiéis os que até agora se dedicavam a guerras privadas, com grande prejuízo dos fiéis. Que sejam doravante cavaleiros de Cristo os que não eram senão bandoleiros. Que lutem agora contra os bárbaros os que batiam contra seus irmãos e seus pais. Que recebam as recompensas eternas os que até então lutavam por ganhos miseráveis. Que tenham uma dupla recompensa os que se esgotavam em detrimento do corpo e da alma. A terra que habitam é estreita e miserável, mas no território sagrado do Oriente há extensões de onde jorram leite e mel” (1989, p. 27). O discurso do Papa, segundo o medievalista, coloca em evidência algumas motivações ligadas ao deslocamento dos cristãos ocidentais. Para Franco Júnior, o aumento demográfico no Ocidente medieval – que pode ser explicado pela circulação de poucas doenças (haja vista o menor número de contatos, até então, com o Oriente), pelas inovações agrícolas que auxiliaram na melhoria da dieta, na diminuição da mortalidade e no aumento da produtividade – gerou uma das condiçõespara que essas expedições acontecessem. Ao aumento populacional, deve-se acrescentar a expansão comercial, que estabeleceu nas cidades italianas de Gênova e Veneza uma via de comunicação e trânsito com o Oriente. Também devemos salientar as hansas, aliança estabelecida entre cidades mercantis, que facilitaram o contanto e diálogo com diversas porções da Europa Oriental. Sobre isso Franco Júnior destaca: “assim como os interesses comerciais italianos influíram nas Cruzadas do Oriente Médio, o mesmo fizeram os interesses hanseáticos em relação à ocupação da Europa Oriental” (1989, p. 20). Conforme o medievalista, outros elementos de caráter social também estavam relacionados às cruzadas. O crescimento do número de comerciantes, aventureiros, despossuídos, daqueles que fugiam de dívidas e serviços gerou um excedente populacional disposto a enfrentar tal empreitada. Sem contar que os secundogênitos, impedidos de usufruir das heranças de suas nobres famílias, viam nas expedições uma possibilidade de enriquecimento. MOTIVAÇÕES PSICOLÓGICAS Seguindo a linha de raciocínio do medievalista brasileiro citado, devemos levar em consideração três elementos que compuseram a mentalidade dos medievos e contribuíram nas cruzadas: a contratualidade, a belicosidade e a religiosidade. As relações estabelecidas entre os homens medievais eram permeadas pela contratualidade. No entanto, esse tipo de relação também se estendia à maneira como os homens se relacionavam com a esfera divina. O acesso ao mundo sobrenatural se dava através da barganha, ou seja, em troca de promessas, peregrinações, da prática do jejum ou mesmo da luta contra os infiéis em terras distantes. A belicosidade marcou os medievos por conta das constantes invasões (germânicos, islâmicos, vikings, húngaros, eslavos). Tanto a contratualidade como a belicosidade tiveram impacto sobre a religiosidade. O Diabo era considerado um vassalo de Deus que acabou cometendo felonia. Vistas como peregrinações armadas, já que eram direcionadas a lugares sagrados, as cruzadas representavam uma forma de devoção e penitência. CRONOLOGIA DAS CRUZADAS Seguindo a cronologia preparada pelo historiador Alain Demurger, entre o século XII e XIII podem ser mapeados oito momentos das Cruzadas: 1ª Cruzada (1095-1099): convocada pelo papa Urbano II em Clermont; acarretou a tomada de Jerusalém e a formação dos Estados latinos do Oriente; 2ª Cruzada (1146-1149): pregada por São Bernardo após a queda do condado de Edesa; 3ª Cruzada (1188-1192): ocorreu após o sultão Saladino ter tomado Jerusalém e os Estados latinos terem sido destruídos; Essa cruzada reuniu alemães, franceses e ingleses. Embora não tenham conseguido recuperar Jerusalém, fundaram um segundo reino de Jerusalém com capital em Acre; 4ª Cruzada (1202-1204): desviou seus interesses para Constantinopla, levando quase à destruição do Império Bizantino; 5ª Cruzada (1217-1221): preparada pelo papa Inocêncio III e o 4º Concílio de Latrão. Objetivava-se chegar a Jerusalém tomando o Egito; 6ª Cruzada (1228-1229): foi dirigida pelo imperador Frederico II, excomungado pelo papa. Gerou tratados entre o imperador e o sultão do Egito; 7ª Cruzada (1248-1254): chefiada por São Luis, considerado o cruzado ideal. Foi feito prisioneiro no Egito e um resgate teve que ser pago para que ele fosse solto; 8ª Cruzada (1270): também foi patrocinada por São Luis, que morreu antes de chegar à Tunísia. REFLEXÕES FINAIS Assim, podemos retomar as palavras do historiador Alain Demurger sobre a cruzada: “A cruzada nasceu no coração da Idade Média e no seio da cristandade ocidental e latina; nas estruturas e na evolução da sociedade ocidental é onde há que buscar, não tanto as razões de seu nascimento, mas as condições de seu êxito. Jerusalém não seria um estímulo tão poderoso se não contasse com um contexto favorável no Ocidente a partir do século XI: auge econômico e demográfico e a colocada em marcha de um marco político, social e religioso, que teve por nome feudalismo, senhorio ou reforma gregoriana” (2006, p. 16). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Neri de Almeida. Resenha. Guerra Santa: Formação da ideia de Cruzada no Ocidente. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, pp. 449-453, dez. 2013. DEMURGER, Alain. Cruzadas. Una historia de la guerra medieval. Barcelona: Paidós, 2006. FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. FLORI, Jean. Guerra Santa, Yihad, Cruzada. Violencia y religión en el cristianismo y el islam. Granada: Universidad de Granada, 2004. FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. MORRISSON, Cecile. Cruzadas. L&PM pocket. Disponível em: http://bit.ly/2uiYGxD Acesso em: 03 jan. 2019. QUER SABER MAIS? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • A guerra na visão de Santo Agostinho http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2012/pdf/po/p-09.pdf • Santo Agostinho • https://www.infoescola.com/biografias/santo-agostinho/ • Primeira Cruzada • https://www.infoescola.com/historia/primeira-cruzada/ • São Luís https://www.infoescola.com/biografias/sao-luis-luis-ix-da-franca/ http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2012/pdf/po/p-09.pdf https://www.infoescola.com/biografias/santo-agostinho/ https://www.infoescola.com/historia/primeira-cruzada/ https://www.infoescola.com/biografias/sao-luis-luis-ix-da-franca/ CONHECENDO ALGUNS TERMOS Segundogênito Refere-se ao segundo filho. Para preservar o poder senhorial das famílias nobres, a herança e o sobrenome eram reservados ao filho primogênito. SUGESTÃO DE FILMES • Cruzada – 2005 https://www.youtube.com/watch?v=sc7lzQQeGVI • Arn: o cavaleiro templário – 2007 https://www.youtube.com/watch?v=v5GVQKFfMAE https://www.youtube.com/watch?v=sc7lzQQeGVI https://www.youtube.com/watch?v=v5GVQKFfMAE
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