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Guido Liguori - Estado e sociedade civil_ entender Gramsci para entender a realidade

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BIBLIOTECA 
Elab Bla uma 
International Gramsci Society 
Ler Gramsci, 
entender a realidade 
ORGANIZAÇÃO E APRESENTAÇÃO 
Carlos Nelson Coutinho 
Andréa de Paula Teixeira 
2 L619 
itulo: Ler Gramsci, entender a realidade. 
LO 146302 
x. 1 UEFS BCJC 
o 
 
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA 
 
Rio de Janeiro 
2003 
EGISTRO 
Estado e sociedade civil: entender Gramsci 
para entender a realidade 
GUIDO LIGUORI 
Nos últimos anos, tive várias ocasiões de voltar ao tema “Estado e socieda- 
de civil em Gramsci”!. A maioria das intervenções e dos artigos que dediquei 
até hoje a este tema foram de natureza polêmica. Diria mesmo “gramsciana- 
mente polêmica”, já que se sabe que Gramsci gostava de refletir e de escrever 
(seja antes da prisão, seja no cárcere) a partir de um artigo, de um livro, de 
uma tese contra a qual polemizar. Ocorreu-me polemizar repetidamente com 
as leituras dos Cadernos do cárcere que, sobretudo a partir de Bobbio, acredi- 
taram ver no conceito de sociedade civil a categoria central do pensamento 
gramsciano?. E, de resto, polemizei constantemente com as leituras da realida- 
de contemporânea que têm como base um elogio da sociedade civil e uma for- 
te crítica à forma-Estado, vista agora como condenada a um inevitável declí- 
nio, seja diante dos processos de mundialização, seja diante de uma suposta 
“desforra” da própria sociedade civil, interpretada também (mas não somen- 
te) como desforra do mercado sobre o estatismo socialista, socialdemocrata 
ou comunista. Dois fenômenos, o da mundialização e o da desforra da socie- 
dade civil, que estão obviamente ligados, na realidade e na ideologia. 
No que se refere a Gramsci, tenho defendido, em linhas muito gerais, 
que o conceito central dos Cadernos não é o de “sociedade civil”, mas o de 
“Estado ampliado”; que, sendo Gramsci um pensador fortemente dialético, 
Estado e sociedade (mas também estrutura e superestrutura) apresentam-se 
em seus escritos como conceitos distintos, mas não organicamente separados 
173 
 
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
e separáveis; que essa sua concepção teórica reflete uma realidade histórico- 
social, aquela que dominou o cenário do século XX, que fez com que este 
século possa ser definido como o século do desenvolvimento do Estado, de 
seu “protagonismo” em relação à sociedade, embora se trate de um Estado, 
na maioria dos seus aspectos, bem diverso do velho “Leviatã” de Hobbes3. 
No que se refere à temática contemporânea da globalização, afirmei que 
não me parecia que estivéssemos nos encaminhando para um radical e rápi- 
do redimensionamento dos Estados (como pretendem os teóricos da globali- 
zação), mas para uma sua transformação, para um novo equilíbrio entre os 
Estados. Afirmei também que, depois do colapso da URSS, não haviam desa- 
parecido os poderes dos Estados, de todos os Estados, em favor de um 
aumento dos poderes da ONU — quase como se estivéssemos diante da rea- 
lização do projeto kantiano da “paz perpétua” —, mas que, ao contrário, 
era a superpotência ou super-Estado estadunidense a dominar cada vez mais 
o cenário. 
Os últimos e dramáticos acontecimentos parecem confirmar esta análise: 
basta pensar no esforço bélico dos Estados Unidos, no empenho do povo 
palestino no sentido de constituir um Estado nacional, mas também no “re- 
torno do Estado”, conforme uma expressão usada para caracterizar a inter- 
venção em apoio às economias nacionais em dificuldades. “Retorno do 
Estado”: mas quando é que o Estado foi realmente embora? 
Finalmente, afirmei também muitas vezes que — ainda que se admita, 
mas sem se concordar, que o processo de redimensionamento do Estado já 
tenha atingido o nível desejado por muitos — esse é (seria) um processo con- 
temporâneo, não da época de Gramsci, não teorizado por Gramsci. Ele não 
é, como se tem dito, o analista da “crise do Estado”, mas o autor que melhor 
apreendeu, no campo marxista, a nova relação entre Estado e sociedade que 
se realiza na modernidade do século XX, seja sob a forma do Estado fascis- 
ta ou do Estado keynesiano, do Estado bolchevique ou do Estado 
socialdemocrata. Um fenômeno que Gramsci descreve precisamente como 
“ampliação do Estado”, da sua presença, das suas funções. 
Tendo de analisar aqui o tema “sociedade e Estado na era da globaliza- 
ção”, no âmbito de um seminário dedicado a “ler Gramsci, entender a reali- 
dade”, não voltarei às polêmicas dos últimos anos contra o liberismo de 
direita e a liberal-democracia de esquerda. Gostaria de dar, nesta intervenção, 
uma contribuição diversa, subdividida em duas partes. Uma primeira parte, 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
mais consistente, será dedicada ao esclarecimento lexical-conceitual da 
temática Estado — sociedade civil — Estado ampliado, tal como a encontra- 
mos nos Cadernos. Ao que me parece, uma leitura atenta do texto gramscia- 
no — complexo e labiríntico, não isento de oscilações e de evoluções inter- 
nas — nos permite perceber que ele não só usa os termos dessa temática em 
acepções diversas das que eram predominantes em seu tempo, mas que Os 
utiliza frequentemente com conotações diferentes no interior de sua própria 
obra. E, numa segunda parte, tentarei oferecer sinteticamente algumas suges- 
tões referentes ao uso de categorias gramscianas para interpretar o atual e 
suposto protagonismo da sociedade civil na Itália, tomando como ponto de 
referência, sobretudo, a experiência política e governamental de Silvio 
Berlusconi. 
Começaria dizendo que, nos Cadernos, a “ampliação do conceito de 
Estado” — para utilizar a conhecida e merecidamente afortunada fórmula 
de Christine Buci-Glucksmann, que, de resto, tem suas raízes no próprio 
Gramscit — ocorre em dois planos. Por um lado, temos a compreensão da 
nova relação entre política e economia que se inicia já com a Primeira Guerra 
Mundial e se reforça enormemente depois da crise de 1929; e, por outro, 
temos a compreensão da nova relação entre sociedade política e sociedade 
civil, entre força e consenso, direção e dominação, coerção e hegemonia, que 
é desenvolvida a partir tanto da reflexão gramsciana sobre a história da 
Itália na era das Comunas quanto do estudo das diferenças existentes entre 
“Oriente” e “Ocidente”. Trato inicialmente do primeiro aspecto, até mesmo 
porque ele é certamente o mais negligenciado, o menos conhecido. 
Antes de mais nada, cabe eliminar um possível mal-entendido. Gramsci 
se situa firmemente no terreno marxista: não faz do Estado o “sujeito da his- 
tória” e, menos ainda, o sujeito do modo de produção capitalista. Com efei- 
to, ele afirma: “Certamente, o Estado não produz ut sic a situação econômi- 
ca, mas é a expressão da situação econômica” (CC, 1, 379). Para as classes 
fundamentais, ou seja, para a burguesia e o proletariado, Gramsci afirma 
que “o Estado [é] a forma concreta de um mundo produtivo” (CC, 1, 428). 
Na realidade, a peculiaridade dialética do pensamento de Gramsci impe- 
de uma “distinção orgânica” entre Estado e sociedade. Ele rechaça decidida- 
mente toda hipótese liberista e livre-cambista neste sentido, escrevendo que os
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
liberistas e os livre-cambistas se baseiam num “erro teórico”, ou seja, “na dis- 
tinção entre sociedade política e sociedade civil, que de distinção metodológi- 
ca é transformada e apresentada como distinção orgânica. Assim, afirma-se 
que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não 
deve intervir em sua regulamentação. Mas, dado que sociedade civil e Estado 
se identificam na realidade dos fatos, deve-se estabelecer que também o libe- 
rismo é uma “regulamentação” de caráter estatal, introduzida e mantida por 
via legislativa e coercitiva” (CC, 3, 47). Deixemos de lado, por enquanto, os 
problemas que nascem da afirmação de que “sociedade política e sociedade 
civil se identificam na realidade dos fatos” (grifo meu), afirmação que acen- 
tua ainda mais o que,no respectivo texto À, aparecia como “sociedade polí- 
tica e sociedade civil são uma mesma coisa” (caderno 4, $ 38). Voltaremos a 
isso. Por enquanto, interessa-nos sublinhar a característica, como diz Gramsci 
no texto À, “puramente metodológica” da “distinção”. 
Com efeito, penso que é a partir desta consciência metodológica que 
Gramsci pôde apreender o novo papel que a esfera do político adquiriu tan- 
to em relação à produção econômica quanto, em conseqgiiência, em relação à 
composição de classe da sociedade. Gramsci se interessa pelo fenômeno, 
então novo, dos títulos da dívida pública, que fazem do Estado um podero- 
so pulmão financeiro a serviço do capitalismo. Se o Estado recolhe a pou- 
pança — é essa a conclusão de seu raciocínio —, não poderá deixar, mais 
cedo ou mais tarde, de entrar diretamente na organização produtiva (CC, 4, 
276-279). 
Estamos nos anos imediatamente subsequentes ao grande “colapso de 
Wall Street”. O Estado, diz Gramsci, “deve intervir” se quer evitar uma nova 
depressão. Ou seja: Gramsci percebe com lucidez a passagem da economia 
capitalista para sua fase keynesiana, o que ocorre no início da década de 
1930, quando afirma: “Não se trata apenas de conservar o aparelho produ- 
tivo tal como este existe num determinado momento; trata-se de reorganizá- 
lo a fim de desenvolvê-lo paralelamente ao aumento da população e das 
necessidades coletivas. Precisamente nestes desenvolvimentos necessários é 
que reside o maior risco da iniciativa privada e deveria ser maior a interven- 
ção do Estado” (CC, 4, 277). E Gramsci especifica que o Estado é levado a 
intervir para “as operações de salvamento das grandes empresas à beira da 
falência ou em perigo; ou seja, como já foi dito, [para] a “nacionalização das 
perdas ou dos déficits industriais” (ibid.). Gramsci não critica apenas a ver-
 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
são fascista da nova relação entre política e economia que se realiza diante 
da “grande crise” iniciada em 1929: com efeito, ele não hesita em indicar à 
“estrutura plutocrática” e as “ligações com o capital financeiro” do Estado 
fascista (CC, 4, 278), para além de toda retórica “corporativista”, Ele critl 
ca também o capitalismo de Estado, considerando-o “um modo para uma 
sábia exploração capitalista nas novas condições que tornam impossível |... 
a política econômica liberal” (CC, 4, 307). Decerto, Gramsci apreende assim 
a essência do fenômeno. Na medida em que sua afirmação pode ser lida 
como uma crítica in nuce ao nascente Estado do Bem-Estar, creio dever adu 
zir que Gramsci não parece ter levado aqui em conta — e talvez não pues 
se fazê-lo, já que o processo apenas se iniciava — que o Estado do Bem-Lstar 
será também o fruto das duríssimas lutas da classe operária no Ocidente 
Tratou-se, decerto, de um compromisso; seguramente não era o socialismo, 
mas, de qualquer modo, como hoje podemos dizer, foi a maior conquista à 
que chegaram as classes trabalhadoras nos países sem revolução socialista, 
É preciso aduzir que, para Gramsci, o Estado incide profundamente na 
composição de classe da sociedade, fazendo, por exemplo, como ele dig, 
diminuir ou não o peso das camadas parasitárias através de sua política 
financeira (CC, 4, 259). Mas os exemplos poderiam obviamente ser multipli 
cados, no momento em que o Estado entra diretamente na “organização 
produtiva”. Temos aqui aquela produção da sociedade pelo Estado, a qual, 
em minha opinião, representa a maior novidade da relação entre Estado e 
sociedade civil no século XX, ainda que sempre no interior de uma relação 
dialética, de unidade-distinção, entre as duas esferas, como Gramsci nos 
ensina (e voltaremos a isso) partindo de Marx. Também algumas interensan 
tes formas de nova economia, que se pretendem não estritamente de merca 
do (como o chamado “terceiro setor”, mas também grande parte do volun 
tariado, dos trabalhos socialmente úteis, do cooperativismo, etc), são inte 
gral ou parcialmente função do Estado, ou seja, só podem existir na depen 
dência da despesa pública. 
Portanto, para Gramsci, não há dúvida de que o modo de produção 
capitalista tem na economia o seu “primeiro motor”. Tampouco há dúvida 
de que, para um marxista dialético, a distinção entre estrutura e superentru 
tura é apenas metodológica, não orgânica. E é também verdade que no sécu 
lo XX, para Gramsci, o Estado, a esfera política, redefine suas relações com 
a esfera econômica a partir da necessidade que tem o capital de superar sua
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
própria crise. Intervenção estatal na poupança e na produção, introduzida 
na sociedade socialista como alternativa ao mercado, é agora (ou seja, na 
época de Gramsci) introduzida também nas sociedades capitalistas, ainda 
que com finalidades opostas. 
Finalmente, cabe observar que se corre o risco de uma certa confusão 
conceitual se não se observa que hoje, quando se fala de sociedade civil, 
entende-se com fregiiência (precisamente como os liberistas e livre-cambistas 
a que se refere Gramsci, nisto de acordo, aliás, com uma tradição consolida- 
da no século XIX, da qual também Marx faz parte) sobretudo a atividade 
econômico-produtiva. Não é o caso em Gramsci, o qual, ao contrário, vale-se 
de um esquema triádico, formado por economia—sociedade civil —Estado. 
Tomemos, por exemplo, uma passagem dos Cadernos, na qual lemos que “a 
relação entre os intelectuais e o mundo da produção [...] é 'mediatizada” [...] 
[por] dois grandes planos 'superestruturais”: o que pode ser chamado de 
“sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente 
como *privados”) e o da 'sociedade política ou Estado” (CC, 2, 20-21). Nessa 
passagem, a “produção” é nitidamente diferenciada tanto da sociedade civil 
quanto do Estado, termo que, neste contexto, é usado em sentido restrito, tra- 
dicional, ou seja, não “ampliado”, sem incluir portanto os organismos que 
Grasmci diz serem “designados vulgarmente como 'privados”” (grifo meu). 
No caderno 10, Gramsci volta a expressar o mesmo conceito: “Entre a es- 
trutura econômica e o Estado com sua legislação e sua coerção, está a socieda- 
de civil [...]; o Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à socie- 
dade econômica” (CC, 1, 324). Portanto, a economia é a “estrutura”, ao pas- 
so que a sociedade civil e o Estado fazem parte da “superestrutura”. Como 
vimos, Gramsci fala em “dois grandes “planos” superestruturais”, precisamen- 
te a “sociedade civil” e a “sociedade política ou Estado”. Podemos assim dizer 
que Gramsci é o maior estudioso marxista das superestruturas, das quais 
investiga a importância, a complexidade e as articulações internas. Mas nem 
por isso perde de vista o papel determinante da estrutura, ainda que no inte- 
rior de uma concepção dialética da relação entre estrutura e superestrutura. 
Chegamos com isso ao segundo plano da “ampliação do conceito de Esta- 
do” proposto por Gramsci e, portanto, à sua teorização da relação entre Es- prop Pp Pp > 
tado e sociedade civil. Para Gramsci, “sociedade civil” não é nem a estrutura, 
 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
tal como Marx a entende, nem o hegeliano “sistema dos carecimentos”, mas 
o conjunto das associações sindicais, políticas, culturais, etc., geralmente 
designadas como “privadas” para distingui-las da esfera “pública” do Es- 
tado. Mas o marxismo dialético de Gramsci, como vimos, impede tal distin- 
ção nítida, “orgânica”. Partindo de uma leitura de Hegel (sobre a qual não 
posso me deter aqui, mas que exigiria alguns reparos e que me parece em mui- 
tos pontos forçada), Gramsci afirma, desde o caderno 1, que partidos e asso- 
ciações constituem a “trama privada do Estado”: o Estado pede e obtém o 
consenso, educa-o através de “organismos privados, deixados à iniciativa pri- 
vada da classe dirigente” (CC, 3, 119). O Estado, portanto, é o sujeito da ini- 
ciativa político-cultural e atua por meio de canais aparentementeprivados. 
A atenção de Gramsci dirige-se sobretudo, neste âmbito, para os “apare- 
lhos hegemônicos” (termo que, porém, não aparece nos Cadernos, pelo menos 
no plural), aparelhos que se somam aos “aparelhos coercitivos”, típicos do 
Estado strictu sensu, do Estado oitocentista, para o qual se voltava a atenção 
de Marx e também de Lenin (que atua e faz a revolução num Estado que, sob 
muitos aspectos, ainda é oitocentista). Disso resulta a importância decisiva 
que Gramsci atribui aos intelectuais, através de uma conexão entre intelec- 
tuais e Estado que se alimenta também de indiscutíveis sugestões hegelianas. 
Na carta a Tatiana de 7 de setembro de 1931, Gramsci escreve, de modo 
sintético e claro: “O estudo que fiz sobre os intelectuais é muito amplo [...] 
Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que 
habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou apare- 
lho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e à eco- 
nomia de um dado momento), e não como equilíbrio entre sociedade políti- 
ca e sociedade civil ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira socie- 
dade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a 
Igreja, os sindicatos, a escola, etc.); e é precisamente na sociedade civil que 
atuam os intelectuais”S. 
Portanto, estudando os intelectuais, Gramsci chega ao Estado, concebi- 
do (na tradição marxista e leninista) como instrumento para garantir as con- 
dições da produção, mas também como meio mais complexo, do qual ele 
destaca as novas “determinações”, habitualmente esquecidas, ou seja, Os 
aparelhos ideológicos. Estamos sobretudo no plano da criação do consenso, 
como Gramsci especifica numa outra passagem dos Cadernos: “O Estado, 
quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opi- 
 
 
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
nião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da 
sociedade civil” (CC, 3, 265). 
Essa ampliação do conceito de Estado, como é fácil compreender, acom- 
panha a elaboração da teoria da hegemonia, como conjunto de força e de 
consenso, ou — neste ponto temos uma oscilação semântica nos Cadernos 
— como consenso a ser posto ao lado da força. É no caderno 6, ao que me 
parece, onde a reflexão gramsciana se volta mais especificamente para este 
ponto. Gramsci, por exemplo, traduz uma célebre expressão de Guicciardini 
— segundo quem, “para a vida de um Estado, duas coisas são absolutamen- 
te necessárias: as armas e a religião” (CC, 3, 243) — numa série de pares 
conceituais que, ao mesmo tempo, expressam a capacidade hegemônica de 
uma classe (que se tornou Estado, como veremos): “força e consenso, coer- 
ção e persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil” (ibid.). 
E Gramsci especifica que “se deve notar que na noção geral de Estado 
entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no 
sentido, seria possível dizer, de que Estado é = sociedade política + sociedade 
civil, isto é hegemonia couraçada de coerção” (CC, 3, 244). E ainda: “Por 
“Estado” deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho 
“privado” de hegemonia ou sociedade civil” (CC, 3, 254-255). Em suma, 
Gramsci afirma que, em seu significado “integral”, o Estado é “ditadura + 
hegemonia” (CC, 3, 257). 
Portanto, este reconhecimento gramsciano da sociedade contemporânea 
tem em seu centro o Estado. Não no sentido de que o Estado seja o sujeito 
da história, mas no sentido de que os sujeitos da história, que são as classes 
sociais, só podem verdadeiramente se tornar hegemônicos na medida em que 
avaliam a si mesmos como capazes de “tornar-se Estado”. Com efeito, 
Gramsci escreve que “escassa compreensão do Estado significa escassa cons- 
ciência de classe” (CC, 3, 192). Aliás, a classe está madura para afirmar a si 
mesma como classe hegemônica somente quando: 1) tem um partido autô- 
nomo, que afirma sua própria “autonomia integral” em relação às classes 
dominantes; e 2) sabe “unificar-se no Estado” (CC, 5, 139-141). As classes 
subalternas, como Gramsci diz explicitamente, “não são unificadas e não 
podem se unificar enquanto não puderem se tornar “Estado”? (CC, 5, 139). 
Cabe sublinhar que estamos longe de uma teoria estrutural-funciona- 
lista: tanto o Estado como a sociedade civil estão atravessados pela luta de 
 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
classe. Os processos nunca são unívocos; a dialética é real, aberta, não pre- 
determinada. O Estado é instrumento (de uma classe) e, ao mesmo tempo, 
lugar de luta (pela hegemonia) e processo (de unificação das classes dirigen- 
tes). É possível tornar efetivos momentos de “contra-hegemonia”: “Um gru- 
po social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder 
governamental [...]; depois, quando exerce o poder [...], torna-se dominante 
mas deve continuar a ser também “dirigente” (CC, 5, 62-63)6. Começa-se 
pela “direção”, mas a plena explicitação da função hegemônica só ocorre 
quando a classe que chega ao poder “se torna Estado”: o Estado serve-lhe 
tanto para ser “dirigente” quanto para ser “dominante””. 
Poderia fazer ainda muitas outras citações, mas não me parece necessário 
insistir mais. É preferível, agora, investigar os possíveis pontos fracos desta 
concepção gramsciana do “Estado ampliado” e, finalmente, tentar avaliar 
sua validade hermenêutica na atualidade. 
Afirmou-se que Gramsci, em consegiiência desta sua decidida ênfase no 
papel do Estado na modernidade do século XX, corre o risco de cair, ou mes- 
mo efetivamente cai, numa concepção estatolátrica e/ou totalitária. Por exem- 
plo: podem surgir algumas perplexidades diante de afirmações como a de que 
não se deve entender por “polícia” somente aquela formalizada enquanto tal 
(CC, 3, 181-182) ou de que todo cidadão ativo é um funcionário estatal se 
“adere” e “elabora” o programa do Estado (CC, 3, 200). Na época em que 
estava em Túri, Gramsci tinha diante de si — como pólos opostos, mas, por 
motivos diversos, ambos fortemente presentes — dois Estados, dois tipos de 
Estado, que hoje sentimos, ainda que de modo muito diverso, como bem dis- 
tantes de nós: o Estado fascista, que o mantém prisioneiro, e o Estado sovié- 
tico, em cuja causa ele se reconhece. Decerto, sua reflexão é alimentada por 
contínuas referências às experiências históricas de ambos, tal como ele é 
capaz de compreendê-las. Não há dúvida de que ele interpreta algumas moda- 
lidades de atuação destes dois Estados de modo muito diverso de como as 
interpretamos hoje. De resto, está entre os primeiros a perceber como tam- 
bém nos Estados liberal-democráticos existem novos e importantes fenôme- 
nos de “organização das massas”, de regulamentação até mesmo coercitiva 
de seus modos de vida, de busca de um novo e forte “conformismo”, necessá- 
rio para o desenvolvimento da nova produção fordista. 
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
Ainda que com limitações, devidas precisamente à época histórica em 
que viveu e refletiu, Gramsci está também bastante atento às derrapagens 
totalitárias do Estado do século XX e aos perigos nesse sentido implícitos, 
em primeiro lugar, no próprio movimento comunista. Tomemos, por exem- 
plo, a famosa nota sobre “Estatolatria”: “Para alguns grupos sociais que, 
antes da elevação à vida estatal autônoma, não tiveram um longo período de 
desenvolvimento cultural e moral próprio e independente [...], um período 
de estatolatria é necessário e até oportuno: esta “estatolatria” é apenas a for- 
ma normal de “vida estatal”, de iniciação, pelo menos, à vida estatal autôno- 
ma e à criação de uma “sociedade civil” que não foi possível historicamente 
criar antes da elevação à vida estatal independente” (CC, 3, 279-280). O 
exemplo histórico dado por Gramsci se refere à sociedade medieval, mas não 
me parece difícil perceber aqui uma reflexão preocupada, ainda que com- 
preensiva,em face da Rússia soviética, daquele “Oriente” no qual a revolu- 
ção (a última, diz-nos Gramsci, de tipo oitocentista) vencera precisamente 
porque a sociedade civil era “primitiva e gelatinosa”. Após a tomada do 
poder, os bolcheviques sofreram a ação de retorno desta situação; e tentaram 
administrá-la recorrendo precisamente à estatolatria. Mas também este 
recurso prenuncia gravíssimas consegiiências. 
Gramsci, portanto, percebe todo o perigo de degenerescência no qual 
incorre o regime soviético. Estamos no início do stalinismo (Gramsci escreve 
esta nota em 1931-1932). Não se deve esquecer que ele já havia passado pela 
experiência do confronto de 1926, quando manifestou, nas famosas cartas 
enviadas a Moscou sobre a luta interna do grupo dirigente bolchevique, toda 
sua preocupação. Agora, nesta nota do caderno 8, Gramsci acrescenta: 
“Todavia, tal “estatolatria” não deve ser abandonada a si mesma, não deve, 
especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como “perpétua”: 
deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e se produzam novas 
formas de vida estatal” (CC, 3, 280). Para Gramsci, portanto, a estatolatria 
é compreensível de um ponto de vista histórico, ou seja, em função das con- 
dições em que ocorreu a revolução russa; mas não deve ser nem teorizada 
nem aceita sem que se ponham em movimento contratendências que tornem 
rapidamente possível dispensá-la. Um programa que, como se sabe, não foi 
seguido pela União Soviética. 
À questão da estatolatria em nível teórico nos remete à passagem que já 
havíamos mencionado brevemente antes: o perigo de totalitarismo não nas- 
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ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
ce da “identificação” de sociedade política e sociedade civil? Se elas são 
“uma mesma coisa”, se “sociedade civil e Estado se identificam na realidade 
dos fatos” (CC, 3, 47), se a sociedade civil “também é Estado, aliás, é o pró- 
prio Estado” (CC, 4, 85), como é possível evitar a estatolatria? Trata-se, na 
verdade, de expressões muito fortes. Provavelmente equivocadas, se tomadas 
ao pé da letra. Sabemos que Gramsci escreve os Cadernos como apontamen- 
tos; sabemos que frequentemente adverte o leitor (futuro e presumido) para 
a necessidade de que tais apontamentos sejam revistos, avaliados, talvez cor- 
rigidos, ou, em outras palavras, de que é necessário um esforço para apreen- 
der mais o “ritmo do pensamento em desenvolvimento” do que “os aforis- 
mos isolados” (CC, 4, 19). Este me parece ser precisamente um de tais casos. 
Não quero com isso dizer que tais afirmações sejam estranhas ao contex- 
to da reflexão gramsciana, mas sim que Gramsci — por ter feito uma anota- 
ção rápida ou por ter sido levado pelo ardor do espírito polêmico, já que 
estava lutando teoricamente contra os defensores da separação efetiva, 
“orgânica”, entre Estado e sociedade civil — reage com uma afirmação 
excessiva. Na realidade, para ele, a relação é dialética, indicando uma refe- 
rência e uma influência recíprocas entre as duas esferas. Na verdade, em 
todos os casos, como podemos ver nas citações apresentadas antes, Estado 
“propriamente dito” e “sociedade civil” são dois momentos distintos, não se 
identificam, mas estão em relação dialética, constituindo, em conjunto, O 
“Estado ampliado”. 
A esta simplificação, Gramsci é levado também, provavelmente, pela 
influência de algumas temáticas gentilianas, provenientes tanto do próprio 
Gentile como de sua escola. Em diversas passagens, o juízo de Gramsci sobre 
Gentile é muito crítico; o mesmo pode ser dito do seu juízo sobre os seguido- 
res de Gentile (Ugo Spirito e outros), que buscavam, na trilha aberta pela 
filosofia do mestre, fundamentar uma hipótese “corporativa” no âmbito do 
fascismo e em polêmica com os liberal-liberistas. Embora Gramsci ironize o 
verbalismo e a incompetência econômica da escola gentiliana, reconhece que 
a concepção do Estado de Gentile (uma noite na qual todos os gatos são par- 
dos, já que, para Gentile, “tudo é Estado”) abre caminho, pelo menos, para 
a superação de algumas unilateralidades de Croce, embora Gramsci também 
se inspire neste último: “Para Gentile — diz Gramsci —, a história é inteira- 
mente história do Estado; para Croce, ao contrário, é “ético-política”, vale 
183
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
dizer, Croce quer manter uma distinção entre sociedade civil e sociedade 
política. [Para Gentile], hegemonia e ditadura são indistiguíveis, a força é 
pura e simplesmente consenso: não se pode distinguir a sociedade política da 
sociedade civil: existe só o Estado” (CC, 1, 436-437). 
Como se pode ver, Gramsci discorda de ambas essas posições. Vimos, 
repetidamente, como em Gramsci existem tanto força como consenso; não 
há nele reductio ad unum. Por outro lado, não existe em Gramsci nem mes- 
mo aquela “distinção” adialética que se manifesta na “dialética dos distin- 
tos” de Croce. Entre Croce e Gentile, parece-me que Gramsci propõe uma 
“terceira via”: ele valoriza o momento ético-político de Croce (a hegemo- 
nia), ou o momento da sociedade civil, mas faz da sociedade civil uma parte 
do Estado (Estado ampliado). Temos, portanto, unidade e distinção entre 
sociedade política e sociedade civil. 
Concluo esse breve excurso sobre os textos gramscianos com uma adver- 
tência: à medida que avança na redação de seus Cadernos, Gramsci não 
renega, nem mesmo indiretamente, as reflexões nas quais me detive até ago- 
ra. Mas formula um modelo interpretativo do Estado cada vez mais dinâmi- 
co e processual. Já no caderno 13 está escrito: “A vida estatal é concebida 
como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis [...] entre 
Os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados” 
(CC, 3, 42). E, no caderno 15, lemos: “Estado é todo o complexo de ativida- 
des práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e man- 
tém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” 
(CC, 3, 331). “Equilíbrios instáveis” é uma expressão que traduz bem o sen- 
tido de luta. O Estado — volto a repetir — é ao mesmo tempo o terreno, o 
meio e o processo onde essa luta necessariamente se trava; mas os atores 
principais dessa luta são o que Gramsci chama de “classes fundamentais”. 
Para Gramsci, o “tornar-se Estado” dessas classes é um momento ineludível 
na luta pela hegemonia (como também o é o fato de dispor de um partido 
que sirva como portador de uma “concepção do mundo” precisa e alternati- 
va). Não é possível pensar num “protagonismo” dos intelectuais ou da socie- 
dade civil se tal protagonismo é afirmado sem que se levem em conta essas 
coordenadas essenciais. Isto em Gramsci — porque, obviamente, cada qual 
é livre para pensar hoje de modo diverso. 
184 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
Que validade têm hoje as categorias gramscianas? Ou, mais precisamente: 
elas ainda nos ajudam a compreender o que acontece hoje? Vou tomar um 
exemplo referido à Itália, mas com implicações que transcendem amplamen- 
te suas fronteiras: o fenômeno Berlusconi. 
A última década foi, na Itália, de um ponto de vista político, uma fase de 
grandes transformações. Assumiu relevância internacional, sobretudo, o 
“ingresso na política” de Silvio Berlusconi, inicialmente empresário da cons- 
trução civil, mais tarde tycoon televisivo. Surge a tentação de retratá-lo com 
as categorias de Max Weber: uma figura carismática à frente de uma demo- 
cracia plebiscitária. Mas as coisas não são assim tão simples. 
Apoiando-se em sólidos vínculos com algumas forças políticas, Berlus- 
coni obteve, na década de 1980, o desmantelamento da legislação italiana 
sobre a regulamentação da mídia televisiva, fazendo aprovar leis sob medida 
para seu próprio império de televisões privadas, em completo detrimento das 
televisões públicas, ou seja, estatais. Como afirma Gramsci numa passagem 
já citada, poder-se-ia dizer que “também o liberismo é uma “regulamentação”de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva” 
(CC, 3, 47), não fosse o fato de que Berlusconi ocupou imediatamente, no 
setor televisivo, uma posição monopolista (no campo privado) ou duopolis- 
ta. Diante da crise política dos partidos nos quais se apoiava (sobretudo o 
PSI de Craxi), Berlusconi decidiu ingressar pessoalmente na política. E ven- 
ceu (aqui não é possível explicar como e por quê), explorando os erros do 
seu adversário, ou seja, a esquerda. É hoje o chefe do governo italiano. 
Cabe recordar, contudo, que, em 1994, no início de sua aventura especi- 
ficamente política (mas, na realidade, Berlusconi fazia política havia muito 
tempo, redigindo leis, nomeando ministros, etc.), ele encaminhou sua ação 
com base na seguinte palavra de ordem: não à política, basta com a política, 
todo espaço à sociedade civil, deixem agir livremente os representantes da 
sociedade civil. A sociedade civil que Berlusconi tinha em mente era aquela 
antiestatista da “revolução neoliberal” do final dos anos 70, de Margaret 
Thatcher e Ronald Reagan, centrada essencialmente no mundo econômico. 
Mas boa parte do seu sucesso tornou-se possível, paradoxalmente, graças à 
“sociedade civil” segundo o conceito de Antonio Gramsci. Decerto, na épo- 
ca de Gramsci não existia a televisão. Mas, precisamente por isso, mais ain- 
da se evidencia sua extraordinária capacidade de previsão. 
185
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
Com efeito, nas últimas décadas, os processos de formação das consciên- 
cias ganharam uma expansão exponencial. Afirmou-se, com razão, que 
Berlusconi venceu, entre outras coisas, porque seus canais televisivos, nas 
últimas duas décadas, de modo paulatino, dia após dia, modificaram o pano- 
rama antropológico italiano, criando um novo “homem berlusconiano”, 
Isso não foi feito através dos telejornais e dos programas políticos — que cer- 
tamente não faltam em seus canais televisivos, apresentados e “ancorados” 
muitas vezes por jornalistas “de esquerda” —, mas sobretudo através de 
milhares de horas e horas de programas de entretenimento centrados nos 
pequenos problemas da vida cotidiana, no consumo acrítico, na necessidade 
de suprir um sentido de “comunidade” hoje perdido e ilusoriamente substi- 
tuído pela ágora televisiva. Como escrevia Gramsci na nota já citada sobre 
Hegel e o associacionismo, “o Estado tem e pede o consenso, mas também 
“educa” este consenso através das associações políticas e sindicais, que, 
porém, são oganismos privados” (CC, 3, 119). Hoje poderíamos, com 
linguagem gramsciana, reescrevê-la assim: o Estado tem e pede o consenso, 
mas também “educa” este consenso, antes de mais nada através das televi- 
sões, “designadas vulgarmente como privadas”, mas que são na realidade o 
principal sustentáculo político do partido de governo. E não só isso: o 
Estado, com suas televisões, “designadas vulgarmente como privadas”, cria 
um novo “senso comum”, do qual são expelidos a política, a participação, a 
vida em relação com os outros, o sentido de comunidade, o impulso à soli- 
dariedades. 
Creio que tal experiência não ocorreu só na Itália, mas também em 
outros países. Todavia, a Itália talvez seja hoje o caso mais evidente, mais 
emblemático de tal experiência, tendo em vista o curto-circuito simbólico 
que Berlusconi introduziu na imagem da presumida separação que existiria 
entre sociedade política e sociedade civil. 
Uma última observação a respeito do fenômeno Berlusconi. Ele já havia 
vencido as eleições em 1994, mas fora depois obrigado a passar à oposição 
em função da capacidade tático-política demonstrada pela aliança de centro- 
esquerda. Berlusconi aprendeu com a derrota. Começou dizendo não ter 
necessidade de um partido político propriamente dito, precisamente na 
medida em que pretendia ser expressão da sociedade civil. Mas compreen- 
deu, ao longo desses anos em que ficou na oposição, que uma coisa são os 
discursos eleitorais, outra é a realidade dos fatos. Seu movimento se tornou 
186 
 
 
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL 
um verdadeiro partido, recrutou políticos não só entre seus advogados, 
comercialistas e executivos (que, evidentemente, constituem para ele o cora- 
ção da sociedade civil), mas também e sobretudo entre os velhos políticos de- 
mocratas-cristãos e socialistas. Redescobriu a política, a tática, as alianças; 
agregou interesses. Esta redescoberta, juntamente com sua grande força nos 
meios de comunicação de massa, de criação do senso comum, ajudou-o em 
sua “desforra”. A “sociedade civil” — gramscianamente entendida como lu- 
gar de criação da hegemonia, de afirmação do senso comum, de formação 
das consciências, não contraposta à “sociedade política”, mas perfeitamente 
integrada com ela — permitiu a vitória de coalizão de centro-direita nas elei- 
ções italianas de 2001. 
Berlusconi tem hoje diante de si, na Itália, dois opositores. Por um lado, 
uma aliança política (“de centro-esquerda”) articulada, flexível, comprome- 
tida com as instituições, que é sem dúvida diversa da aliança de centro- 
direita em questões não secundárias da gestão política da sociedade e do 
Estado, mas que parece ter perdido sua capacidade — na atual e duríssima 
“guerra de posições” — de ser uma antítese real, radical e de conjunto ao 
neoliberalismo berlusconiano. E, por outro, uma aliança político-social que 
se afirma como “antítese” radical e global (embora no global), mas que pare- 
ce — tendo em vista seus instrumentos culturais e teórico-políticos, que 
implicam uma “guerra de movimento” midiática — ter renunciado previa- 
mente ao objetivo de “tornar-se Estado”, ou seja, de propor um desafio he- 
gemônico no nível da sociedade em seu conjunto. Ainda está por ser encon- 
trada uma síntese, potencialmente hegemônica, entre uma adequada articu- 
lação político-institucional bem aparelhada para a atual “guerra de posição” 
e uma vontade real e global de alternativa ao neoliberalismo. 
[Tradução de Carlos Nelson Coutinho] 
NOTAS 
! Recordo com prazer que a primeira vez foi aqui no Brasil, por ocasião de um seminário pro- 
movido pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em novembro de 1997, para o qual me soli- 
citaram uma intervenção sobre “O pensamento de Gramsci na época da mundialização” (in 
Educação em foco, vol. 5, nº 2, Gramsci 100 anos, Juiz de Fora, 2000-2001, p. 13-32). 
Também me é grato recordar que são em grande parte brasileiros os amigos e estudiosos com 
187 
 
 
LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE 
os quais discuti com frequência estes temas: Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio 
Nogueira, Luiz Sérgio Henriques. Com Carlos Nelson, cheguei mesmo a escrever, no final de 
2000, um artigo a quatro mãos sobre a sociedade civil em Gramsci e no debate teórico-político 
contemporâneo, que foi publicado na Itália (C. N. Coutinho e G. Liguori, “Metamorfosi di un 
concetto. La società civile in Gramsci e nel dibattito contemporaneo”, in Bollettino filosofico, 
Universitã della Calabria, nº 16, 2000, p. 330-344). 
2 Sobre a interpretação de Gramsci formulada por Bobbio em 1967, centrada no conceito de 
“sociedade civil”, bem como sobre o debate que tal interpretação provocou, permito-me reme-» 
ter a meu livro Gramsci conteso. Storia di un dibattito 1922-1996, Roma, Riuniti, 1996. 
3 Sobre este tema, remeto ao meu ensaio “Stato e societã civile da Marx a Gramsci”, in G, 
Petronio e M. P. Musitelli (orgs.), Marx e Gramsci. Memoria e atualitã, Roma, Manifestolibri, 
2001, p. 69-80. 
4 Cf. C. Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. 
5 A. Gramsci, Cartas do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 223-224. A 
tradução está modificada. 
6 No correspondente texto À (caderno 1, $ 44), Gramsci usa o termo “classe”, aqui substituí- 
do pela expressão “grupo social”. Essa substituição, à qual por vezes se atribuiu um significa- 
do teórico, parece-me — quando lemos todo o texto— absolutamente indiferente do ponto de 
vista conceitual. 
7 Gramsci fala frequentemente de “hegemonia” e de “ditadura”, mas caracteriza o primeiro 
termo no sentido de “direção”. Em CC, 5, 62, porém, “dominação” e “direção intelectual e 
moral” constituem a “supremacia de um grupo social”. Os termos “hegemonia” e “suprema- 
cia” não são inteiramente equivalentes. 
8 Não posso aqui me deter nos conceitos de “senso comum”, “ideologia” e “conformismo”, 
mas creio que também eles são instrumentos extremamente atuais e válidos do arsenal teórico 
gramsciano. 
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