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1 Beatriz Cavalcanti Regis Tratado de Pediatria + Simpósio LACCA Febre Reumática DEFINIÇÃO • É uma doença inflamatória que ocorre como manifestação tardia de uma faringotonsilite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes), em indivíduos geneticamente predispostos. • As manifestações da doença são variadas e acometem principalmente as articulações, o coração e o sistema nervoso central (SNC). • A agressão cardíaca pode causar lesões irreversíveis, sendo a cardiopatia reumática crônica (CRC) a principal causa de cardiopatia em menores de 25 anos. EPIDEMIOLOGIA • Doença reumática mais comum no Brasil. • Países desenvolvidos: 2 a 4 casos em 100.000 / Países em desenvolvimento: 80 casos em 100.000. • Acomete principalmente indivíduos entre 5 e 15 anos, de ambos os sexos. • Cerca de 15 a 20% de todas infecções de orofaringe são causadas pelo estreptococo, embora 30 a 40% sejam assintomáticas. QUADRO CLÍNICO • Manifestações clínicas surgem em média após um período de latência de 2 a 3 semanas após a infecção estreptocócica. • Para fazer o diagnóstico de FR, nem sempre se detecta a história de tonsilite e, apesar do nome, a FR nem sempre é acompanhada de febre ou de manifestações articulares. • Existe evidência genética e epidemiológica da infecção da pele como o evento que leva à febre reumática aguda. CRITÉRIOS MAIORES (5) • Artrite, cardite, coreia, nódulos subcutâneos e eritema marginado. ARTRITE • Presença de edema na articulação ou, na falta deste, pela associação de dor com limitação do movimento. • Forma mais frequente (75%): poliartrite→acomete as grandes articulações (joelhos, tornozelos, punhos, cotovelos e ombros) e, ocasionalmente, também as pequenas das mãos e pés. • Forma clássica: poliartrite migratória (em média, 6 articulações), com evolução assimétrica, permanecendo de 1 a 5 dias em cada articulação em um surto total que dura em média 1 a 3 semanas. • Não é comum um grande aumento do volume ou eritema, mas a dor aos movimentos é intensa e, às vezes, incapacitante. • Durante a evolução, enquanto a artrite atinge o máximo de sua sintomatologia em uma articulação, ela está apenas começando em outra ou outras, dando a impressão de que a artrite está migrando. • Monoartrite é rara, mas pode ser vista em crianças que recebem anti-inflamatórios não hormonais (AINH) precocemente. • Há uma rápida resposta aos AINH, que em 24 horas fazem cessar a dor, e em 2 a 3 dias as demais reações inflamatórias → NÃO prescrever AINH nos primeiros dias de artrite em casos duvidosos! • Cerca de 30% dos pacientes apresentam quadros articulares atípicos, como monoartrite, artrite aditiva, maior duração dos sintomas, presença de rigidez matinal e má resposta aos AINH. • Artrite surge após 1-3 semanas da infecção; dura de 2-5 dias em cada articulação; melhoram após 1 mês mesmo sem tratamento. • Artrite: edema articular isoladamente OU 2 dos 3 critérios: 1. Dor à palpação da articulação; 2. Dor à movimentação da articulação; 3. Limitação de movimento. • “Dor desproporcional ao exame físico”: não se vê tanto líquido na articulação da criança, mas há muita dor, podendo até não conseguir andar. ✓ Ocorre na Febre Reumática, Púrpura de Henoch-Schonlein (vasculite por IgA), Artrite Idiopática Juvenil (AIJ), leucemias e linfomas (neoplasias). • Articulação com edema, calor e rubor → artrite séptica. • Principal causa de monoartrite: artrite séptica. • Poliartralgia e monoartrite séptica são manifestações maiores do alto risco. CARDITE (ÚNICA Q UE DEIXA SE Q UELA S) • É a complicação mais grave e pode vir isolada ou associada a outros critérios maiores. • Costuma ser diagnosticada nas 3 primeiras semanas da fase aguda. • Pode apresentar-se como pancardite. Porém a característica diagnóstica é a endocardite (sopro audível em 40-50%). 2 Beatriz Cavalcanti Regis Tratado de Pediatria + Simpósio LACCA • Cardite silenciosa ou subclínica: ausência de sopro e de alterações eletrocardiográficas, na presença de alterações ecocardiográficas definidas. • Valvas mais acometidas: mitral e aórtica. • Durante o surto agudo, a lesão mais frequente é a regurgitação mitral, mas, diferentemente da regurgitação aórtica, tem maior tendência de regressão total ou parcial. • Na fase crônica, ocorrem as lesões estenóticas. • A evolução da cardite dura em média 1 a 3 meses. • O sopro desaparece em 70% dos casos, mas em 30% surgirão sequelas, como a cardiopatia reumática crônica. • Endocárdio: valvulite → regurgitação da valva mitral e/ou aórtica. • Podem ser assintomáticos ou sintomáticos (palpitações, dispneia e IC). COREIA • Tem maior período de latência do que outros critérios maiores, variando de 1 a 6 meses; por isso, a evidência da estreptococcia prévia pode não ser detectada. • As manifestações clínicas instalam-se de maneira insidiosa, geralmente em um período de 1 a 4 semanas → presença de sintomas comportamentais (hiperatividade, desatenção, labilidade emocional e até tiques e transtorno obsessivo-compulsivo) e movimentos rápidos, incoordenados, arrítmicos e involuntários. • Podem ser acompanhados de hipotonia muscular, que pode ser mais intensa que a hipercinesia e configurar o quadro de “coreia mole”. • Os movimentos são mais facilmente observados na face e nas extremidades distais dos membros. • O paciente não fica quieto quando se pede que olhe ou estenda os braços à frente do corpo ou acima da cabeça. • O acometimento da musculatura bucofaríngea pode dar origem a distúrbios da fala (disartria) e da deglutição (disfagia). • Os movimentos são exacerbados por estresse, esforço físico e cansaço e desaparecem com o sono. • A coreia é uma condição autolimitada cuja evolução varia em média de algumas semanas a 6 meses, com média de 3 meses. • Alguns casos evoluem por mais de 6 meses e são denominados coreia crônica. • Classicamente, não deixa sequelas. NÓDULOS SUBCUTÂNEOS • 2 a 5% dos casos, geralmente em pacientes com cardite grave. • São estruturas arredondadas, de consistência firme, indolores, de distribuição simétrica, em diferentes tamanhos (0,5 a 2 cm) e em número variável, podendo chegar a dezenas. • A pele que os recobre é normal. • Localizam-se em superfícies extensoras das articulações como cotovelos, joelhos, metacarpofalângicas, interfalângicas, em proeminências ósseas do couro cabeludo, escápula e coluna. • Geralmente, de aparecimento tardio em relação às outras manifestações (após algumas semanas do surto agudo). • Evolução, em geral, que dura de 1 a 2 semanas, raramente mais de 1 mês, sobretudo quando se inicia corticoterapia para a cardite. ERITEMA MARGINADO • Bastante raro (1-3%) e associado a cardite. • Surge geralmente no início da doença como máculas circulares, ovaladas, róseas, que se expandem centrifugamente, deixando uma área central clara, com margem externa serpiginosa bem delimitada e contornos internos mal definidos. • Não é pruriginoso e tem duração transitória (minutos a horas), podendo aparecer em alguns dias e desaparecer em outros. • Pode persistir ou recorrer durante meses, mesmo quando outras manifestações clínicas e laboratoriais já cessaram. CRITÉRIOS MENORES (4) • Febre, artralgia, aumento do espaço PR no ECG e aumento dos reagentes de fase aguda (VHS e PCR). FEBRE • Geralmente está presente quando há artrite e acompanha-se de mal-estar, prostração e palidez. • Pode ser alta (38 a 39°C), mas diminui com o passar dos dias, podendo durar 2 a 3 semanas e desaparecer mesmo sem tratamento. • Resposta aos AINH é muito rápida. 3 Beatriz Cavalcanti Regis Tratado de Pediatria + Simpósio LACCA ARTRALGIA • Dor articular sem limitar os movimentos. • Só pode ser contada comocritério menor na ausência de artrite. • Poliartralgia migratória, assimétrica e envolvendo grandes articulações. • Artralgia: dor difusa articular (mal localizada). INTERVALO PR • Aumento do espaço PR no ECG não é específico de FR; pode estar presente na FR com e sem cardite, mas também pode existir em pessoas saudáveis. • Solicitar em todos os pacientes com suspeita de FR e repetir para registrar o retorno à normalidade. REAGENTES DE FASE AGUDA • Aumento de VHS e PCR → resposta inflamatória do organismo, que pode surgir em qualquer condição infecciosa ou imunoinflamatória. EVIDÊNCIA DE ESTREPTOCOCCIA PRÉVIA • Diagnóstico de FR → comprovação de uma infecção estreptocócica recente, seja por história de escarlatina ou por comprovação laboratorial: cultura de orofaringe positiva para Streptococcus pyogenes ou presença de elevados títulos de anticorpos antiestreptocócicos, como a antiestreptolisina O (ASLO) e a anti-DNase. • Padrão-ouro: cultura positiva. Mas como existe um período de latência de 7 a 21 dias (2 a 3 semanas) antes do início dos sintomas e, muitas vezes, o paciente já usou antibióticos, a cultura frequentemente é negativa no momento dos sintomas de FR. • No momento do diagnóstico da amigdalite → Cultura ou Teste rápido para detecção de antígeno estreptocócico. • No momento da suspeita de FR → anticorpos ASLO e anti-DNase B. ✓ Repetir com 15 dias para ver se o título se ASLO continua em ascensão. Se em ascensão, evidência de infecção recente. Se decaindo, infecção antiga, sendo difícil dizer se os sintomas são de FR. ✓ Brasil: considera-se reagente ASLO com título ≥ 320U. ✓ Na dificuldade de se repetir a dosagem com 15 dias, pode-se considerar o diagnóstico de infecção recente se ASLO ≥ 640UI/mL (normalmente, na prática, são títulos entre 800 e 1.000). ❖ Somente 50% dos pacientes referem tonsilite prévia. ❖ A cultura de orofaringe só é positiva em 20% dos casos. ❖ Testes rápidos de detecção de estreptococo são menos sensíveis que a cultura. ❖ Culturas positivas podem indicar apenas estado de “portador”, e não infecção. ❖ Somente 80% dos casos têm elevação da ASLO. ❖ ASLO começa a se elevar na primeira semana após a infecção estreptocócica, alcança o máximo em 3 a 4 semanas e demora meses para retornar ao normal. ❖ Os títulos de ASLO não têm relação com a gravidade da FR. ❖ Nem toda ASLO alta significa infecção recente, pois caem lentamente ao longo dos meses (em geral, 3 meses), podendo persistir por anos. ❖ Uma curva de níveis ascendentes de ASLO é indicativa de infecção. FEBRE REUMÁTICA POSSÍVEL • Diagnóstico duvidoso: é razoável considerar 12 meses de profilaxia secundária seguida de reavaliação com uma história e exame físico cuidadosos, além de ECO seriado. • Se não teve cardite no primeiro surto, a chance de ter cardite na recorrência de FR é baixa. Já se teve cardite no primeiro surto, pode ocorrer lesão cardíaca mais grave numa recorrência. • Paciente com sintomas articulares recorrentes mesmo fazendo a profilaxia secundária + dosagem de ASLO não reagente → é provável que não seja FR. DIAGNÓSTICO • Baseado nos critérios de Jones (2015). • Diagnóstico do primeiro surto: presença de 2 critérios maiores ou de 1 critério maior e 2 menores + evidência de infecção estreptocócica prévia (critério obrigatório). • Diagnóstico de recorrência: presença de 2 critérios maiores ou 1 critério maior e 2 menores ou 3 critérios menores + evidência de infecção estreptocócica prévia (critério obrigatório). • Não basta preencher critério, importante também o diagnóstico diferencial → poliartrite + febre + aumento de prova de fase aguda (dengue ou chikungunya). • A raridade de outras etiologias para coreia torna a sua presença quase um sinônimo de FR, mesmo na ausência de outros critérios ou da comprovação de estreptococcia prévia. 4 Beatriz Cavalcanti Regis Tratado de Pediatria + Simpósio LACCA • Na cardite indolente, as manifestações clínicas iniciais são pouco expressivas e geralmente, quando o paciente procura o médico, as manifestações cardíacas podem ser a única manifestação clínica, já com exames de fase aguda e títulos de ASLO normais. CRITÉRIOS DE JONES (2015) DIANÓSTICO DIFERENCIAL • Eritema marginado: reação a drogas. • Nódulos subcutâneos: AIJ, LESJ e eritema nodoso (este último, pode se associar a FR, porém é raro). • Coreia: tiques, coreia do LESJ e síndrome do anticorpo antifosfolípide. RECOMENDAÇÃO DO LANCET TRATAMENTO • Objetivos: erradicar o estreptococo que ainda pode estar presente e tratar as manifestações clínicas da doença. ERRADICAÇÃO DO ESTREPTOCOCO • Todas as formas de apresentação da FR devem ser tratadas com antibióticos → penicilina G benzatina (droga de escolha); eritromicina (em caso de alergia às penicilinas); clindamicina e azitromicina (em caso de alergia à eritromicina). ARTRITE • Ácido acetilsalicílico (AAS) – não se usa mais, somente para Kawasaki: 80 a 100mg/kg/dia (máximo de 3g/dia), 6/6h ou 8/8h. • Antes de introduzir AINH, é importante avaliar função hepática e renal. • Naproxeno é o ideal – 10 e 20 mg/kg/dia, 12/12h, com duração similiar ao AAS. • Paciente responde com 3 a 4 dias de tratamento → desapareceu os sintomas, suspende. • Corticoesteroides não estão indicados na artrite isolada! CARDITE • Tratar manifestação clínica. • Corticoesteroides (prednisona) – 1 a 2 mg/kg/dia (máximo de 60mg), por via oral ou o equivalente por via endovenosa. ✓ Não há evidência de que o uso melhore o prognóstico da lesão valvar. Seu uso na cardite moderada a grave, assim como naqueles que cursam com pericardite, tem por objetivo a redução do tempo de evolução do quadro de cardite, bem como uma melhora no processo inflamatório. ✓ A dose plena deve ser mantida nas 2 a 3 primeiras semanas, podendo ser fracionada em 2 ou 3 vezes/dia. ✓ Procede-se à redução das doses em 20% a cada semana, administradas em dose única pela manhã. ✓ Em casos graves, pode ocorrer uma resposta anti-inflamatória mais rápida e eficaz com o uso de metilprednisolona por via endovenosa, nas doses correspondentes às utilizadas por via oral ou superiores. • Se associação com artrite, os AINH são desnecessários. COREIA • Resolução espontânea em 1 a 6 meses. • As drogas mais utilizadas são o haloperidol, o ácido valproico e a carbamazepina. 5 Beatriz Cavalcanti Regis Tratado de Pediatria + Simpósio LACCA ✓ Haloperidol: 1 a 2 mg/dia, 2x/dia (máximo de 4mg/dia). ✓ Ácido Valproico: 20 a 40 mg/kg/dia, 3 a 4x/dia. ✓ Carbamazepina: varia entre 7 e 20 mg/kg/dia. • Prednisona por 1 mês: ✓ 1 mg/kg/dia – 3x/dia por 1 semana ✓ 1 mg/kg/dia – 1x/dia por 1 semana - Redução em 2 semanas • Se estiver utilizando corticoide para coreia ou cardite, não precisa introduzir AINH para artrite. • A redução das doses deve ser iniciada após 3 semanas de ausência de sintomas. REPOUSO • Repouso hospitalar ou domiciliar por um período inicial de 2 semanas (na artrite é difícil devido a melhora rápida com a medicação). • Cardite moderada ou grave: repouso de 4 semanas e o retorno às atividades habituais deve ser gradual, baseado na melhora clínica e laboratorial. • Coreia de grande intensidade ou com muita hipotonia: repouso é proporcional às manifestações clínicas. PREVENÇÃO PROFILAXIA PRIMÁRIA • Controle e tratamento das tonsilites estreptocócicas de toda a população, já que não se sabe qual indivíduo é predisposto. ✓ Diagnóstico sugestivo de tonsilite estreptocócica: sintomas agudos de febre, dor de garganta e linfonodos cervicais anteriores aumentados e dolorosos. Obs.: Tosse, rouquidão e coriza → sugestivas de infecção viral e não necessitam de antibióticos. ✓ Tratamento de casos suspeitos: PB em dose única.✓ O Ministério da Saúde normatizou o uso de PB em toda a rede de saúde, determinando que todo paciente permaneça em observação por 30 minutos após a aplicação da injeção na unidade de saúde. ✓ Importante pedir uma cultura de orofaringe → dependendo do laboratório, sai com 72h. ✓ Se tiver teste rápido no consultório, entre 5 e 15 min sai o teste. ✓ Se instituir o tratamento adequado em até 9 dias dos sintomas de amigdalite, evita que a criança tenha FR. PROFILAXIA SECUNDÁRIA • Risco de recorrência de FR no 1º ano (50%) e após 5 anos (10%). • Impede uma nova estreptococcia no indivíduo que já teve um surto de FR. DURAÇÃO DA PROFILAXIA SECUNDÁRIA COM PB • Depende da: idade, intervalo de tempo depois do último surto, presença de cardite no surto inicial, número de recidivas, condição social e gravidade da cardiopatia reumática residual.
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