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2018 Estética E artE Profª. Brigitte Grossmann Cairus Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Profª. Brigitte Grossmann Cairus Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. C136e Cairus, Brigitte Grossmann Estética e arte. / Brigitte Grossmann Cairus – Indaial: UNIASSELVI, 2018. 239 p.; il. ISBN 978-85-515-0196-2 1.Arte – Brasil. 2.Estética – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 701.17 III aprEsEntação Caro acadêmico! Como podemos refletir sobre as emoções produzidas pelos objetos que admiramos? Por que será que a arte sempre existiu durante a história da humanidade, e quais foram as principais influências estéticas no ocidente? Ao longo desta disciplina, compreenderemos que a arte reside, basicamente, na habilidade humana de abstrair o pensamento e interpretar o mundo em sua volta de maneira criativa e simbólica. Na primeira unidade deste livro, você será capaz de definir a estética da arte como uma disciplina da filosofia que estuda todas as manifestações artísticas. Compreenderá também como, em termos de conceitualização da música, há várias abordagens possíveis, dentre elas a abordagem mais conservadora, a estruturalista e a fenomenológica. Compreenderá como a essência do que é considerado belo, feio e sublime foi definida pelos filósofos de várias maneiras e se tornou a principal preocupação dos esteticistas. Ao mesmo tempo, entenderá como a história da arte tem sido, em termos conceituais, até a contemporaneidade, um conflito entre a forma e a matéria. De um modo geral, as artes do mundo ocidental foram influenciadas principalmente pela arte dos gregos. Assim, na segunda unidade deste livro, você conhecerá as origens históricas da estética clássica ocidental e, mais precisamente, a origem do classicismo na arte e na arquitetura grega e romana. Compreenderemos como a apreciação pelo tratamento ideal do corpo, tanto entre os gregos como romanos, inspirou os pintores renascentistas na Europa a retratarem os nus clássicos, como a herança clássica foi novamente reacendida durante o Neoclassicismo e como esta permanece velada até os dias de hoje, na contemporaneidade. Por fim, estudaremos, ao fim da segunda unidade, um pouco acerca da natureza histórica e estética da música clássica, que designou uma idade de ouro da música entre os séculos dezessete e dezenove. Na terceira unidade, você estará apto para compreender, com o advento da modernidade, a trajetória filosófica da estética artística no ocidente e as concepções estéticas e seus impactos na história da arte a partir do pensamento dos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos, como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Johann Christoph Friedrich von Schiller, Friedrich Wilhelm Nietzsche, Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Hans-Georg Gadamer e Gilles Deleuze. Bons estudos e ótimas descobertas! Professora Brigitte Grossmann Cairus IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 – ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA ......................... 1 TÓPICO 1 – CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA....................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 A NATUREZA DA ARTE: DEFINIÇÕES, CONCEITOS E TEORIAS ....................................... 6 2.1 O CONCEITO CLÁSSICO DA ARTE ........................................................................................... 8 2.2 O CONCEITO DAS BELAS ARTES .............................................................................................. 10 2.3 ARTE COMO IMITAÇÃO .............................................................................................................. 12 2.4 A IDEIA DE MIMESES DE PLATÃO ............................................................................................ 14 2.5 ARTE COMO FORMA E CRIAÇÃO ............................................................................................. 17 2.6 CLIVE BELL E A ABSTRAÇÃO DE VANGUARDA ................................................................. 18 2.7 ARTE COMO EXPRESSÃO ............................................................................................................ 19 2.8 ARTE COMO ABSTRAÇÃO OU IDEIA ...................................................................................... 20 2.9 ARTE COMO “SEMELHANÇA FAMILIAR” ........................................................................... 21 2.10 A TEORIA INSTITUCIONAL DA ARTE ................................................................................... 21 2.11 TEORIAS ESTÉTICAS DA ARTE ............................................................................................... 22 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 24 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 25 TÓPICO 2 – ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA .................................................................................... 27 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 27 2 CARACTERÍSTICAS DA ARTE ....................................................................................................... 28 2.1 A INCERTEZA DA ARTE .............................................................................................................. 28 3 DEFINIÇÃO DE ESTÉTICA ............................................................................................................... 28 3.1 DEFINIÇÃO DE ARTE NA ESTÉTICA ........................................................................................ 29 3.2 ARTE, ESTÉTICA, ÉTICA E FILOSOFIA ..................................................................................... 30 3.3 ANÁLISE ESTÉTICA DAS OBRAS DE ARTE ............................................................................. 32 4 A ESTÉTICA NA MÚSICA ................................................................................................................. 33 4.1 O CONCEITO DAMÚSICA .......................................................................................................... 34 4.2 A ONTOLOGIA DA MÚSICA ....................................................................................................... 36 4.3 FORMA E PERCEPÇÃO NA ESTÉTICA MUSICAL ................................................................. 37 4.4 SIGNIFICADO DA MÚSICA ......................................................................................................... 38 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 39 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 40 TÓPICO 3 – O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA ....................................................... 41 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 41 2 A BELEZA NA ESTÉTICA .................................................................................................................. 42 2.1 DEFINIÇÃO DA BELEZA NA ARTE ........................................................................................... 44 2.2 TEORIAS DA BELEZA ................................................................................................................... 47 3 O FEIO E O SUBLIME ......................................................................................................................... 54 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 63 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 67 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 68 sumário VIII UNIDADE 2 – RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS ..................................................................................................... 69 TÓPICO 1 – ORIGENS DO CLASSICISMO ..................................................................................... 71 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 71 2 O QUE É O CLASSICISMO? O QUE É O NEOCLASSICISMO? ............................................... 73 2.1 CARACTERÍSTICAS DO ESTILO CLÁSSICO ............................................................................ 75 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 83 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 84 TÓPICO 2 – O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA ............................... 85 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 85 2 O ESTILO ARCAICO GREGO .......................................................................................................... 89 3 O ESTILO CLÁSSICO E A ESTÉTICA DA ARTE GREGA ......................................................... 94 4 A NARRATIVA NA ARTE GREGA .................................................................................................. 99 5 REPRODUÇÕES MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS .........................................................102 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................105 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................106 TÓPICO 3 – O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA ................................107 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................107 2 O CLASSICISMO ROMANO NO REINADO DE AUGUSTO .................................................109 3 O COLAPSO ROMANO E O RENASCIMENTO DA ESTÉTICA CLÁSSICA NO SÉCULO XIV NA EUROPA ..............................................................................................................123 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................126 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................127 TÓPICO 4 – A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA .....................................................................129 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................129 2 FORMA MUSICAL ............................................................................................................................130 3 MÚSICA COMO ARTE ABSTRATA ..............................................................................................131 4 FORMALISMO MUSICAL ...............................................................................................................132 5 BELEZA, PRAZER SUBLIME E SENSUAL NA MÚSICA ..........................................................134 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................137 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................141 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................142 UNIDADE 3 – ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA ................................................143 TÓPICO 1 – ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER ............................145 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................145 2 IMMANUEL KANT E O JULGAMENTO ESTÉTICO ................................................................148 2.1 KANT E A ESTÉTICA NA MÚSICA ..........................................................................................158 3 GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL E O VALOR DA ARTE ...........................................159 4 FRIEDRICH SCHILLER E A EDUCAÇÃO ESTÉTICA ..............................................................164 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................172 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................174 IX TÓPICO 2 – ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY ....................................................................................................175 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................175 2 NIETZSCHE E O ARTISTA ..............................................................................................................176 2.1 DIONISÍACO E APOLÍNEO ........................................................................................................177 2.2 O DESEJO DE PODER ..................................................................................................................181 3 OS TRÊS PILARES DA ESTÉTICA DE HEIDEGGER ...............................................................187 4 MERLEAU-PONTY E A HISTORICIDADEDA ARTE .............................................................194 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................206 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................209 TÓPICO 3 – ESTÉTICA E A CONTEMPORANEIDADE: GADAMER E DELEUZE ..............211 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................211 2 GADAMER E A SUBSTÂNCIA DA SUBJETIVIDADE ESTÉTICA ........................................212 2.1 A EXPERIÊNCIA DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE ................................................217 2.2 JOGO E ARTE .................................................................................................................................218 2.3 O FESTIVAL ....................................................................................................................................220 2.4 O SÍMBOLO ....................................................................................................................................222 3 GILLES DELEUZE E O DOMÍNIO TRANSCENDENTAL DA SENSIBILIDADE ...............223 3.1 DELEUZE E AS ARTES .................................................................................................................224 3.2 PERCEPTOS E AFECTOS .............................................................................................................226 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................227 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................229 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................231 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................233 X 1 UNIDADE 1 ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de: • compreender o conceito de arte, de estética e a relação no contexto social, histórico e cultural; • compreender a estética na música; • aprender as especificidades conceituais acerca do belo, do feio e do sublime na arte. Esta unidade está dividida em três tópicos. Em cada um deles, você encontrará autoatividades que o ajudarão a fixar os conhecimentos adquiridos. TÓPICO 1 – CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA TÓPICO 2 – ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA TÓPICO 3 – O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 1 INTRODUÇÃO A palavra arte vem do latim ars, que significa o “ato de fazer”. A arte, para os gregos, significava o domínio, para o ser humano, de uma ou mais técnicas. Temos o costume de usar a palavra arte para a ideia de saber fazer algo bem feito, por exemplo, a arte da guerra, a arte da política, a arte de cozinhar etc. Assim, a arte, quando empregada no domínio das artes visuais, do teatro, dança e da música, em sua definição primeira, incorpora o domínio técnico e a habilidade de fazer a obra que será admirada, seja ela uma canção, uma escultura, uma poesia, uma coreografia ou uma pintura. Entretanto, a definição é apenas a “ponta do iceberg”, pois o termo arte engloba vários conceitos e interpretações diferentes. Historicamente, de início, a arte teve uma função ritual e mágico-religiosa, que foi sofrendo alterações com o passar do tempo. Na civilização ocidental, por exemplo, a arte teve uma função religiosa até o período da Idade Média. Com o Renascimento italiano, em finais do século XV, começa a haver a distinção entre a razão e a fé, e a arte começa a ter uma função mais estética do que religiosa. No período, o artesanato também passa a ser distinto das belas artes. O artesão é aquele que se dedica à produção de obras múltiplas, ao passo que o artista é quem cria obras únicas. Já a classificação utilizada na Grécia antiga incluía seis ramos dentro da própria arte: a arquitetura, a dança, a escultura, a música, a pintura e a poesia (literatura). Mais recentemente, houve a inclusão do cinema como sendo a sétima arte e a fotografia como a nona. Seja como for, a definição do termo “arte” varia conforme a época e a cultura, e é um reflexo da maneira criativa como o ser humano vive, pensa, sente e acredita em determinada época. A estética é uma ciência que irá decifrar todas as mudanças conceituais e teóricas da arte ao longo do tempo, bem como analisar a relação existente entre a arte e o homem. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 4 Entretanto, o que será que determina o fazer artístico? Trata-se de uma dinâmica intensa, que envolve três importantes elementos intrinsicamente ligados ao artista: sua personalidade, o contexto histórico-cultural e as influências recebidas pelo meio ambiente em que vive. Para Gallo (1997), o próprio artista determina a funcionalidade de sua obra. Vejamos agora algumas definições de artistas e intelectuais famosos a respeito da arte, segundo Herman (2014), para tentarmos abarcar um pouco da complexidade do universo conceitual. Ao final de cada citação, você encontrará o nome do artista, o período em que ele viveu e a fonte da citação. • Arte como imitação ou criação: - “O artesão sabe o que ele quer fazer antes mesmo de começar, mas a confecção de uma obra de arte é um negócio estranho e arriscado, no qual o fabricante nunca sabe exatamente o que ele está fazendo até que ele faça”. R. G. Collingwood (1889-1943), filósofo inglês, The Principles of Art (1938). - “A arte ou é plagiária, ou é revolucionária”. Paul Gauguin (1848-1903), artista francês nascido no Peru, citado em Huneker, The Pathos of Distance (1913). • Arte cria beleza ou harmonia: - “Preenchendo um espaço de uma maneira bonita. Isso é o que a arte significa para mim”. Georgia O'Keeffe (1887-1986), pintora americana, em Art News, dezembro de 1977. - “A arte é harmonia”. Georges Seurat (1859-1891), pintor francês, carta para Maurice Beaubourg (1890). • Arte como algo que revela a verdade essencial ou escondida: - “A arte não reproduz o visível, em vez disso, torna (algo invisível em) visível”. Paul Klee (1879-1940), pintor suíço, The Inward Vision (1959). - “Todos sabemos que a arte não é verdade. A arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”. Pablo Picasso (1881-1973), pintor espanhol, citado em Picasso on Art, de Dore Ashton (1972). • Arte como um pensamento expressado através da forma (ou não): - “As ideias sozinhas podem ser obras de arte. Todas as ideias não precisam ser concretizadas. Uma obra de arte pode ser entendida como uma ponte entre a mente do artista para o espectador. Mas talvez a obra de arte nunca possa chegar ao espectador, ou talvez nunca saia da mente do artista”. Sol LeWitt (1928-2007), artista americano, "Sentenças na arte conceitual", em Arte e Significado, editado por Stephen David Ross (1994). TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 5 • Arte como uma fonte de calma em um mundo caótico: - “A arte tem algo a ver com a conquista da quietude no meio do caos”. Saul Bellow (1915-2005), romancista americano, em George Plimpton, Writers at Work, terceira série (1967). • Arte como fenômeno político: - “ Não acho que a arte seja elitista ou misteriosa. Não creio que ninguém possa separar a arte da política. A intenção de separar a arte da política é em si mesma uma intenção muito política”. Ai Weiwei (1957-), artista chinês, "Shame on Me", em Der Spiegel, 21 de novembro de 2011. • Arte como autoexpressão ou autobiografia: - “O que é arte? A arte cresce fora da tristeza e alegria, mas principalmente, do sofrimento. Nasceda vida das pessoas”. Edvard Munch (1863-1944), artista norueguês, em Edvard Munch: The Man and His Art, de Ragna Stang (1977). - “Toda a arte é autobiográfica; a pérola é a autobiografia da ostra”. Federico Fellini (1920-1993), diretor de cinema italiano, no Atlantic Monthly, dezembro de 1965. • Arte como comunicação de sentimentos: - “Evocar em si mesmo um sentimento que experimentou, e então, por meio de movimentos, linhas, cores, sons ou formas expressas em palavras, para transmitir esse sentimento - esta é a atividade da arte”. Leon Tolstoi (1828- 1910), autor russo, em O que é arte? (1890). • Arte como vício: - “A arte é uma droga formadora de hábitos”. Marcel Duchamp (1887-1968), artista norte-americano de origem francesa, citado em Richter, Dada: arte e antiarte (1964). • Arte como uma tentativa de se obter a imortalidade: - “A arte é uma revolta, um protesto contra a extinção”. André Malraux (1901- 1976), romancista, ensaísta e crítico de arte francês, Les Voix du silence (1951). • Arte como aquilo que é exibido em um museu ou galeria: - “[Em 1917, Marcel Duchamp, usando o pseudônimo R. Mutt, submeteu um urinol comprado na loja, que intitulou “Fonte”, para uma exposição de arte]. Se o Sr. Mutt, com suas próprias mãos, fez o tal urinol ou não, isso pouco importa. Ele fez a escolha. Ele tomou um objeto comum, do nosso cotidiano, colocou-o (em UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 6 um museu) de modo que seu significado útil desapareceu sob um novo título e ponto de vista (e) criou um novo pensamento para o objeto”. Marcel Duchamp, Beatrice Wood e Henri-Pierre Roché, The Blind Man, 2ª edição (maio de 1917). - “Se uma declaração geral pode ser feita sobre a arte dos nossos tempos, é que, por um lado, o antigo critério do que uma obra de arte deveria ser foi descartado em favor de uma abordagem dinâmica na qual tudo é possível”. Peter Selz (1919), historiador de arte americano de origem alemã, Art in Our Times (1981). A arte, como vimos a partir das definições anteriores, é um tema complexo, que merece ser adensado em suas teorias, definições e concepções históricas. Vamos agora explorar um pouco mais o tema nos estudos desta unidade. 2 A NATUREZA DA ARTE: DEFINIÇÕES, CONCEITOS E TEORIAS “Realmente não existe a arte como tal. Há apenas artistas”. (Gombrich, 1984, p. 4) A observação de Gombrich sugere que a arte não existe por si própria, mas é algo que os artistas fazem. Os vários exemplos utilizados para ilustrar determinada opinião – a cerâmica, a arquitetura, a pintura, as instalações contemporâneas, a arte performática, a fotomontagem e escultura – têm um status estético. Em outras palavras, o rótulo "arte" conecta objetos, práticas e processos muito diferentes. Reconhecendo a diversidade, várias categorias foram feitas dentro de definições de arte visual. Assim, podemos propor um conjunto geral de diretrizes para entender como a arte é definida. As belas artes têm sido tradicionalmente utilizadas para distinguir as artes promovidas pela academia, incluindo a pintura, o desenho, a escultura, o artesanato. Este último normalmente se refere aos trabalhos criados para uma função, como cerâmica, joalheria, têxtil, bordado e vidro, designados como artes decorativas. A distinção não se aplica tão fortemente na arte contemporânea, a qual apresenta uma variedade de materiais que são utilizados, incluindo, por exemplo, a cerâmica na obra de Grayson Perry (1960) e os bordados nas ilustrações de Izziyana Suhaini (1986). TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 7 FIGURA 1 – AS CERÂMICAS DE GRAYSON PERRY – ARTE EM CERÂMICA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.compin/29266367 5762438130/>. Acesso em: 25 jul. 2017. As formas e o conteúdo de Perry são sempre incongruentes: as cerâmicas clássicas carregam memórias de sua triste infância, frisos de carros-naufrágios, celulares, supermodelos, bem como cenas mais escuras e literárias, geralmente com referências autobiográficas. FIGURA 2 – AS ILUSTRAÇÕES BORDADAS DE IZZIYANA SUHAINI FONTE: Disponível em: <http://blog.oysho.com/en/izziyana-suhaimi- embroidered-illustrations/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Izziyana Suhaina argumentava que o trabalho dela explorava as evidências da mão e do tempo. Era um ato quieto e silencioso, e cada ponto representava um momento do passado. A construção de pontos se tornava então uma representação do tempo e o trabalho final era como uma manifestação física do tempo – um objeto de tempo. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 8 Cada ponto também era uma gravação dos pensamentos e emoções do criador. A artista apreciava a dualidade do bordado em seus movimentos de esfaquear, cortar, cobrir, construir, reparar, desmontar. Cada ponto feito parecia revelar e conter uma história ao mesmo tempo. Há, no entanto, ainda uma diferenciação entre os objetos feitos com uma função específica em mente (as preocupações técnicas e relacionadas ao design são primordiais) e aqueles que são feitos principalmente para exibição em museus ou galerias de arte. Uma definição mais ampla de arte engloba as atividades que produzem obras com valor estético, incluindo a realização de filmes, performance e arquitetura. Por exemplo, a arquitetura sempre teve uma conexão estreita com a pintura, com o desenho e com a escultura. Exemplos são o renascimento clássico, que ocorreu no século XVIII e no início do século XIX, e a estética da Bauhaus da década de 1930, que integrou belas artes com design, artesanato e arquitetura. As definições contemporâneas da arte não são tão específicas como as ideias que costumavam ser das belas artes, particularmente restritivas sobre a natureza do valor estético. As definições contemporâneas estão associadas à teoria institucional da arte, provavelmente a definição mais amplamente utilizada de arte hoje. Esta reconhece que a arte pode ser um termo designado pelo artista e pelas instituições do mundo da arte, e não por qualquer processo externo de validação. Por um lado, fornece um quadro expansivo para a compreensão de diversas práticas artísticas, porém, por outro lado, é tão ampla que pode, por vezes, tornar-se sem um sentido definido. No entanto, independentemente da categorização, todas as definições de arte são mediadas através da cultura, história e linguagem. Para entendermos os diferentes conceitos de arte, precisamos olhar para a sua origem social e cultural. 2.1 O CONCEITO CLÁSSICO DA ARTE Em um contexto ocidental, a arte é entendida como uma atividade prática e com base no artesanato, que tem a história mais longa. Por exemplo, dentro da cultura grega antiga, não havia nenhuma palavra ou conceito que se aproximasse da nossa compreensão de "arte" ou "artista". No entanto, a palavra grega 'techne' designou uma habilidade ou arte, e a palavra 'technites' significa um artista que criou objetos para fins e ocasiões particulares (SORBOM, 2002). Da mesma forma, no mundo clássico, exemplos de arte, como estátuas e mosaicos, tinham papéis práticos, públicos e cerimoniais. Vejamos o exemplo de uma escultura clássica de Zeus, que é uma cópia de uma escultura original grega do século V a.C., que teria sido julgada de acordo com o padrão técnico demonstrado e na medida em que cumprisse os papéis sociais e cívicos esperados. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 9 FIGURA 3 – A FORÇA DO CONCEITO CLÁSSICO NA ATUALIDADE: CÓPIAS RECENTES DE ESCULTURAS GREGAS ANTIGAS FONTE: Disponível em: <http://skylightstudiosinc.com/s/bronze-sculpture- reproductions/>. Acesso em: 25 jul. 2017. O mais importante foi a crença de que a forma humana deveria ser representada em seu sentido vital como sendo a união do corpo e da alma (SORBOM, 2002). A ideia de que uma escultura ou mosaico deveria ser julgada por critérios independentemente de tais fins era estranha ao conceito clássico de arte. Dentro de uma tradição ocidental de arte, originária da prática grega e romana,as categorias de arte e artesanato se tornaram familiares em contextos específicos, com relação à cultura e públicos particulares. Em toda a Europa e América do Norte, por exemplo, os pressupostos culturais sobre o que a arte deveria ser estavam intimamente ligados às origens e ao desenvolvimento do tema acadêmico da própria história da arte, sendo fundamentais as instituições sociais, como academias e museus, que foram estabelecidos a partir do final do século XVI em diante. Coletivamente, determinados interesses estabeleceram definições normativas da arte, ou seja, ideias sobre como a arte deve se apresentar e a sua função, cujas variações do conceito continuam até hoje. Outro ponto importante é que rotular algo como arte implica em algum tipo de julgamento avaliativo sobre a imagem, objeto ou processo. Reconhece a especificidade de uma variedade de práticas dentro de uma categoria mais ampla ou tradição com reivindicações particulares ao valor estético e/ou social. Contudo, é importante entender que o significado e as atribuições da arte são particulares para diferentes contextos, sociedades e períodos. Seja qual for a prevalência no tempo de objetos e práticas com propósitos estéticos, ideias e definições da arte estão sempre sujeitas ao seu tempo histórico, e se relacionam com os pressupostos sociais e culturais das sociedades e ambientes que as formam. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 10 2.2 O CONCEITO DAS BELAS ARTES O conceito das belas artes ou artes plásticas, influenciado pelo conceito clássico da arte, surgiu no século XVIII e permaneceu forte até o movimento moderno, mas podemos dizer que ainda é utilizado, em certa medida, na contemporaneidade. O conceito pressupunha que a pintura, a escultura, o desenho e a arquitetura eram manifestações superiores às artes aplicadas, praticadas por trabalhadores. A categorização baseada na academia das belas artes e o consenso que a sustentou durante vários séculos demonstram como os interesses eram duradouros e hegemônicos. Contudo, a partir do final do século XIX, muitos artistas de vanguarda começaram a fazer trabalhos que questionavam tanto a temática convencional quanto o primado das categorias distintas (pinturas de história e retratos, por exemplo), ou a tradição de representação que significavam. O trabalho dos artistas Paul Cézanne (1839-1906), Pablo Picasso (1881- 1973) e Georges Braque (1882-1963) demonstrou a importância da vida selvagem como gênero para o nascimento do modernismo (BRYSON, 1990). Da mesma forma, o desenvolvimento da colagem de Braque e Picasso e a inclusão nesta de objetos cotidianos, como folhetos e ingressos, exploraram a realidade da superfície plana, em vez de ocultá-la através do ilusionismo, que tinha sido uma característica tão dominante da pintura e da escultura, patrocinada pela Academia de Belas Artes. FIGURA 4 –“GARRAFA DE VINHO MARC, VIDRO, VIOLÃO E JORNAL” – COLAGEM DE PABLO PICASSO, FEITA EM 1913 FONTE: Disponível em: <https://br.pinterest.com/explore/picasso- collage/?lp=true>. Acesso em: 25 jul. 2017. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 11 As ideias baseadas na academia geralmente marginalizavam práticas de arte não ocidentais, que refletiam diferentes ideias sobre estética, cultura e significado. O comércio, colonização e imperialismo no exterior estimularam o interesse em máscaras tribais, esculturas, tecidos e objetos, que representavam fetiche de regiões como África, Ásia, Índia e Península Ibérica. Os objetos e as culturas nativas contribuíram para grandes coleções etnográficas em toda a Europa, estimulando o interesse generalizado por arte e artesanato não ocidentais. Na vanguarda modernista, vários artistas, como Braque, André Derain (1880-1954), Ernst Kirchner (1880-1938), Henri Matisse (1869-1954), Picasso e Maurice de Vlaminck (1876-1958) popularizaram o culto do primitivismo. FIGURA 5 – “CABEÇA DE MULHER”, DE PABLO PICASSO, FEITA EM 1907 – A INFLUÊNCIA DAS MÁSCARAS AFRICANAS NA PINTURA GEOMÉTRICA DE PICASSO FONTE: Disponível em: <https://pixel77.com/influence-art-history-cubism/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Embora tais interesses frequentemente refletissem estereótipos romantizados sobre o que a arte e a cultura primitiva realmente significavam, também havia o reconhecimento das dimensões sociais e políticas (LEIGHTEN, 1990). O legado de convenções baseadas na academia de arte é tal que ainda há uma tendência de alguns por classificarem obras de arte – pintura, desenho e escultura – como intrinsecamente superiores às práticas contemporâneas de instalação, performance ou arte conceitual. Para entender tais categorizações e exclusões, é útil considerar as teorias estéticas, que têm sido historicamente influentes na formação de valores e premissas sobre o significado da arte. Vamos agora aprofundar nossos conhecimentos acerca das teorias e concepções da arte, que se deram sobretudo a partir do Renascimento até a contemporaneidade. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 12 2.3 ARTE COMO IMITAÇÃO Para iniciar nossos estudos sobre a temática, vamos observar as obras intituladas Adão e Eva, de 1526, do artista Lucas Cranach I (1472-1553) e o retrato da Sra. Fiske Warren e sua filha Rachel, de 1903, do artista John Singer Sargent (1856-1925): FIGURA 6 – PINTURA DE CRANACH (ADÃO E EVA, 1526) FIGURA 7 – SINGER (SRA. FISKE WARREN E SUA FILHA RACHEL, 1903) FONTE: Disponível em: <https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Lucas_ Cranach_the_Elder-Adam_and_Eve_1533. jpg>. Acesso em: 25 jul. 2017. FONTE: Disponível em: <http://jssgallery.org/ Paintings/Mrs_Fiske_Warren_and_Her_Daughter. htm>. Acesso em: 25 jul. 2017. Existem grandes diferenças entre as duas pinturas em termos de tema, data, gênero, origem, materiais e significados. Apesar de terem quase 400 anos de diferença, Cranach tenta transmitir o simbolismo de uma história bíblica (a Tentação de Adão) e Sargent procura capturar, como em uma fotografia, a semelhança da Sra Fiske e de sua filha Rachel. Ambas as pinturas trabalham com base na semelhança, tanto as circunstâncias de um evento imaginado quanto as características de um indivíduo em particular. A teoria da imitação (ou mimeses) situa a arte como um espelho para a natureza e o mundo que nos rodeia. Dentro da história da pintura ocidental, o princípio da imitação foi associado à invenção e à adoção generalizada do ponto de vista único, uma inovação que, literal e simbolicamente, sublinhou o primado do ponto de vista do artista. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 13 Foi um grande avanço que ajudou em ilusões cada vez mais convincentes das noções de profundidade e espaço em uma superfície plana. Por exemplo, uma pintura naturalista, como a Santíssima Trindade de Masaccio, pintada em 1427, em Santa Maria Novella, na Florença, tornou-se, em efeito de teorias e histórias da arte, um marco importante na história da arte, que pelo uso da perspectiva e realismo, parte para uma nova dimensão espacial. FIGURA 8 – SANTÍSSIMA TRINDADE DE MASACCIO (1427). SANTA MARIA NOVELLA, FLORENÇA FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Holy_Trinity_ (Masaccio)>. Acesso em: 25 jul. 2017. Determinado exemplo foi emblemático nas tentativas de capturar a forma como as coisas pareciam aos olhos, ou como se acreditava que fossem na realidade. O sucesso de uma obra de arte tornou-se, em grande parte, dependente da extensão e facilidade com que os espectadores fossem seduzidos a suspender a descrença, esquecendo que, de fato, estavam olhando para uma superfície plana e bidimensional. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 14 2.4 A IDEIA DE MIMESES DE PLATÃO A ideia de arte como imitação pode ser rastreada até o décimo livro “A República”, de Platão, de 340 a.C. (SHEPPARD, 1987). Em seus escritos, Platão depreciou a pintura, compreendida por ele como uma mera mimese ou imitação, como tendo um usolimitado. Uma pintura de uma mesa não era a forma ideal da mesa (a ideia perfeita de uma mesa que existia na imaginação divina), nem a mesa feita em uma oficina de carpinteiro. De acordo com Platão, uma pintura de uma mesa era apenas uma cópia e tinha um valor prático limitado, uma vez que não poderia ser usado para realmente fazer ou projetar uma mesa real (LYCOS, 1987). Embora, em outros lugares, Platão apoie mais a arte esquemática (HYMAN, 1989), seus comentários aqui sugerem que a prática da pintura imitativa e ilusionista é paralela a uma atividade fraudulenta. A abordagem de Platão em relação à arte foi moldada pelo mundo clássico e pelos valores de sua época. O princípio da imitação faz mais sentido quando consideramos a crença, proeminente desde o Renascimento, de que os artistas devem tentar uma representação mais precisa do assunto possível. Crenças desse tipo moldaram muito o cânone ocidental de arte – aqueles exemplos julgados pelas academias de arte como modelos ideais. Na verdade, levaram quase 400 anos, após o nascimento de Leonardo da Vinci (1452-1519), para um desafio de vanguarda sobre a crença dominante de que a arte era fundamentalmente imitativa. Entretanto, a ideia de que a arte deve ser imitativa das coisas no mundo continua a ser generalizada e determinado conceito ainda é bastante presente, em alguns casos, aos aspectos da prática contemporânea. Apesar de todo o avanço tecnológico imagético, as pinturas hiper-realistas, feitas com lápis ou por um pincel ainda constam, na atualidade, como uma forte modalidade apreciada por muitos. FIGURA 9 – EXEMPLO DE PINTURA HIPER-REALISTA FONTE: Disponível em: <http://www.top13.net/hyperrealistic-paintings- renaissance-emanuele-dascanio/>. Acesso em: 25 jul. 2017. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 15 DICAS Você sabe o que é arte hiper-realista? O hiper-realismo é um gênero de pintura e escultura que se assemelha a uma fotografia de alta resolução. O hiper-realismo é considerado um avanço do fotorrealismo pelos métodos utilizados para serem criadas as pinturas ou esculturas. O termo é aplicado principalmente a um movimento artístico independente e estilo de arte nos Estados Unidos e na Europa, que se desenvolveu desde o início da década de 1970.c A imitação não é uma condição necessária, nem suficiente da arte. Certamente, não explica o status artístico da música, arquitetura, ficção imaginativa ou poesia. Também não explica a abstração – arte que não tem nenhuma semelhança óbvia com o mundo que nos rodeia ou com instalações tridimensionais. Considere, por exemplo, uma das quatro versões do quadrado preto de Kasimir Malevich (1878-1935), c.1929. FIGURA 10 – O QUADRADO NEGRO DE MALEVICH (1929) FONTE: Disponível em: <http://www.independent.co.uk/artsentertainment /art/features/kasimir-malevichs-black-square-what-does-it-say-to-you- 9608316.html>. Acesso em: 25 jul. 2017. Embora a imagem tenha sido interpretada de várias maneiras, o naturalismo não está entre seus elementos de representação. A teoria da mimese também é inútil ao explorar a arte, que segue diferentes pressupostos sobre significado e valor. Potencialmente, determinada teoria marginaliza tradições de criação de imagens iconoclastas dentro da arte islâmica, por exemplo, demonstrando que as considerações transcendentes da unidade divina são primordiais e dispensam, muitas vezes, o uso de imagens realistas ou naturalistas. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 16 Devido à restrição moral em utilizar imagens naturalistas, a arte islâmica desenvolveu um alto padrão estético ligado às formas geométricas, presentes muitas vezes na arquitetura em forma de mosaicos, por exemplo. FIGURA 11 – ARTE ICONOCLASTA E GEOMÉTRICA ISLÂMICA – MOSAICOS FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/489062840754588512/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Observemos também a arte da Ásia e da China, que apresenta a centralidade de um estado meditativo como o fundamento da expressividade artística. Por exemplo, a arte, após a Dinastia Han (206 AC-220 DC), foi entendida como uma expressão do tao, significando literalmente o caminho, que derivou do Taoísmo, uma religião indígena da China (CLUNAS, 1997). O Taoísmo ofereceu a salvação pessoal e a perspectiva de imortalidade, crenças que foram transmitidas através de várias práticas cerimoniais, rituais e alquímicas. Ao contrário da tradição cultural de imitação grega e romana, a arte produzida na China, naquele momento, estava preocupada com o alinhamento da personalidade do criador com o tao – o universo e a ordem natural. A ênfase na imitação também exclui uma ampla gama de objetos e práticas que caracterizaram a arte de vanguarda mais recente. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 17 FIGURA 12 – ARTE TAOÍSTA CHINESA – PINTURA EM NANQUIM QUE TRANSMITE UM ESTADO MEDITATIVO FONTE: Disponível em: <http://art.thewalters.org/detail/17331/a-taoist- immortal/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Ainda, a ideia de que a arte e a fotografia imitativas são espelhos imparciais do mundo externo, é difícil de justificar - todos percebemos e experimentamos o mundo de maneira diferente. Em última análise, qualquer representação é uma interpretação que não será neutra, mas subjetiva (FOSTER, 1985). É importante nos questionarmos. Mesmo quando somos apresentados com uma imagem naturalista, é realmente o efeito ilusionista que consideramos ser o último ponto de interesse ou valor? Embora possamos aplaudir o pintor, ou a técnica naturalista do fotógrafo, a imitação é realmente tudo o que procuramos na arte? 2.5 ARTE COMO FORMA E CRIAÇÃO Um jornalista britânico e crítico de arte, Clive Bell (1881-1964), delineou ideias sobre estética formalista em seu tratado intitulado Arte (1914). Em linhas gerais, as abordagens formalistas da arte enfatizam a aparência e composição do trabalho de arte (sua forma), ao invés da narrativa ou conteúdo. Aqui, discutindo "obras de arte", Bell faz a pergunta: "qual qualidade é compartilhada por todos os objetos que provocam nossas emoções estéticas?" (BELL, 1949, p. 8). O autor afirmou que nossa resposta a certos tipos de arte decorreu da impressão feita pelas propriedades de suas linhas, cores, formas e tons. Ele afirmou que a resposta estética era intuitiva e involuntária, ou seja, que não temos controle sobre como nos sentimos diante de, por exemplo, uma tela de Cézanne ou uma tapeçaria persa. Representada de forma particular, uma configuração de linhas, formas e cores fornece ao espectador a experiência de maneira significativa que Bell julgou ser a referência de todas as melhores obras de arte. Da mesma forma, todos os exemplos têm em comum determinada qualidade significativa. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 18 A teoria de Bell parece circular e autojustificativa. Uma vez que também não define claramente "forma" ou "significância", é impossível avaliar com mais clareza quais os critérios que ele realmente prevê. Sugere-se que o espectador saiba quando experimentou uma resposta tão atraente a um objeto, mesmo que não consiga explicar claramente o motivo. A teoria de Bell também era essencialista – afirmou que a grande arte compartilhava, ou tinha em comum, qualidades visuais essenciais e consistentes que permitiam o reconhecimento como tal. É importante ressaltar que, para a era eduardiana, que corresponde ao período entre 1901 e 1910, no Reino Unido, Bell julgou 12 teorias de arte e histórias de arte, com atributos para serem aplicáveis tanto às obras de arte, quanto para exemplos de design, artesanato ou arquitetura, com status parecidos (EDWARDS, 1999). A ideia de uma forma significativa, mesmo que deliberadamente vaga, mostrou-se atraente para uma nova geração, porque parecia explicar o prazer aparentemente simples e sensual, derivado de realmente olhar objetos estéticos, independentemente da finalidade, categorização ou status prévio. Vamos conhecer oque significa era eduardiana? A era eduardiana da história britânica cobre o breve reinado do rei Eduardo VII, de 1901 a 1910 e, às vezes, é estendida em ambas as direções para capturar as tendências de longo prazo da década de 1890 até a Primeira Guerra Mundial. IMPORTANT E 2.6 CLIVE BELL E A ABSTRAÇÃO DE VANGUARDA Embora a teoria de Bell fosse simplista, sublinhou uma mudança de sensibilidade para além dos julgamentos sobre arte, decorrentes de critérios de semelhança ou naturalismo acadêmico, que previamente definiram a pintura tradicional europeia e americana. A crescente prevalência da fotografia, que proporcionou reproduções mecânicas de imagens, sublinhou a importância de identificar as características e atributos que eram exclusivos de outras formas de prática estética (GOULD, 2003). TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 19 FIGURA 13 – A PRESENÇA INOVADORA DA FOTOGRAFIA NA ERA EDUARDIANA NA INGLATERRA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/CeruleanHMC/ victorian-and-edwardian-womens-society/?lp=true>. Acesso em: 25 jul. 2017. Como o colega e contemporâneo Roger Fry (1886-1934), Bell foi um defensor do trabalho de Cézanne e dos pós-impressionistas, exposições que ele havia apoiado em Londres, em 1910 e 1912 (GAIGER e WOOD 2003). Bell também argumentou que o conteúdo narrativo da arte era, na melhor das hipóteses, irrelevante e, na pior das hipóteses, negava o status estético de um objeto. Recentemente, para alguns de seus contemporâneos eduardianos, ele efetivamente deslegitimou muito do cânone da arte ocidental desde o Renascimento. Determinadas ideias foram importantes porque anteciparam algumas das respostas críticas à abstração de vanguarda, que posteriormente se tornaram generalizadas. 2.7 ARTE COMO EXPRESSÃO “A arte é o remédio da comunidade para a pior doença mental, a corrupção da alma”. (COLLINGWOOD, 1975). De acordo com a teoria da expressão, a arte deve esclarecer e refinar ideias e sentimentos que são compartilhados com o espectador. Entre suas teorias e história da arte, o expoente mais influente foi o historiador e esteticista britânico Robin George Collingwood (1889-1943). Em “The Principles of Art” (1943), Collingwood argumentou que a arte própria se distingue por uma emoção particular e única, não possuída por arte ou UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 20 arte como diversão, que ele descreve como formas menores de arte técnica. Como ele mesmo disse com eloquência, o lugar da arte é contar à audiência "os segredos de seus próprios corações" (COLLINGWOOD, 1975, p. 336). Ao comunicar o pensamento autêntico ou um estado de espírito, a arte permitiu adquirir autoconhecimento e, assim, levar uma vida melhor. Como Graham (1997, p. 32) observa, “é através da construção imaginativa que o artista transforma a emoção vaga e incerta em uma expressão articulada”. A ideia de que a arte deve ter um papel amplamente comunicativo não é nova, mas o que Collingwood parece sugerir é mais ambicioso: a arte deve transmitir verdades fundamentais e uma visão sobre o que significa ser humano no mundo. A teoria é considerada normativa, preocupa-se menos com a definição de arte como tal, do que como a arte deve ser valorizada e compreendida (GRAHAM, 1997). Na medida em que a teoria de Collingwood ignora a semelhança como um critério próprio da arte, compartilha semelhanças com a ideia de Bell, de forma significativa, dentre outras teorias formalistas. 2.8 ARTE COMO ABSTRAÇÃO OU IDEIA Como na teoria de formas ideais de Platão, Collingwood sugere que a realização real do objeto de arte é inerentemente inferior à concepção como forma ideal. Vendo ou encontrando outra forma para as teorias de arte e a história da arte, as formas, ideias e associações de arte são fundamentais para a experiência sensorial que ela oferece. A menos que a arte seja reproduzida e compartilhada com o espectador de alguma forma, ela permanece invisível, conhecida apenas pela mente do artista. Embora existam problemas em relação à teoria da expressão de Collingwood, o que ela reconhece é como a arte visual, como a música, pode e fornece ideias e perspectivas que não são automaticamente as que surgem da mera semelhança ou que são necessariamente redutíveis à forma. Embora um clichê, a ideia de que uma imagem ou objeto possa transmitir mil palavras, pelo menos, reconhece que a arte pode expressar ideias e associações – sensoriais, intelectuais ou experienciais – mais facilmente sentidas do que explicadas. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 21 2.9 ARTE COMO “SEMELHANÇA FAMILIAR” Diante de tal diversidade, alguns filósofos argumentaram que há pouco interesse em procurar um denominador comum na arte, seja uma semelhança ou expressão, o que dará uma definição mais abrangente. Em vez disso, eles usaram a ideia de "semelhança familiar" (WARBURTON, 2004, p. 149-150). Embora os membros de uma família compartilhem algumas características genéticas e físicas de uma geração para outra, haverá semelhança ao invés de semelhança exata. Portanto, o melhor que podemos esperar é que os tipos de arte, como pinturas, filmes ou instalações, terão qualidades particulares em comum, que nos permitirão reconhecê-las como arte. A abordagem oferece a possibilidade de que formas e movimentos, que inovam a arte, possam ser incorporados na "família" existente com base em compartilhar algumas características. Assim, a arte pode ser entendida como um conceito aberto que está sujeito ao desenvolvimento. Um grande problema com o conceito de semelhança familiar é que não faz distinção entre propriedades exibidas e não exibidas. Assim, embora possamos identificar semelhanças estilísticas em exemplos de arte mimética, podem existir outros casos em que outras práticas de arte diferentes e visualmente diferentes têm uma conexão subjacente que não é evidente para o olho (WARBURTON, 2003). 2.10 A TEORIA INSTITUCIONAL DA ARTE A Teoria Institucional da arte, criada por George Dickie (1926), sugere que a arte pode ser aquilo que o artista ou as pessoas ligadas ao mundo da arte dizem que ela é. Exemplos típicos incluem a obra intitulada “A Fonte” de Marcel Duchamp (1887-1968), feita em 1917, ou a obra de Tracey Emin (1963), “Minha Cama”, de 1999. Segundo Noéli Ramme (2011), o ponto de partida da Teoria Institucional da arte não é uma experiência subjetiva ou individual, e não incorpora uma experiência estética. A teoria de Dickie parte de uma dissociação fundamental entre o estético e o artístico, como sugerem os ready-mades como arte, de Duchamp. Assim, o estético teria a ver com uma experiência individual, que não está restrita ao campo da arte, enquanto o artístico, com uma prática social, considerando a arte como uma produção coletiva por pessoas que pertencem a um grupo cultural. Vamos analisar a seguir as obras dos artistas Duchamp e Emin: UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 22 FIGURA 14 – A FONTE DE MARCEL DUCHAMP (1917) FIGURA 15 – MINHA CAMA DE TRACEY EMIN (1999) FONTE: Disponível em: <http://ecoarte. info/ecoarte/2012/11/a-relevancia-da-arte- ciencia-na-contemporaneidade/fonte- urinol-marcel-duchamp-1917/>. Acesso em: 25 jul. 2017. FONTE: Disponível em: <http://www. liverpoolecho.co.uk/whats-on/arts- culture-news/tracey-emin-tate-liverpool- bed-11681245>. Acesso em: 25 jul. 2017. Apesar de ser uma das teorias mais flexíveis e acolhedoras da arte até agora esboçada, ela pode apresentar o risco de ignorar as especificidades e atributos da arte, o que a torna uma atividade humana tão importante e diferenciada. Além disso, precisamos considerar, em que critérios o mundo da arte faz a seleção desses objetos designados como arte? 2.11 TEORIAS ESTÉTICAS DA ARTE Todas as teorias de arte consideradas até agora têm limitações. Ao reconhecê-las, os filósofos analisaram a natureza da própria avaliação estética. Em outras palavras, há algo que a nossa respostaà arte tem em comum com o prazer que tomamos em uma paisagem: a cadência de uma frase ou simplesmente em ouvir o canto dos pássaros? Será que, ao invés de tentarmos definir a arte, devemos simplesmente tentar uma definição de beleza? Se pudermos concordar com isso, talvez possamos basear nossos julgamentos sobre a arte em bases mais seguras? A definição de beleza e o caráter da nossa resposta a ela provaram ser um problema filosófico e estético desafiador, cuja natureza não pode ser totalmente explorada aqui. Em suma, não há acordo sobre o que é a beleza, ou o que pode ser. Como observa Sheppard (1987), um relato satisfatório da experiência estética deve explicar o que a torna tão poderosamente intuitiva e, ao mesmo tempo, explicar por que o oposto, o desprendimento, ou mesmo o desgosto ou o horror, também podem ser atraentes. TÓPICO 1 | CONCEITUANDO ARTE E ESTÉTICA 23 As teorias e as histórias de arte do filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) alegaram que os julgamentos estéticos são desinteressados, ou seja, respondemos a um objeto simplesmente com base em como nos parece, ao invés de ter alguma necessidade ou uso particular para isso. Embora ele tenha afirmado que os julgamentos estéticos afirmam validade universal, Kant permaneceu vago quanto ao que os critérios particulares de tais julgamentos estéticos poderiam ser, ou como possíveis julgamentos estéticos são possíveis (SHEPPARD, 1987). 24 Neste tópico, você aprendeu que: • Uma definição mais ampla de arte engloba as atividades que produzem obras com valor estético, incluindo a realização de filmes, performance e arquitetura. • As definições contemporâneas da arte não são tão específicas como as ideias que costumavam ser das belas artes, particularmente restritivas sobre a natureza do valor estético. As definições contemporâneas estão associadas à teoria institucional da arte, provavelmente a definição mais amplamente utilizada de arte hoje. • Dentro de uma tradição ocidental de arte, originária da prática grega e romana, as categorias de arte e artesanato se tornaram familiares em contextos específicos, com relação à cultura e públicos particulares. • Em toda a Europa e América do Norte, por exemplo, os pressupostos culturais sobre o que a arte deveria ser estavam intimamente ligados às origens e ao desenvolvimento do tema acadêmico da própria história da arte, sendo fundamentais as instituições sociais, como academias e museus, que foram estabelecidas a partir do final do século XVI em diante. • Ao rotularmos algo como arte, avaliamos o tipo de julgamento sobre a imagem, o objeto ou processo, ou seja, reconhecemos a especificidade de uma variedade de práticas dentro de uma categoria mais ampla ou uma tradição com reivindicações particulares ao valor estético e/ou social. • Seja qual for a prevalência no tempo de objetos e práticas com propósitos estéticos, ideias e definições da arte estão sempre sujeitas ao seu tempo histórico, e se relacionam com os pressupostos sociais e culturais das sociedades e ambientes que as formam. RESUMO DO TÓPICO 1 25 1 No início desta unidade (na Introdução), conhecemos algumas definições de artistas e intelectuais famosos a respeito da arte, e nos demos conta da complexidade do universo conceitual. Dentre as definições, escolha duas com as quais você se identifique mais, e explique o porquê. 2 As teorias da estética têm sido historicamente influentes na formação de valores sobre o significado da arte. Associe as duas colunas, em termos de relação do conceito de arte como: I- Imitação II- Forma e criação III-Expressão IV-Abstração ou ideia ( ) Foi um grande avanço, que ajudou em ilusões cada vez mais convincentes das noções de profundidade e espaço em uma superfície plana. ( ) Essas ideias foram importantes porque anteciparam algumas das respostas críticas à abstração de vanguarda, que posteriormente se tornaram generalizadas. ( ) A arte deve transmitir verdades fundamentais e uma visão sobre o que significa ser humano no mundo. ( ) As formas, ideias e associações de arte são fundamentais para a experiência sensorial que ela oferece. A sequência correta da associação é: a) I-II-III-IV. b) IV-II-III-I. c) III-IV-II-I. d) II-I-III-IV. AUTOATIVIDADE 26 27 TÓPICO 2 ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, estudaremos sobre arte e música, bem como conheceremos a natureza da estética. A arte existe ao longo de toda a história da humanidade e a sua importância reside, basicamente, na habilidade humana de abstrair o pensamento e interpretar o mundo à sua volta de maneira criativa e simbólica. A estética, por sua vez, é importante porque aprofunda a razão pela qual a arte sempre existiu, a necessidade ardente da humanidade através dos tempos para ver o mundo de uma maneira diferente e clara. Já a estética da música compreende a reflexão filosófica sobre a origem, a natureza, o poder, o propósito, a criação, o desempenho, a recepção, o significado e o valor da música. Algumas das suas reflexões abordam questões gerais de estética colocadas em um contexto musical. Por exemplo, qual é o status ontológico da obra de arte na música, ou quais são os fundamentos dos juízos de valor na música? Outros problemas são mais ou menos peculiares à música, faltando um paralelo claro em outras artes. Por exemplo, qual é a natureza do movimento percebido na música? Como o casamento entre música e palavras pode ser melhor compreendido? É importante determinada análise porque, segundo Schafer (1991, p. 67), “ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. Os olhos podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do horizonte acústico, em todas as direções”. Portanto, o estudo da estética, no campo das linguagens artísticas, busca compreender o significado subjetivo da arte. A estética é um ramo da filosofia que lida com noções como a beleza, a feiura e o sublime. A origem da palavra estética é aisthetike em grego, que significa percepção através dos sentidos. Assim, este tópico contribuirá para a realização de uma análise entre arte, música e a estética. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 28 2 CARACTERÍSTICAS DA ARTE Em linhas gerais, podemos estabelecer que a arte: • É uma expressão de emoções. • É desestruturada e aberta. • Não pode ser facilmente quantificada. • Não pode ser duplicada. • Mexe com as pessoas em um nível emocional. • Provém do intelecto, do coração e da alma. • É um resultado dos talentos inatos de uma pessoa. • Joga com as emoções. 2.1 A INCERTEZA DA ARTE No caso da arte, há a incerteza inerente que é evidente em cada golpe de pincel que um pintor faz em uma tela. É bastante idêntico, em todas as sílabas, que um ator progrida no palco, desde que ele também esteja improvisando. Ninguém sabe como será a peça final até o último detalhe ser colocado. Nenhum crítico pode avaliar o desempenho até que o ato seja completo e uma resposta seja despertada da audiência. 3 DEFINIÇÃO DE ESTÉTICA Iniciamos nossos estudos nos perguntando: o que é estética? A palavra estética foi utilizada, pela primeira vez, no contexto moderno, pelo filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1831). Ele queria estabelecer uma disciplina da Filosofia que pudesse estudar todas as manifestações artísticas. A estética, segundo Baumgarten, é uma disciplina que reflete acerca das emoções produzidas pelos objetos que são admirados pelos seres humanos. Entretanto, o termo estética, contudo, já havia sido cunhado pelos filósofos na antiguidade através da palavra grega aesthesis, que significa sensibilidade. A estética é, portanto, um dos dois ramos principais da teoria de valor na filosofia. O outro ramo seria a ética, que é um estudo de valores na conduta humana. A estética é um estudo de valor naarte, e estuda o relacionamento da arte com o ser humano. No entanto, podemos definir o campo de forma muito restrita ao considerarmos que a arte inclui a literatura de prosa e poética. Poderíamos argumentar que a literatura sempre tem um componente auditivo. Quando lemos a literatura, os sons e as inflexões das palavras acompanham nossos pensamentos. Poderíamos resolver o problema dizendo que a estética é um estudo de valor nas artes plásticas, visuais, conceituais, auditivas e de performance. TÓPICO 2 | ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA 29 3.1 DEFINIÇÃO DE ARTE NA ESTÉTICA Há a dificuldade de responder à pergunta: "o que é arte?" na estética. O termo tem que cobrir uma grande variedade de meios de comunicação, envolvendo as artes plásticas, a pintura a escultura, música, literatura e artes cênicas da dança, da ópera e do teatro. Pode até ser expandido para certos esportes de performance, como patinação no gelo, balé aquático, mergulho e ginástica. Procurar uma definição comum que abranja o grande número de produções de arte, desde os primeiros desenhos de cavernas até o último filme experimental, é uma missão. A definição teria que identificar a “Fonte”, de Marcel Duchamp, que, como vimos anteriormente, é um urinol branco fabricado em série com a assinatura do artista, e a obra intitulada “Pietá”, de Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564), mais conhecido por apenas Michelangelo. FIGURA 16 – PIETÁ DE MICHELANGELO, FEITA EM 1498-1499 FONTE: Disponível em: <http://www.guiageo-europa.com/vaticano/ pieta.htm>. Acesso em: 25 jul. 2017. A definição mais incontroversa e acordada é que a arte é qualquer coisa que é artificial, é tudo o que os humanos fazem, o que não é simplesmente algo que existe na natureza. De modo provocativo, Marshall McLuhan afirmou que a arte é algo que podemos inventar sem sermos punidos. Deve ser óbvio, acima, que não há nada mais controverso quanto a estética, incluindo a própria definição de arte. Vamos agora discutir, brevemente, como a estética se inter-relaciona com os outros ramos principais da filosofia: metafísica, epistemologia, ética e filosofia política. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 30 3.2 ARTE, ESTÉTICA, ÉTICA E FILOSOFIA A relação entre estética e ética é intrigante, pois o artista ou o compositor sempre teve um relacionamento ambíguo com a sociedade. Por um lado, ele pode ser discriminado como artesão ou decorador, por outro, como um herói cultural, por exemplo, dentro das cidades-estados da Itália do Renascimento, ou como ícone nacional, como os compositores e autores da Rússia czarista. Por um lado, ele é chamado para promover os valores éticos reverenciados de uma sociedade e, por outro, temido como um incendiário boêmio que ameaça o núcleo moral de uma cultura. Mais uma vez, os puristas diriam que esperar que as obras reforcem valores éticos ou culturais ou que denigram é um grande erro de categoria. Os valores estéticos não têm nada que ver com os valores morais. Uma vez que, no entanto, a arte não pode ser extraída completamente dos contextos históricos não apenas das sociedades dentro das quais os artistas trabalham, mas também das teorias estéticas clássicas que associam arte com beleza, além das supostas obrigações da comunidade humana para buscar beleza no mundo e no caráter de pessoas. Assim, a filosofia da arte tentou mostrar a relação entre arte e valores morais e políticos. Vamos conhecer o que significa o termo “purismo”. O purismo, referente às artes, foi um movimento que ocorreu entre 1918 e 1925, que influenciou a pintura e a arquitetura francesa. O purismo foi liderado por Amédée Ozenfant e Charles Edouard Jeanneret (Le Corbusier). Ozenfant e Le Corbusier criaram uma variação do movimento cubista e a chamaram de purismo. O movimento demonstra que os objetos são representados como formas elementares desprovidas de detalhes. Os principais conceitos foram apresentados em seu livro “Após o Cubismo”, publicado em 1918. IMPORTANT E Platão reconheceu o valor da arte como um meio para transmitir valores morais e políticos. De fato, a pedagogia da Atenas antiga consistiu principalmente no canto da poesia épica homérica em uníssono pela juventude da cidade-estado. Com o principal meio de educar as sensibilidades, as harmonias psíquicas e as responsabilidades cívicas do indivíduo de grande alma, Platão era a favor de censurar severamente as representações homéricas de heróis e de deuses vingativos, licenciosos, duplicados ou injustos. A ilustração de uma crítica de arte clássica mostra que a arte tem sido historicamente considerada como um meio central de propaganda de valores morais, religiosos, culturais ou políticos e castigada como perigosa para aqueles valores que exigem censura, perseguição ou proibição pela Igreja, pelo Estado ou ambos. TÓPICO 2 | ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA 31 Você sabe o que significa poesia épica? A poesia épica, em estudos clássicos, é um gênero da literatura que se refere ao poema narrativo relativamente que mostra afinidades formais com o épico, mas revela uma preocupação com temas e técnicas poéticas que não são, no geral, ou pelo menos, primariamente, características adequadamente épicas. E você sabe o que significa poesia épica homérica? Homérico é um adjetivo que se refere ou pertence ao poeta grego Homero, a suas obras, ou a seu estilo: “poemas homéricos”, “tempos homéricos”, “período homérico”. Homero foi o poeta das epopeias “A Ilíada” e “Odisseia”. Viveu na Grécia entre os séculos IX e VIII a.C. IMPORTANT E A estética freudiana, de Sigmund Freud (1856-1939) e a estética marxista, de Karl Marx (1818-1883), possuem componentes eticamente relevantes. Os intérpretes freudianos da expressão artística veem as obras de arte como resultado de uma luta titânica entre o ego libidinoso, insocial e inculto do artista e o superego legítimo, ético, cultivado e sofisticado. Friedrich Nietzsche (1844- 1900) antecipou a análise freudiana no século XIX. Os críticos de arte marxistas acham que as obras de arte representam sempre os valores da classe dominante e exploradora em uma sociedade. Assim, eles veem artistas contemporâneos que procuram um estilo individualista sem precedentes (um estilo que não só inventa um novo trabalho, mas um gênero de trabalho inteiramente novo) como resultado de uma celebração capitalista burguesa dos direitos individuais, justificando a liberdade das corporações a fim de poderem explorar as classes trabalhadoras. Basta dizer que qualquer artista que busque o reconhecimento do público com relação ao seu trabalho encontrará o trabalho julgado não apenas em seus valores estéticos, mas também pelo seu efeito negativo ou positivo sobre as sensibilidades públicas. A batalha entre os censores e os defensores da liberdade de expressão nunca cessa. Leva-nos à consideração de que muitos teriam acreditado ser a preocupação mais proeminente dos esteticistas. Entretanto, o que torna uma obra de arte uma boa obra de arte? Não faltam críticos de arte tentando orientar nossos planos de fim de semana na galeria, no teatro ou no auditório local nas grandes cidades. Os esteticistas entraram em conflito com a possibilidade de um único padrão estético universal para julgar a miríade de obras e gêneros de arte ao longo dos milênios como arte boa ou ruim. Os pluralistas que rejeitam um único padrão abrangente afirmam que o critério de uma ótima performance de dança é distinto do critério da literatura excelente, e assim por diante. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 32 O pluralismo é um termo usado na filosofia, que significa "doutrina da multiplicidade", muitas vezes usada em oposição ao monismo ("doutrina da unidade") e dualismo ("doutrina da dualidade"). O termo tem diferentes significados na metafísica, ontologia, epistemologia e lógica. IMPORTANT E Os esteticistas, aqueles que defendem e/ou praticam o esteticismo na filosofia, naarte, tentaram distinguir entre gostos subjetivos (relativos a um grupo ou indivíduo) e apreciação estética das qualidades estéticas do objetivo de fenômeno. Às vezes chamadas de subjetivo universal, as qualidades dependem tanto das projeções subjetivas do público e do leitor como a estrutura objetiva da obra de arte para alcançar a experiência. No entanto, alegadamente há alguma qualidade do objeto que evoca uma resposta humana universal àqueles suficientemente preparados para recebê-la. A suposição de todos os críticos de arte é que sua própria avaliação de uma obra de arte é generalizável para a audiência esteticamente sofisticada. Um esteticista contemporâneo é ousado o suficiente para oferecer um critério para a arte excelente que transcende o tempo, a cultura e os diferentes gêneros da arte. 3.3 ANÁLISE ESTÉTICA DAS OBRAS DE ARTE O minimalismo é um ótimo exemplo, mas os silk screens, do artista Andy Warhol (1928-1987), da “Campbells Soup Can”, podem também se qualificar, porque transmitem a vasta banalidade da cultura comercial com um uso escasso de materiais. Entende-se que, quando uma obra de arte é completa, ela exibe três subcritérios: unidade, complexidade e intensidade. As obras de arte são boas quando transmitem uma profundidade de significado, diversidade ou intensidade com uma economia de meios ou quando uma diversidade de elementos se une em uma unidade formal. Quando um artista chinês pinta um homem velho atravessando a neve com um único golpe de pincel, similar à pintura taoísta anteriormente exposta, a plenitude do significado com a economia dos meios é impressionante. Silk-screen, também conhecido como serigrafia, ou impressão em tela, é um processo de impressão à base de estêncil, na qual a tinta é forçada através de um crivo fino para o substrato abaixo dela. As telas foram feitas originalmente TÓPICO 2 | ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA 33 de seda, mas hoje são desenvolvidas em poliéster ou nylon. O silk-screen é muitas vezes utilizado para impressão de itens de produção em massa, como camisetas, cartazes e canecas. FIGURA 17 – CAMPBELL SOUP CANS DE ANDY WARHOL, FEITA EM 1962 FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/explore/ campbell%27s-soup-cans/?lp=true>. Acesso em: 25 jul. 2017. O conceito-chave de Warhol como artista foi a "industrialização" da arte, e ele utilizou o silk-screen como processo de duplicação, ao usar o trabalho de outras pessoas e expandir seu conceito original. O processo do silk-screen combinava com a sensibilidade de Warhol, durante o momento em que ele estava crescendo em popularidade como líder no movimento Pop Art. 4 A ESTÉTICA NA MÚSICA As tentativas de definir o conceito de música geralmente começam, segundo Levinson (2018), com o fato de que a música envolve som, mas também postula coisas como a tradição cultural, a realização de objetivos de um compositor ou a expressão de emoções, como características essenciais da música. Talvez qualquer conceito plausível, no entanto, tenha que envolver a produção de sons pelas pessoas para apreciação estética, amplamente concebida. Ao decidir o que se entende por uma obra musical, outras considerações entram em jogo, como a identificação com uma estrutura sonora definida por um determinado compositor em um contexto histórico-musical particular. Em que sentido podemos dizer que uma peça musical tem significado? Alguns afirmam que ela tem sentido apenas internamente – em sua estrutura, como um arranjo de melodias, harmonias, ritmos e timbres, por exemplo –, UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 34 enquanto outros afirmam que seu significado reside na comunicação de coisas não essencialmente musicais – como emoções, atitudes ou na natureza mais profunda do mundo. A mais popular das crenças é que a música expressa emoção. Não quer dizer, entretanto, que a emoção expressa em uma obra seja necessariamente experimentada por aqueles envolvidos em sua composição ou performance. Os compositores podem criar uma música pacífica ou furiosa sem estarem nesses estados, e o mesmo vale para o desempenho de tais peças musicais pelos músicos. Ainda, as emoções evocadas nos ouvintes parecem de natureza diferente das que foram experimentadas diretamente: as emoções negativas expressas na música não impedem a apreciação do público e, de fato, geralmente facilitam. Em última análise, a expressividade de um trabalho deve ser vista como algo diretamente relacionado à experiência de ouvi-la. É dito frequentemente que a música tem valor primariamente na medida em que é bela, sendo sua beleza o que dá prazer ao ouvinte. Contudo, a qualidade da expressividade de uma obra, sua profundidade, riqueza e sutileza, por exemplo, também parecem formar uma parte importante de qualquer julgamento de valor que fazemos sobre a peça musical. 4.1 O CONCEITO DA MÚSICA Uma questão fundamental na estética da música é: "o que é música?", entendida como um pedido de definição ou delineação do conceito geral de música. Os teóricos adotaram uma série de abordagens diferentes para a questão, muitas vezes dependendo de seus propósitos para fazê-la. Talvez a única coisa que todos os teóricos concordem seja que a música é essencialmente formada pelo som. A abordagem mais conservadora procura definir música em termos das características, como: melodia, harmonia, ritmo, metro, instrumentos, vozes e produção de sons; mas além de ser inadequada a vários modos de composição contemporânea, como serialismo, minimalismo, música concreta, música computacional e música aleatória, ignora muitas práticas distantes de nós no espaço ou no tempo que reconhecemos como musicais. Uma abordagem mais liberal para definir música - uma estruturalista – emite na fórmula da música como "som organizado"; embora a música assim concebida não precise exibir as características padrão da música mencionadas anteriormente, pois nessa concepção algo é música em virtude de suas propriedades intrínsecas. Em outra abordagem, que pode ser denominada "experiencial" ou "fenomenológica", a música é qualquer som que seja ouvido como música, sendo então incumbido ao teórico dizer o que faz tal audição musical. As implicações TÓPICO 2 | ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA 35 salientes da abordagem são, primeiro, que sons naturais e acidentais podem ser música e, segundo, que o status da música é relativo ao ouvinte e à ocasião da escuta. Segundo Schafer (1991, p. 27), “música é a organização de sons (ritmo, melodia, etc.) com a intenção de ser ouvida”. Tentativas foram feitas para definir a música como um tipo de atividade envolvente do som, distinguida por certos traços culturais ou sociológicos, por exemplo, uma função cultural particular, como o acompanhamento de rituais ou o aprimoramento da memória de grupo ou relações sociais particulares, como o aprendizado. De forma alternativa, a música pode ser definida de uma maneira essencialmente histórica como aqueles itens, atividades e práticas que envolvem o som que evoluíram, histórica e reflexivamente, a partir de certos itens, atividades e práticas anteriores. Finalmente, podemos tentar caracterizar a música intencionalmente, do ponto de vista do produtor, apelando para objetivos ou propósitos distintos por parte dos criadores do som. Uma abordagem de longa data concebe a música como sons feitos para expressarem, evocarem ou provocarem emoções ou sentimentos. Outra a concebe como som usado como veículo de pensamento comunicável, mas não linguístico. Entretanto, a abordagem mais comum do tipo propõe simplesmente que a música é feita ou arranjada para apreciação estética. Se alguém está preocupado em definir a música como uma arte, preservar uma medida de objetividade para o status da música, e ainda assim evitar a importação da música necessariamente emocional ou intelectual, pode ser pior do que aceitar a última sugestão. No entanto, para cobrir uma ampla gama de fenômenos transculturais facilmente reconhecidospor nós como música, mas nos quais seria difícil discernir uma norma de apreciação estética em operação, uma noção mais abrangente do objetivo com o qual os sons são feitos deve ser invocada. Assim, sugere-se que a música é um som feito humanamente ou arranjado com o propósito de enriquecer a experiência através do engajamento ativo (tal como através da execução, escuta, dança), com os sons considerados primariamente como sons. Tal definição parece adequada para cobrir virtualmente tudo o que é considerado como música. Determinada definição acomoda até o notório 4′33″, do teórico musical e artista John Cage (1912-1992), uma composição musical ostensivamente sem som. Designar um período de silêncio é uma organização de sons em um determinado período de tempo, presumivelmente feita aqui com o objetivo de aumentar a consciência. Além disso, como o compositor claramente imaginou, até mesmo um intervalo de tempo especificado como aquele a ser deixado em silêncio pelo intérprete é inevitavelmente preenchido com sons de vários tipos originários do ambiente em que a peça é executada. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 36 4.2 A ONTOLOGIA DA MÚSICA A questão central da ontologia da música, nos domínios musicais, está ligada ao seu valor enquanto uma obra musical que pode ser repetida e não ligada a uma ocasião fixa. A obra musical padrão da tradição ocidental não está ligada a um objeto físico ou a um evento qualquer. Em particular, não é idêntica à performance. Não é igualmente identificável com qualquer partitura, seja ela a original manuscrita pelo compositor ou uma cópia produzida em massa, pois tais coisas são evidentemente vistas e não ouvidas. Ainda, uma obra musical geralmente é anterior às performances e pode sobreviver à destruição de todas as suas partituras. No entanto, partituras e performances continuam sendo de grande importância. Os trabalhos musicais, nessa tradição, são em grande parte definidos pelas partituras e executados pelas performances. Se uma obra musical não é uma entidade física, o que ela será então? Há quatro visões sobre a questão, três das quais sustentam que uma obra musical é uma variedade de entidades abstratas. A primeira é que uma obra musical é um conjunto ou uma classe de performances. A segunda é que é um tipo puro ou universal, como uma estrutura ou padrão de som. A terceira é que é uma entidade mental e não uma entidade abstrata, algo que existe adequadamente nas mentes dos compositores, assim como talvez nas de seus intérpretes e plateias. E a quarta é que uma obra musical é um tipo qualificado ou contextualizado, semelhante aos produtos da cultura, passíveis de serem criados e ligados a certas pessoas, tempos e lugares de origem. Finalmente, também é possível adotar uma visão mais niilista das obras musicais, negando que realmente existam tais coisas e reconhecendo apenas as partituras, performances, intenções e práticas associadas. Focando na segunda visão, a ideia de que uma obra musical é simplesmente uma estrutura sonora é de certa forma algo problemático, pois a estrutura musical também depende do compositor, pois é o resultado de vários atos de escolha e de arranjos de tons e instrumentações. Em outras palavras, já existe como um objeto abstrato dentro do sistema musical no qual a composição ocorre. Contudo, o problema é que, concebida simplesmente como uma estrutura de som, uma obra musical não pode suportar o complexo de predições estéticas e artísticas justificadamente feitas dela. Duas obras musicais, compostas dentro do mesmo sistema musical, podem ser idênticas na estrutura musical e, ainda assim, diferem nas características estéticas ou artísticas que lhes são atribuídas, por exemplo, aspereza, astúcia ou originalidade. É nítido devido aos diferentes contextos em que foram compostos e aos diferentes contextos de desempenho correto, audição e compreensão que TÓPICO 2 | ARTE, MÚSICA E A ESTÉTICA 37 implica. Apenas uma visão como a quarta, que individualiza as obras musicais de forma mais refinada – por exemplo, como aquelas iniciadas por compositores cuja identidade está ligada a uma pessoa, tempo e lugar – pode ser adequada às obras musicais. O ato de compor uma obra musical padrão é, assim, dado a partir de uma estrutura indicada pelo compositor, dentro de um contexto musical e histórico específico. 4.3 FORMA E PERCEPÇÃO NA ESTÉTICA MUSICAL Questões sobre a forma básica da música e a natureza da percepção envolvida na compreensão da música estão intimamente interligadas, pois a forma básica da música é discutivelmente aquela em virtude da qual ela é ouvida como música, ou aquela que é rastreada no curso da percepção da música. Embora todos concordem que música é um som que é organizado e apreendido no tempo e, portanto, que a forma da música deve ser audível e temporal, há discordância em muitos outros pontos. Alguns sustentam que a forma fundamental da música é local e que reside em conexões de momento a momento entre partes de pequena escala, enquanto outros mantêm a forma global, governando seções de uma peça em larga escala e temporalmente distantes, como sendo básicas. Alguns consideram a forma musical como sui generis, ou seja, contendo características únicas, envolvendo qualidades irredutíveis e especificamente musicais, enquanto outros tomam noções, particularmente espaciais, enraizadas em outros domínios – como equilíbrio, proporção, simetria e forma geral – para que seja aplicada diretamente à forma musical. Também em estética musical se debate sobre a natureza da percepção fundamental pela qual a forma musical é apreendida. Alguns filósofos acham que o registro, até mesmo das características musicais mais básicas, como tons, ritmos, temas e acordes, ou pelo menos a experiência de conexão e movimento musical, requer um modo especial de percepção das sequências sonoras. Outros sustentam que tais postulados são desnecessários, alegando que a percepção comum é adequada aos fenômenos em questão. Uma posição mais equilibrada sobre o movimento musical assume que mesmo que tal movimento não resulte em projeção metafórica ou imaginação auricular, a música é ouvida como em movimento, principalmente em sua ascensão e queda melódica, progressão harmônica e propulsão rítmica, apesar de não conter qualquer coisa que literalmente se mova da maneira que é percebida pelo ouvinte. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 38 Atualmente, há muitos trabalhos empíricos sobre a psicologia cognitiva da música, dignos da atenção dos filósofos, sobre os princípios de agrupamento, a compreensão do contorno melódico, os mecanismos da memória e da atenção e os limites da sensibilidade às relações musicais. Também é de interesse o papel do processamento inconsciente na percepção da música, incluindo a atribuição de um processador musical de estrutura sintática ou semântica à música tal como é ouvida. 4.4 SIGNIFICADO DA MÚSICA É comum dividirmos pontos de vista sobre o significado da música em dois tipos: o autonomista e o heteronomista. A posição autonomista é que a música não tem significado, ou então, significa apenas ela mesma (produzindo o que, às vezes, é chamado de significado "intramusical"). A posição heteronomista é que a música tem algum tipo de significado que é diferente da própria música (às vezes, denominada de significado "extramusical"). É difícil encontrar pensadores cujas visões exemplifiquem totalmente qualquer posição. Hanslick, que considerava a música essencialmente uma sucessão de tons, e que acreditava que a música era incapaz de transmitir qualquer coisa além das qualidades dinâmicas exibidas indistintamente por fenômenos de vários tipos, era um filósofo autonomista. Schopenhauer, por outro lado, considerava a música como uma imagem da natureza interior do mundo e a mantinha para significar as infinitas variedades da vontade ou do esforço, e assim pode ser categorizadocomo um heteronomista. O significado musical e a compreensão devem ser vistos como conceitos correlativos, de modo que o significado de um trecho de música abarque qualquer aspecto utilizado em sua compreensão. Vista de determinada perspectiva, a questão de saber se a música tem algum significado além de si mesma, torna-se a de saber se, na compreensão musical, precisamos compreender ou responder a qualquer coisa além dos eventos e das relações puramente musicais. A resposta parece ser sim, embora ordem e conectividade em dimensões puramente musicais sejam a base do discurso musical, uma experiência mais analisada desse discurso, portanto, vai além de uma compreensão das relações musicais em si mesmas. 39 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A arte existe ao longo de toda a história da humanidade e a sua importância reside, basicamente, na habilidade humana de abstrair o pensamento e interpretar o mundo à sua volta de maneira criativa e simbólica. A arte é uma expressão de emoção humana, talento e intelecto. Pode ter diferentes significados para diferentes indivíduos. • A estética, por sua vez, é importante porque aprofunda a razão pela qual a arte sempre existiu, a necessidade ardente da humanidade através dos tempos para ver o mundo de uma maneira diferente e clara. • A palavra estética foi utilizada, pela primeira vez, no contexto moderno, pelo filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1831). Ele queria estabelecer uma disciplina da Filosofia que pudesse estudar todas as manifestações artísticas. Baumgarten definiu a estética como sendo uma disciplina que deveria refletir sobre as emoções produzidas pelos objetos que são admirados pelos seres humanos. Entretanto, bem antes, na Grécia antiga, a palavra estética (que deriva da palavra grega aesthesis, que significa sensibilidade) já era utilizada pelos filósofos. • Em termos de conceitualização da música, há várias abordagens possíveis, dentre elas a abordagem mais conservadora, que define a música em termos de melodia, harmonia, ritmo, metro, instrumentos, vozes e produção de sons; a estruturalista, que entende a música como som organizado; a abordagem fenomenológica, que entende que a música é qualquer som que seja ouvido como música; e a histórica, que abarca os traços culturais ou sociológicos de um determinado grupo ou civilização. 40 1 A partir dos estudos realizados neste tópico, descreva o que é a estética e quais são seus três subcritérios. 2 A música pode ser conceituada, ou seja, compreendida, de maneiras diferentes. Os teóricos adotaram uma série de abordagens diferentes para a questão. Talvez a única coisa que todos os teóricos concordem seja que a música é essencialmente formada pelo som. Selecione a conceituação incorreta de música a seguir: a) A abordagem estruturalista entende a música como "som desorganizado". b) A abordagem fenomenológica entende que a música é qualquer som que seja ouvido como música. c) A abordagem mais conservadora procura definir música em termos de melodia, harmonia, ritmo, metro, instrumentos, vozes e produção de sons. d) A música pode ser definida por um viés histórico que abarca os traços culturais ou sociológicos de um determinado grupo ou civilização. AUTOATIVIDADE 41 TÓPICO 3 O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A questão "o que é beleza?" teve, desde a Grécia antiga, com o filósofo Platão, um lugar proeminente na filosofia ocidental. No entanto, a estética, como uma disciplina científica e filosófica, que tem a beleza como seu objeto central, começa a existir apenas na primeira metade do século XVIII com o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), inventor da "estética". Uma ambição importante da nova disciplina filosófica consiste na construção das chamadas "categorias estéticas" ou "valores estéticos". Ao longo de toda a história, o “belo” e o “sublime” serviram como categorias estéticas centrais. Assim, a questão era: em que condição o “belo” ou “sublime” pode ser atribuído a um objeto, a uma situação ou a um evento? Ainda, será que o “feio” pode ser considerado também como uma categoria estética? Existe uma experiência estética do feio? Ou, qual é a relação entre feio e bonito? Neste tópico, focaremos na discussão abstrata e mais teórica a respeito dos "valores estéticos". Podemos ter dúvidas sobre a relevância de categorias estéticas, como o belo e o sublime em relação à arte contemporânea ou à experiência contemporânea da arte. Será que o feio se tornou o único atributo estético válido na arte contemporânea? Em todo o caso, podemos afirmar que, tanto na produção quanto na teoria da arte na atualidade, o declínio do conceito da beleza, como um norteador seguro, é uma certeza. Como Adorno (2004) já argumentou, a beleza e depois, a "nova beleza", só podem ser abordadas ao nos distanciarmos delas. A beleza que se retira ainda fascina. Ela nos assombra constantemente, não nos larga. Após o século XIX, a ascensão do belo e sublime segue o filósofo, também alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que é em grande parte responsável pela ideia do "declínio da beleza". Contudo, a destruição da beleza pode ser ainda mais radical. Hoje em dia, existe uma tendência para vincular a experiência da beleza à posição política conservadora, à cultura burguesa, a um gosto social regressivo. A própria ideia de modernidade seria essencialmente ligada à condenação do belo como valor e norma estética. Assim, em circuitos de arte, entre curadores, intelectuais e artistas, o uso do termo “interessante” substituiu o uso do termo 42 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA "bonito". Muito se discutiu depois que Charles Baudelaire (1821-1867) propôs a beleza como o único rótulo "certo", que poderia determinar seu amor pela arte. Nos termos, podemos compreender a brincadeira de Paul Valéry quando afirmou: "a beleza é uma espécie de morte". Antonin Artaud (1896-1948), juntamente com os artistas Chaim Soutine (1893-1843) e Francis Bacon (1909-1992), unem forças e transformam a "beleza" em "crueldade" e sadomasoquismo. A arte mais contemporânea certamente questiona a existência, o significado e o valor da beleza a favor do novo, do intenso e do estranho. Nosso tempo se concentra em todos os tipos de mutações, a nossa mentalidade se tornou sensível ao tempo e tudo isso disputa o belo desde que a beleza é imutável e estável. A beleza é calma, serena, harmoniosa e traz apenas contemplação. "A beleza será convulsiva ou não é nada", escreve Breton (2002). Ao mesmo tempo, a estética não é mais uma ciência da beleza, mas se tornou uma ciência das sensações, uma ciência de uma subjetividade convulsiva cuja sensibilidade funciona de forma caótica e depende do contexto. Na verdade, a arte contemporânea subverteu a estética clássica da beleza. No entanto, não pode resultar em uma renúncia a priori, global e desesperada da ideia de beleza. A problematização descrita suscita novas questões que estudaremos ao longo deste tópico. Existe uma beleza sem forma? A falta de forma leva à feiura? Podemos experimentar a feiura esteticamente? 2 A BELEZA NA ESTÉTICA O belo, ou a beleza, é uma categoria básica da estética. Consequentemente, nenhum trabalho teórico sobre educação estética é completo, a menos que inclua uma definição da categoria de beleza. Na aparência, fornecer uma definição da essência da beleza parece algo bastante simples, mesmo insignificante, como todos tendem a pensar que conhecem o que realmente é bonito e, por sua vez, o que não é, o que chamamos de feio. Muitas vezes, a discussão pode, a princípio, parecer inútil ou banal. No entanto, o belo é uma categoria mais complexa do que aparenta, foi definido de forma diferente em cada tempo histórico e em culturas e lugares distintos, e tem sido foco de estudo de diferentes autores que lidam com o tema, permitindo diferentes concepções. Em outras palavras,os padrões de beleza mudam ao longo do tempo e de acordo com cada cultura. O belo, se analisado fora do contexto da filosofia, é considerado como um atributo; já os filósofos, ao invés de tentarem definir o que é considerado bonito, tentaram fornecer uma teoria da beleza. O foco no que é belo mudou a essência da própria beleza. A essência da beleza foi definida pelos filósofos de várias maneiras e se tornou a principal preocupação dos esteticistas. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 43 Mesmo Platão discutiu as dificuldades e a importância de distinguir a beleza e coisas belas. De acordo com Platão, o belo e o bom estão conectados; no entanto, o belo deve ser definido primeiro. Portanto, de acordo com as antigas concepções da estética, a beleza e a bondade são valores éticos e estão inextricavelmente ligados: a estética é moral. FIGURA 18 – PLATÃO (NA ESQUERDA) E ARISTÓTELES (NA DIREITA) SÃO RETRATADOS POR RAPHAEL SANZIO (1483-1520) NA PARTE DO AFRESCO "A ESCOLA DE ATENAS" (1509-1510, BIBLIOTECA DO PALÁCIO DO VATICANO) FONTE: Disponível em: <http://www.guiageo-grecia.com/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Em seu livro “Estética e a Teoria Geral da Arte”, Dessoir (1970, p. 34) questiona se a beleza e a arte representam conceitos idênticos. Na tentativa de fornecer uma resposta, ele afirma que "a arte não é o produto da imitação da beleza, nem é determinada exclusivamente pela beleza". Além disso, o autor argumenta que os valores estéticos da arte são apresentados por meio da beleza, bem como através do trágico, do simples, do sublime e do elegante. Cada categoria estética não é meramente descritiva, também inclui um valor axiológico, pois há a valorização ou não. Algumas categorias oscilam entre os dois valores. Tome a palavra "legal", por exemplo, que geralmente implica em algo "bastante positivo", mas muitas vezes desaparece rapidamente e perde seu valor. Os valores axiológicos das categorias geralmente estão mudando e, na maior parte dos casos, são difíceis de avaliar os seus prós e contras. E ainda, parece que o feio tem para todos um valor desfavorável e negativo sem qualquer sucessão em relação ao positivo. Dizer que um objeto é feio não significa apenas afirmar como é um objeto, mas o que é seu valor. Pregar a feiura a um objeto é uma frase estética. 44 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Dizer que uma obra de arte é feia é argumentar que falhou devido à incapacidade técnica ou imperfeição. A feiura, na natureza, é considerada um erro na criação. Consequentemente, um animal que é monstruoso é considerado como uma exceção dentro da espécie, como uma falha na natureza. Você sabe o que significa axiologia? A axiologia é a teoria filosófica responsável por investigar valores, concentrando-se particularmente nos valores morais. Etimologicamente, a palavra "axiologia" significa "teoria do valor", sendo formada a partir dos termos gregos "axios" (valor) + "logos" (estudo, teoria). IMPORTANT E O primeiro entendimento sobre a questão seria que é impossível fazer abstração do caráter axiológico do feio. A feiura não é uma categoria descritiva, mas uma categoria avaliativa e tem um significado afetivo necessário. A palavra feio vem do latim foedus, que significa além de desagradável à vista, repugnante, sujo, vergonhoso e indigno. Assim, percebemos como o peso da palavra carrega, além de significados, valores morais. A feiura é sem forma e carece de estrutura interna, equilíbrio e simetria. O feio não está completo, ele se desvia da norma. É assim que se agarra o significado da feiura. O predicado "feio" também é difícil de entender do ponto de vista da lógica. 2.1 DEFINIÇÃO DA BELEZA NA ARTE Primeiramente nos perguntamos: o que é beleza? Os esteticistas formalistas reduzem a beleza à "clareza e compreensão fácil de certas relações". A experiência da beleza ocorrerá se pudermos discernir a unidade dentro da multiplicidade. Uma vez que a beleza representa apenas uma parte da realidade, é subordinada à realidade. Enquanto a multiplicidade é a soma dos aspectos individuais dos sentidos, como cor, som, palavra, luz, a unidade corresponde à razão e totalidade. Assim, a experiência da beleza é um processo entre os sentidos e a razão, ou seja, a beleza é um meio-termo entre os sentidos e a razão. Na história da estética, há numerosas definições do conceito de beleza. Uma análise das várias teorias da beleza revela que, em geral, todas as diferentes definições tratam de três noções distintas de beleza, que podem ser representadas da seguinte forma: TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 45 1) A beleza no seu amplo significado: a noção incorpora também a beleza moral e combina estética e ética. Tem suas raízes na filosofia antiga, mas se estendeu bem para a Idade Média. FIGURA 19 – HARMONIA, SIMETRIA, PROPORÇÃO: PADRÕES DE BELEZA QUE SURGIRAM NA GRÉCIA ANTIGA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/pin/2448832984648601 53/>. Acesso em: 25 jul. 2017. 2) A beleza em seu significado exclusivo da estética: a beleza expressa principalmente a experiência estética em termos de cor, som, pensamento etc. A noção é o fundamento da cultura europeia. FIGURA 20 – CONCEITO DE BELEZA EUROPEU E OCIDENTAL, LIGADO AOS IDEAIS ROMÂNTICOS E MODERNOS FONTE: Disponível em: <http://www.theartstory.org/movement-realism. htm>. Acesso em: 25 jul. 2017. 46 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 3) A beleza no seu significado estético, mas limitada apenas ao que pode ser percebido com os olhos (cor e forma). Vale ressaltar que, na estética, o belo raramente é visto dessa maneira. Em geral, a estética contemporânea usa o segundo conceito. FIGURA 21 – COR E FORMA ACIMA DE TUDO: A BELEZA NA CONTEMPORANEIDADE FONTE: Disponível em: <http://safecranes.org/contemporary-art-the- modern-art-form/>. Acesso em: 25 jul. 2017. As três definições não impedem a existência de outras definições de beleza mais gerais ou específicas. Pelo contrário, considerados de uma perspectiva histórica, vários autores forneceram definições que não suportam completamente as que fornecemos anteriormente. Assim, em “O Significado do Significado”, Ogden e Richards (2001) ressaltam cinco definições acerca do conceito do belo: 1) É belo aquilo que possui a simples qualidade da beleza. 2) É belo aquilo que promove uma emoção específica. 3) É belo aquilo que tem uma forma específica. 4) É belo aquilo que revela (verdade, espírito da natureza, ideal, universal, típico). 5) É belo aquilo que é uma expressão. Uma análise mais exaustiva das definições citadas revela as imperfeições da classificação, no sentido de que as afirmações não podem ser consideradas como definições profundas, mas como meras estruturas que poderiam servir de base para novas definições. Em “A história da beleza”, Eco (2004, p. 89) define que "a beleza nunca foi absoluta e imutável, mas assumiu diferentes aspectos, dependendo do período histórico e do país: não é válido apenas para beleza física (de homens, de mulheres, da natureza), mas também para a beleza de Deus, ou para os santos, ou ideias". A beleza está entre os três conceitos mais elevados da filosofia: o bom, o belo e o verdadeiro. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 47 2.2 TEORIAS DA BELEZA Os gregos antigos formularam uma teoria geral da beleza demonstrando que consiste nas proporções das partes, mais precisamente nas proporções e no arranjo apropriado das peças ou, ainda, mais precisamente no tamanho, qualidade e número das peças e suas inter-relações. A teoria foi referida como “A Grande Teoria”. O nome se encaixa bem, considerando que ao longo de todo o desenvolvimento histórico da estética e da cultura ocidental, nenhuma outra teoria durou tanto tempo e foi tão amplamente aceita como esta. “A Grande Teoria” foi desenvolvida pelos pitagóricos. A Escola Pitagórica definiu a beleza em termos de estrutura perfeita,e a estrutura foi definida em termos das proporções das partes. Em primeiro lugar, foi aplicada à música e depois à arquitetura, à escultura e à beleza dos seres vivos, incluindo então os sentidos da visão e da audição. Harmonia e simetria são os princípios subjacentes da Grande Teoria da Beleza. FIGURA 22 – PITÁGORAS VIVEU HÁ 2.500 ANOS FONTE: Disponível em: <http://www.imagick.org.br/pagmag/ turma2/pitagoras2.html>. Acesso em: 25 jul. 2017. No entanto, a teoria da proporção se encontrou com críticas desde a antiguidade. Por exemplo, Plotino (204-270 d.C.), na era da antiguidade tardia, desenvolveu uma teoria binária desafiando a Grande Teoria da Beleza. De acordo com a Grande Teoria, a beleza é apenas aquilo que consiste em partes, mas o brilho, as estrelas e o ouro não consistem em partes, mas são belos do mesmo modo. Portanto, é baseada na proporção e na clareza (resplendor, brilho, luz). 48 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Com relação às preocupações de estética discutidas por Platão, Grlic (1975) considera a relação entre beleza e objetos bonitos, ou seja, a relação entre beleza metafísica e beleza concreta, como sendo a principal preocupação da estética. Em suas obras, Platão trata da essência da beleza, ou seja, trata dos aspectos essenciais que tornariam uma mulher, um vaso, um animal ou uma árvore bonitos por natureza, ao contrário de uma noção de adorno, ou de embelezamento. Ele enfatiza o fato de que, além de objetos bonitos, há também pensamentos belos, ou seja, a beleza em si. Com base na teoria, os filósofos na Idade Média, que tratam da categoria de beleza, incluíam clareza em suas teorias, além da proporção. Vale ressaltar que a Grande Teoria da Beleza não foi completamente rejeitada pelos filósofos entre os séculos III e XV. Pelo contrário, a teoria foi estendida para incluir clareza além da proporção, como um princípio fundamental. Foi desenvolvida no século V a.C. e sobreviveu até o século XVII d.C. Significa que ela existiu por 22 séculos. No entanto, ao longo da história, passou por modificações, incluindo teses novas, conceitos adicionais, limitações etc. Vale ressaltar que foi desenvolvida para incluir: • A tese do racional e do belo. • A natureza quantitativa da beleza. • A natureza metafísica da beleza. • Sua objetividade. • Seu alto valor. Tatarkiewicz (2005) enumera várias teses que foram diretamente ligadas à Grande Teoria da beleza, da seguinte forma: 1) A beleza profunda é percebida através da mente, não só através dos sentidos. 2) A natureza quantitativa da beleza. 3) A teoria metafísica, que era de natureza idealista e se tornou teológica. Os defensores da teoria acreditam que "Deus é a razão de tudo o que é lindo" ou que "Deus é a beleza eterna". 4) A abordagem objetiva, que tem suas raízes nos ensinamentos dos pitagóricos, Platão e Aristóteles, e o princípio subjacente de que essa beleza é inerente aos objetos e que, de acordo com Platão, os julgamentos da beleza têm validade objetiva. 5) A beleza é um grande bem. Na filosofia antiga, o belo é um dos valores humanos básicos: o verdadeiro, o bom e o belo. Uma análise das premissas básicas leva à conclusão de que o processo de desenvolvimento da Grande Teoria da Beleza durou dois milênios. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 49 Em primeiro lugar, o belo estava ligado ao bem, uma atitude característica da antiguidade e da Idade Média. Os sofistas, os aristotélicos, os estoicos e os humanistas reduziram a teoria e trataram-na estritamente com a beleza esteticamente bonita. No século XVIII, a teoria da beleza é reduzida novamente, e o sublime é separado do belo. O longo desenvolvimento da teoria da beleza se caracteriza por uma mudança gradual da estética objetiva para a subjetiva. Até o século XX, a beleza era uma preocupação de Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Santayana etc. O cisma entre beleza natural e beleza da arte tem sido amplamente discutido. Segundo Maker (1975), para Hegel, a beleza natural não pode ser uma grande preocupação da teoria estética. Hegel acredita que o belo é idêntico ao valioso. Assim, o "artisticamente bonito" é o mesmo que o "artisticamente valioso". Muitos autores acreditam que a definição da beleza não deve ser uma preocupação da teoria estética. A crítica da posição central que a beleza ocupa na estética se baseia em três premissas: 1) A arte bem-sucedida não é necessariamente bonita. 2) Existem muitas espécies de valor estético que não podem ser reduzidas à beleza. 3) A estética tem que ver com a razão. Contudo, para entender um pouco mais sobre a relevância e irrelevância do belo na arte, precisamos aprofundar um pouco mais sobre o tema. Uma concepção particularmente sedutora e suspeita da beleza é encontrada na sociologia do gosto, como a forma como Bourdieu (1979) a elabora em seu livro “Distinção: crítica social do julgamento”. No estudo de épocas, Bourdieu (1979) estava interessado na variedade de coisas que são consideradas bonitas. Ele explica a experiência da beleza na perspectiva de fenômenos sociais mais globais. Por exemplo, quanto maior o conhecimento da arte, maior a educação e o status social. Bourdieu (1979) não hesita em retornar à argumentação de que o "gosto" estético não é senão um meio para a elite social mostrar sua superioridade. Ele conclui que a beleza é um meio político que estrutura as relações sociais. Os entusiastas da arte, em nossa sociedade, seriam, segundo Bourdieu (1979), esnobes, manipulando uma coisa cruel para excluir outras pessoas. Entretanto, será que as coisas não seriam mais complexas do que isso? A sociologia de Bourdieu trata unicamente de modelos gerais de reação e, de modo algum, com experiências individuais, em um contexto ocidental. A distribuição social não é essencial para a percepção do amor pela arte, mas sim, o englobamento psicológico do sentimento de beleza, e este se dá através de pessoas de distintas classes sociais, etnias e culturas. 50 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Outro paradigma para a explicação do sentimento "subjetivo" para a beleza é igualmente reducionista. É a perspectiva biológica evolutiva. Os biólogos evolucionários argumentam que o amor e a beleza são necessários para a sobrevivência. O pensamento defende que a beleza beneficia a autopreservação humana e, assim, tornou-se uma habilidade humana básica. Observemos a seguir a obra Vênus de Urbino, pintada por Ticiano Vecellio (1489-1576), durante o Renascimento. FIGURA 23 – VÊNUS DE URBINO, FEITA EM 1538, POR TICIANO FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/pin/473018767086892 713/>. Acesso em: 25 jul. 2017. O fascínio de todos os corpos femininos estaria relacionado a mecanismos de procriação, assim como os corpos atléticos musculares das representações de Apollo e Adonis atestam a virilidade do caçador, assim, ao poder da sobrevivência. Não parece ser o caso de muita arte contemporânea, como Bacon ou Lucian Freud, por exemplo, ao demonstrarem que o contraste homem-mulher não é o fator principal, por assim dizer. FIGURA 24 – RETRATO DE MULHER, DE LUCIAN FREUD (1975) FONTE: Disponível em: <https://www.irishtimes.com/opinion/lucian- freud-an-irishman-s-diary-on-the-artist-his-model-and-the-eel-in-the- bath-1.3107414>. Acesso em: 25 jul. 2017. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 51 O que é a beleza, então? Existem teorias possíveis como alternativas a estas? As teorias orientadas a objetos da beleza tentam compreender conceitualmente as características "secretas" da beleza. São as teorias de proporção, a composição perfeita, as linhas sinuosas e a dialética entre a forma e função. Fingem ser objetivos. A doutrina da proporção, harmonia, da simetria perfeita, pureza geométrica, de Pitágoras (o ângulo reto, as proporções corporais) sobre a coluna palladio (uma coluna deve ser nove vezes maior do que a sua largura), até Marilyn Monroe (a circunferênciaideal do peito), são todas doutrinas que reduzem a experiência da beleza para um conceito, para uma visão de uma relação de acordo com uma proporção dada, para uma percepção da estrutura do cosmos em toda a sua ideia. Essa estética é chamada de formal, mas existem muitos tipos de "formalismos". FIGURA 25 – EXEMPLO DE ESTÉTICA FORMAL NO CLASSICISMO GREGO: AS PROPORÇÕES DE UMA COLUNA GREGA FIGURA 26 – EXEMPLO DE ESTÉTICA FORMAL NOS PADRÕES DE BELEZA DA DÉCADA DE 1950: AS PROPORÇÕES DA MARILYN MONROE FONTE: Disponível em: <http:// www.carnationconstruction.com/ Techniques/00-02-Techniques-Architecture- ClassicalArchitecture.html>. Acesso em: 25 jul. 2017. FONTE: Disponível em: <https://www. pinterest.co.uk/pin/144467100520808314/>. Acesso em: 25 jul. 2017. 52 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Pitágoras, entre 570 e 500 a.C., utilizava a proporção áurea para explicar a harmonia entre a alma e o cosmo. Era um dos motivos que levava Pitágoras a dizer que “tudo é número”, ou seja, que a natureza segue padrões matemáticos, bem como a música e a astrologia. Pesquise mais a respeito da proporção áurea, assunto fascinante! NOTA Geralmente, os formalismos consideram a essência da beleza como uma característica de uma natureza holística: a beleza é a regra do todo, da combinação de elementos separados, de inter-relações e justaposições dentro do objeto. Os elementos particulares devem ir de mãos dadas em uma "composição", sem perderem a identidade através da relação com uma totalidade. As teorias funcionalistas da beleza são igualmente objetivas. Uma estética funcionalista nos ensina que o prazer visual é encontrado na usabilidade adequada dos objetos. De acordo com o funcionalismo, a integridade de um objeto consiste na combinação perfeita de forma e função: quanto mais a função determina a forma, mais bonito é o objeto. Tal teoria da beleza exige a remoção de todas as redundâncias, puramente decorativas, para a eliminação de tudo que pode parecer frívolo, gracioso e elegante. FIGURA 27 – QUANDO A FORMA SEGUE A FUNÇÃO: A ESTÉTICA FUNCIONAL DA BAUHAUS FONTE: Disponível em: <https://visual.ly/blog/six-lessons-from-the- bauhaus-masters-of-the-persuasive-graphic/>. Acesso em: 25 jul. 2017. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 53 Determinada perspectiva funcionalista é difícil de sustentar. A teoria de Duchamp sobre o ready-made, por exemplo, argumenta que, para que o objeto seja visto como objeto de arte, ele deve perder sua função. FIGURA 28 – DUCHAMP E A “RODA DE BICICLETA” (1913) FONTE: Disponível em: <https://medium.com/@felipezamana/ criatividade-ready-made-f4e78deeb4f6>. Acesso em: 25 jul. 2017. Uma teoria funcionalista da arte também é anti-intuitiva. O que dizer da beleza das cores? Qual é a função das cores em suas combinações e em sua abstração? Por outro lado, existem perspectivas orientadas para o sujeito que destacam a reação subjetiva de quem experimenta, cultiva e valoriza a beleza. A experiência da beleza diz respeito ao estado da mente de uma pessoa. Determinada estética orientada para o assunto pode ser considerada a "revolução copernicana" na história das teorias sobre a beleza. Foi Kant e sua “Crítica do Juízo“ (1790) que introduziram essa ideia. A experiência estética, a intensidade da gratificação, até o sentimento de bem-aventurança no contato com a beleza natural ou com a beleza de uma obra de arte se tornam o tema da estética filosófica. Kant acreditava que uma experiência estética é impossível sem um sentimento de gratificação, sem um "humor" especial e esse "humor" ou sentimento é íntimo, pessoal e subjetivo. Ainda, nenhum envolvimento moral ou político, nenhum interesse ou qualquer outro desejo pode perturbar esse "humor". A recepção da última condição, o desinteresse, tem sido especialmente problemática. 54 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Ser sensibilizado é, portanto, central nesta abordagem orientada para o sujeito. A beleza deve nos levar às lágrimas, é dentro e através da beleza que descobrimos o nosso "eu" mais profundo ou, como pensou Plotino, "o divino em nós". A beleza leva à "fusão interna", uma fusão do que realmente somos e o que deveríamos ter sido. Não é de admirar que os românticos, como Friedrich Schiller (1759-1805), tenham considerado o sentimento de beleza como o desejo de perfeição subjetiva. A beleza leva ao "paraíso estético", que é realmente o postulado do esteticismo, que o anseio de beleza enche toda a nossa existência. Dentro do paradigma orientado para o sujeito, podemos descobrir outra polaridade muito importante, a saber, entre as teorias da beleza que se baseiam inteiramente na sensibilidade do sujeito e nas teorias da beleza que atraem uma capacidade que nos permite entrar em contato com o suprassensível. O fato de que a beleza é "o divino em nós", como argumenta Plotino, ou que leva ao "paraíso estético", ressalta que o tipo de mente que experimenta a beleza é "dirigida" para o suprassensível que Kant estipulou, como a ideia que "transcende" todas as sensibilidades e até mesmo algumas sensibilidades que são transformadas pela imaginação. Entretanto, não podemos esquecer que vivemos em um mundo supostamente de opostos, e que, se quisermos compreender a natureza da beleza, não podemos deixar de contemplar a natureza da feiura. O que seria do belo sem o feio, e vice-versa? O feio existe lado a lado do belo. 3 O FEIO E O SUBLIME Será que o feio é mesmo oposto à beleza? Faz sentido falar sobre a beleza do feio ou sobre a bela representação do feio? A feiura é necessária para falar sobre o belo? No capítulo V de sua “História da Beleza”, Eco (2004) discute a chamada "beleza dos monstros". Ele retorna ao assunto em sua obra mais recente, “História da Feiura” (2007). Ele propõe, ao lado de uma iconografia extensa da feiura, uma teoria filosófica coerente que passa por toda a história da arte e filosofia da arte até o presente. Eco (2007) argumenta, entre outras coisas, que em muitas culturas são positivamente valorizadas as representações de seres desesperados, horripilantes (por exemplo, o Minotauro e Ciclopes, da mitologia grega). TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 55 FIGURA 29 – REPRESENTAÇÃO DIGITAL DE UM CICLOPE, GIGANTE IMORTAL DA MITOLOGIA GREGA FONTE: Disponível em: <http://mmitologiagrega.blogspot.com. br/2012/05/ciclopes.html>. Acesso em: 25 jul. 2017. Já Aristóteles ressalta que a arte também pode sempre retratar seres feios de uma maneira bonita, e que é precisamente a beleza do confronto que o torna feio e aceitável. Segundo Eco (2004, p. 133), “a fealdade que nos repele na natureza existe, mas torna-se aceitável e mesmo prazerosa na arte que expressa e mostra "lindamente" a feiura da fealdade”. A representação do feio pode ser estendida às cenas de tortura, agonia e tristeza ao lado do monstruoso e da desfiguração física. FIGURA 30 – A BELEZA ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM VÊ? FONTE: Disponível em: <http://omundodogrotesco.blogspot.com.br/2013/09/ sugestao-de-leitura-historia-da-feiura.html#.Wa8R9MiGMWk>. Acesso em: 25 jul. 2017. 56 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Filósofos e especialmente teólogos, na Antiguidade e na Idade Média escolástica, conceberam uma explicação teórica para a presença do feio na arte, a saber, que o universo criado é um todo que deve ser valorizado em sua totalidade. A criação é vista como um todo, as sombras fazem a luz brilhar de uma maneira mais linda e o feio pertence à ordem geral e, portanto, pode parecer bonito. A ordem pode ser bonita em sua totalidade, mas faz o lugar para o monstruoso, que contribui para o equilíbrio. De acordo com a argumentação filosófica, a beleza do universo aumenta devido à diversidade. O feio, o monstruoso continuará encantador e fascinante. A apreciação estética da feiura continua controversa. É ainda mais notável que muito pouca pesquisa filosóficatenha sido feita sobre os fenômenos estéticos da feiura. Uma exceção é “A Estética do Feio”, de Karl Rosenkranz, publicada em 1853. No trabalho, Rosenkranz propõe uma abordagem dialética e hegeliana ao feio, completamente alinhada com a teologia holística medieval, dizendo que não há beleza sem feiura, nem feiura sem beleza. Rosenkranz apresenta uma fenomenologia da feiura. Reúne de forma dialética a beleza das proporções e do formalismo geral, a falta de formalidade e a falta de forma. Certamente, este é o hegelianismo ortodoxo. Ao introduzir a experiência estética na temporalidade, na historicidade e na história dialética da humanidade, o dualismo do belo e do feio deve chegar ao fim. Rosenkranz relata explicitamente a feiura, o mal e o diabólico. Em um gesto hegeliano clássico, o negativo é dissolvido no feio. Essa estética única do feio tem um duplo significado. Por um lado, trata-se de uma teoria excepcionalmente sistemática e forte, estando a feiura relacionada ao jogo da formalidade e da falta de forma e, por outro lado, o feio é confrontado com uma fenomenologia especificamente detalhada e é ratificado com categorias estéticas adjacentes como o vulgar, a base, o repulsivo, o caricatural, o fantasmagórico, e assim por diante. Rosenkranz não hesita, pois certamente há uma experiência estética do feio. Contudo, será que uma experiência estética pura do feio é possível? O feio é, logicamente, não o oposto do "belo" e ambos não são contraditórios, mas sim logicamente antipodais. Eles se excluem, mas deixam a porta aberta para termos intermediários neutros. "Não é bonito" não coincide com “feio” ou “bonito”. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 57 Você já ouviu falar em fenomenologia? A fenomenologia é uma corrente filosófica muito ampla e diversificada, portanto não há uma única definição para todos os seus aspectos. No entanto, é possível caracterizá-la como um movimento filosófico que tenta resolver os problemas filosóficos a partir de uma experiência intuitiva ou evidente, que é aquela em que as coisas são mostradas da maneira mais original ou patenteada. É por isso que os diferentes aspectos da fenomenologia muitas vezes discutem constantemente qual tipo de experiência é relevante para a filosofia e como acessá-la. IMPORTANT E Voltando à questão da possibilidade de uma experiência estética do feio, Kant não oferece uma solução definitiva para o problema. Na obra "Analítica do Belo", Kant (2007) poderia fornecer uma possível resposta, uma vez que, na experiência do sublime, a imaginação está ferida e ainda assim há prazer. A dor medeia o prazer que se experimenta no sublime. A experiência do sublime traz a mente para um estado de tensão e relaxamento. O que é significativo é que, mesmo na situação, a mente ainda é capaz de ter uma experiência estética. Um tipo de transgressão é inadmissível e se a fronteira é ultrapassada, então o domínio da estética é deixado para trás. É preciso abordar o aspecto técnico da argumentação kantiana. Kant distingue, na Crítica do Juízo (2012), o monstruoso e o colossal. O colossal, o monumental e o gigantesco ainda estão dentro da estética do sublime. Pensemos nas dimensões das obras de Christo Vladimirov Javacheff (1935), que nossa imaginação dificilmente pode entender. O colossal oferece, de fato, uma estratégia típica para o sublime nas artes contemporâneas. Entretanto, há o monstruoso. Um objeto é "monstruoso" quando, devido à falta de forma, paralisa completamente a mente. FIGURA 31 – UMA DAS INCRÍVEIS OBRAS DE CHRISTO E JEANNE CLAUDE: ILHAS CERCADAS (1983) FONTE: Disponível em: <https://www.taschen.com/pages/en/catalogue/art/ all/01090/facts.christo_and_jeanne_claude.htm>. Acesso em: 25 jul. 2017. 58 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Embora o colossal incite um sentimento do sublime, o monstruoso paralisa e prejudica a mente e é precisamente o que o feio faz. Talvez existam graus de feiura, mas a "feiura final", o monstruoso, elimina até mesmo a possibilidade de uma experiência estética. Assim, podemos encontrar um critério, em Kant (2007), para distinguir o sublime do feio. Kant distingue dois tipos de "magnitudes": a magnitude reverenda e a magnitude monstruosa. A magnitude reverenda é uma magnitude que obriga o respeito, por exemplo, na paixão do espanto. É exatamente o tipo de "magnitude" cujo efeito é o sublime. O oposto é a magnitude monstruosa, que traz sobre a dissuasão, medo e uma forte ansiedade. Kant chama isso, em sua “Crítica do Juízo”, de monstruoso, que destrói a imaginação e cuja violência é tão intensa que a dor é insuportável. Aqui, não há mediação de dor e prazer como na experiência do sublime. Este é o domínio da "feiura final" que, na verdade, é inimaginável e cujo efeito afetivo é o nojo ou repugnância. Mas Kant nem sempre é tão claro na delimitação do sublime e do feio. No entanto, uma leitura atenta da “Crítica do Juízo” e da “Antropologia” permite formular uma dupla conclusão. Em primeiro lugar, o feio não pode ser concebido como contraditório com o belo, mas antes deve ser entendido em relação ao sublime. O feio se encontra do lado oposto do sublime, tão radicalmente inconcebível e incompreensível por nossas faculdades de representação e nossa imaginação. Consequentemente, não há lugar para o próprio conceito de experiência anestésica do feio, não em Kant e, ao mesmo tempo, não na estética clássica. Uma experiência estética do feio é impossível devido ao adiamento e à paralisia completa das faculdades humanas. A fealdade é ultrajante. Durante a experiência, nossa mente sofre um sentimento de desgosto, e um desgosto não permite nenhuma relação estética, mas apenas uma atitude moral. Somos obrigados a assumir uma posição moral na presença do feio e, desse modo, outro interesse da razão, de que o estético puro nos motiva. Embora possamos argumentar que uma teoria estética clássica do feio não é possível, não implica que uma "experiência de feiura" seja impossível. Além disso, as artes visuais contemporâneas provocam frequentemente determinada experiência. Significa apenas que a beleza não é mais uma categoria estética pertinente para ser empregada na caracterização do objeto contemporâneo de arte e que os predicados mais pertinentes precisam ser procurados. Para o efeito, podemos apelar para a categoria "subversiva" kantiana do monstruoso, que o próprio Kant colocou fora do domínio estético. A maior parte das artes visuais contemporâneas TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 59 não mostraria nada além de um impulso (incontrolável, inconsciente) para a reificação. As artes contemporâneas são fascinadas com a coisa que se retira de qualquer limitação e formação. Toda a história da arte tem sido um conflito entre a forma e a matéria. Foi o caso com os grandes modernistas, como Pablo Picasso (1881-19730), Henri Matisse (1869-1954), Wassily Kandinsky (1866-1944) e Piet Mondrian (1872-1944). FIGURA 32 – COMPOSIÇÃO VIII, DE KANDISKY, 1923 FONTE: Disponível em: <https://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/kandinsky/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Os antagonistas do conflito surgiram nos anos 60 do século passado. A atração de artefatos nus e brutos chama a atenção de muitas figuras orientadoras significativas das artes contemporâneas, como de Joseph Beuys (1921-1986) a Edward Kienholz (1927-1994) para Paul McCarthy (1945-) e Mike Kelly (1954-2012). FIGURA 33 – INSTALAÇÃO “I LIKE AMERICA AND AMERICA LIKES ME” DE JOSEPH BEUYS, 1974 FONTE: Disponível em: <http://www.azioni.nl/beuys/blogs/>. Acesso em: 25 jul. 2017. 60 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA Yves-Alain Bois e Rosalind Kraus ofereceram uma excelente análise da dinâmica em seu livro Formless (1997). Três fases podem ser distinguidas na batalha contra a forma, como é encarnado nas artes contemporâneas: o antiformal, a falta de forma e o abjeto. Davidson (1931) concebeu, nos anos60, a noção de antiforma como uma reação contra a arte clássica, que considerou a solidez e nobreza de materialidade. Davidson (1931) pediu a horizontalidade e os materiais banais (materiais sensíveis, descartáveis e sintéticos), pleiteando por flacidez, limo, fluidez e dobra. De acordo com Bois e Kraus (1997), o objeto é atingido quando também evoca entropia e pulsação. A entropia diz respeito à transitoriedade geral da matéria, da pulsação da temporalidade rítmica como explosão da corporalidade, a pulsação do desejo ("o pulso da vida"). A história da arte conheceu muitos períodos que objetivavam o despojamento. No século XX, por exemplo, tomemos, por exemplo, a arte informal ou a arte povera. FIGURA 34 – VÊNUS DOS TRAPOS, DE MICHELANGELO PISTOLETTO (1933). OBRA FEITA EM 1967: EXEMPLO DE ARTE POVERA FONTE: Disponível em: <http://publicdelivery.org/michelangelo-pistoletto- venus-of-the-rags/>. Acesso em: 25 jul. 2017. A partir da década de 60, a mudança de direção do paradigma modernista para a arte contemporânea certamente confirmou a glória do despojamento formal do belo. O despojamento radical é, por vezes, realizado através do universo da carne feia, mutilada, a decadência, o derretimento, o trabalho do heterogêneo "de fora", do irreversível que penetra, o triunfo absoluto da matéria sobre a forma, uma desestabilização difícil de alcançar de nossas categorias de classificação e nossos conceitos artísticos. Entretanto, também pode ser alcançada por meio das obras que supostamente embelezam o feio, o grotesco e o bizarro de nossas realidades atuais. TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 61 FIGURA 35 – AS ESCULTURAS DE PATRICIA PICCINI (1965) FONTE: Disponível em: <http://beautifuldecay.com/2015/07/21/ patricia-piccininis-hyperreal-mutated-creatures-raise- questions-genetic-manipulation-cloning/>. Acesso em: 25 jul. 2017. Podemos finalizar as reflexões sobre o belo e o feio com algumas conclusões: • A estética clássica, fundada nas categorias estéticas da beleza, acompanha a ideia de que a experiência da beleza é uma necessidade antropológica. As pessoas precisam de beleza, é o caso em todas as culturas. Todo mundo parece ter a sensação de que nossa existência é empobrecida sem a experiência da beleza. Claro, tal necessidade existencial traz a nostalgia da beleza, a qual está ausente. Talvez a primeira afirmação seja tão humanista e idealista, e nem sequer pode obedecer às necessidades atuais do homem contemporâneo. Talvez hoje precisássemos de mais provocações, autenticidade e excitação, e a atitude contemplativa que o belo nos obriga a tomar não é mais atraente. O puro "bem- estar", que é encontrado quando confrontado com a beleza, parece-nos mesmo estranho e egocêntrico. O entusiasmo coletivo nos parece ainda mais moral do que puro prazer individual. Ainda assim, percebemos que, com o surgimento de forças vitais excitantes e às vezes destrutivas, como a nostalgia pela beleza e a atitude estética de contemplação e serenidade, tornam-se inevitáveis e até mesmo indestrutíveis. • A beleza, como categoria estética central, indubitavelmente designa a arte clássica, incluindo a modernidade (até 1960) e, portanto, a beleza é definitiva dentro da teoria da arte clássica e da estética. A obra de Kant é o modelo e o protótipo da ideia. Oferece a reconstrução dedutiva mais adequada e universal do estado de espírito que é "movido" pela beleza. • Na contemporaneidade, nos chamados tempos pós-modernos, a beleza é destronada. É absolutamente claro que não existem mais categorias estéticas 62 UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA centrais e periféricas. Não existe mais uma hierarquia entre os múltiplos predicados estéticos que culminam com o belo. O termo de referência mais utilizado é igualmente o menos específico, o mais geral, interessante. As obras de arte são ou não interessantes. A semântica do proclama que o "interessante" é aquele que solicita meu interesse ou, melhor ainda, os interesses das minhas faculdades. Podemos pensar na divisão clássica (kantiana): a faculdade cognitiva e intelectual do conhecimento, a faculdade moral pragmática (orientada para a comunidade) e a faculdade estética afetiva. Hoje em dia, ao chamar um objeto de arte "interessante", um já não declara nada sobre as faculdades específicas que são abordadas, mas tem conotações cognitivas, morais e estéticas. O destronamento da beleza diz respeito, entre outras coisas, à dissipação das fronteiras entre as faculdades clássicas do sujeito. • Aqui também, Kant foi o iniciador. O feio não é considerado como oposto ao belo, mas como uma continuação do sublime. O extremo sublime seria o feio. O feio, portanto, não é um valor ou categoria estética, mas um tipo pós-estético. O "valor" das artes contemporâneas consiste em infringir nossa imaginação, violá-la, e assim o efeito violento do objeto contemporâneo da arte traz um reflexo axiológico e moral imediato sobre a identidade, a autenticidade, a integridade de ser humano. Assim, a arte contemporânea não pode mais ser julgada e valorizada de acordo com a qualidade das categorias estéticas, começando com o belo, mas de acordo com a intensidade do impacto nos interesses de nossas faculdades. Podemos chamar de excelência estética nova ou mesmo, se não parecer muito paradoxal e irônico, a "nova beleza". TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 63 LEITURA COMPLEMENTAR É possível definir arte? Noeli Ramme A partir do final da década de 50 é que se pode realmente falar da existência de uma estética de cunho analítico. Não por acaso, a investigação acerca da natureza da arte será marcada tanto pela reviravolta pragmática operada por Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, quanto pela revolução duchampiana na arte, precursora das inovações radicais da Pop Art, do Minimalismo e do Fluxus, os principais movimentos artísticos do período. Assim, se, por um lado, a teoria dos usos da linguagem permitiu à filosofia analítica superar os limites de uma filosofia dedicada quase que exclusivamente às questões da lógica e da fundamentação das ciências, por outro lado, os movimentos artísticos da década de 60 colocaram novas questões ao romper com praticamente todos os limites da arte que estavam estabelecidos dentro da prática modernista. Por exemplo, o Fluxus, com sua ênfase na produção coletiva, rompe com a ideia de autoria; o Minimalismo, por sua vez, coloca em xeque a ideia de experiência estética como mera contemplação e a Pop ultrapassa definitivamente todos os limites da arte ao instaurar a possibilidade de apresentar como arte quaisquer objetos tirados do mundo comum. Dados todos os deslocamentos das fronteiras da arte, a pergunta “o que é arte?” se torna premente não só dentro do universo filosófico, mas também no campo da prática e da teoria da arte. Um dos primeiros filósofos de formação analítica a tratar da questão da definição da arte foi Morris Weitz, em um artigo de 1954, chamado “O papel da teoria na estética”. Além de considerar a pluralidade de formas artísticas que compõem a história da arte ocidental, Weitz parte também da consideração da existência de inúmeras definições mutuamente excludentes do conceito “arte” – organicismo, voluntarismo, forma significante, emocionalismo, intelectualismo, formalismo – que podem ser encontradas nos textos dos filósofos, de Platão até hoje, para afirmar finalmente que nenhuma delas teve êxito ao tentar capturar a essência da arte. Para todas elas, poderíamos apontar contraexemplos, ou seja, obras de arte que não possuem as características mencionadas na definição. Nenhuma delas atenderia às exigências próprias de uma definição filosófica, de fornecer pelo menos um critério necessário e suficiente para que se possa atribuir com segurança o estatuto de obra de arte a um objeto. Ao invés de dar uma nova definição, ele propõe como alternativa a rejeição completa da questão, poisas dificuldades não seriam apenas uma consequência UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 64 da grande variedade de obras de arte, mas sim do fato de que simplesmente não é possível descobrir ou definir uma essência, ou um conjunto de propriedades que deve ser apresentado por cada obra verdadeiramente artística. Para tratar do problema, diz ele, devemos considerar primeiro que tipo de conceito é o conceito de arte e não o conjunto da arte ou de algumas obras de arte. O conceito de arte seria intrinsecamente aberto e mutável, e designa um campo que se orgulha da sua originalidade e inovação. E mesmo que pudéssemos agora definir o que é arte, nada garante que a arte futura vai se conformar com esses limites. O mais provável é que suas transformações não parem de acontecer. Assim, diz Weitz que o caráter extremamente expansivo e instável da arte torna sua definição logicamente impossível. Se é impossível definir arte, nos termos de uma definição que ofereça critérios suficientes e necessários, então é preciso abandonar o modo como a questão havia sido colocada até então. Weitz afirma que uma definição da arte não é necessária, pois o juízo “isto é arte” pode ser feito com base na experiência passada, com base apenas no que ele chama de “critérios de reconhecimento”, que são apresentados por ele a partir de uma interpretação dos conceitos de jogos de linguagem e de semelhanças de família presentes nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. A tese maior do livro é a de que o significado da linguagem é o uso. No § 7 das Investigações, ele pede ao leitor para comparar o uso da linguagem como “um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna”. Assim, a práxis da linguagem constitui um conjunto de jogos de linguagem. No § 65, ele responde a um interlocutor que pergunta pela essência da linguagem que, ao invés de indicar algo que é comum para tudo que chamamos de linguagem, ele vai defender que há um parentesco entre os vários jogos de linguagem, assim como há entre os outros tipos de jogos. Se considerarmos os jogos que conhecemos, diz Wittgenstein, percebemos que nem todos os jogos são iguais, mas alguns lembram outros em alguns aspectos – e “isto é tudo”. O que encontramos não são propriedades suficientes e necessárias, mas somente “uma rede complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor”. Essas semelhanças se relacionam como as semelhanças entre membros de uma mesma família: alguns têm a mesma cor de cabelo, outros a mesma cor dos olhos, ou a mesma estatura etc. De acordo com uma interpretação corrente da teoria, podemos agrupar no mesmo conceito objetos diversos dos quais podemos dizer que o objeto a é semelhante ao b, o b ao c, o c ao d e assim por diante, e não depende de que haja uma característica que todos possuam em comum. Tratando do conceito de arte, do mesmo modo que Wittgenstein trata o conceito de linguagem, ou seja, como um conceito empírico-descritivo, Weitz diz TÓPICO 3 | O BELO, O FEIO E O SUBLIME NA ESTÉTICA 65 que os objetos de arte também se relacionam de múltiplas maneiras, por meio de uma complexa teia de semelhanças que se sobrepõem. Determinadas redes de similaridades fornecem informação suficiente para que possamos formar o que ele chama de “critérios de reconhecimento”, que nos permitem empregar o termo de modo correto em um novo caso. Seguindo Wittgenstein, ele mostrou que é inútil buscar uma resposta unívoca e finalmente esclarecedora do que seja a arte e que torne possível separar com segurança o que é arte do que não é. A arte é, portanto, um conceito de textura aberta, assim como jogo ou linguagem, e dizer isso significa dizer que suas condições de aplicação podem ser alteradas. Implica também que, casos de nova aplicação do termo, pedem a nós uma decisão no sentido de admitir ou não uma ampliação no seu uso. Mesmo dentro da arte, é preciso tomar decisões desse tipo quando novas formas aparecem alargando ou superando categorias usuais, como a instalação com relação à escultura, ou o objeto com relação à pintura etc. Casos assim mostram que os limites dentro da arte são móveis e não muito definidos. Mostram também o quanto é importante a existência de critérios conceituais para fazer determinadas distinções. Weitz faz também uma distinção entre um conceito descritivo e um conceito avaliativo, ou apreciativo da arte. O uso descritivo não seria tão problemático, diz ele, uma vez que é apenas uma questão de estabelecer critérios para que possamos reconhecer uma obra quando vemos uma. Se algum objeto novo apresenta alguma característica aparente, que podemos comparar com a de algum outro objeto já reconhecido como arte, podemos aplicar a ele o mesmo estatuto. Não seria exatamente um problema, mesmo porque alguma coisa ser considerada arte não implica que é boa arte, ou mesmo, uma “obra prima”. O problema, diz Weitz, é exatamente com o uso apreciativo. Muitas vezes, “é uma obra de arte” é usado como sinônimo de “é uma ‘verdadeira’ obra de arte” ou “é assim que a arte deve ser”. As definições de arte se tornam recomendações para o modo como a arte deve ser feita, e então aqueles critérios apontados pelos teóricos que ele criticou como não sendo definições válidas de arte podem acabar servindo como critérios avaliativos, pois mostrariam características das obras que fazemos bem em notar, e também em elogiar. Assim se, por um lado, a proposta de Weitz teve um efeito libertador sobre pelo menos uma parte dos teóricos da estética analítica, que abandonaram a tarefa de descobrir a essência da arte, por outro lado, despertou em vários o desejo de construir um tipo alternativo de definição que pudesse superar as dificuldades. UNIDADE 1 | ARTE E PERCEPÇÃO ESTÉTICA: CONCEITO E NATUREZA 66 Dentre os filósofos está Arthur Danto que, em 1964, escreveu um artigo intitulado “O mundo da arte”. Nele, Danto defende que é possível dar uma definição da arte capaz de subtrair-se às vicissitudes da história e à pluralidade das obras reconhecidas como arte e ao mesmo tempo captar a essência dela. Paradoxalmente, a tese, depois reformulada e ampliada em vários livros, combina com o historicismo de Hegel com outro aspecto da teoria dos jogos de linguagem do mesmo Wittgenstein das Investigações Filosóficas. O outro aspecto é o conceito de forma de vida, que está intrinsecamente ligado aos dois que já mencionamos. Existem várias interpretações do conceito, apesar de ele ter pouquíssimas ocorrências na obra de Wittgenstein e ser de fundamental importância na segunda fase da sua obra. Em linhas gerais, aparece sempre vinculado ao conceito de jogo de linguagem. Forma de vida pode significar, entre outras coisas, o conjunto de ações que acompanha um jogo de linguagem ou que constitui uma linguagem, mas pode significar mais amplamente o conjunto de condições sociais ou culturais que produz e sustenta uma linguagem. De fato, ao mesmo tempo em que Wittgenstein afirma que a linguagem não pode ser definida de uma forma única, que existem inúmeros jogos de linguagem ligados por semelhanças de família, o que levaria a uma espécie de relativismo semântico, pois as palavras têm seu significado alterado ao serem usadas em jogos diferentes, ele também afirma que cada um dos jogos de linguagem está ancorado em uma forma de vida, e é esta que, em última instância, sustenta o sentido de um jogo de linguagem de modo mais ou menos determinado. Wittgenstein define assim a relação entre jogo de linguagem e forma de vida: “O termo jogo de linguagem deve aqui salientar que o falar da linguagem é parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (§ 23, IF)”. Ao mesmo tempo em que, mostrar compreensão de um jogo de linguagem implica ser capaz de explicar o modo como usamos certas palavras, as explicações têm um fim quando dizemos: “É assim que fazemos”. Quer dizer, na nossa forma devida é assim que agimos. O conceito de forma de vida é essencial para conectar a linguagem às ações, à vida orgânica, social, cultural e histórica. FONTE: RAMME, Noeli. É possível definir “Arte”? Revista Analytica, V. 13, n° 1, 2009, p. 197-202. Disponível em: <http://analytica.inf.br/analytica/diagramados/159.pdf>. Acesso em 1 jan. 2018. 67 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O belo, se analisado fora do contexto da filosofia, é considerado como um atributo; já os filósofos, ao invés de tentarem definir o que é considerado bonito, tentaram fornecer uma teoria da beleza. O foco no que é belo mudou a essência da própria beleza. A essência foi definida pelos filósofos de várias maneiras e se tornou a principal preocupação dos esteticistas. • Os gregos antigos formularam uma teoria geral da beleza, segundo a qual consiste nas proporções das partes, mais precisamente nas proporções e no arranjo apropriado das peças ou, ainda mais precisamente, no tamanho, qualidade e número das peças e suas inter-relações. Determinada teoria foi referida como “A Grande Teoria”. O nome se encaixa bem, considerando que, ao longo de todo o desenvolvimento histórico da estética e da cultura ocidental, nenhuma outra teoria durou tanto tempo e foi tão amplamente aceita como esta. Foi desenvolvida pelos pitagóricos. • Já a feiura não é uma categoria descritiva, mas avaliativa e tem um significado afetivo necessário. A palavra “feio” vem do latim foedus, que significa, além de desagradável à vista, repugnante, sujo, vergonhoso e indigno. Assim, percebemos como o peso da palavra carrega, além de significados, valores morais. A feiura é sem forma e carece de estrutura interna, equilíbrio e simetria. O feio não está completo, ele se desvia da norma. É assim que se agarra o significado da feiura. O predicado "feio" também é difícil de entender do ponto de vista da lógica. A apreciação estética da feiura continua controversa. É ainda mais notável que muito pouca pesquisa filosófica tenha sido feita sobre os fenômenos estéticos da feiura. Uma exceção é “A Estética do Feio”, de Karl Rosenkranz, publicada em 1853. No trabalho, Rosenkranz propõe uma abordagem dialética e hegeliana ao feio, completamente alinhada com a teologia holística medieval: não há beleza sem feiura, nem feiura sem beleza. • O feio não é o oposto do "belo" e ambos não são contraditórios, mas sim logicamente antipodais. Eles se excluem, mas deixam a porta aberta para termos intermediários neutros. "Não é bonito" não coincide com “feio” ou “bonito”. 68 1 A partir do ponto de vista conceitual da estética, qual seria a diferença entre o feio e o sublime? Dê um exemplo para cada. 2 A experiência da beleza é um processo entre os sentidos e a razão. Na história da estética, autores forneceram numerosas definições do conceito de beleza. Assim, as diferentes definições tratam de três noções distintas de beleza, que seriam: a) A beleza em seu significado reduzido, em seu significado exclusivo e em seu significado estético. b) A beleza no seu amplo significado, em seu significado exclusivo e em seu significado estético. c) A beleza em seu significado amplo, reduzido e contemporâneo. d) Nenhuma das alternativas. AUTOATIVIDADE 69 UNIDADE 2 RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de: • conhecer as raízes históricas da estética clássica ocidental; • conhecer as origens do classicismo grego na arte e na arquitetura; • conhecer a natureza do classicismo romano, na arte e na arquitetura, prin- cipalmente durante a Era Augusta; • compreender acerca do ressurgimento da estética clássica na Europa, após a Idade Média com o Renascimento, e mais tarde na Europa e nas Améri- cas com o Neoclassicismo; • reconhecer a permanência e a importância da estética clássica ao longo da história até a contemporaneidade; • analisar a estética da música clássica. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Em cada um deles, você en- contrará autoatividades que o ajudarão a fixar os conhecimentos adquiridos. TÓPICO 1 – ORIGENS DO CLASSICISMO TÓPICO 2 – O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA TÓPICO 3 – O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA TÓPICO 4 – A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 70 71 TÓPICO 1 ORIGENS DO CLASSICISMO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Como analisamos na unidade passada, a ideia de modernidade foi essencialmente ligada à condenação do belo como valor e norma estética. A arte e a estética contemporânea ainda questionam a existência, o significado e o valor da beleza a favor do novo, do intenso e do estranho. Contudo, o conceito clássico de beleza ainda fascina e norteia boa parte de nosso cotidiano, como nos padrões estéticos da beleza corporal, da moda, da arquitetura ou design. Trata-se de um paradigma longevo, que continua vivo como espelho, servindo de contraponto frente aos questionamentos artísticos e teóricos que se deram a partir da modernidade. O principal objetivo do tópico é conhecermos as origens históricas da estética clássica ocidental e, mais precisamente, a origem do classicismo na arte e na arquitetura grega e romana, berço do paradigma da beleza. Determinado aprofundamento histórico nos dará subsídios para compreendermos boa parte da construção da estética europeia, que exerceu forte influência no Brasil. Trata-se, portanto, de um conhecimento estético que define parte da nossa própria identidade como ocidentais e brasileiros, e que nos será útil na compreensão de todas as revoluções estéticas que se deram principalmente a partir da modernidade. De um modo geral, podemos afirmar que as artes do mundo ocidental foram influenciadas principalmente pela arte dos gregos. Mesmo as artes alternativas da Europa celta ou das estepes asiáticas foram influenciadas pelas imagens clássicas. Embora o registro facilite a isolação das características, que distinguem a arte grega das artes de outras culturas, contemporâneas ou posteriores, provavelmente também tornou mais difícil avaliar em seus próprios termos, julgar seu papel e a resposta daqueles para quem foi praticada, além de valorizar justamente suas inovações profundas. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 72 Na tentativa de definirmos as características da estética clássica, segundo J. Boardman (1993), também podemos fazer justiça ao fenômeno notável, que foi a rapidez da sua evolução e a permanência de sua essência ao longo dos séculos, até os tempos atuais. Pondere por um momento a respeito dos nossos padrões de beleza, e da importância que uma imagem realista clássica possa ter na atualidade, seja na arte, na mídia, no design, no marketing em geral. FIGURA 1 – PROPAGANDA DA LEVI’S: O DAVID DE JEANS FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/26106872814542808/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. Observamos a imagem de propaganda da marca de jeans Levi’s. A montagem foi feita através da superposição digital da imagem de um short jeans em uma imagem da famosa escultura de David, do artista Michelangelo, produzida em estilo clássico, durante o Renascimento italiano, em 1501, na mesma época do descobrimento do Brasil. A escultura de David foi esculpida em mármore branco há mais de 500 anos, mas ainda traduz, na contemporaneidade, a noção de beleza do corpo humano masculino, forte, equilibrado e altivo, seguindo o padrão grego de beleza criado entre os anos 700 e 300 a.C. A imagem de propaganda de marketing, provavelmente publicada em revista, pode sugerir que o jeans, assim como a beleza clássica de David, nunca sai de moda. Em outras palavras, observamos como uma simples imagem contemporânea traduz mais de mil anos da história do classicismo no Ocidente. TÓPICO 1 | ORIGENS DO CLASSICISMO 73 FIGURA 2 – A VÊNUS DE MILO, ESCULPIDA EM MÁRMORE NA GRÉCIA EM 100 A.C. E KIM KARDASHIANFONTE: Disponível em: <http://bigthink.com/Picture-This/how-the-venus-de-milo- changed-female-beauty>. Acesso em: 20 jan. 2018. Quando o grego Yorgos Kentrotas encontrou alguns pedaços quebrados de uma estátua enterrada nas ruínas antigas da ilha de Milos, em 8 de abril de 1820, ele não tinha ideia do que havia encontrado. Os especialistas identificaram mais tarde a estátua como a deusa grega da beleza, Afrodite. Hoje, conhecemos a estátua melhor pelo nome romano da deusa Vênus. A Vênus de Milo (imagem na esquerda) rapidamente deixou Milo, na Grécia, para Paris, na França, no Museu do Louvre, onde reside até hoje. Determinada (re) descoberta da Vênus de Milo, quase dois séculos atrás, influenciou a ideia de beleza feminina no século XIX em diante. Na era das selfies e da famosa Kim Kardashian (retratada na direita), o que a Vênus de Milo ainda nos tem a dizer a respeito dos padrões atuais da beleza feminina? Para responder a perguntas, iniciaremos nossos estudos nesta unidade definindo a estética classicista de forma mais sucinta. 2 O QUE É O CLASSICISMO? O QUE É O NEOCLASSICISMO? Nas artes visuais, o termo "classicismo" (adjetivo: classicista) geralmente se refere à imitação da arte da antiguidade clássica (c.1000 AC - 450 d.C.), notadamente a imitação de "arte grega" e "arte romana", bem como protótipos anteriores da arte grega, como a "arte egeia" (2500-1100 a.C.) e a "arte etrusca" (c.700-100 a.C.). Assim, por exemplo, qualquer arquitetura, pintura ou escultura produzida durante a Idade Média ou posteriormente, que se inspirou na arte da Grécia antiga ou da Roma antiga, é um exemplo de classicismo. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 74 O termo "neoclassicismo" é mais comum para descrever um renascimento específico da arte e da arquitetura grega e romana, que ocorreu na Europa e nas Américas na modernidade, entre 1750 a 1860. Um bom exemplo da arquitetura neoclássica é o Capitólio dos Estados Unidos, localizado em Washington e construído entre 1793 e 1829. FIGURA 3 – CAPITÓLIO DOS ESTADOS UNIDOS FONTE: Disponível em: <https://www.aprendizdeviajante.com/guia-pratico-e- ilustrado-para-visitar-o-capitolio-em-dc/>. Acesso em: 20 jan. 2018. Observe como o capitólio americano reproduz vários elementos da arquitetura grega, como o frontão triangular com esculturas, como as colunas e o próprio capitólio. No Brasil, o estilo neoclássico foi usado nas artes e na arquitetura como um elemento ideológico, sinônimo de progresso e civilização, e ao mesmo tempo, como uma contrapartida ao estilo barroco, que representava, para muitos, na época, como um estilo colonial português ultrapassado. Durante o período imperial, o Neoclassicismo se fundiu ao Romantismo e ao Realismo, resultando no surgimento de um estilo eclético, peculiar da cultura brasileira. Observe os elementos arquitetônicos do Palácio Imperial de Petrópolis a seguir: FIGURA 4 – PALÁCIO IMPERIAL DE PETRÓPOLIS, RIO DE JANEIRO, 1862 FONTE: Disponível em: <http://vidasemparedes.com.br/motivos-para-visitar- museu-imperial-petropolis-rj/>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 1 | ORIGENS DO CLASSICISMO 75 Ao observar o monumento arquitetônico, nos questionamos: quais elementos seriam neoclássicos, e quais elementos seriam ecléticos? A escultura grega e a cerâmica grega, bem como a pintura grega, são geralmente reconhecidas como superiores às dos romanos. A arquitetura grega também é a base para a arquitetura romana, embora os engenheiros romanos tenham feito avanços importantes em materiais e métodos gregos. No entanto, uma grande proporção de esculturas gregas e outras obras só nos são conhecidas através de cópias romanas, enquanto os edifícios romanos também ultrapassaram, em qualidade de materiais e técnicas construtivas, significativamente as estruturas gregas. Para podermos conhecer bem a arte romana é, portanto, importante conhecer profundamente acerca da arte grega. UNI 2.1 CARACTERÍSTICAS DO ESTILO CLÁSSICO Embora varie de gênero para gênero, a arte clássica é conhecida por sua harmonia, equilíbrio e sensação de proporção. Na sua pintura e escultura, são empregadas figuras e formas idealizadas, tratando seus assuntos de forma não anedótica e emocionalmente neutra. A cor está sempre subordinada à linha e à composição, e a obra clássica em geral procura alcançar sempre um efeito harmonioso e contemplativo. A arquitetura clássica está intimamente regulada por proporções matemáticas. Os designers gregos, por exemplo, usaram cálculos matemáticos exatos para acertar a altura, largura, dentre outras características dos elementos arquitetônicos. Ainda, as proporções seriam alteradas ligeiramente – certos elementos (colunas, capitólios, plataformas de base) seriam diminuídos, por exemplo – para a criação do efeito visual ideal, como se o prédio fosse uma peça de escultura. Contudo, será que a estética clássica sobreviveu no Ocidente após a queda do neoclassicismo, no século XIX? Por um lado, se observarmos as imagens anteriormente citadas do “David de jeans” e do modelo atual de beleza do corpo humano feminino, e se ponderarmos acerca do uso atual do hiper-realismo nas artes (como observado na Unidade 1), notamos que o classicismo subsiste na contemporaneidade artística de forma velada. Entretanto, se visitarmos a Academia de Artes de São Petersburgo, em Moscou, por exemplo, e observarmos as aulas práticas de desenho de observação UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 76 e de escultura com modelos vivos (incluindo cavalos), daremos conta da permanência, por arte de alguns artistas, da noção de que a arte clássica ainda serve na atualidade como base séria para o estudo das artes plásticas. FIGURA 5 – AULA PRÁTICA DE DESENHO DE OBSERVAÇÃO COM MODELO VIVO NA ACADEMIA RUSSA FONTE: Disponível em: <http://www.mutantspace.com/sergey- maximishin-photographs-st-petersburg-art-academy-life-drawing-class/>. Acesso em: 20 jan. 2018. FIGURA 6 – AULA PRÁTICA DE MODELAGEM EM ESCULTURA COM MODELO VIVO NA ACADEMIA RUSSA FONTE: Disponível em: <http://www.mutantspace.com/sergey-maximishin- photographs-st-petersburg-art-academy-life-drawing-class/>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 1 | ORIGENS DO CLASSICISMO 77 No passado, a academia contratava professores europeus, principalmente os italianos, para darem aulas de desenho, pintura e escultura clássica aos estudantes russos. Hoje, a Academia de Artes de São Petersburgo, em Moscou, tornou-se uma das últimas grandes referências do ensino tradicional das artes clássicas, e ao contrário do passado, são os professores russos que lecionam o classicismo para estudantes do mundo todo, incluindo alunos europeus, asiáticos, do Oriente Médio etc. FIGURA 7 – A ACADEMIA DE ARTES DE SÃO PETERSBURGO, EM MOSCOU- RÚSSIA FONTE: Disponível em: <http://www.saint-petersburg.com/walking-tours/italian- builders-of-the-northern-venice/>. Acesso em: 20 jan. 2018. Situada em Moscou desde 1947, a Academia de Artes de São Petersburgo foi fundada em 1757, por Ivan Shuvalov, sob o nome de Academia das Três Nobres Artes. Catarina a Grande, Imperatriz da Rússia entre 1762 a 1796, renomeou na época como Academia Imperial da Arte e encomendou um novo edifício, a ser completado 25 anos depois, em 1789, às margens do rio Neva. Retornando então para as origens da estética clássica, podemos notar que o tema principal da arte grega era essencialmente o ser humano. Mesmo quando eram trabalhados em formas geométricas quase abstratas, os principais temas do artista eram humanos, e permanece verdadeiro quando suas habilidades permitiram imitar de perto, ou mesmo melhorar a natureza. As ações e aspirações do homem são realizadas, na arte grega, pelas figuras de deuses ou heróis, mais frequentemente do que de mortais e muitas vezes em ambientes que, embora vestidos e decorados por seu próprio mundo, pertenciam ao seu passado mitológico heroico.Os deuses e heróis eram seus antepassados, eles pareciam homens e se comportaram como tal. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 78 Uma imagem do mito heroico trazia uma simples mensagem de narrativa, mas poderia igualmente refletir problemas ou sucessos mortais e contemporâneos, com a certeza de que os dramaturgos Áticos exploravam os problemas da sociedade contemporânea através de suas versões dramatizadas de contos de Troia ou dos heróis. Um deus, na arte grega, tinha o corpo e a carruagem de um atleta mortal perfeito: uma deusa, a de uma mulher bonita ou, pelo menos, determinada, maternal e sábia. Os monstros são notavelmente plausíveis. Podemos “acreditar” em centauros. Os animais são subordinados, decorativos ou, na melhor das hipóteses, uma expressão da dependência do homem sobre a fertilidade de seus animais. FIGURA 8 – CENTAURO COM CUPIDO, SÉCULO II D.C., MUSEU DO LOUVRE, NA FRANÇA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.co.uk/ vladabramovich/centaur/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. Entre 500 e 300 a.C., a apresentação do homem, pelo artista grego, progrediu de uma composição em estilo geométrico para uma imagem tão detalhada e plausível como qualquer outra do Egito antigo ou do Oriente Médio. Para a imagem, ele adicionou a vida, passou a se assemelhar mais e mais à imagem vista a olho nu. A arte que antes oferecia símbolos do mundo natural de uma maneira mais geométrica e estilizada, agora por escolha, imitava a natureza. A ilusão começou a substituir o símbolo convencional. O artista começou a criar réplicas do homem tão habilmente quanto o poeta, que explorava seus medos e esperanças. TÓPICO 1 | ORIGENS DO CLASSICISMO 79 FIGURA 9 – O DESENVOLVIMENTO DA ESCULTURA MASCULINA NA GRÉCIA ANTIGA, DE 700 A.C. ATÉ 280 A.C.: DO ABSTRACIONISMO AO REALISMO FONTE: Disponível em: <https://slkiew.wordpress.com/2015/10/05/understanding-of-greek- geometric-and-classical-period-with-a-greco-superman-study/>. Acesso em: 20 jan. 2018. As estátuas esculpidas na Grécia antiga eram de homens, do corpo masculino e geralmente nuas. Na Grécia clássica, os atletas se exercitaram nus, os guerreiros podiam lutar sem roupa e, na vida cotidiana, o macho jovem descoberto deveria ter sido uma visão bastante comum. Os artistas não precisavam procurar modelos nus de figuras de atletas idealizados. Cresceram em uma sociedade em que a nudez masculina era comum e um corpo bem desenvolvido era admirado. O estrangeiro encontrou o comportamento nocivo, e o artista retratou a nudez principalmente por um apelo religioso ou erótico. Mais tarde, os gregos e os romanos usaram tipos de nus gregos para mortais heroicizados ou deificados, e o gênero é bastante familiar para nós desde o renascimento neoclássico. Para os ocidentais, nos dias atuais, o nu não é visto com naturalidade, mas é aceito na arte. Na Grécia clássica, o nu não era antinatural, e assim seu uso na arte não exigia desculpa, nem explicação. Vejamos um exemplo: UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 80 FIGURA 10 – O HOMEM IDEAL: O DORYPHORUS (CARREGADOR DE LANÇA) DE POLYCLITUS FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/lorriesnelson /sculpture-polykleitos/?lp=true>. Acesso em: 15 ago. 2017. A escultura se trata de uma cópia de mármore romana de um original de bronze grego, de cerca de 440 a.C. O original era conhecido como um cânone (modelo ideal) e tinha sido usado pelo artista para exibir suas opiniões sobre as proporções ideais para a figura humana. O tronco da árvore e os suportes são as adições do copista. Nós medimos o mundo ao nosso redor a partir das nossas próprias medidas, como a unidade de medida pés, usada, por exemplo, na América do Norte. O corpo humano é o ponto de referência natural e comum para a medição, e o mundo não grego desenvolveu sistemas complicados de medida que interagem para a largura do dedo, da palma, do comprimento do antebraço (cúbito), do pé e assim por diante, em proporção aproximada à natureza. Antes que a vida se tornasse o modelo, se um artista desejasse desenhar uma figura humana em qualquer escala, preparando-se para esculpir, por exemplo, ele recorreria à hierarquia da medida, e no Egito foi racionalizado em uma grade simples, na qual o corpo humano poderia ser desenhado de forma plausível. TÓPICO 1 | ORIGENS DO CLASSICISMO 81 FIGURA 11 – UNIDADES DE MEDIDA NO EGITO ANTIGO FONTE: Disponível em: <http://blog.hmns.org/2013/03/ educator-how-to-why-square-it-when-you-could-cubit/>. Acesso em: 20 jan. 2018. O conceito foi apelativo para os gregos, mas logo se preocupavam menos com a medida ideal absoluta do que com a proporção, e buscavam expressar uma base teórica para o ideal. Policlitus, o escultor do século V, escreveu um livro sobre o assunto que ilustrou, por meio de uma estátua, Doryphorus, exibida anteriormente. Ele expressou suas opiniões sobre a simetria, a compatibilidade das partes do corpo. A noção parece mecânica, mas suas figuras, conhecidas apenas em cópias, não eram claramente menos “perfeitas” do que as de seus contemporâneos. Determinado princípio de controle, na arte grega, aparece com menos sutileza na arquitetura. Determinou a forma e a decoração de um vaso geométrico do século VIII, assim como nos frontões do monumento arquitetônico conhecido como Parthenon. O desafio, na arte grega, que garantiu o movimento e o progresso, foi o desejo de conciliar opostos aparentemente intransigentes, o sentido instintivo de padrão e proporção e a crescente conscientização do que poderia ser expresso através de uma representação mais precisa das formas naturais. Um estudo mais cauteloso das origens e do desenvolvimento do classicismo grego nos ajudará a compreender como e porque a estética clássica se tornou o estilo artístico mais predominante no Ocidente ao longo da história. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 82 FIGURA 12 – O IMPÉRIO GREGO NA ANTIGUIDADE FONTE: Disponível em: <https://generalhelghast.deviantart.com/art/Greater-Greek- Empire-199997924>. Acesso em: 20 jan. 2018. Através do mapa, vemos a extensão geográfica do alcance da estética grega clássica através das regiões conquistadas pelo Império Grego ao longo dos séculos. Alexandre o Grande conquistou Dacia, Itália, Iugoslávia, Egito, Israel, Cartagena, Pérsia, Turquia, Paquistão, Armênia e o Norte da Índia no Oriente. Alexandre IV, da Macedônia, conquista grande parte da Ásia Central, juntamente com a Hungria, a Áustria, a Suíça e alguns pedaços da Polônia e da Gália. Alexander VII, da Macedônia, conquistou as partes do norte da Península Arábica. O Império Grego era etnicamente diverso e era composto por gregos, romanos, celtas, egípcios, árabes, judeus, persas, albaneses, trácios e macedônios. 83 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • Nas artes visuais, o termo "classicismo" (adjetivo: classicista) geralmente se refere à imitação da arte da antiguidade clássica (c.1000 a.C. - 450 d.C.), da imitação de "arte grega" e da "arte romana", bem como protótipos anteriores da arte grega, como a "arte egeia" (2500-1100 a.C.) e a "arte etrusca" (c.700- 100 a.C.). Assim, por exemplo, qualquer arquitetura, pintura ou escultura produzida durante a Idade Média ou posteriormente, que se inspirou na arte da Grécia antiga ou da Roma antiga, é um exemplo de classicismo. • A arte clássica é conhecida por sua harmonia, equilíbrio e sensação de proporção. Na sua pintura e escultura são empregadas figuras e formas idealizadas, tratando seus assuntos de forma não anedótica e emocionalmente neutra. A cor está sempre subordinada à linha e à composição, e a obra clássica em geral procura alcançar sempre um efeito harmonioso e contemplativo. A arquitetura clássica está intimamente regulada por proporções matemáticas. 84 AUTOATIVIDADE 1 Defina o termo estético “classicismo”,suas origens e explique por que seria importante para nós compreendermos a respeito do termo na contemporaneidade. 2 A história da estética clássica tem seu princípio na Grécia antiga, entre o séc. VI e séc. IV a.C., e influenciou a arte e a arquitetura na Roma antiga, no Renascimento, no estilo Neoclássico e de forma mais velada na contemporaneidade. Assinale a alternativa incorreta sobre a estética da arte clássica: ( ) A arte clássica é conhecida por sua harmonia, equilíbrio e sensação de proporção. ( ) A cor, na arte clássica, está sempre subordinada à linha e à composição. ( ) A arquitetura clássica está intimamente regulada por proporções matemáticas. ( ) O tema principal da arte grega era essencialmente o geometrismo. 85 TÓPICO 2 O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O maior estímulo para o progresso e para a crença em um futuro é o conhecimento e a compreensão de um passado. O grego do século IX a.C., que vivia em um país escassamente povoado, de uma maneira que raramente se elevava acima do austero, tinha ao seu redor a evidência da civilização de seus predecessores, da Era do Bronze, dos micênicos e dos minoicos. As pedras maciças de suas cidadelas foram construídas por “gigantes”. O ouro e o marfim, em seus locais desertos e em seus cemitérios, mostraram onde os deuses haviam andado com os homens, e como os deuses deveriam, portanto, ser adorados. FIGURA 13 – MÁSCARA MORTUÁRIA MICÊNICA EM OURO DE AGAMÊMNON, 1500 A.C. FONTE: Disponível em: <https://www.ancient.eu/Mycenaean_ Civilization/>. Acesso em: 20 jan. 2018. A arte grega teve um falso começo na Idade do Bronze, pelos modos dominantes dos minoicos não gregos. Felizmente, as novas artes geométricas da Grécia responderam de forma diferente e rentável à inspiração estrangeira. O estilo é melhor expresso em vasos pintados, mas também pode ser visto na metalurgia. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 86 Os artistas proto-geométricos, ou seja, aqueles que contribuíram para o início do geometrismo nas artes gregas, principalmente do século X a.C., substituíram os padrões curvilíneos livres do passado com desenhos geométricos. Os padrões retilíneos – o meandro, o ziguezague, a suástica – forneceram os principais temas da arte geométrica (VII a VIII séculos). Depois de quase uma geração de experiências com cenas de figuras humanas, algumas em ação, o ateniense de Dipylon, um mestre pintor grego de vasos, que trabalhou entre 760–750 a.C., foi capaz de criar a clássica declaração de arte geométrica em seus vasos, com painéis de figuras de pessoas de luto e os mortos no ritual de enterro. FIGURA 14 – VASO CERIMONIAL DE ÁGUA, USADO EM ENTERRO, SÉCULO VIII A.C. FONTE: Disponível em: <https://www.ngv.vic.gov.au/essay/a- new-greek-vase-of-c-700-b-c/>. Acesso em: 15 ago. 2017. As formas geométricas decoram o vaso. As mulheres, ao centro, representam as carpideiras chorando durante uma cerimônia de enterro. Através do século VIII, os artesanatos na Grécia, especialmente em Atenas e Creta, foram praticados ao lado do estilo geométrico nativo. Contudo, de forma gradativa, os escudos de bronze feitos para a Caverna Idaean, em Creta, admitiram motivos gregos. Ainda, em processo, as joias da Ática e da Creta geometrizam suas formas e padrões. As técnicas e os padrões gradualmente orientais foram admitidos em formas nativas, enquanto os assuntos orientais eram helenizados, como a deusa de marfim nua Astarte que, na Ática, adquiriu um ornamento sobre a cabeça e um físico grego. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 87 FIGURA 15 – DEUSA ASTARTE, CERCA DE 600-480 A.C., CHIPRE FONTE: Disponível em: <http://etc.ancient.eu/travel/guide- ancient-cyprus/>. Acesso em: 15 ago. 2017. A influência do Oriente para o artista grego era múltipla. O mero exemplo de uma arte dedicada à decoração de figuras e animais podia encorajá-lo a desenvolver a decoração de figuras em seu idioma nativo, geométrico, embora as formas angulares não fossem estranhas às artes orientais. Os bronzes e os marfins, do leste oriental, eram talhados e mostravam como os detalhes poderiam ser adicionados às figuras da silhueta, trazendo a possibilidade de uma definição mais próxima da roupa e do movimento da figura e, eventualmente, a diferenciação das figuras como femininas ou masculinas. Na pintura em vaso, produziram a técnica de figura negra miniaturista incisiva de Coríntio até o final do século VIII a.C., mas em alguns estúdios, como na Ática e nas ilhas, se agarravam às grandes figuras esboçadas com detalhes lineares, produtos principalmente do século VII. A decoração oriental, feita com frisos de animais, não era desconhecida para os gregos, e em alguns centros se tornou dominante às custas da figura humana ou da decoração abstrata. Os frisos de animais permaneceram, durante muito tempo, como uma característica do estilo oriental, mesmo depois de sua fonte ter sido esquecida. As criaturas estão muito presentes nos vasos coríntios, áticos e do leste- grego até o século VI. A vida selvagem também era familiar. Os leões não eram UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 88 representados nas artes da Grécia continental, exceto talvez no norte, e poderiam ser tratados como monstros, como esfinges, ambos bem conhecidos pelos artistas gregos da Idade do Bronze. Um híbrido grego também, o centauro, passou a ser representado com outros monstros, como a quimera e a górgona – para descrever criaturas de histórias mitológicas que antes não tinham imagem. FIGURA 16 – A QUIMERA EM UM PRATO CERÂMICO, 350 A.C. FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Chimera_ (mythology)>. Acesso em: 20 jan. 2018. De acordo com a mitologia grega, a Quimera era uma criatura monstruosa e híbrida que soltava labaredas de fogo pela boca, composta de animais diferentes. É geralmente retratada como um leão, com a cabeça de uma cabra que nasce de suas costas. O termo quimera veio a descrever qualquer animal mítico ou fictício com partes tiradas de vários animais, ou para descrever qualquer coisa composta de partes muito díspares, ou percebidas como fantasticamente imaginativas, implausíveis ou deslumbrantes. Enquanto os gregos preferiam frisos ou painéis geométricos, os orientais preferiam os padrões curvilíneos ou florais. O crescimento do estilo oriental nunca destruiu o geométrico e foi submetido à disciplina grega até o século VII, através do uso de frisos de lótus, palmas e folhas sobrepostas e se tornou parte integrante do design clássico grego em qualquer escala, desde joias até a arquitetura do templo. Mais importante ainda, novas técnicas permitiram que fossem criadas cenas de ação da narrativa que pudessem representar mais do que os rituais ou aventuras mortais, e abriram o caminho para a narrativa pictórica do mito. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 89 A influência dos estilos orientais continuou, sobretudo com elementos das artes egípcias, assírias, babilônicas e persas. No período formativo, as características coerentes e naturais da arte grega são claramente demonstradas pelo que seus artistas escolheram e o que rejeitaram dos novos modelos, e novas técnicas e materiais se tornaram familiares. 2 O ESTILO ARCAICO GREGO O arcaísmo, na arte grega, ocorreu no início do século V a.C. Até determinado momento, seu curso foi rápido, mas exceto em alguma exploração de materiais incomuns, como a pintura em vaso e a escultura arquitetônica, não era muito diferente do curso de outras culturas, e tinha pouca promessa óbvia do que estava por seguir. Com retrospectiva, podemos tentar reivindicar a inevitabilidade da revolução que o século V inaugurou. As sementes estavam lá, mas também estavam nas artes dos assírios e dos egípcios. Em outras artes, os gregos já haviam explorado novos campos em narrativae letra. Talvez, o artista tenha ficado para trás do poeta e do filósofo, mas foi inspirado pelo mesmo espírito de indagação. A arte grega arcaica foi altamente convencional, e a maioria de suas convenções dependia em graus variados das artes estrangeiras. É geralmente nos ensaios estritamente orientadores que o progresso foi mais lento e o incentivo para mudar menos urgente. Um exemplo é o trabalho em metal. O tipo de caldeirão, com detalhes de animais, tinha bases mais longas do que seus predecessores geométricos, os grandes caldeirões de tripé. FIGURA 17 – CALDEIRÃO DE TRIPÉ DO PERÍODO ARCAICO GREGO FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/lino/ ancient-greece/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 90 As cabeças de animais, que decoraram muitos dos caldeirões, que se tornaram as ornamentações favoritas nos santuários gregos, adquiriram uma nova elegância nas mãos gregas. Um tipo escultural, caracterizado por características frontais e cabelo semelhante a uma peruca, chamado de estilo Daedálico, também é derivado do Oriente. Assim, foi introduzido o uso do molde para produção em massa de figurinhas e placas, outro instrumento hostil à mudança. FIGURA 18 – ESTILO DAEDÁLICO: A DAMA DE AUXERRE, SÉCULO VII A.C. FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/pin/371335931757264870 /?lp=true>. Acesso em: 15 ago. 2017. Mesmo assim, era um estilo que os gregos exerciam com imaginação em diferentes materiais, geralmente argila, para figurinhas, placas ou vasos, mas também em tamanho natural, em calcário e em miniatura, em ouro ou marfim. O terceiro presente do Oriente, que é utilizado em figuras de silhueta, foi praticado em cerâmica, bem como em metalurgia. Os vasos de figuras negras começaram a ser feitos em Coríntios, no século VII a.C. e, no final do século, a técnica foi adotada em Atenas. Outros estúdios gregos seguiram a liderança no século VI a.C. Há algo intransigente em relação à silhueta, especialmente quando executada com um brilho preto em uma argila pálida, e a linha incisiva que revela a argila através do preto é nítida, mas geralmente não é sutil. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 91 FIGURA 19 – CERÂMICA GREGA DO PERÍODO ARCAICO COM ANIMAIS E CENTAUROS FONTE: Disponível em: <https://www.metmuseum.org/toah/works- of-art/1997.36/>. Acesso em: 21 jan. 2018. As adições de cor não são mais do que um pouco de branco e vermelho. A policromia real era para as escolas iniciais da Ilha Arcaica e rara em figura negra, sendo tecnicamente difícil, embora os artistas que criavam em áreas onde a pintura em painel ou em parede era praticada eram mais ousados, por exemplo, os pintores do leste-grego, que emigraram para Etrúria no século VI. O estilo oriental do friso de animais inspirou muito o pintor, mas depois, alguns artistas atenienses conseguiram superar as limitações de sua técnica e produziram obras cuja qualidade de massa, linha e humor antecipa o estilo clássico. As esculturas gregas do período arcaico sofreram, por sua vez, uma influência egípcia. Os gregos, de meados do século VII a.C., inspiraram-se em obras colossais egípcias esculpidas em pedra, e aprenderam as técnicas de colocar figuras para uma escala desse tipo e voltaram a explorar o mármore branco duro de suas pedreiras de ilha em Naxos, e depois de Paros. Na arte grega posterior, a dimensão colossal era geralmente reservada para estátuas de culto. A estátua de um homem nu, o Kouros, foi o mais importante estilo que emergiu na época. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 92 FIGURA 20 – O KOUROS DE KEOS, 530 A.C. FONTE: Disponível em: <http://www.artleo.it/alarte/periodi/ arte_greca/img-greca.htm>. Acesso em: 15 ago. 2017. A produção das estátuas de kouros, de um jovem mancebo, parece ter servido para várias funções. Anteriormente, pensava-se que era usado apenas para representar o deus Apollo, no entanto, nem todos os kouroi são imagens de uma divindade. Muitos foram descobertos em cemitérios, onde provavelmente serviram como lápides comemorativas do falecido. A estátua masculina também foi usada como memorial para vencedores nos jogos (como troféus), e usada como oferendas aos deuses. Uma sucessão de testes e experimentos técnicos de escultura, e uma seleção natural das formas mais naturalistas, levaram o artista, no final do período arcaico, a esculpir figuras mais realistas. Esculturas como os kouroi exemplificam o início de um realismo proto-clássico. O Egito também ensinou aos gregos sobre o uso de pedra para colunas e ornamentos arquitetônicos. A necessidade de criar uma imagem para um deus teve um ligeiro efeito sobre o desenvolvimento inicial da escultura, mas os requisitos de criar uma morada digna para os deuses determinaram o desenvolvimento da arquitetura, e somente no século VI outros edifícios públicos começaram a atrair a elaboração arquitetônica reservada para outros templos. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 93 A resposta grega ao uso de pedra esculpida foi, de forma previsível, o estabelecimento de novas convenções. E assim, houve uma regularização do uso de um estilo arquitetônico anterior, básico de salão profundo e varanda, com colunas circundantes. Aconteceu então a criação de detalhes decorativos para as colunas e as obras superiores dos edifícios. No final do século VII, a ordem dórica surgiu na Grécia continental, seus padrões intrincados, mas ausentes, baseados no encadear de estruturas anteriores. Logo depois, o mundo leste-grego contribuiu com a ordem iónica, com base em padrões orientadores de flor e espiral. Como na escultura, o colossal não foi evitado, e alguns dos maiores templos do mundo grego, de duas colunatas, foram planejados no século VI, pelos tiranos jônicos, em Samos, Efésus, Mileto, Dídima. FIGURA 21 – AS ORDENS DÓRICA, CORÍNTIA E JÔNICA NA ARQUITETURA GREGA FONTE: Disponível em: <http://sobrearquitetur.blogspot.com.br/2012/09/o-que- sao-as-ordens-gregas.html>. Acesso em: 15 ago. 2018. Atenas era o lar da arte arcaica grega na época, e foi lá que houve uma segunda e importante revolução na escultura, a partir de uma nova criação. O "Efebo de Krítios " demonstra uma postura natural e descontraída, principalmente em uma perna, seus quadris, tronco e ombros, deslocando-se para ajustar a posição. É uma novidade vital na história da arte antiga – a vida deliberadamente observada, compreendida e copiada. Depois, tudo se torna possível. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 94 FIGURA 22 – EFEBO DE KRÍTIOS FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/pin/196258 496234216801/?lp=true>. Acesso em: 15 abr. 2017. Podemos observar a estátua de mármore (altura 85 cm) encontrada na Acrópole ateniense junto aos detritos do ataque persa de 480/79 a.C. O primeiro exemplo quase completo de sobrevivência do novo estilo, que rompe com a rigidez do arcaico kouroi e mostra o peso do corpo deslocado para uma perna, com o correspondente ajuste de quadris e ombros, características triviais, mas um marco na história da arte ocidental. 3 O ESTILO CLÁSSICO E A ESTÉTICA DA ARTE GREGA Em Olímpia, um novo templo de Zeus estava sendo construído, e um escultor impôs um estilo para sua equipe, o que tipifica, para nós, o clássico de aproximadamente o segundo quarto do século V, sendo que o templo foi construído em 456 a.C. Dos dois frontões, o Ocidente oferece o vigor arcaico (a luta do centauro), a calma clássica oriental, que também é um silêncio grávido de reflexão e pressentimento. Enquanto os pedreiros ainda tinham muito a aprender com a anatomia ou a própria farsa da roupa em pedra, eles conseguiram render nuances de idade e humor com uma sutileza distante das convenções bastante teatrais do arcaico. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURAGREGA 95 FIGURA 23 – O ZEUS DE ARTEMÍSIA, EM BRONZE, 460-450 A.C. FONTE: Disponível em: <https://snl.no/Kapp_Artemision>. Acesso em: 15 ago. 2017. A escultura em bronze, recuperada de um antigo naufrágio, é um excelente exemplo de um bronze clássico. Zeus aqui provavelmente segurava um raio. Em nenhum momento da história da arte grega, estava a imagem do divino tão humano, o humano tão divino. A placidez das figuras, mesmo quando representadas em atos de vigor ou alta emoção, impressiona. Como o corpo escultural havia sido compreendido em seu posicionamento muscular e ósseo, ele também passou a ser vestido a partir do período. No final do século, havia uma moda para o vestido soprado pelo vento ou "molhado", pressionado contra o corpo e contrastando com as sombras profundas das dobras livres ou penduradas. Com seu estilo "clássico", o estúdio de Fídias se tornou a principal escola artística da Grécia, e seu estilo passou a ser usado daquele momento em diante pelos gregos e resgatado, posteriormente, pelos artistas romanos. Fídias (480-430 a. C) foi um escultor, pintor e arquiteto grego. Sua estátua de Zeus, em Olímpia, foi uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Fídias também projetou as estátuas da deusa Atena na Acrópole ateniense, chamada de Atena Parthenos, dentro do Partenon e a Atena Promacos, um bronze colossal que ficava entre ela e o Propylaea, um portal monumental que servia de entrada para a Acrópole em Atenas. UNI UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 96 Nas outras artes, especificamente na pintura, os artistas passaram a experimentar, pela primeira vez, a técnica da perspectiva e, mais importante ainda, o sombreamento e coloração realistas, e preferiam pintar em murais menores do que os egípcios. As anedotas contadas na época a respeito do trabalho realista de um Zeuxis ou Apelles – os pássaros que picavam as uvas pintadas, a cortina pintada que não podia ser puxada – mostram que é aqui que começa a verdadeira tradição da pintura ocidental. É o estilo copiado posteriormente nas paredes romanas, e os poucos exemplos originais que temos do final do período, que têm uma incrível semelhança aos estilos do renascimento e barroco europeus. FIGURA 24 – UMA COMPARAÇÃO ENTRE A PINTURA CLÁSSICA GREGA E A BARROCA FONTE: Disponível em: <http://www.essential-humanities.net/ western-art/painting/greek/>. Acesso em: 20 jan. 2018. FIGURA 25 – UMA COMPARAÇÃO ENTRE A PINTURA CLÁSSICA GREGA E A BARROCA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/322922235760181239/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 97 Podemos observar duas pinturas de estética clássica, com quase dois mil anos de diferença entre elas: a pintura em mural, com carruagem do período clássico grego, Túmulo de Vergina, do século IV a.C. (acima) e a pintura barroca de cavalo, de Diego Velásquez, do século XVII d.C. (logo abaixo). Apesar da diferença de idade entre elas, notamos que as semelhanças técnicas da pintura são surpreendentes. No século IV a. C, até que o patrocínio e as aspirações dos reis helenistas mudassem o foco da vida, do pensamento e da arte grega, os escultores exploraram modestamente além do classicismo phidiano ou policlito. Praxiteles, o mais famoso dos escultores áticos do século IV a.C., aperfeiçoou a linha mais feminina da graça sinuosa, e a nudez feminina finalmente entra na história da arte ocidental. FIGURA 26 – A AFRODITE DE PRAXITELES, 340 A.C. FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/geetiz/ praxiteles/?lp=true>. Acesso em: 15 ago. 2017. A escultura é uma cópia romana de um original de mármore de cerca de 340 a.C. Foi exibida em um templo, em Cnidus, e é considerada como a mais incrível estátua da antiguidade. É também um dos primeiros nus femininos. A qualidade realista do corpo e da pele esculpida em mármore foi bem explorada pelo escultor (anteriormente, a maioria das estátuas em pé eram finalizadas em bronze). Com tamanha plasticidade e qualidade, a obra foi e continua sendo copiada ao longo dos últimos 23 séculos. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 98 Lysippus teve novas visões sobre proporções humanas ideais e poderia conceber e executar suas figuras de forma totalmente tridimensional, o que deve ter revolucionado a configuração das figuras, bem como a reação e o comportamento dos telespectadores. Equivale a uma maior exploração da possibilidade de realismo, experimentada já pelos pintores e, inevitavelmente, da apresentação realista não apenas de tipos específicos, idade ou humor, mas de indivíduos nomeados. Estátuas comemorativas anteriores de atletas ou generais normalmente os apresentavam em uma forma idealizada, com características pessoais mínimas. Talvez seja surpreendente que demorou tanto tempo para a observação e a expressão do tipo para recorrer à observação e à expressão do indivíduo, especialmente porque a prática dedicatória e o orgulho pessoal grego deram todas as oportunidades e encorajamentos. É possível que existiram inibições latentes sobre a imposição de características pessoais em figuras generalizadas ou idealizadas, que eram modelos para homens e deuses. Entretanto, os gregos estavam se tornando mais conscientes do divino no homem, heroicizando seus mortos e logo declarando a divindade em determinada vida favorita ou poderosa. Assim, o verdadeiro retrato dos estudos de caráter contemporâneo, em vez de idealizado dos mortos, foi outro presente do século IV para a arte ocidental. Praxiteles era um ateniense, mas Scopas era de Paros, a ilha de mármore, e Lysipo de Sicyon. A Grécia já não tinha uma escola dominante. As obras-primas dos artistas do século IV estão perdidas para nós, e até mesmo o Praxitelean Hermes, em Olympia, não é melhor do que uma excelente cópia. Nós temos que julgar as artes menores (menor em tamanho somente), ou trabalhos encomendados para os bárbaros, como o túmulo de Mausolus, em Caria, com suas figuras colossais e frisos de alto-relevo, ou em áreas onde as condições de enterro asseguraram a sobrevivência, como o túmulo de Felipe II, em Vergina, na Macedônia. O último fornece a pista para o novo patrocínio, que ditou o futuro da arte grega. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 99 FIGURA 27 – TÚMULO DE FELIPE II EM VERGINA, MACEDÔNIA FONTE: Disponível em: <https://news.nationalgeographic.com/2015/07/1507 20-philip-macedon-alexander-the-great-dad-greece-archaeology/>. Acesso em: 20 jan. 2018. Felipe II foi o rei do reino grego antigo da Macedônia de 359 a.C., até seu assassinato, em 336 a.C. Ele era membro da dinastia Argead dos reis macedônios, o terceiro filho do rei Amyntas III da Macedônia e pai de Alexandre o Grande e de Filipe III. 4 A NARRATIVA NA ARTE GREGA A visão do historiador da arte sobre a mitologia grega é sutilmente diferente da visão do aluno da literatura grega. A maioria das cenas mitológicas que sobreviveram, que são muitas, aparecem em objetos de uso comum, não de uso extraordinário, como as esculturas de templo. A maioria dos gregos aprendeu sua história de mitos de uma tradição oral rica e infinitamente variada. Nossos estudos clássicos começam a partir de textos. Os deles não, e muitos deles eram, na verdade, analfabetos. Às vezes, a arte seguia a narrativa das histórias contidas nos textos acerca da mitologia, às vezes os textos seguiam o que estava retratado na própria arte. Há algumas cenas, daquele período, que seguem deliberadamente textos, embora provavelmente menos do que é geralmente pensado. O artista teve a mesma liberdade que um escritor para ajustar sua história, mas ele era mais restrito mesmo no conteúdo do que retratava as fórmulas de seu ofício. Ele não poderia, por exemplo, oferecer uma narrativa contínua, além de que havia um limite para o que poderia ser explicado através de sua obra.UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 100 Ele também era, em muitos aspectos, mais conservador do que o poeta. O artista era regido por convenções claras para assuntos específicos e para as cenas genéricas. No entanto, todos, exceto os mais modernos, evitaram repetir linha por linha, não deliberadamente, mas porque não havia necessidade ou compulsão para fazer tal coisa. As primeiras imagens são símbolos de eventos da época, de enterro ou batalha, e o exemplo do Oriente levou o artista a um idioma em que detalhes mais específicos de uma história histórica (para nós, mítica) poderiam ser expressos. As primeiras cenas de mitos são motivadas por fórmulas sugeridas pelas artes. Não têm praticamente nada em comum com a rica imagem visual de Homero, e menos ainda em relação à pátria jônica, além de compartilharem as mesmas fontes orais tradicionais e empregando a mesma linguagem da metáfora. Abjurando o sistema de narração cartunista, o artista grego foi obrigado a encapsular a narrativa e a mensagem de uma história em uma única cena. O artista arcaico geralmente escolheu um momento de ação máxima: o clássico, contando com o conhecimento do espectador sobre a história, pode às vezes se concentrar em poema, o que pode ser psicologicamente ou dramaticamente mais revelador. Ambos se basearam na identificação de suas figuras com vestimenta, atributos e poses convencionais. A dependência de detalhes de pose ou atributo também permitiu ao artista introduzir um elemento de narrativa contínua por alusão ao passado e ao futuro. Um exemplo clássico é o vaso corintiano, de cerca de 560 a.C., mostrando Amphiaraus partindo para sua expedição contra Tebes. FIGURA 28 – A PARTIDA DE AMPHIARAUS PARA THEBES. DESENHO DE UM VASO CORÍNTIO DE CERCA DE 560 A.C. FONTE: Disponível em: <https://www.tumblr.com/search/amphiaraus>. Acesso em: 15 ago. 2017. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 101 Sua esposa Eriphyle é exposta na esquerda, mantendo proeminente o colar com o qual ela foi subornada para persuadir o rei para ir à guerra. Atrás dele está seu filho Alcmaeon, que o vingará. Na direita, o vidente cujo gesto mostra a presciência do resultado da expedição. A justaposição de cenas envolvendo a mesma figura, embora não em episódios da mesma história, parece ter sido introduzida com o novo ciclo de Teseus, em Atenas, no final do século VI e é levada para um melhor efeito para a série dos trabalhos de Héracles. Nas artes populares, como na pintura em vaso, a escolha do assunto parece geralmente a do artista que, é claro, conhecia seu mercado, e as peças especialmente encomendadas para a dedicação ou outras ocasiões geralmente podem ser identificadas na obra de um artista. Ele foi influenciado, em sua escolha do tema, principalmente pela tradição. Novas histórias, como o ciclo de Teseu, ou a ênfase em certos mitos que responderam propaganda estadual, foram rapidamente refletidas nas artes populares. O papel de Teseu, na nova democracia ateniense, é suficientemente claro na literatura, como na arte. Os novos cultos também – a adoção de Eleusis por Atenas ou a chegada de um Asclepius – são refletidos nas artes populares. Certos aspectos quase ritualizados da vida cotidiana, presumivelmente de um significado que ultrapassa o interesse mundano ao seu redor, também ocuparam artistas e foram abençoados com suas próprias convenções iconográficas, como mitos, envolvendo o simpósio, cortejos de jovens, atletismo, preparativos de casamento. Nas artes principais, como pintura mural e escultura do templo, existiam outras considerações, dentre elas o fato de serem para fins de exibição pública, não o consumo efêmero, além de que determinados projetos caros e longos não eram campos apropriados para experiências. O Parthenon é incomum em ter seus temas escultóricos intimamente relacionados com Atenas e seu passado glorioso, tanto mítico como recente, e com os atenienses. Em outros templos, a relevância do assunto, às vezes, é menos aparente, e podemos imaginar que as decisões fossem as de um comitê de magistrados e sacerdotes, e não dos artistas. Muitas exigências da patronagem, política e religião precisam ser compreendidas. Enquanto personagens individuais de mitos, monstros ou heróis podem parecer funções principalmente decorativas, geralmente o propósito da arte grega é, principalmente, a de contar uma história ou definir uma cena. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 102 5 REPRODUÇÕES MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS É interessante notar que ao longo da história, os ocidentais recriaram estátuas gigantes em estilo clássico semelhantes à de Zeus, no templo de Olímpia. Observe, a seguir, a proporção entre o homem e a estátua. FIGURA 29 – REPRODUÇÃO MODERNA DE ATENEA PARTENOS DE FIDIAS NO PARTENON DE NASHVILLE – ESTADOS UNIDOS FONTE: Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Criselefantino>. Acesso em: 20 jan. 2018. Em Tennessee, nos Estados Unidos, por exemplo, foi feita uma reprodução moderna da estátua de Atenea Partenos de Fidias, no Partenon, de Nashville. Alan LeQuire, nativo de Nashville, foi encarregado de fazer uma réplica da estátua. Seu trabalho foi feito nas descrições e cópias existentes do original. A versão moderna demorou oito anos para ser feita, foi revelada ao público em maio de 1990 e é importante por sua escala e cuidado na recriação do trabalho de Phidias. A reprodução do Athena Partenos ajuda a dar aos visitantes a impressão de que estão dentro de um antigo lugar de adoração ateniense. Além de cópias das esculturas originais gregas de grande porte, podemos pensar também em outras estátuas criadas na modernidade, em estilo neoclássico, de forte influência greco-romana. Vejamos um exemplo. TÓPICO 2 | O CLASSICISMO NA ARTE E NA ARQUITETURA GREGA 103 FIGURA 30 – ESTÁTUA DA LIBERDADE, NOVA YORK – ESTADOS UNIDOS FONTE: Disponível em: <http://raredelights.com/history-heritage-statue- liberty/statue-of-liberty-17/>. Acesso em: 20 jan. 2018. A Estátua da Liberdade é uma escultura colossal neoclássica localizada na Ilha da Liberdade, no porto de Nova York, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. A estátua de cobre, um presente do povo da França para o povo dos Estados Unidos, foi desenhada pelo escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi e construída por Gustave Eiffel. A estátua foi inaugurada em 28 de outubro de 1886. É uma figura de uma mulher vestida que representa Libertas, uma deusa da liberdade romana. Ela segura uma tocha acima da cabeça com a mão direita e, na mão esquerda, carrega uma tábula inscrita em algarismos romanos com "JULHO IV MDCCLXXVI" (4 de julho de 1776), data da Declaração de Independência dos EUA. Uma corrente quebrada fica em seus pés. Tornou-se um ícone da liberdade e dos Estados Unidos, sendo uma visão acolhedora para os imigrantes que chegam do exterior. Por sua vez, a Estátua da Liberdade tem cópias feitas ao redor do mundo. No Brasil, muitos de nós já vimos, por exemplo, alguma réplica da famosa estátua em uma das lojas da Havan, que é uma rede de departamentos catarinense. FIGURA 31 – RÉPLICA DA ESTÁTUA DA LIBERDADE DA LOJA HAVAN FONTE: Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,a- rede-da-polemica-estatua-da-liberdade,162230e>. Acesso em: 20 jan. 2018. UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS 104 O uso de uma réplica da Estátua da Liberdade, como símbolo de uma loja de departamentos, pode estar associado não somente aos ideais clássicos de liberdade e de democracia, mas também com a ideia do livre mercado e da autonomia do poder de consumo. Ao mesmo tempo, a imagem de uma estátua famosa norte-americana, em terras brasileiras, pode exercer um certo fascínio aos consumidores, a ideia de que, ao adentrarem na loja, estarão talvez em um “paraíso” de consumo, à moda americana. Como lemos,a Estátua da Liberdade foi criada sob a inspiração da deusa romana Libertas. Os romanos foram os grandes herdeiros da cultura e da estética gregas. Foi através deles que o Ocidente também recebeu a herança clássica, através da Europa. Vamos agora, no tópico 3, compreender como se deu o processo. 105 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O tema principal da arte grega era essencialmente o ser humano. Mesmo quando trabalhadas as formas geométricas quase abstratas, os principais temas do artista eram humanos, e isso permanece verdadeiro quando suas habilidades permitiram imitar de perto, ou mesmo melhorar, a natureza. • As ações e aspirações do homem são realizadas, na arte grega, pelas figuras de deuses ou heróis mais frequentemente do que pelas figuras de mortais e muitas vezes em ambientes que, embora vestidos e decorados por seu próprio mundo, pertenciam ao seu passado mitológico heroico. • As esculturas gregas do período arcaico sofreram uma influência egípcia. Os gregos, de meados do século VII a.C., inspiraram-se em obras colossais egípcias esculpidas em pedra, e aprenderam as técnicas de colocar figuras a uma escala desse tipo e voltaram a explorar o mármore branco duro de suas pedreiras de ilha em Naxos, e depois de Paros. Na arte grega posterior, a dimensão colossal era geralmente reservada para estátuas de culto. A estátua de um homem nu, o Kouros, foi o mais importante estilo que emergiu na época. • A partir de 400 a. C., a arte grega se torna puramente clássica e realista. Em nenhum momento da história da arte grega estava a imagem do divino tão humano, o humano tão divino. A placidez das figuras, mesmo quando representadas em atos de vigor ou alta emoção, impressiona. Como o corpo escultural havia sido compreendido, em seu posicionamento muscular e ósseo, ele também passou a ser vestido a partir do período. No final do século, havia uma moda para o vestido soprado pelo vento ou "molhado", pressionado contra o corpo e contrastando com as sombras profundas das dobras livres ou penduradas. • Com seu estilo "clássico", o estúdio de Fídias se tornou a principal escola artística da Grécia, e seu estilo passou a ser usado daquele momento em diante pelos gregos e resgatado posteriormente pelos artistas romanos. • Nas outras artes, especificamente na pintura, os artistas passaram a experimentar, pela primeira vez, a técnica da perspectiva e, mais importante ainda, com sombreamento e coloração realistas, e preferiam pintar em murais menores do que os egípcios. As anedotas contadas na época a respeito do trabalho realista de um Zeuxis ou Apelles – os pássaros que picavam as uvas pintadas, a cortina pintada que não podia ser puxada - mostram que é aqui que começa a verdadeira tradição da pintura ocidental. É o estilo copiado posteriormente nas paredes romanas, e os poucos exemplos originais que temos do final do período, que têm uma incrível semelhança aos estilos do Renascimento e barroco europeus. 106 AUTOATIVIDADE 1 Quais características tornaram o estúdio de Fidias a principal escola artística do mais puro classicismo da Grécia antiga? 2 A força da narrativa mítica, encontrada na arte grega, ocorreu pelo fato da maioria dos gregos terem aprendido sua história de mitos de uma tradição oral rica e infinitamente variada. Muitas vezes, a arte seguia a narrativa das histórias contidas nos textos acerca da mitologia, às vezes, os textos seguiam o que estava retratado na própria arte. Acerca da narrativa mítica, identifique, a seguir, a alternativa incorreta: ( ) A maioria das cenas mitológicas que sobreviveram aparece nas esculturas de templo, e não nos objetos de decoração comuns. ( ) O escultor ou pintor não podia oferecer uma narrativa contínua e havia um limite para o que poderia ser explicado através de sua obra. ( ) O artista grego foi obrigado a encapsular a narrativa e a mensagem de uma história em uma única cena. ( ) O Parthenon é incomum em ter seus temas escultóricos intimamente relacionados com Atenas e seu passado glorioso. 107 TÓPICO 3 O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO A arte e a arquitetura floresceram durante o Império Romano, entre 27 a.C. e 476 d.C. Sob o domínio romano, ambiciosos programas de construção, melhorias civis e monumentos escultóricos transformaram a capital e seus territórios dependentes em toda a Itália, Europa e o Mediterrâneo. Trabalhando no estilo clássico aperfeiçoado da Grécia, durante o século V a.C., os romanos aplicaram sistemas gregos de proporção, simetria e harmonia ideais para seus próprios objetivos e preferências. O uso inovador do arco, da abóbada e da cúpula permitiu que os arquitetos avançassem além da construção dos gregos para projetos mais complexos, compatíveis com a predileção romana de grandeza e massividade. O uso extensivo de concreto, geralmente somado ao uso de tijolo, pedra ou mármore, alcançou a força e a durabilidade, tornando a construção romana lendária. A demanda por estátuas gregas de atletas, deuses e deusas gregas nuas ou ligeiramente drapejadas alimentou um comércio rápido de cópias. A escultura romana original, principalmente retratos contemporâneos, relevos históricos e monumentos funerários, exibiu uma forma mais subjugada de classicismo, que bem definia o nobre etos romano. Entre cerca de 81 a.C. a 330 d.C., escultores gregos, que trabalham em vários postos do Império Romano, produziram inúmeras réplicas e adaptações de famosas esculturas gregas para conhecedores, bem como o mercado de massa. 108 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 32 – VÊNUS DE MÉDICI FONTE: Disponível em: <https://bluenotesinblackandwhite.com/ tag/venus-de-medici/>. Acesso em: 20 jan. 2018. A Vênus de Médici, mostrada aqui, foi baseada em uma famosa estátua em tamanho natural de Afrodite, a deusa grega do amor. O bronze grego original não sobrevive mais e é conhecido hoje apenas através de cópias de mármore como esta. O reinado do Imperador Augusto (27 a.C. - 14 d.C.) iniciou uma era de filelenismo (amor à cultura grega) na arte romana. O realismo sóbrio, que distinguiu a escultura antiga da era republicana, e o idealismo grego, criaram um estilo híbrido distintivo. Para melhor situarmos a dinâmica do classicismo durante o Império Romano, iremos nos concentrar neste período augusto para observarmos o desenvolvimento das artes clássicas na arquitetura, escultura e pintura. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 109 2 O CLASSICISMO ROMANO NO REINADO DE AUGUSTO Segundo R. J. A. Wilson (1993), quando Octaviano, um pouco antes de assumir o título de Augusto, surgiu triunfante da batalha de Actium, em 31 a.C., ele se empenhou em um programa de construção com o qual Roma nunca antes havia visto. O reinado de Augusto foi de enorme fervor arquitetônico e artístico, em que o conservadorismo cauteloso era combinado com novas ideias revolucionárias. O estabelecimento do Principado criou, pela primeira vez, uma estabilidade que permitiu a elaboração de um programa de planejamento coerente a longo prazo para os monumentos da capital. O imperador, sua família e associados forneceram uma forte patronagem, que atraiu arquitetos, escultores e pintores para a capital, uma patronagem que era vital para criar condições adequadas para obras de arte e edifícios em grande escala. Com o patrocínio imperial, veio o controle centralizado dos fundos estaduais. Vejamos o mapa do Império Romano durante o reinado de Augusto (27 a.C. - 14 d.C.). FIGURA 33 – O IMPÉRIO ROMANO SOB O DOMÍNIO DE AUGUSTO FONTE: Disponível em: <https://www.ancient.eu/image/4334/>. Acesso em: 20 jan. 2018. 110 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS O mapa mostra regiões dominadas (Europa, Oriente Médio e Norte da África) ao redor do Mar Mediterrâneo. As áreas amarelas indicam o império antesdo reinado de Augusto, as áreas verdes adquiridas posteriormente e as áreas violetas são estados-clientes de Roma. Tais condições, obviamente, existiam antes no mundo antigo, como na Atenas de Péricles, por exemplo, e especialmente nos reinos helenísticos, como Pergamum, mas para Roma eram essencialmente novos. Augusto também não demorou a conhecer outro generoso programa arquitetônico e escultural. Júlio César já havia mostrado o caminho com sua ótima visão de uma monumental reorganização do coração de Roma, e alguns de seus projetos foram devidamente preenchidos por Augusto. O filho adotivo de César lançou um programa de construção em uma escala ainda mais ambiciosa, que transformou totalmente a aparência física da capital. Mobilizar a indústria da construção era uma forma de estimular a economia, construindo teatros e anfiteatros, banhos, foros e templos para uma população inquieta. Ainda, nas demonstrações do programa de Augusto, o potencial para usar monumentos como veículos de propaganda foi explorado ao máximo. FIGURA 34 – ESTÁTUA DE AUGUSTUS DE PRIMAPORTA, SÉCULO I D.C., MUSEU DO VATICANO FONTE: Disponível em: <https://www.dailymaverick.co.za/article/2014-08- 26-op-ed-the-enduring-legacy-of-augustus/#.Wm-p7qinFdg>. Acesso em: 20 jan. 2018. Augusto foi o fundador do Principado Romano e é considerado como o primeiro imperador romano. Exerceu seu poder de 27 a.C. até a sua morte, em 14 d.C., ou seja, há pouco mais de 2000 anos. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 111 Seu tio, por parte de mãe, Júlio César, foi assassinado em 44 a.C., e foi nomeado, segundo a própria vontade de César, como seu filho adotivo e herdeiro. Augusto é conhecido pelas suas obras arquitetônicas e artísticas, e por ter transformado a aparência de Roma em um modelo grego clássico. Na estátua de Augusto, traços faciais reconhecíveis identificam claramente o indivíduo representado, mas a fisionomia aperfeiçoada e a expressão de calma servem um propósito propagandístico, reforçando um senso de nobreza e do comando “sobre-humano” do governante. Uma ideia da escala do novo programa de construção pode ser julgada pela surpreendente afirmação de Augusto, de que ele construiu ou restaurou não menos de 82 templos em apenas um ano, além de outros tipos de construção. Se acrescentarmos os projetos patrocinados por outros construtores enérgicos em sua família, podemos ter alguma impressão da febre de obras que tomava Roma naquela época. Muitas das novas estruturas eram essencialmente conservadoras, repetindo as fórmulas já experimentadas e testadas na República. O teatro de Marcellus, por exemplo, iniciado por César, mas não terminado até cerca de 13-11 a.C., com seus assentos levantados em subestruturas de concreto e com uma fachada exterior de arcadas sobrepostas (cada linha emoldurada por uma colunata contínua de colunas engajadas, uma fórmula que muito influenciou os arquitetos do século XVI em diante), era essencialmente o tipo de construção já estabelecido em Roma pelo teatro anterior de Pompeu (55 a.C.). FIGURA 35 – O TEATRO DE MARCELLUS, ROMA, SÉCULO XII A.C. FONTE: Disponível em: <http://www.aviewoncities.com/img/rome/kveit0348s. jpg>. Acesso em: 1 abr. 2018. 112 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS Muitos dos templos também continuaram a usar materiais tradicionais, seja travertino, uma pedra calcária branca dura extraída perto de Tivoli, ou uma das variedades de pedras vulcânicas locais totalmente cobertas de estuque. Tal conservadorismo, no programa de construção de Augusto, teria encantado o arquiteto Marcos Vitruvius Pollio (c. 80-15 a.C.), cujos dez livros sobre arquitetura, escritos entre 30 e 15 a.C., gozavam de uma enorme fama desde o Renascimento, especialmente como um livro-fonte para as ordens gregas clássicas. Consciente, mas descontente com as mudanças radicais que o rodeiam, Vitruvius retém as restrições contra a pressa e a ousadia da nova geração de arquitetos, ao mesmo tempo que elabora elogios não diluídos sobre o uso de pedra silhar (lavrada em formato quadrangular), sobre os materiais das pedreiras locais, mesmo na utilidade do tijolo de barro. A era de Augusto era uma era de experiência, usando novos materiais e explorando novos usos para a época. A qualidade do concreto, por exemplo, foi constantemente melhorada, e arquitetos inovadores estavam tentando um novo método de coberturas, como a cúpula hemisférica em concreto, que deveria desempenhar uma parte tão vital na revolução arquitetônica romana nos próximos 150 anos. O primeiro exemplo de sobrevivência, provavelmente augustiniana, é o chamado "Templo de Mercúrio", em Bayas. FIGURA 36 – TEMPLO DE MERCÚRIO" EM BAYAS, ITÁLIA FONTE: Disponível em: <https://destinoinfinito.com/bayas-la-ciudad-romana- hundida/>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 113 Outro material novo e duradouro foi o tijolo queimado em forno, não um material recém-inventado como tal, mas empregado agora, pela primeira vez, como um revestimento contínuo para o concreto. Em Roma, parece ter sido usado até depois da morte de Augusto. A confiança real em lidar com o novo material foi obtida em outros lugares, especialmente em cidades italianas, como Turim. Com a alvenaria, por exemplo, a construção das cúpulas, o desenvolvimento significativo ainda estava por vir, mas os arquitetos da era augusta merecem crédito por apontar o caminho a seguir. Um impacto mais imediato na cena arquitetônica foi feito pelo mármore. Augustus se vangloriou do fato de ter encontrado Roma como uma cidade de tijolos de barro e ter deixado como uma cidade de mármore. César provavelmente foi o primeiro a perceber o potencial das ricas pedreiras de mármore de Carrara, perto de Luna, no norte da Itália, mas sua exploração de alta escala começou apenas com o reinado de Augusto. Branco, cristalino e limpo, o bonito material ganhou popularidade imediata e generalizada. Ao lado de Luna, apareceu uma crescente gama de mármores policromos do exterior, como mármore amarelo africano, mármore rosa salmão de Chios e cipollino verde-azul de Eubeia, bem como mármore frígio da Ásia Menor. O mármore tinha vindo para ficar, e embora o uso de efeitos policromáticos, tanto para colunas, quanto em pavimentos e folheados de parede, manteve-se restringido pela comparação com as modas posteriores, o novo material deu um toque bem-vindo de elegância e sofisticação, bem como um toque de cor, que faltava na arquitetura da capital do Império Romano até então. Entretanto, a exploração do mármore trouxe um problema: a falta de conhecimentos romanos no manejo do material. Assim, um exército de artesãos gregos foi recrutado para a capital. Seu papel na formação das criações no programa de Augusto foi de grande valia. Uma nova e precisa linguagem de ornamento arquitetônico, baseada na Grécia Clássica, mas com novas variações e combinações, deu o tom para o resto do Império e, por sua vez, foi uma fonte de inspiração para gerações de arquitetos renascentistas e neoclássicos. A contribuição romana original para as ordens clássicas fez sua primeira aparição conhecida em Roma na época de Augusto, e é associada ao gênio criativo dos artesãos gregos na capital. 114 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 37 – AS ORDENS ARQUITETÔNICAS GRECO-ROMANAS Dórica Jónica Coríntia Toscana Compósita FONTE: Disponível em: <http://desenho-classico.blogspot.com.br/2016/05/as-ordens- arquitetonicas.html>. Acesso em: 20 abr. 2018. O casamento das habilidades, tradições gregas, do gosto e das demandas romanas está bem visível em dois monumentos, que marcam o ponto culminante do programa de Augusto, o Ara Pacis Augustae (dedicado em 9 a.C.) e o Fórum de Augusto (2 a.C.). O fórum, em conceito e planejamento, é quintessencialmente romano. O grande templo, de estilo itálicodo mármore de Luna, em um pódio elevado, domina um espaço aberto flanqueado por pórticos, com um layout formal e axial, seguindo os princípios rígidos já estabelecidos na arquitetura republicana. Em arquitetura, um pórtico é o local coberto na entrada de um edifício, de um templo ou de um palácio. Pode se estender ao longo de uma colunata, com uma estrutura cobrindo uma passarela elevada por colunas ou fechada por paredes. UNI FIGURA 38 – FÓRUM DE AUGUSTO - IMAGEM DE RECONSTRUÇÃO DIGITAL FONTE: Disponível em: <https://en.wikiarquitectura.com/building/ augusto-forum/>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 115 Bem romano também é o uso do fórum como uma galeria de retratos dos grandes nomes da história romana, incluindo o próprio Augusto, identificado como apenas outro herói em uma longa série de republicanos. FIGURA 39 – RUÍNAS DO FÓRUM DE AUGUSTO, ROMA, II A.C. FONTE: Disponível em: <http://oquevidomundo.com/rumo-roma-n-2-frum- romano-fruns-imperiais-etc/>. Acesso em: 20 jan. 2018. Como uma peça engenhosa de propaganda imperial e como um modelo para o planejamento arquitetônico, o fórum de Augusto era inequivocamente romano, ainda que seus detalhes não fossem gregos. Os capitais coríntios, de pilastras zoomórficas, com figuras de Pegasus nos cantos, mais obviamente de toda a linha de cariátides – figuras femininas esculpidas servindo como um suporte de arquitetura tomando o lugar de uma coluna – acima das colunatas, estão intimamente acompanhados na arquitetura clássica ou tardia helenística de Ática. FIGURA 40 – CARIÁTIDES NO ERECHTHEION (“VARANDA DAS DONZELAS”), ACRÓPOLES DE ATENAS FONTE: Disponível em: <http://brewminate.com/the-rebirth-of-athens-in-the- roman-empire/>. Acesso em: 20 jan. 2018. 116 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS O andar superior da colunata, que encerra o fórum, foi articulado com uma série de figuras femininas esculpidas e copiadas diretamente da varanda da cariátide do Erechtheum, em Atenas, um exemplo claro do elemento grego clássico na decoração arquitetônica de Augusto. O monumento conhecido como “Altar da Paz”, de Augusto, é um testemunho ainda mais eloquente do intercâmbio cultural da Grécia e de Roma. O próprio altar, colocado em uma plataforma escalonada, estava cercado por todos os lados por altas paredes e por entradas em leste e oeste. FIGURA 41 – O ALTAR DA PAZ DE AUGUSTO (9 A.C.) FONTE: Disponível em: <https://www.khanacademy.org/humanities/ancient- art-civilizations/roman/early-empire/a/ara-pacis>. Acesso em: 20 jan. 2018. Vejamos um detalhe do Altar da Paz, que mostra os painéis mitológicos, que decoravam cada entrada com a Mãe Terra, com crianças no colo e personificações do Oceano e Água ao seu lado, uma cena esculpida completamente na tradição helenística e exalando as bênçãos da tranquilidade e renovada fertilidade que acompanhava a paz de Augusto, além de Aeneas sacrificando, no local onde ele começou a pisar, em solo italiano. FIGURA 42 – DETALHE DE UM PAINEL MITOLÓGICO DO ALTAR DA PAZ DE AUGUSTO: A TERRA MÃE FONTE: Disponível em: <https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-editorial- detalhe-ara-pacis-augustae-roma-do-bas-relevo-image58721618>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 117 Perto da cabeça da procissão no lado sul, Augustus está no mesmo ato de sacrifício solene. A mensagem de propaganda aqui seria que Augusto é o novo Aeneas, o portador da esperança e o arquiteto de uma Roma renascida. O resto do lado sul mostra membros de sua família, enquanto os magistrados e suas famílias preenchem o lado norte. É uma comemoração em mármore de uma procissão real e de um sacrifício que aconteceu em 13 a.C., em ação de graças para o retorno seguro do Imperador após uma turnê provincial. A ideia de usar a escultura histórica de alto relevo para registrar um evento específico tinha sido explorada durante o final da República, mas encontrou expressão plena somente durante o Império. FIGURA 43 – DETALHE DE UM PAINEL MITOLÓGICO DO ALTAR DA PAZ DE AUGUSTO: A PROCISSÃO FONTE: Disponível em: <http://www.nationalgeographic.com.es/historia/grandes- reportajes/ara-pacis_9037>. Acesso em: 20 jan. 2018. O relevo de um dos lados do altar mostra uma procissão de sacerdotes, com sua característica toga (peça do vestuário civil grego) pontiaguda e membros da família imperial. Como um exercício de propaganda política, o Ara Pacis sucede brilhantemente ao apresentar alguns dos valores essenciais que Augusto representava: grauitas (rigor), representada por testemunhas pela solenidade da ocasião; humanitas (humanidade), representada por uma criança cansada que puxa a toga de seu pai e pelo sabor geral de uma "ocasião familiar" e, acima de tudo, pax (paz), tanto na Itália quanto no mundo em geral. Como monumento escultural, os frisos dos Ara Pacis também são simplesmente perfeitos, um tributo às habilidades dos escultores gregos que trabalharam neles. A influência, sobretudo de Atenas, é primordial, na forma geral do altar, uma cópia em uma escala mais monumental do Altar da Piedade na ágora ateniense (C. 420), nos frisos processuais que recordam os do Parthenon, na 118 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS solenidade silenciosa, reminiscente, talvez, dos átrios graciosos da era clássica, inspirados provavelmente no estilo helênico da Ásia Menor, como os antigos modelos Áticos agora perdidos. O Ara Pacis simboliza a alta capacidade romana em reinterpretar o repertório grego clássico, moldando-o e adaptando-o em algo novo e distintamente romano. Outro elemento vital da nova máquina de propaganda romana foi a construção de imagens. Os escultores gregos desempenharam um papel fundamental na criação de uma série de retratos de tipos de Augusto, que foram copiados em grandes números para que todos os cantos do Império pudessem ser bombardeados sistematicamente com a imagem do Imperador. FIGURA 44 – A FAMÍLIA IMPERIAL: AUGUSTO, LÍVIA E O JOVEM NERO. CAMAFEU, MUSEU DO ERMITÃO. SÃO PETERSBURGO FONTE: Disponível em: <http://www.nationalgeographic.com.es/ historia/grandes-reportajes/ara-pacis_9037/2>. Acesso em: 20 jan. 2018. Os tipos agora criados para Augusto e sua família não eram os retratos realistas da república tardia, mas uma mistura delicada de realismo e estado- ideal viril. O humor pode variar da determinação sombria do Capitão Octaviano, formado em um momento antes da consolidação total de sua posição, através da sobriedade de autoridade de Augusto como pontifex maximus, esculpida cerca de 30 anos depois, com pouca sugestão de envelhecimento, ao autoconfiante Augusto. O imperador, com gesto expansivo, acaba se expressando para uma população invisível, mas a impressão primordial de um líder determinado, eficiente e autêntico é comum a todos. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 119 FIGURA 45 – ESTÁTUA DE AUGUSTO COMO PONTIFEX MAXIMUS FONTE: Disponível em: <http://www.romanemperors.com/ images/18-high-priest-of-ancient-romans.jpg>. Acesso em: 20 jan. 2018. Na vida privada, Augusto tinha fama de ter sido um homem de hábitos simples, que optou por habitar em uma casa modesta, com pouca decoração. Nas pinturas ao ar livre desta e de outras propriedades da família imperial, os esquemas arquitetônicos dominantes, que caracterizam o segundo estilo pleno, cedem à decoração com um toque mais leve, o que favorece a arquitetura de forma menos substancial e a crescente ênfase na grande central imagem de "painel" mitológico como o ponto focal de cada parede. O ponto culminante lógico da tendência foi negar completamente a ilusão de profundidade e enfatizar a solidez da parede. O novo esquema de decoração que assim surgiu dependia de seu efeito em detalhes decorativos intrincados e muitas vezes fantásticos, especialmente desenhos florais e abstratos,geralmente intercalados com quadros figurativos que variaram muito em tamanho e número, enquanto elementos arquitetônicos, se eles sobreviveram, tornaram-se frágeis e irreais. O novo esquema decorativo pode ser visto totalmente desenvolvido em outra propriedade imperial, a casa de campo, em Boscotrecase, perto de Pompeia. A elegância e a restrição dos afrescos aqui, em contraste com os excessos do Segundo Estilo em seu mais extravagante, marcam o ponto culminante de uma revolução silenciosa, mas decisiva no gosto artístico, alcançada pela habilidade dos pintores de corte. 120 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 46 – AS PINTURAS SACRO-IDÍLICAS DE BOSCOTRECASE FONTE: Disponível em: <https://sites.google.com/site/ad79eruption/ neighbouring-area/boscotrecase>. Acesso em: 20 jan. 2018. As pinturas de parede geralmente compõem um único fundo monocromático, como vermelho, preto ou branco, com detalhes arquitetônicos e vegetais elaborados. Pequenas cenas figurativas e de paisagem aparecem no centro da parede como parte do esquema decorativo geral. As melhores pinturas conhecidas são os afrescos da Vila Imperial, em Boscotrecase. Os ingredientes individuais do novo estilo de pintura refletem o ecletismo da arte de Augusto como um todo. Os esquemas de parede, adotados pelos decoradores de Augusto, com suas imagens de painéis mitológicos, grandes e pequenos, foram copiados de antigos mestres clássicos e helenísticos, e serviram também de inspiração para a pintura mural romana para o próximo século. Outro ingrediente era o elemento egípcio. Ocorreu após a anexação do Egito ao Império Romano, em 30 a.C., em uma época em que havia um alto modismo egípcio na Itália. Alguns dos recursos decorativos recorrentes nas composições do Terceiro Estilo, como esfinges, íbis, objetos de culto e figuras de Isis, bem como vinhetas de cenas nilóticas, relacionadas ao Rio Nilo, foram diretamente derivados do repertório egípcio. Mais controversa ainda é a fonte de outro ingrediente popular na fase augusta e posterior a esta, como a pintura, além das paisagens sonhadoras, vagamente conhecidas como "sacro-idílicas", porque geralmente se centram em torno de uma coluna "votiva" fantasiosa ou um santuário frágil, com uma TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 121 variedade de figuras presentes. A ideia de fazer uso das estruturas artificiais com pastores, rebanhos e cães parece começar apenas com as impressionantes imagens sacro-idílicas de Boscotrecase. Aqui, o nome de Spurius Tadius, também conhecido como Studius, é relevante. Ele foi o primeiro que teria feito pinturas muito encantadoras de jardins paisagísticos com pessoas envolvidas nas tarefas da vida cotidiana. Repercute como o tipo de coisa que surge em várias residências augustas, como figuras pequenas, retratadas de forma impressionante em plano monocromático, caminhando e pescando, conversando e fazendo negócios diários, em um cenário de pontes, pórticos e pavilhões. Certamente, Studius não inventou a paisagem como tal, nem seu nome pode ser associado a uma obra-prima da pintura augusta, o "Jardim de Lívia", de sua vila, em Primaporta. Não há figuras humanas, e longe de serem impressionistas, a fruta e as flores da região selvagem, de um jardim paradisíaco, são executadas com um cuidado por detalhes naturalistas. FIGURA 47 – O JARDIM DE LÍVIA FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/424253227374308651/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. Os principais avanços da arte e da arquitetura augustas foram elaborados principalmente na capital, mas a era de Augusto viu, além disso, uma enorme efusão de energia de construção em outros lugares da Itália e do Império, especialmente nas províncias ocidentais. Em muitos casos, de fato, temos que recorrer às áreas para exemplos preservados de edifícios, que são apenas fragmentários, ou desapareceram completamente, em Roma. Um deles é o Arco do Triunfo, um monumento característico da propaganda imperial, e vários exemplos iniciais ainda estão no norte da Itália e no sul da Gália. 122 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 48 – ARCO DO TRIUNFO DE ROMA FONTE: Disponível em: <http://reynaldocesar.blogspot.com.br/2010/06/arco- do-triunfo-roma.html>. Acesso em: 20 jan. 2018. Arcos comemorativos de uma espécie tinham sido conhecidos na Roma republicana, mas a forma desenvolvida, articulada com colunas e sótãos com inscrição, é essencialmente uma criação de Augusto. Muitos dos edifícios recentemente erguidos nas províncias, naquele momento, foram baseados diretamente em planos metropolitanos ou em modelos em outros lugares da Itália. Um dos mais conhecidos de todos os monumentos romanos é o majestoso aqueduto de Pont du Gard, perto de Nimes, na França, uma estrutura harmoniosa que demonstra vividamente que a estética da aparência não precisa ser separada da função prática. Também é um monumento augusto, erguido no último quarto de primeiro século a.C. FIGURA 49 – PONT DU GARD PERTO DE NIMES, NA FRANÇA FONTE: Disponível em: <https://learnodo-newtonic.com/pont-du-gard-facts>. Acesso em: 20 jan. 2018. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 123 No Oriente, onde a urbanização já estava profundamente enraizada, o impacto de Augusto era menos dramático, mas no Ocidente, acima de tudo na criação de um sistema rodoviário e no estabelecimento ou refundação de inúmeras cidades cuidadosamente escolhidas na antiga Iugoslávia, na Gália, na Península Ibérica e ao longo do litoral norte-africano, Augusto deixou uma marca clara de estética civilizatória na Europa Ocidental. 3 O COLAPSO ROMANO E O RENASCIMENTO DA ESTÉTICA CLÁSSICA NO SÉCULO XIV NA EUROPA O colapso político do Império Romano ocorreu em 476 d.C., quatro anos depois que os bárbaros do Norte derrubaram a capital pela terceira vez e paralisaram a autoridade do governo imperial. A guerra tomou um preço contínuo nos magníficos edifícios e monumentos da capital e seus postos avançados. Novas visões religiosas sofreram ainda mais danos. Acreditando que é herético permitir a sobrevivência de templos e estátuas dedicadas aos deuses pagãos, os líderes da igreja primitiva cristã encorajaram os fiéis a destruírem todos os vestígios do politeísmo, sistema ou crença religiosa que admite mais de um deus. O papa Gregório Magno (c. 540-604), de acordo com um historiador da igreja inicial, "resolveu e ordenou que as cabeças e os membros de todas as imagens de demônios, que poderiam ser encontradas dentro e fora da cidade de Roma, fossem amputadas e quebradas em pedaços, de modo que o plano da verdade eclesiástica fosse mais exaltado, com a erradicação das raízes da heresia perversa "(BUDDENSIEG, 1965, pg. 45). Estátuas quebradas foram usadas como materiais de construção, queimadas para produzir lima ou empilhadas em navios como lastro. Os templos dedicados aos deuses pagãos foram cooptados pelo culto cristão ou desmontados para que suas pedras pudessem ser recicladas para serem erguidas novas igrejas. Oito séculos mais tarde, após o final da Idade Média, houve uma forte mudança de paradigma cultural na Europa, conhecida por Renascimento. A palavra "renascimento" se refere não apenas ao generalizado florescimento da literatura e das artes na Itália do século XV, mas também ao ressurgimento da cultura clássica antiga como força vital na época. 124 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 50 – O NASCIMENTO DE VÊNUS, DE SANDRO BOTICELLI, C.1485. GALERIA UFFIZI EM FLORENÇA - ITÁLIA FONTE: Disponível em: <https://www.art.com/products/p11725254- sa-i1350780/sandro-botticelli-the-birth-of-venus-c-1485.htm>. Acesso em: 20 jan. 2018. O nascimento de Vênus é uma pintura icônica do Renascimento, de Sandro Botticelli (1445-1510), provavelmente feita em meados da década de 1480, na Itália.Ele retrata a deusa Vênus chegando à costa depois do seu nascimento, após ter emergido do mar. Embora existam sutilezas na pintura, seu significado principal é um tratamento direto de uma cena tradicional da mitologia grega. Observem o tratamento clássico do corpo e da paisagem similar às pinturas sacro-idílicas do período de Augusto, na Grécia. Os artefatos antigos agora se tornaram fontes de criatividade potente, motivando artistas a imitarem as realizações do passado. Os artistas renascentistas encontraram, nos vestígios da Roma antiga, imagens e ideias que estimulavam novas invenções. Poucas pinturas gregas ou romanas já haviam saído à luz, mas uma série de objetos tridimensionais mais duráveis, como moedas, medalhas, estatuetas e gemas, forneceram um vasto léxico de formas e motivos clássicos para cotação direta ou adaptação imaginativa. Determinados artefatos também ajudaram os artistas a reunirem reconstruções plausíveis da Roma antiga. Com base em suas próprias imaginações férteis para preencher as lacunas no registro fragmentado da antiguidade, os artistas desenvolveram interpolações inventivas de artefatos antigos e textos literários que, por sua vez, geraram modos inteiramente novos de pintura e escultura. A apreciação pelo tratamento ideal do corpo em antiguidades, como Diomedes e o Palladium, inspirou os pintores renascentistas para que retratassem os nus clássicos. A obra “São Sebastião”, uma pintura de c.1500 atribuída para Gian Francesco, de Maineri (1489-1506), reproduz as proporções ideais e a postura de contraposto assimétrico que os artistas renascentistas admiraram na escultura antiga. Na verdade, o santo martirizado parece com uma escultura clássica feita de carne e osso. TÓPICO 3 | O CLASSICISMO NA ARTE E ARQUITETURA ROMANA 125 FIGURA 51 – SÃO SEBASTIÃO, UMA PINTURA RENASCENTISTA DE GIAN FRANCESCO DE MAINERI FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/521221356854506333/?lp=true>. Acesso em: 20 jan. 2018. Gian Francesco cultivou a semelhança, colocando a figura diante de um nicho arqueado, um modo comum de exibir estatuetas antigas durante o Renascimento. Um nicho foi projetado especificamente para uma das estátuas antigas mais influentes conhecidas no século XV, o Apollo Belvedere, quando o grande colecionador Giuliano della Rovere a transferiu de seu jardim privado para o palácio Belvedere, mais acessível após sua eleição, como Papa Julius II, em 1503. FIGURA 52 – NASCIMENTO DE VÊNUS DE WARHOL, 1984 FONTE: Disponível em: <https://www.masterworksfineart.com/artists/ andy-warhol/lithograph/warhol-birth-of-venus-1984/id/W-5527>. Acesso em: 20 jan. 2018. As conquistas dos artistas renascentistas não reproduziram, mas revalorizaram as conquistas do passado antigo, acrescentando um brilhante capítulo moderno à história da tradição clássica. Como vimos no início desta unidade, a herança foi novamente reacendida durante o Neoclassicismo, e subsiste entre nós, mesmo que de maneira desapercebida, até os dias de hoje. 126 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A arte e a arquitetura floresceram durante o Império Romano, entre 27 a.C. e 476 d.C. Sob o domínio romano, ambiciosos programas de construção, melhorias civis e monumentos escultóricos transformaram a capital e seus territórios dependentes em toda a Itália, Europa e Mediterrâneo. Trabalhando no estilo clássico, aperfeiçoado da Grécia durante o século V a.C., os romanos aplicaram sistemas gregos de proporção, simetria e harmonia ideais para seus próprios objetivos e preferências. • O uso inovador do arco, da abóbada e da cúpula permitiu que os arquitetos avançassem além da construção dos gregos para projetos mais complexos, compatíveis com a predileção romana de grandeza e massividade. O uso extensivo de concreto, geralmente somado ao uso de tijolo, pedra ou mármore, alcançou a força e a durabilidade, tornando a construção romana lendária. • O reinado de Augusto foi de enorme fervor arquitetônico e artístico, e o conservadorismo cauteloso era combinado com novas ideias revolucionárias. O imperador forneceu um forte patrocínio que atraiu arquitetos, escultores e pintores para a capital, um patrocínio que era vital para serem criadas condições adequadas para obras de arte e edifícios em grande escala. • Uma ideia da escala do novo programa de construção pode ser julgada pela surpreendente afirmação de Augusto, de que ele construiu ou restaurou não menos de 82 templos em apenas um ano, além de outros tipos de construção. Um impacto mais imediato na cena arquitetônica foi feito pelo mármore. Augusto se vangloriou do fato de ter encontrado Roma como uma cidade de tijolos de barro e a ter deixado como uma cidade de mármore. • O nome de Spurius Tadius, também conhecido como Studius, é relevante. Ele foi o primeiro que teria feito pinturas muito encantadoras de jardins paisagísticos, com pessoas envolvidas nas tarefas da vida cotidiana. Repercute como o tipo de coisa que surge em várias residências augustas, como figuras pequenas, retratadas de forma impressionante em plano monocromático, caminhando e pescando, conversando e fazendo negócios diários, em um cenário de pontes, pórticos e pavilhões. • Séculos mais tarde, a apreciação pelo tratamento ideal do corpo em antiguidades, como Diomedes e o Palladium, inspirou os pintores renascentistas na Europa a retratarem os nus clássicos. A herança clássica foi novamente reacendida durante o Neoclassicismo, e subsiste entre nós, mesmo que de maneira desapercebida, até os dias de hoje, na contemporaneidade. 127 1 Na sua opinião, quais seriam as semelhanças da arte grega e romana? 2 Respeitando as características de Roma, que detestava profundamente a monarquia, Augusto soube combinar com inteligência a tradição e a reforma ao criar, no Império, uma nova forma de governo, em que o imperador não seria rei nem tirano, mas o primeiro dos senadores, destinado a garantir o bem-estar de todos. Qual das alternativas a seguir não condiz com as contribuições de Augusto à arquitetura clássica romana? ( ) Augusto forneceu um forte patrocínio, que era vital para criar condições adequadas para obras de arte e edifícios em grande escala. ( ) Augusto construiu não menos de 82 templos em apenas um ano, além de outros tipos de construção. ( ) Augusto se vangloriou do fato de ter encontrado Roma como uma cidade de tijolos de barro e a ter deixado como uma cidade de mármore. ( ) Augusto provavelmente foi o primeiro a perceber o potencial das ricas pedreiras de mármore de Carrara, perto de Luna, no norte da Itália. AUTOATIVIDADE 128 129 TÓPICO 4 A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO A estética musical, como um todo, procura entender as propriedades percebidas da música, em particular aquelas que levam as experiências de valor musical para o ouvinte. Pode também ser entendida, mais amplamente, como sinônimo da filosofia da música, incluindo, assim, questões de ontologia musical, epistemologia, ética e sociologia. Uma área específica de foco dentro da estética musical é a estética da música clássica, que aborda questões relativas às propriedades estéticas e ao valor estético da música na tradição clássica ocidental. O termo "música clássica" não apareceu até o início do século XIX, em uma tentativa de canonizar distintamente o período de Johann Sebastian Bach (1685-1750) até Ludwig van Beethoven (1770-1827) como uma idade de ouro. A referência mais antiga à "música clássica" registrada pelo “Dicionário de Língua Inglesa de Oxford” é de aproximadamente 1829. O termo clássico outorgado à música não tem uma correlação direta com a estética clássica greco-romana, mas enfatiza a continuidade de um estilo, de um cânone musical europeu de longa duração. Dada a ampla gama de estilos na música clássica europeia, do canto medieval cantado pelos monges para sinfonias clássicas e românticas, da orquestra a partir dos anos 1700 e dascomposições atonais de vanguarda para piano solo desde 1900, é difícil listarmos características que podem ser atribuídas para todas as obras do tipo em questão. No entanto, existem características que a música clássica contém que poucos ou nenhum dos outros gêneros de música contêm, tais como o uso de partituras e de desempenho de formas complexas de obras com solo instrumental, como a fuga. Ainda, embora a sinfonia não existisse antes do final do século XVIII, o conjunto da sinfonia e as obras escritas para ela se tornaram uma característica forte da música clássica. 130 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS Que conteúdo estético a música clássica tem a oferecer? Consiste simplesmente em padrões agradáveis que não têm significado fora das próprias estruturas musicais? Pode expressar emoções, sentimentos ou outros tipos de estados interiores? A música clássica oferece insights sobre a vida através de outras formas de arte? Pode possuir significados identificáveis ou conteúdo conceitual, histórico ou simbólico significativo? Se sim, como poderiam ser alcançados, dado que seus materiais parecem ser de natureza não significativa? Segundo Bazemore (2018), são algumas das principais questões que dizem respeito à estética da música clássica. 2 FORMA MUSICAL Os relatos de compreensão da música clássica abordam a questão de como os padrões do som geram significado para o ouvinte. Eles têm a ver com o desdobramento dos padrões no tempo durante a experiência auditiva e com a percepção do ouvinte sobre as relações entre as ideias musicais na peça. Na medida em que eles se concentram no processo de compreensão, eles abordam, apenas parcialmente, a questão mais geral de que tipo de conteúdo estético uma estrutura musical é capaz de transmitir. O conteúdo estético da música clássica estaria limitado à apreciação de padrões e às relações presentes na estrutura formal, ou a forma musical se relaciona de algum modo significativo com nossa experiência fora da música? A experiência estética é primordial ou totalmente de natureza intelectual, como afirma o cognitivista, ou o ouvinte experimenta o conteúdo em termos emocionais por meio das qualidades expressivas da música? O fato de a música conter significado, apesar de não conter palavras, e não possuir ferramentas adequadas para representação ou significação, torna a resposta para as perguntas especialmente desafiadora. A questão de saber se a música significa ou expressa algo além de si mesma está presente na estética musical desde a época das primeiras discussões sobre o assunto, na primeira metade do século XVIII. Kant (1724-1804) propôs o conceito formalista, demonstrando que a beleza estética se limita ao conteúdo da forma, uma forma sem propósitos, mas repleta de intencionalidades. Hanslick (1986) desenvolve ainda mais a linha de pensamento, ao afirmar que o conteúdo estético da música clássica é melhor compreendido através da analogia de um arabesco em movimento. Meyer (1961) enfatiza a importância fundamental das estruturas formais, embora reconheça o conteúdo extramusical como um aspecto legítimo da música. Relatos contemporâneos influentes do valor estético e do conteúdo da estrutura formal foram oferecidos por Malcolm Budd, Peter Kivy e Nick Zangwill. TÓPICO 4 | A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 131 Implícita para cada um deles está a intuição formalista, de que as qualidades esteticamente significativas da música, como forma de arte, resultam da apreciação de aspectos da própria estrutura musical, como estrutura, e que a música, como tal, não tem significado além dos padrões e relacionamentos presentes nela. Enquanto Budd (1985), em última análise, parece reservar julgamento sobre a possibilidade de que a música possa ter conteúdo emocionalmente expressivo ou extramusical, além do conteúdo puramente musical que defende, Kivy (1980) e Zangwill (2007) assumem uma posição mais forte, argumentando que o conteúdo esteticamente significativo na música é estritamente musical por natureza. 3 MÚSICA COMO ARTE ABSTRATA Em “Valores da Arte”, Budd (1995, p. 36) caracteriza a música como a “arte dos sons não interpretados”, argumentando que a música é essencialmente uma arte abstrata e que a essência da música é a estrutura musical audível percebida pelo ouvinte. Budd não nega que a música possa conter outros elementos e servir para outros propósitos, como quando um instrumento musical, passagem ou motivo é usado para significar algo extramusical, ou quando um trabalho musical de alguma forma representa coisas ou eventos extramusicais, ou quando a música é combinada com outras formas de arte. Sua alegação é que tais elementos na música não são adequados à arte, que eles não fazem parte da música como tal. O conteúdo musical na música está presente em uma estrutura audível abstrata cujo significado não é determinado por significados ou referências ao mundo externo. Assim, a música não representa nada, não faz referência para nada, e não é sobre outra coisa se não for ela mesma. O autor restringe o que é essencial para entender a música com a percepção dos padrões estruturais audíveis presentes em uma peça e suas relações musicalmente significativas entre si. Todo o outro conteúdo é excluído. Chama a forma de "estrutura musical" da peça. Para ele, a música é abstrata, no sentido de que não depende de seu sucesso como forma de arte sobre uma relação referencial com outras áreas de nossa experiência ou conhecimento, seja referência por meio de representação, imitação, significação ou por alguma outra técnica que vincula referencialmente sons musicais com coisas do mundo exterior ou com a nossa experiência. É importante notar que, de acordo com a maioria dos que escrevem na área, colocando ênfase exclusivamente no conteúdo musical, os significados 132 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS referenciais não são considerados como esteticamente significativos para a música como uma forma de arte. A música pode possuir uma variedade de significados referenciais, desde a imitação de sons extramusicais até significados culturalmente estabelecidos, ligados a tipos específicos de sons ou melodias, a imitações de conteúdo fornecidos por um programa ou por palavras que acompanham. A maioria dos escritores argumentaria, no entanto, que tais significados referenciais não são adequados ao conteúdo estético da música clássica, uma vez que eles se baseiam em sua especificação de elementos extramusicais, como palavras e convenções culturais. Para Budd, a estrutura musical por si só constitui todo o conteúdo musicalmente significativo da música. Outros elementos podem ser adicionados para o aprimoramento artístico. Exemplos de elementos estruturais incluiriam melodia, ritmo e harmonia, assim como outros julgados pelo ouvinte como musicalmente significativos, tais como padrões formais claramente identificáveis; relações entre partes, incluindo movimento de contraponto, imitação etc; textura harmônica, polifônica, homofônica, heterofônica etc; variações no número de partes e nas forças de execução, e similares. Além dos fatores apresentados, aspectos sonoros da música, incluindo o tipo e a qualidade do instrumento, a qualidade da técnica do artista e as escolhas artísticas que o intérprete faz são secundários ao que está contido na música. Ao definir a música como a arte dos sons não interpretados, Budd localiza o conteúdo estritamente musical da música em primeiro lugar na percepção do ouvinte sobre as relações entre as estruturas musicais. Ouvir a música em um trabalho consiste em perceber a relação de características estruturais. É um desdobramento de padrões e relacionamentos no tempo e, principalmente, uma experiência dinâmica, energias geradas pelo desdobramento temporal das relações de frequência musical e padrões rítmicos. 4 FORMALISMO MUSICAL A alegaçãode que a música é uma arte abstrata pode significar que ela não contém nada além de sons e suas relações entre si. Em outras palavras, podemos dizer que a música possui apenas conteúdo formal, de modo que qualquer conteúdo que não seja assim é de importância secundária e uma adição opcional por parte do ouvinte e, portanto, não faz parte da música em si. Um relato permitiria que formas musicais possuíssem conteúdo emocional como uma propriedade expressiva apreendida pela percepção intelectual e que TÓPICO 4 | A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 133 formas musicais pudessem produzir um estado afetivo no ouvinte em resposta a qualidades esteticamente significativas, como beleza ou impressão, como definiu Gurney (1966). No entanto, o relato negaria que a música expressa emoções em qualquer sentido normal do termo. O formalismo musical sustenta que todo o conteúdo estético da música é de natureza puramente musical. Assim, também nega que a música seja capaz de transmitir experiências ou valores humanos, bem como qualquer tipo de conteúdo conceitual mais amplo relacionado à vida humana. Kivy (2006), um proeminente defensor da abordagem, argumenta que, em essência, a música é uma estrutura “quase-sintática”, que é compreensível apenas em termos musicais, “sem conteúdo semântico ou representacional, sem significado, fazendo referência para nada além de si” (p. 276). Oferece um argumento sustentado para o ponto de vista em “Music Alone” (1980) e desenvolve sua discussão em “New Essays on Musical Understanding” (2001). Deve-se notar que, ao defender o que ele descreve como "purismo musical", Kivy (2001) reconhece que a música pode possuir algumas características expressivas, desde que elas não sejam representacionais, não referenciais e não possuam outro significado que não seja puramente musical. Sugere que, embora a música não expresse emoções, nem as desperte em nós, ela pode possuir propriedades expressivas por semelhança. Uma peça central do argumento de Kivy é sua "teoria do contorno", da expressividade musical, articulada pela primeira vez em “The Corded Shell”. Argumenta que a experiência do conteúdo expressivo na música consiste não na experiência emocional de tal conteúdo, mas no reconhecimento de qualidades emocionais através de uma semelhança entre a forma musical e a forma característica de enunciados ou gestos corporais. Fazemos a associação, segundo Kivy, porque estamos determinados psicologicamente a representar o que percebemos e interpretamos em termos humanos. A percepção da emoção na música é, portanto, coletiva, individual e objetiva. Também identifica alguns exemplos de conteúdo expressivo que não podem ser explicados por seu modelo de contorno, como nossa experiência das respectivas qualidades das escalas maior e menor. Ele argumenta que as instâncias, quaisquer que sejam suas origens, são estabelecidas por convenção e, portanto, têm o mesmo caráter objetivo que as que se assemelham a expressões comportamentais humanas de emoção. 134 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS Embora reconhecendo a força da perspectiva de Kivy, DeBellis (2001) sugere que um apelo à semelhança, através do contorno, carece de poder explicativo, já que dizer que percebemos a música e a fala como tendo a mesma qualidade expressiva é meramente reafirmar o problema do caráter expressivo. DeBellis (2001) também aponta para a possibilidade da música se assemelhar a ações humanas, que causam a emoção mais parecida com a expressão da emoção em si, como na satisfação resultante da percepção de luta seguida de resolução. Ele questiona se as afirmações de Kivy sobre a natureza convencional dos modos principais e secundários podem ser verificadas. Recentemente, Kivy modificou sua posição para uma de "formalismo aprimorado", sustentando que a música instrumental pura é uma "caixa preta" sobre a questão de como ela possui propriedades expressivas e sugerindo que a questão importante é entender o papel que as propriedades desempenham na estrutura formal. Seguindo uma concepção semelhante do conteúdo estético da música para o de Kivy, e de acordo com Scruton (1997) sobre a natureza metafórica de nossas descrições de qualidades musicais, Zangwill (2007) defende a "tese da metáfora estética". Sustenta que, exceto em casos excepcionais, as descrições emocionais da música são descrições metafóricas das propriedades estéticas da música. Assim, como dizemos, sem controvérsias, que uma passagem é delicada, da mesma maneira metafórica, podemos também descrever uma passagem musical como serena. Zangwill (2007) reconhece que temos respostas estéticas intensamente valiosas para algumas obras de música, mas nega que sejam emocionais por natureza. O erro, segundo Zangwill (2007), é tomar as nossas descrições metafóricas literalmente e confundir os sentimentos envolvidos na experiência da música com as emoções. De acordo com Kivy (2006), Zangwill sustenta que a música absoluta não pode evocar emoções muito variadas e argumenta que, ao ouvir música, experimentamos sentimentos especificamente estéticos, que compartilham algumas, mas não todas as características encontradas em experiências emocionais reais. 5 BELEZA, PRAZER SUBLIME E SENSUAL NA MÚSICA Independentemente da posição tomada sobre se a música é ou não capaz de expressar emoções ou outros tipos de conteúdo extramusical, existe um acordo universal entre os teóricos, de que a música clássica oferece experiências únicas e altamente valiosas da beleza musical. Historicamente, a tendência predominante tem sido limitar a beleza musical à percepção de relações existentes na estrutura formal da obra, excluindo suas qualidades sensoriais. TÓPICO 4 | A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 135 O tipo mais comum de beleza musical atribuído à música clássica é encontrado na melodia. A maioria das melodias individualmente identificáveis que descrevemos como belas possui certas características que são facilmente reconhecíveis. Incluem um movimento conjunto, contornos graciosos, elegância do design, uma duração tal que o todo pode ser apreendido na consciência imediata do ouvinte, uma sensação de chegada ou retorno ao final da melodia, um ritmo moderado a lento e uma qualidade na produção do som e fraseado, como o estilo do bel canto. Os detalhes do estilo evoluem ao longo do tempo, mas as características gerais sustentam belas melodias durante o Período da Prática Comum e além, bem como exemplos de beleza melódica que antecedem a tonalidade da Prática Comum. A beleza musical, no sentido de padrões que agradam ao intelecto e à imaginação, também pode ser encontrada na percepção de formas musicais de maior escala. Na história da música artística europeia, o período da prática comum é a era entre a formação e a dissolução do sistema tonal. Embora não existam datas exatas para o fenômeno, a maioria das características do período de prática comum persistiu do meio ao período barroco tardio, através dos períodos clássico, romântico e impressionista, ou aproximadamente de 1650 a 1900. UNI A avaliação do significado varia dependendo do peso concedido às características arquitetônicas na experiência musical. No mínimo, certas estruturas formais prontamente perceptíveis, como aquelas presentes em cânones e ostinatos harmônicos, podem ser incluídas sem controvérsias em aspectos padronizados da beleza musical na música clássica. Um "contraponto" bem trabalhado é um terceiro tipo comumente identificado de beleza musical. Em tempos mais lentos e, especialmente, em registros mais baixos, o contraponto também é reconhecido por muitos teóricos para contribuir para as percepções da profundidade musical. Relacionada à profundidade musical está a experiência do sublime. Na estética musical clássica, como em outras artes, o sublime é geralmente usado para se referir à evocação daquilo que está além da compreensão humana. 136 UNIDADE 2| RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS De acordo com a análise influente de Burke (1998), a experiência da sublimidade, na música clássica, é mais associada a sentimentos como temor, espanto, obscuridade e terror. Passagens musicais foram consideradas para evocar o sublime através de qualidades, que incluem a complexidade, seja de design geral ou de interação entre elementos musicais, expressão emocional e humor, que pode envolver intenso conflito ou turbulência, mas também pode estar presente como transcendência, e poder criativo, a partir de uma impressão criativa no poder do compositor em escopo ou impressividade do trabalho, ou através de qualidades, que evocam criatividade no próprio trabalho, como em uma fantasia. Em contraste com o foco tradicional nas qualidades formais, os próprios músicos clássicos, bem como os ouvintes contemporâneos da música clássica, incluiriam quase universalmente qualidades sensoriais, como importantes contribuintes para a beleza e para a sublimidade musical. De fato, um objetivo primordial, para o músico clássico, é desenvolver a beleza do tom. Ainda, os timbres e efeitos colorísticos desempenham um papel cada vez mais importante nas composições clássicas, começando no final do século XIX, como visto no impressionismo e no minimalismo musical, bem como na paleta expandida disponível através do uso de forças de performances maiores e mais variadas a partir do período romântico em diante. Parece difícil negar que a qualidade tonal e a experiência do ouvinte de combinações simultâneas e sucessivas de timbres sejam possíveis objetos de beleza musical e contribuintes para a experiência da sublimidade musical. No caso da sublimidade, a dinâmica e a textura também parecem ter um papel importante, assim como, em alguns casos, a articulação e o ataque. Uma questão adicional seria: até que ponto elementos virtuosos e exibições de virtuosismo musical por solistas constituem ou aumentam a beleza ou a sublimidade na música? Uma analogia comum observa que tais exibições são o equivalente auditivo dos fogos de artifício. TÓPICO 4 | A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 137 LEITURA COMPLEMENTAR Trajetória da Vênus: leituras do corpo feminino na arte, do classicismo à biopaisagem Ladjane Bandeira Ermelinda Maria Araújo Ferreira O corpo feminino talvez seja o tema mais explorado ao longo da história da arte ocidental, e a diversidade de suas representações oferece um painel significativo dos papéis simbólicos a ele atribuídos através dos tempos. Alguns estudiosos, como W. J. T. Mitchell, chegam a afirmar que uma das mais fortes motivações que G. E. Lessing encontra no seu famoso tratado “Laocoonte: sobre os limites da pintura e da poesia”, para estabelecer a distinção entre as artes espaciais e as artes temporais, é a rígida noção de poder e hierarquia entre os sexos. Assim, toda a arte pictórica em geral, por tender à imobilidade, seria tida como inferior à literatura. A mesma discussão ocorre nos discursos sobre o sublime. Os grandes estilos artísticos são definidos em uma terminologia que resgata o masculino (forte, vasto, poderoso), assim como os estilos ornamentais são definidos em uma terminologia que resgata o feminino (delicado, gracioso, suave). É marcante, por exemplo, a relação entre o gênero natureza-morta, na pintura a óleo europeia, e o espaço feminino. O gênero natureza-morta, com seus retratos de interiores domésticos e de objetos inanimados, não só foi considerado “feminino e menor” em oposição à pintura dita “elevada e masculina” – de temática mitológica, bíblica ou histórica –, mas também o único “apropriado” para o exercício da pintura por mulheres. Embora comumente despovoadas e silenciosas, as naturezas-mortas, às vezes, não se conformam em aludir ao humano de forma indireta, através dos seus adornos e/ou despojos materiais, e acabam recorrendo à representação direta de personagens. Coerentemente, os seres humanos, em geral mulheres, que invadem as pinturas do gênero, são aqueles cujas individualidades tendem a zero. Confundidas com o ambiente, transformadas em uma categoria espacial, as mulheres figuram ao lado das coisas tidas como decorativas, como as flores nos vasos, ou apetitosas; os frutos nas cestas; retratados com a mesma imobilidade, silêncio e beleza que envolvem os objetos e seres com os quais elas lidam, sendo os utensílios, os alimentos, as crianças e os animais. Ainda, como diz John Berger, o gênero por excelência, no qual a mulher é o tema principal, é o nu. Os nus femininos, da tradição pictórica ocidental, têm 138 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS origem nas belas estátuas gregas, que esculpiram no mármore não só a arquitetura de uma perfeição de formas concebidas, mas também os gestos fundadores de uma estética da ambiguidade feminina, presente na atitude de velamento e desvelamento da intimidade física, fartamente reproduzida no decorrer dos séculos. Basta comparar uma das muitas reproduções da clássica Vênus com a série deflagrada a seguir. No Renascimento, com o mitológico Nascimento de Vênus (1480), de Botticelli e, no Barroco, seja com a Eva (1550) das Sagradas Escrituras, seja com a profana Vênus de Urbino (1536), ambas de Ticiano. No último quadro, ao mudar a posição da mulher, deitando-a sobre um leito, Ticiano acrescenta um detalhe postural definitivo à tradição, que passa a ser copiado na modernidade, tanto pelos românticos, como pelos realistas. FIGURA 53 – COMPARAÇÃO ENTRE A VÊNUS DE MÉDICI COM A VÊNUS DE BOTICELLI FONTE: Disponível em: <https: //en.wikipedia.org/wiki/Venus_ de%27_Medici>. Acesso em: 1 abr. 2018. FIGURA 54 – COMPARAÇÃO ENTRE A VÊNUS DE MÉDICI COM A VÊNUS DE BOTICELLI FONTE: Disponível em: <http:// michelleheaton.info/venus-de-milo- painting-botticelli/venus-de-milo- painting-botticelli-18-best-sandro- botticelli-images-on-pinterest-italian- art/>. Acesso em: 1 abr. 2018. TÓPICO 4 | A ESTÉTICA DA MÚSICA CLÁSSICA 139 Goya, por exemplo, transforma-a na Maja Desnuda (1800), uma idealizada musa completamente exposta e languidamente oferecida, entre sedas e rendas, à fruição dos espectadores/compradores, enquanto Manet a transforma na fria e calculista prostituta Olympia (1865), cujo olhar perdeu toda a inocência da Maja e já se percebe plenamente uma mercadoria, refletida no espelho da arte, também mercantilizada. De forma irônica, o surrealista René Magritte põe um ponto final na tradição do clichê pictórico, com a sua releitura do quadro Madame Récamier (1800), de David, ao substituir o corpo da mulher convencionalmente representada no leito pela imagem de um caixão, em um quadro de 1950. FIGURA 55 – OLYMPIA DE MANET, 1863 FIGURA 56 – RELEITURA DO QUADRO MADAME RÉCAMIER DE DAVID (1800), POR RENÉ MAGRITTE (1950) FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia. org/wiki/File:Manet,_Edouard_-_Olympia,_ 1863.jpg>. Acesso em: 1 abr. 2018. FONTE: Disponível em: <http://www.artnet. com/artists/ren%C3%A9-magritte/perspec tive-madame-r%C3%A9camier-de-david- jGxjl-NFu4UVtPRDdlAPkg2>. Acesso em: 1 abr. 2018. A pequena escultura de Rodin, intitulada Mão, com torso feminino (1917), parece resumir a natureza da atitude de apropriação das artes plásticas sobre a temática do corpo feminino, ao longo de uma tradição que se estende da antiguidade à modernidade, quando só então começa a ser questionada. Uma mão masculina, de proporções avantajadas, segura um frágil, recurvado e miniaturizado torso feminino. Acéfalo e mutilado, ele foi reduzido à matéria, que interessa à representação, seios e púbis, em uma óbvia evocação das funções sexuais e reprodutivas, postas em um corpo atraente, mas inerte, sem identidade, emoção ou pensamento. 140 UNIDADE 2 | RAIZES HISTÓRICAS DA ESTÉTICA CLÁSSICA OCIDENTAL: GRÉCIA E ROMA ANTIGAS FIGURA 57 – VIOLAÇÃO, DE MAGRITTE, 1935 FONTE: Disponível em: <http://pt.wahooart.com/art.nsf/ Buy?Open&RA=8XYUAJ>.Acesso em: 1 abr. 2018. Uma autêntica Violação (1934), como sugeriria Magritte, em seu retrato de um rosto feminino rasurado pelos elementos do torso, que denuncia a postura dominante do gênero nu na história da arte ocidental, reveladora de uma estética da subjugação e da depreciação da mulher na reprodução exaltada de seu corpo coisificado. FONTE: Trajetória da Vênus: leituras do corpo feminino na arte, do classicismo à biopaisagem. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846174.pdf>. Acesso em: 1 jan. 2018. 141 RESUMO DO TÓPICO 4 Neste tópico, você aprendeu que: • O termo "música clássica" não apareceu até o início do século XIX, em uma tentativa de canonizar distintamente o período de Johann Sebastian Bach (1685-1750) até Ludwig van Beethoven (1770-1827) como uma idade de ouro. • Existem características que a música clássica contém que poucos ou nenhum dos outros gêneros de música contêm, tais como o uso de partituras e de desempenho de formas complexas de obras com solo instrumental, como a fuga. Ainda, embora a sinfonia não existisse antes do final do século XVIII, o conjunto da sinfonia e as obras escritas para ela se tornaram uma característica forte da música clássica. • Para Budd (1995), o conteúdo musical está presente em uma estrutura audível abstrata, cujo significado não é determinado por significados ou referências ao mundo externo. Budd chama a forma de "estrutura musical" da peça. • O formalismo musical sustenta que todo o conteúdo estético da música é de natureza puramente musical. Peter Kivy, um proeminente defensor da abordagem, argumenta que, em essência, a música é “uma estrutura quase- sintática”, que é compreensível apenas em termos musicais, “sem conteúdo semântico ou representacional, sem significado, fazendo referência para nada além de si”. • Nick Zangwill defende a "tese da metáfora estética", que sustenta que as descrições emocionais da música são descrições metafóricas das propriedades estéticas da música. Assim como dizemos, sem controvérsias, que uma passagem é delicada, da mesma maneira metafórica podemos também descrever uma passagem musical como serena. • Na estética musical clássica, como em outras artes, o sublime é geralmente usado para se referir à evocação daquilo que está além da compreensão humana. De acordo com a análise influente de Burke (1998), a experiência da sublimidade, na música clássica, é mais associada a sentimentos como temor, espanto, obscuridade e terror. 142 1 Segundo Eduard Hanslick, Leonard Meyer e Malcolm Budd, quais conteúdos estéticos a música tem a oferecer? 2 Peter Kivy argumenta que a música é “uma estrutura quase-sintática”, que é compreensível apenas em termos musicais, “sem conteúdo semântico ou representacional, sem significado, fazendo referência para nada além de si”. Qual das sentenças a seguir não contempla o pensamento de Kivy a respeito da estética da música? a) Kivy reconhece que a música pode possuir algumas características expressivas, desde que elas sejam representacionais e referenciais. b) Segundo a "teoria do contorno" da expressividade musical, Kivy argumenta que a experiência do conteúdo expressivo na música consiste no reconhecimento de qualidades emocionais através de uma semelhança entre a forma musical e a forma de gestos corporais. c) A percepção da emoção, para Kivy, é coletiva, individual e objetiva. d) Kivy argumenta que nossas experiências de conteúdos expressivos musicais, como o das qualidades das escalas maior e menor, têm o mesmo caráter objetivo que as que se assemelham a expressões comportamentais humanas de emoção. AUTOATIVIDADE 143 UNIDADE 3 ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de: • compreender a trajetória filosófica da estética artística no Ocidente, a par- tir da implementação do estado laico e da priorização da subjetividade com o advento da modernidade; • entender as concepções estéticas e seus impactos na história da arte, a par- tir do pensamento dos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos, como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Johann Christoph Friedrich von Schiller, Friedrich Wilhelm Nietzsche, Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Hans-Georg Gadamer e Gilles Deleuze; • compreender o motivo, na contemporaneidade, que faz com que a estética caminhe com a subjetividade, procurando contornos no que Ferry (1994, p.19) chama de “a era da interrogação sem fim”, em um incansável proces- so de revisão das tradições. Esta unidade está dividida em três tópicos. Em cada um deles, você encontra- rá autoatividades que o ajudarão a fixar os conhecimentos adquiridos. TÓPICO 1 - ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER TÓPICO 2 - ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY TÓPICO 3 - ESTÉTICA E A CONTEMPORANEIDADE: GADAMER E DELEUZE 144 145 TÓPICO 1 ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO As reflexões filosóficas sobre beleza e arte têm sido relevantes no pensamento ocidental desde Platão (428-348 a.C.), e as ideias platônicas influenciaram claramente Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e outros filósofos, mas é apenas em meados do século XVIII, na Europa, que a noção de uma área distinta da filosofia chamada Estética se desenvolve. Entre o final do século XVIII e o final do século XIX, a relação entre arte e o resto da filosofia sofre uma transformação radical, uma transformação que está ligada, como veremos, às mudanças vitais, tanto na produção como na recepção das artes. A filosofia moderna começa quando se descarta a divindade como base primordial de análise. A nova tarefa filosófica é, portanto, para a razão humana, estabelecer sua própria legitimidade como o fundamento da verdade. A transformação ocorre durante o século XVII, quando Descartes institui o "eu penso, logo existo", o principal ponto de certeza sobre o qual a filosofia pode se legitimar, mas Descartes ainda depende da concepção divina para garantir a conexão de nós mesmos com a ordem do universo. No final do século XVIII, Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão e fundador da “Filosofia Crítica”, visa, frente aos argumentos de Descartes sobre a autoconsciência, a descrever as estruturas compartilhadas de nossa consciência subjetiva, que são a "condição de possibilidade" do conhecimento objetivo, e ele tenta sem recorrer a uma divindade que garanta a ordem do mundo. Para Kant, a única certeza que a filosofia pode fornecer é fundamentada em nós mesmos, e não em algo fora de nós. No entanto, para estabelecer vínculos mais substanciais entre o mundo exterior da natureza e o mundo interno da autoconsciência, ele se preocupa posteriormente com o que nos faz apreciar e criar a beleza. O novo enfoque da filosofia, sobre a subjetividade estabelecida por Kant, acompanha as mudanças complexas e contraditórias feitas pela "modernidade, como a rápida expansão do capitalismo, o surgimento do individualismo moderno, UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 146 o sucesso crescente do método científico na manipulação da natureza para fins humanos, o declínio de autoridades tradicionais legitimadas teologicamente e a aparência, juntamente com a estética como um ramo da filosofia, da "autonomia estética", surgindo a ideia de que as obras de arte implicam regras produzidas livremente, que não se aplicam a nenhum outro objeto natural ou produto humano. Ao ser uma parte da filosofia preocupada com os sentidos e não necessariamente com a beleza, a nova "estética" centra-se agora no significado da beleza natural e da arte. Uma reflexão sobre estética não apenas envolve um avivamento dos pensamentos de Platão sobre a beleza como o símbolo do bem. A nova partida crucial está na forma como a estética está ligada ao surgimento da subjetividade como a questão central da filosofia moderna, eé aqui que se destaca a relevância deste tópico para as preocupações contemporâneas. Muitas teorias recentes consideraram o sujeito humano como sendo "subvertido", por sua falta em proporcionar um terreno estável para a filosofia, através, por exemplo, de sua dependência da linguagem ou do inconsciente. O ponto é, no entanto, que tais ideias não são as ideias radicalmente novas como as que muitas vezes foram apresentadas. As ideias relacionadas já desempenham um papel central em algumas das reflexões sobre a subjetividade, que imediatamente seguem Kant e estão implícitas em alguns de seus argumentos. Ainda, as teorias do início do período moderno são importantes na medida em que ajudaram a promover as ideias que informam os debates atuais e, às vezes, são superiores a muitas teorias atuais. O fato importante é que elas consideram a experiência da beleza natural e artística e a produção estética como vitais para a compreensão da autoconsciência. A capacidade de aprender algo tão bonito e a capacidade de fazer algo bonito, bem como a capacidade de criar novos significados sem seguir regras fixas, são vistas como aspectos envolventes do eu, que não podem ser teorizados em termos do subjetivo se tornar transparente para si como seu próprio objeto de conhecimento. As maneiras pelas quais a auto-objetificação parece ter limites inerentes são um fator essencial nas mais significativas das teorias de estética. A importância, muitas vezes hiperbólica atribuída à arte, até o final do século XVIII, tem raízes no declínio da teologia e na desintegração de ordens sociais legitimadas teologicamente. Como Marx colocou no Manifesto Comunista, "tudo o que é sólido se desmancha no ar", e as novas ordens das coisas não podem reivindicar o mesmo tipo de autoridade que era fornecida pela tradição e pela teologia. A perda de uma natureza, cujo significado é assumido como inerente a ela, e cuja estrutura é divinamente garantida, leva a uma busca por outras fontes de significado e orientação. A nova experiência da natureza, bela em si mesma, TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 147 e não como manifestação da deidade, e a nova consciência do fato de que os seres humanos podem criar produtos estéticos, cujas partes inter-relacionadas são significativas de maneira que não pode ser explicada através das ciências naturais, são essenciais para a unidade. Os novos aspectos da modernidade são, porém, abertos para uma grande variedade de interpretações. Uma vez que se torna aceito, no mundo ocidental, que qualquer coerência que existe no mundo, inclusive em nós mesmos, não pode mais ser assumida como subscrita por Deus, a relação entre o humano e o natural se torna um problema sério. A tarefa definida pela filosofia da época é a criação de um mundo coerente com quaisquer capacidades naturais e quaisquer capacidades inovadoras que possamos desenvolver. A interrogação da natureza da subjetividade é, portanto, uma reflexão sobre o que são determinadas capacidades e sobre como se relacionam com a natureza em nós mesmos e fora de nós. A reflexão possui dois gumes: o entusiasmo gerado pela libertação de restrições teológicas pode dar lugar para uma suspeição da liberdade resultante e ao sentido de que o universo é inerentemente sem sentido, porque qualquer significado que existe pode ser apenas uma projeção meramente humana. Apesar de sua oposição, as respostas à modernidade atribuem significância considerável à arte, seja como aquela que fornece imagens do que o mundo poderia parecer se devêssemos realizar nossa liberdade e assim estabelecer uma relação apropriada com o resto da natureza ou como o único meio remanescente de criar ilusões que nos permitirão enfrentar uma existência sem sentido. Determinadas posições não são necessariamente opostas. Ambas compartilham a suspeita de que o domínio das formas quantificadoras de racionalidade, como o princípio cada vez mais exclusivo da vida moderna, faz parte do que dá origem às crises de significado na modernidade. No momento em que a filosofia se torna preocupada, de forma rigorosa com o método científico e com a capacidade de desmitificação das ciências naturais, também se torna preocupada com aquilo que é excluído pela ciência. Nada nas ciências fornece o senso de significado existencial que a natureza pode ter para o sujeito individual. O ponto da ciência é a produção de leis gerais que subsumam casos individuais e permitem a manipulação e o controle da natureza. Em consequência, a natureza vista com os olhos da ciência moderna pode parecer com uma máquina que está sendo respondida de maneira mecânica. Juntamente com a suspeita dos possíveis efeitos das novas ciências, surge a consciência de que, com as novas formas de capitalismo, a natureza passa a ser vista não mais como fonte de inspiração, mas como fonte de lucro. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 148 Uma das ideias, no novo campo da estética, é precisamente a ideia de que a beleza de um dado objeto não tenha relação com sua utilidade prática ou seu valor de troca. Embora as obras de arte claramente se tornem produtos de consumo, nem seu valor de uso, nem seu valor como produto podem constituí- los como obras de arte. O processo de racionalização, que leva à penetração de procedimentos vinculados e quantificados pelas regras em todas as áreas da ciência é, então, o fundamento insubstituível dos avanços da modernidade e a fonte de grandes incertezas. A estética filosófica responde ao processo, fornecendo uma lembrança de que existem outras formas de ver a natureza e a atividade humana, além das visões instrumentais oferecidas pelas ciências e pelo comércio. A nova ideia central é que a beleza da natureza não precisa ter uma função ulterior e pode ser seu próprio propósito. De forma análoga, as regras da arte são vistas como produtos autolegitimados da liberdade humana, não como resultado da tentativa instrumental de compreender necessidades objetivas ou questões naturais. Em relação à crise ecológica contemporânea, as questões levantadas pela estética passaram a ser cada vez mais importantes hoje. A concentração renovada sobre o que pode ser aprendido com a estética deixa claro que não há motivos necessários para assumir que a preocupação com a estética deve, como sempre aconteceu no período moderno, estar conectada à rejeição da racionalidade. A arte e a compreensão da arte podem permitir o que foi reprimido por uma concepção limitada da razão a ser articulada. Vamos agora conhecer alguns dos principais filósofos e intelectuais que definiram a trajetória da estética artística na modernidade, e que, supostamente, influenciam o pensamento contemporâneo. 2 IMMANUEL KANT E O JULGAMENTO ESTÉTICO Immanuel Kant (1724-1804), segundo Gaiger (2002), é considerado como a figura central da filosofia moderna. Ele sintetizou o racionalismo e o empirismo moderno desde o início, definiu os termos para uma grande parte da filosofia do século XIX e do século XX e continua a exercer uma influência significativa na metafísica, epistemologia, ética, filosofia política e na estética. A ideia fundamental da "filosofia crítica" de Kant, especialmente em suas três Críticas: a Crítica da Razão Pura (1781, 1787), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica do Poder do Juízo (1790), é a autonomia humana. Ele argumenta que a compreensão humana é a fonte das leis gerais da natureza, que estruturam toda a nossa experiência e que, através da razão humana, se dá a lei moral, que é nossa base para a crença em Deus, liberdade TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 149 e imortalidade. Portanto, o conhecimento científico, a moralidade e as crenças religiosas e a função da natureza seriam, segundo Kant, mutuamente consistentes e seguras, por se ampararem no mesmo fundamento da autonomia humana, como cosmovisão teleológica do julgamento refletivo que Kant introduz para unificaro lado prático e teórico de seu sistema filosófico. Na “Crítica da Razão Pura” (1770), Kant abordou a questão do que podemos conhecer, estabelecendo limites para a especulação metafísica e, ao mesmo tempo, fornecendo um relato da contribuição ativa da mente humana para o nosso conhecimento do mundo. Na “Crítica da Razão Prática” (1788), ele considerou o problema da ação correta, estabelecendo uma ética universalista com base no respeito pela lei moral e uma teoria da autonomia da vontade. A publicação, em 1790, da “Crítica do Juízo”, de Immanuel Kant, como a terceira de suas três grandes críticas, pareceu conferir à estética um status comparável ao que tradicionalmente foi apreciado pela epistemologia e filosofia moral. Na primeira parte da “Crítica do Juízo”, a "crítica ao julgamento estético", Kant estabelece o status distintivo dos julgamentos de gosto. A terceira crítica pode assim ser vista como complemento para suas investigações anteriores sobre a verdade e a moral, ao abrir o domínio da beleza ao exame crítico. A principal preocupação de Kant é com o caráter de nossa faculdade de julgamento como tal, e o tratamento do problema se estende muito além dos assuntos tradicionais de estética. As reflexões sobre a beleza, a sublimidade e as Belas Artes, que compõem a primeira parte da “Crítica do Juízo”, estão inseridas em uma teoria maior e mais ambiciosa do julgamento "reflexivo", que se estende para cobrir os julgamentos teleológicos e o julgamento estético. Na área da filosofia, são usados vários termos que possibilitam explicações diversas. Vamos conhecer o que é "teleológico". Teleológico é um adjetivo que, em filosofia, refere-se a argumento, conhecimento ou à explicação que relaciona um fato à causa final. NOTA De fato, Kant sugere que uma compreensão adequada da faculdade de julgamento pode, de alguma forma, unificar as diferentes partes de seu sistema filosófico, fornecendo uma ponte importante entre suas teorias de "verdade" e "bondade". UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 150 É determinado contexto maior que explica as dificuldades consideráveis encontradas por alguém que se aproxima do texto de Kant pela primeira vez. A Crítica do Julgamento é um trabalho extremamente técnico e sua interpretação correta continua sendo objeto de controvérsia, mesmo entre os estudiosos de Kant. Kant começa a "Crítica do Juízo Estético" ao distinguir o que ele chama de julgamento do gosto (o julgamento da beleza de algo) de uma mera expressão. Ele ressalta que, quando fazemos um julgamento de gosto, não declaramos nossa preferência subjetiva por algo, mas levantamos uma reivindicação que consideramos válida para outras pessoas também. No caso de um simples gosto por algo, permanecemos imperturbáveis se as preferências de outras pessoas diferirem da nossa. Acontece quando gostamos de vinhos secos, enquanto outras pessoas preferem o doce. Entretanto, quando afirmamos que algo é belo, torna-se importante para nós, se nossos julgamentos não coincidirem, pois falamos de beleza como se fosse uma propriedade do objeto. Embora a apreciação estética seja baseada em nossos próprios sentimentos subjetivos, consideramos determinados sentimentos como possuindo uma peculiar forma de necessidade. Ao fazer um julgamento de gosto, exigimos implicitamente às outras pessoas que elas também respondam da mesma maneira. Kant sustenta que não faz sentido insistir que "a pintura é bonita para mim". Ao declarar que algo é bonito, eu vou além dos meus gostos e desgostos subjetivos e expresso algo que eu seguro ser válido para todos os outros também. Ao fazer um julgamento de gosto, falo em uma "voz universal" e estendo meu próprio julgamento a todos os outros assuntos de julgamento. A afirmação de "universalidade" não é fundamentada diretamente no próprio objeto, mas em um consenso assumido entre todos aqueles que são capazes de julgar. Um julgamento de gosto, então, levanta uma reivindicação de validade intersubjetiva. Pode parecer, em primeiro lugar, como se julgamentos de gosto possuíssem o mesmo status de julgamento de fato ou de julgamento moral. No entanto, um julgamento de gosto permanece diferente de ambos os tipos, na medida em que sua principal fonte de justificação deve ser encontrada no sentimento de prazer (ou desagrado) do sujeito individual diante do objeto. Não podemos ser persuadidos por razões ou argumentos para aceitarmos que algo seja belo se não sentirmos determinada beleza. O julgamento de que algo é belo é um juízo logicamente singular, que deve ser feito na presença (ou lembrança pessoal) do próprio objeto. Da nossa apreciação de uma bela flor em particular, não podemos concluir que todas as flores do tipo são belas. Um julgamento de gosto é, afinal, um julgamento estético, dependente da experiência sensorial e não conceitual, ou de conhecimento racional. TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 151 O problema que Kant pretende resolver é de um julgamento do gosto, que se baseia no sentimento subjetivo de prazer ou desagrado do indivíduo em resposta a um objeto, que pode levantar uma reivindicação de universalidade. Sua explicação para o fenômeno é encontrada em um relato complexo de um estado de harmonia ou "jogo livre", em nossas faculdades mentais, dando origem à experiência da beleza. Localiza o último fundamento do nosso prazer na beleza, não em qualquer resposta meramente fisiológica ao estímulo fornecido pelo objeto, mas em uma sintonização dinâmica entre as faculdades de imaginação e compreensão. O relato de Kant sobre determinadas faculdades, e a relação entre elas, baseia-se na teoria da mente que ele desenvolveu na “Crítica da Razão Pura”. Na cognição normal, o papel da imaginação é sintetizar a variedade de dados que é dada na intuição, enquanto o papel do entendimento é subscrever esses dados sob algum conceito definido. No caso de um julgamento de gosto, no entanto, as faculdades são trazidas para um estado de sintonização, que permite uma forma de engajamento cognitivo com o objeto sem ainda submetê-lo sob um conceito determinado. Em um sentido importante, nossa resposta ao objeto permanece aberta e exploratória. A "dedução" de Kant ou a justificação da reivindicação de validade universal, que é levantada com um julgamento de gosto, baseia-se em demonstrar que um julgamento emprega os mesmos recursos mentais como um cognitivo normal, embora empregue os recursos de forma significativamente diferente. Ele argumenta que, uma vez que os recursos comuns a ambas as formas de julgamento representam um requisito indispensável de todo conhecimento, temos o direito de assumir que qualquer pessoa deve possuir os recursos necessários para fazer um julgamento de gosto. Uma vez que é uma expectativa que todo ser humano normal pode ser levado a satisfazer, Kant demonstra que temos o direito de exigir que as outras pessoas também experimentem o prazer no objeto que decorre da harmonia ou do jogo livre das faculdades cognitivas. O que Kant não conseguiu demonstrar, no entanto, é que a mesma relação entre as duas faculdades ocorre em todas as pessoas e nas mesmas circunstâncias. A simples posse das condições subjetivas para o conhecimento em geral pode ainda não ser suficiente para aproveitar a experiência estética do tipo que Kant descreve. A experiência da beleza poderia variar entre as pessoas ou poderia exigir uma aptidão especial ou capacidade de resposta para determinados tipos de objetos. Assim, foram levantadas dúvidas sobre o sucesso da "dedução" de Kant, da validade universal dos julgamentos de gosto. No entanto, a sua explicação sobre o prazer estético, em termos de realização de um estado de harmonia ou de jogo livre das faculdades, revelou-se sugestiva. Para Kant, nosso prazer com a beleza não é um fenômeno meramente sensorial, mas envolve um engajamento livre e aberto dos recursos fundamentais da mente humana. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNAE CONTEMPORÂNEA 152 A imagem de uma capacidade de resposta dinâmica, que é intrinsecamente prazerosa e que é apreendida como coerente ou significativa de uma forma bastante distinta do conhecimento conceitual, parece capturar algo verdadeiro da experiência estética e continua a ser um modelo importante para pensar tanto sobre o nosso interesse em objetos de beleza natural quanto nas obras de arte. Kant vai além da explicação básica a respeito do prazer com a beleza, oferecendo o que podemos chamar de "critérios identificatórios", para o que podemos contar como julgamento de gosto. Sustenta que temos o direito de levantar uma reivindicação de universalidade em relação ao julgamento de gosto somente quando confiamos que o nosso prazer no objeto se dá unicamente devido à harmonia das nossas faculdades cognitivas. Há, é claro, muitos outros motivos para o prazer em um objeto, e a demonstração de Kant da validade intersubjetiva dos julgamentos de gosto envolve restrições altamente exigentes sobre o que pode ser considerado um exemplo de um julgamento do tipo. É ao estabelecer as condições que Kant apresenta o que provou ser alguns dos seus pontos de vista mais controversos, mas também alguns dos mais influentes. É essa parte de seu argumento, acima de tudo, que foi adotada por pensadores posteriores e que levou à sua reputação como um dos pais fundadores de uma abordagem estreitamente formalista à estética. No entanto, permanecem dúvidas quanto ao fato de o formalismo de Kant necessariamente obedecer à sua explicação fundamental do prazer estético e, de fato, se a imposição de restrições formalistas é compatível com o relato mais rico e mais matizado da experiência estética que ele elabora em outros lugares no texto. Kant oferece dois critérios identificatórios para o julgamento de gosto. O primeiro exige que nosso julgamento seja "desinteressado". Insiste que, ao julgar a beleza de um objeto, devemos abstrair de todos os interesses morais e sensuais e atender unicamente à aparência do objeto, pois a intervenção de tais interesses exteriores destruiria a imparcialidade do julgamento do gosto. O segundo critério exige que atendamos apenas à forma de "um propósito" no objeto ou o que Kant define como "finalidade da forma". É mais difícil de entender e está ligado à discussão sobre o julgamento teleológico, na segunda metade do livro. Sustenta que um objeto bonito deve ter a forma de "um propósito" sem ter ainda um propósito, ou seja, deve ter uma aparência de ordem e racionalidade que, no entanto, não aponta para nenhum fim ou propósito específico. Kant parece pensar que um conhecimento determinado do que é um objeto interferiria com a nossa capacidade de respondê-lo esteticamente. Nossa consciência de que um prédio se destina a servir como igreja ou como um quartel, por exemplo, inibiria nossa capacidade de julgar livremente sua beleza. TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 153 Assim, ele apresenta, como instâncias paradigmáticas de julgamentos puros de gosto, coisas como a folhagem, que se entrelaça, cristais e até crustáceos, que provocam apreciação apenas em relação à forma. Segundo Kant, ao considerar a beleza de um objeto, devemos nos preocupar apenas com as propriedades formais do objeto, sem pressupor qualquer conceito do que se pretende significar. Embora as observações de Kant sejam dirigidas principalmente a objetos de beleza natural e não às obras de arte, elas acabaram estabelecendo as linhas de abordagem estritamente formalista da estética. Uma resposta corretamente estética de uma obra de arte exige que atendamos apenas à apresentação externa ou aparência em abstração de qualquer conteúdo moral, social ou político que possa ser visto para expressar e, em segundo lugar, que dirijamos nossa atenção exclusivamente para suas características formais, e não para suas características de representação. Apesar do trabalho de Kant ser visto como uma fonte filosófica importante para tais pontos de vista, a estética formalista pareceu particularmente apropriada para explicar as obras de arte modernistas produzidas muito tempo depois da morte de Kant. Na verdade, não é coincidência que uma das mais vigorosas defesas do formalismo tenha sido apresentada nos primeiros anos do século XX, por dois dos organizadores de uma exposição inovadora de arte pós-impressionista: Roger Fry (1920) e Clive Bell (1914). Clive Bell (1881-1964), crítico britânico de arte, conheceu, em 1910, Roger Fry (1866-1934), pintor e crítico de arte, e logo se tornou seu principal aliado para ajudar a difundir uma apreciação do pós-impressionismo na Grã-Bretanha. Bell ajudou na organização da primeira exposição pós-impressionista de Fry (1910), e escolheu a seção britânica da segunda (1912). As ideias estéticas de Bell, expressas mais amplamente em seu livro Art (1914), estavam muito preocupadas com a teoria da "forma significativa". Ele inventou o termo para denotar a qualidade que distingue as obras de arte de todas as outras classes de objetos, uma qualidade nunca encontrada na natureza, mas comum para todas as obras de arte e existente independentemente do conteúdo representacional ou simbólico. NOTA Ambos os intelectuais alegaram que as supostas "distorções", encontradas no trabalho de artistas contemporâneos como Paul Cézanne (1839-1906) e Paul Gauguin (1948-1903), poderiam ser explicadas em termos da prioridade, dadas as propriedades formais do trabalho, além dos requisitos de representação ilusionista. Vejamos a pintura a seguir: UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 154 FIGURA 1 – NATUREZA MORTA DE PAUL CÉZANNE: A MESA DA COZINHA (1888) FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/333759022358270320/?lp=true>. Acesso em: 1 fev. 2018. A ênfase da pintura cubista não está somente no uso da cor, da textura e da geometria dos objetos, mas também na intencional da negação do uso da perspectiva clássica, através da planicidade da imagem, ou seja, da valorização do aspecto bidimensional da pintura na representação de todos os seus elementos em um mesmo plano. Bell, em particular, procurou negar a importância das características narrativas ou de representação das obras de arte, mantendo que o único critério de qualidade artística é encontrado no que ele denomina por "forma significativa". Na visão de Bell (1916), uma forma significativa pode ser localizada em fenômenos tão diversos quanto nas janelas da catedral de Chartres, em uma tigela persa e nas pinturas de Nicolas Poussin. Onde quer que seja encontrada, determinada forma significativa dá origem a "emoção estética" específica e que explica o alto valor que atribuímos a certas obras de arte. Bell (1916) nos oferece uma versão forte do realismo estético. Para ele, a forma significativa é uma propriedade que é inerente ao próprio objeto e é a presença da propriedade que justifica a afirmação de que um objeto é belo ou esteticamente "convincente". A ligação entre a forma significativa e a resposta estética é causal. São as propriedades formais do objeto e as relações entre elas que despertam, no espectador, a emoção estética apropriada. As propriedades existem independentemente da pessoa que as percebe e fornecem uma justificativa adequada para nossos julgamentos estéticos. Em contraste, Kant sustenta que um julgamento de gosto possui apenas uma "necessidade universal subjetiva". TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 155 A tarefa da "Crítica do Juízo Estético" é demonstrar a validade da reivindicação de validade intersubjetiva, que é levantada com um julgamento de gosto, não para estabelecer uma declaração de fato objetiva. O fundamento final dos julgamentos do gosto não se encontra em nenhuma propriedade supostamente objetiva do próprio objeto, mas nas faculdades cognitivas compartilhadas por todos os sujeitos de julgamento. A teoria de Bell da "forma significativa" é essencialmente histórica,dando origem à mesma "emoção estética" em diferentes culturas e em diferentes períodos históricos. Embora diferentes sociedades tenham sido mais ou menos sensíveis à dimensão da forma, resultando em uma série de picos e caminhos na história da arte, a verdadeira fonte de valor estético permanece constante. No entanto, os escritos de Bell também trazem uma sutil mudança de ênfase entre duas teses complementares e não é apenas um pequeno passo para afirmar que todas as obras de arte devem ser valorizadas, principalmente por suas propriedades formais à afirmação de que as melhores ou mais valiosas obras de arte são aquelas que exibem suas propriedades formais mais perspicazes. É a segunda tese que forneceu a base para o formalismo, como uma categoria avaliadora ou ideológica que poderia ser empregada em apoio à arte modernista. Ao afirmar que o valor estético não residia em características como conteúdo representacional, verossimilhança, profundidade psicológica ou mesmo virtuosismo técnico, o trabalho de Bell e Fry também forneceu uma justificativa teórica para as inovações estilísticas e técnicas de pintura e escultura modernistas. Determinada ideia de que a arte modernista pode ser caracterizada em termos de uma preocupação maior ou mais exclusiva, com as propriedades distintivamente formais da arte, foi subsequentemente retomada e radicalizada pelo crítico de arte americano Clement Greenberg (1909-1994). O que é distintivo para a teoria do modernismo de Greenberg, no entanto, é que agora se torna uma tese explicitamente histórica. O desenvolvimento da pintura modernista é apresentado como um processo contínuo de "purificação" do classicismo, através do qual as características extrínsecas às preocupações formais da pintura são gradualmente excluídas ou eliminadas. Incluem as convenções pictóricas herdadas de tradições mais antigas de pintura acadêmica ou representacional, de estética clássica, bem como propriedades tomadas ou emprestadas de outras mídias artísticas. Para alcançar a "pureza", a pintura não deve excluir apenas todas as preocupações narrativas, ou meramente anedóticas, que pertencem propriamente ao meio da literatura, mas também a evocação direta do espaço tridimensional e das entidades na rodada, motivo de preocupação de escultura. A tendência inerente da pintura modernista é a "planicidade", como vimos na obra de Cézanne, abrangendo um reconhecimento franco da forma do suporte UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 156 e das propriedades do pigmento. Embora as propriedades formais permaneçam em todas as pinturas bem-sucedidas, Greenberg sustenta que é apenas com o desenvolvimento do modernismo, e com o surgimento da arte abstrata em particular, que as propriedades são liberadas de todos os enredos não essenciais e se tornaram o foco exclusivo da atenção. Clement Greenberg alcançou proeminência, pela primeira vez, com a publicação de um ensaio intitulado “Avant-Garde e o Kitsch”, na edição de outono de 1939, da Partisan Review. No ensaio, Greenberg, um declarado marxista trotskista, afirmou que o modernismo de vanguarda era "a única cultura viva que temos agora" e que foi ameaçado principalmente pelo surgimento de produções "kitsch" sentimentalizadas. Para Greenberg, o kitsch era endêmico para as sociedades industriais do capitalismo e do socialismo e, em sua opinião, era dever da arte e da literatura oferecer um caminho mais elevado. No início dos anos 1940, Greenberg conseguiu um emprego como crítico de arte regular de “The Nation” (1942-1949), onde se tornou o primeiro escritor a defender o trabalho do artista expressionista abstrato Jackson Pollock. Em 1960, Greenberg publicou a articulação mais completa de suas bases para o julgamento estético, em um ensaio intitulado “Pintura Modernista”. O ensaio retornou para o tema que inicialmente era abordado em “Avant- Garde e o Kitsch”, elogiando o desenvolvimento contínuo de uma arte em suas “áreas de especialização”. Enfoca as qualidades intrínsecas da mídia de sua criação, como o óleo e a tela, em vez de “conteúdo”. Da perspectiva de Greenberg, a história da arte ocidental, no século XX, podia ser vista como uma marcha quase positivista, como das experiências de Paul Cézanne com a planura e a cor no início do século, através das telas gestuais dos expressionistas abstratos, em direção à arte abstrata. A compreensão de uma progressão em direção à pura abstração não deixava espaço para movimentos conceituais influentes como Dada e Pop Art, os quais ele rejeitou. Em 1961, Greenberg publicou “Arte e Cultura”, uma coletânea de seus ensaios que codificava o que se tornou sua crítica persuasiva e coerente à arte do século XX.f IMPORTANT E Enquanto a estética de Kant é muitas vezes vista como uma fonte importante de teorias formalistas da arte, há uma série de características da sua narrativa que não podem ser facilmente acomodadas por esses pontos de vista. De fato, as seções da “Crítica do Juízo”, especificamente dedicadas às Belas Artes, apresentam uma teoria da arte, que é particularmente incompatível com a abordagem. Uma atenção cuidadosa ao relato de Kant, a respeito do "gênio" e à teoria das "ideias estéticas", fornece uma importante correção às interpretações unilaterais de seus pontos de vista. Ele começa sua discussão abordando o que parece ser uma dificuldade considerável para sua posição. Como produto da atividade humana intencional, TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 157 as obras de arte são necessariamente criadas com um objetivo ou propósito específico em mente. Não podem exibir a "intenção sem propósito" que sua teoria do gosto exige. Kant responde à dificuldade ao introduzir, na sua narrativa, a noção de gênio. Ele sustenta que uma obra de Belas Artes, em oposição ao que é meramente útil ou agradável, não pode ser produzida mecanicamente, seguindo um conjunto de regras predeterminadas. Deve ser o produto de um gênio, uma capacidade inata para criar novas regras, ao invés de seguir as existentes. Assim como o julgamento de que algo é belo não pode ter sua base determinante na aplicação de um conceito pré-dado, a produção de Belas Artes, através de um gênio, também não pode ser baseada em preceitos ou regras preexistentes. O filósofo caracteriza o princípio animador do gênio como a capacidade de exibir o que ele chama de "ideias estéticas". Uma ideia estética é algo que contém e promove um rico conjunto de associações, mas que não pode ser capturada por qualquer pensamento ou conceito determinado. Kant está explicitamente preocupado com o conteúdo das obras de arte. Em termos semelhantes àqueles em que ele descreve a resposta prazerosa na base dos julgamentos da beleza, ele sustenta que as ideias estéticas aceleram ou animam a mente, abrindo um amplo domínio de imagens conectadas. Nossos poderes mentais são definidos em um "impulso intencional" que é autossustentável e aberto. O jogo livre da imaginação está ligado a conceitos ou ideias racionais, mas sua atividade permanece sem restrições pela exigência de cognição. Parece, então, que Kant não deseja excluir o conteúdo da criação ou da apreciação de obras de arte. Em ambos os casos, sua principal preocupação é elucidar o delicado equilíbrio entre a demanda de ordem da mente e a liberdade da imaginação que, conjuntamente, formam o motivo subjacente ao nosso prazer na beleza. Na verdade, Kant continua a reivindicar que a liberdade de restrição externa, que caracteriza a relação entre imaginação e compreensão, pode servir de símbolo da liberdade da vontade da determinação externa e, assim, como símbolo da liberdade moral. Kant (1963) identifica quatro pontos de comparação entre o belo e o moralmente bom: • nosso gosto por ambos é imediato; • ambos, sem nenhum interesse ou desejo prévio em seu objeto; • ambos levantam uma reivindicação de validade universal; • ambos envolvem o exercício da liberdade, pois o exercício daescolha moral exige a liberdade da vontade e a apreensão da beleza através da liberdade da imaginação. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 158 Kant inicialmente se propõe a estabelecer o significado e a validade independentemente dos julgamentos do gosto em distinção entre julgamentos cognitivos e morais. No entanto, torna-se claro que a tarefa de diferenciar o bem, o verdadeiro e o belo, é apenas um primeiro passo necessário na tarefa mais ambiciosa de elaborar as relações complexas que pertencem entre esses diferentes domínios do conhecimento humano e experiência. As abordagens anteriores da estética de Kant foram tipificadas pela tentativa de extrair uma teoria da arte e da beleza, que poderia ser dada uma justificativa independente. Estudos mais recentes, no entanto, tendem a reconhecer que o significado duradouro das ideias de Kant depende crucialmente da compreensão do contexto mais amplo em que foram originalmente articuladas. Assim, a estética pode ser vista para oferecer não só uma maneira importante de entender as características distintivas do nosso prazer no belo, mas uma maneira para entender o significado mais profundo da arte e da beleza em relação a outros domínios da experiência humana. 2.1 KANT E A ESTÉTICA NA MÚSICA Após as primeiras explorações do tema, o primeiro grande contribuinte para a estética da música clássica é Immanuel Kant, em sua “Crítica do Juízo”. Ao aplicar sua teoria estética à música, a principal preocupação de Kant é com a questão de saber se, ou em que grau, a música pertence ao belo ou às belas artes. Sustenta que os juízos estéticos consistem em sentir prazer desinteressado em perceber a forma de intencionalidade em um objeto, além de charme, emoção ou qualquer conceito definido do que o objeto deveria ser. Ele afirma que a percepção da forma de intencionalidade coloca a imaginação e a compreensão em harmonia, de tal forma que elas são capazes de brincar livremente umas com as outras. O estado de jogo livre, na medida em que pode ser percebido na sensação, é a base do prazer que sentimos em resposta à beleza. Kant considera a possibilidade de que a imaginação possa apreender uma forma na composição musical que, quando comparada por um julgamento reflexivo à faculdade de referir intuições a conceitos, coloca a imaginação em harmonia com o entendimento. Na música, a forma, apreendida independentemente de qualquer concepção de um objeto, é puramente um padrão de intervalos melódicos e harmônicos. A concordância harmoniosa entre a imaginação e o entendimento, na percepção da forma da composição permitiria, desde que fosse possível, que a música fosse percebida como propositiva para o julgamento reflexivo. Também significaria que a música merece ser classificada como integrante das belas artes. TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 159 Inicialmente, Kant identifica a música como objeto de julgamentos estéticos puros, classificando “toda música sem palavras” como um tipo de beleza livre, e não dependente. Em sua discussão mais detalhada sobre a música nas seções 51-54, da “Crítica do Juízo”, Kant parece vacilar entre a possibilidade da música pertencer às belas artes e a possibilidade de não fornecer um conteúdo formal adequado a julgamentos estéticos, sendo assim meramente uma arte agradável. Se a música pode ser qualificada como bela, a composição como uma forma em si deve constituir o objeto de julgamento estético. Fatores como os instrumentos usados para tocar a composição e a qualidade de seu timbre podem adicionar charme à peça e podem até aprimorar nossa experiência de sua beleza, mas, por si mesmos, tais fatores não constituem objetos de julgamento estético. Enquanto Kant explora a possibilidade de que a composição como um padrão abstrato de relacionamentos possa apresentar uma forma proposital e assim se qualificar como bela, ele parece concluir que a apreensão da forma intencional na música é, na melhor das hipóteses, difícil. Na ausência da apreensão de tal forma, a música é limitada ao prazer e não ao belo, consistindo principalmente em um jogo mutável de sensações auditivas. Assim, a música pode produzir prazer e emoção, mas não é assunto para julgamentos puros de gosto. Além de sua enorme influência no campo da estética como um todo, a escrita de Kant tem sido influente por sua ênfase nas propriedades puramente formais e sua concomitante rejeição do valor da emoção e das qualidades sensoriais à experiência auditiva. Ainda, estabelece claramente as bases para abordagens mais explicitamente formalistas no século XIX. 3 GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL E O VALOR DA ARTE Um engajamento contínuo com a estética prossegue no período posterior através do pensamento do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), e suas reflexões sobre o assunto pressupõem e se desenvolvem em seu sistema filosófico. Gaiger (2002) expõe que, ao contrário de Kant, que se dedicou à estética em uma de suas obras apenas, discussões importantes de obras de arte particulares e do significado filosófico da arte podem ser encontradas em outros escritos de Hegel, incluindo a “Fenomenologia do Espírito” (1807) e a “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (1817). Hegel primeiro lecionou sobre estética em 1818, realizando mais quatro séries de palestras antes de sua morte em Berlim, em 1831. Foram compostas em um único texto e publicadas após sua morte, com base nos manuscritos de Hegel e nas transcrições feitas por seus alunos. A erudição recente enfatizou a inevitável imprecisão e seletividade do texto publicado e procurou identificar mudanças significativas no pensamento de Hegel nas diferentes séries de palestras. O lugar da arte, no sistema de Hegel, já estava estabelecido na Enciclopédia, no entanto, seu pensamento maduro sobre UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 160 o assunto deve ser visto como representando uma extensão e elaboração de seus pontos de vista estabelecidos. Enquanto o ponto de partida para a estética de Kant tinha sido o status ou a validade da resposta do sujeito individual aos objetos de beleza, Hegel volta sua atenção para o significado e o conteúdo das obras de arte. As palestras são caracterizadas por um conhecimento extraordinariamente amplo da arte e dos costumes de diferentes idades e povos, combinando um tratamento sistemático dos diferentes tipos ou formas de arte com um relato histórico do desenvolvimento dela através de diferentes estágios ou períodos. Hegel começa abordando a questão de saber se as Belas Artes são, de fato, passíveis de tratamento filosófico. A arte não deve ser considerada um mero luxo ou diversão, sem conexão com preocupações humanas práticas? E não é, em todo caso, muito diversa e desregulada para ser capturada pela análise filosófica? Responde a objeções observando que a arte é uma maneira pela qual os "interesses mais profundos da humanidade" e as "verdades mais abrangentes da mente" são revelados à consciência. Para Hegel, a arte ocupa o seu lugar ao lado da religião e da filosofia, como uma forma de autocompreensão, através da qual os seres humanos chegam ao conhecimento sobre eles e o mundo em que habitam. Ainda, sugere que uma das formas como o conhecimento é adquirido é através de um processo de "externalização". Ao trabalhar e mudar as coisas externas, nós nos reconhecemos nas mudanças que trouxemos. As obras de arte podem ser vistas como resultado de uma habilidade altamente desenvolvida para articular e tornar explícita a vida da mente. Hegel se preocupa principalmente com a arte como produto da autoconsciência humana, ou seja, como uma forma de atividade gratuita e intencional. Em contrapartida, os produtos da natureza pertencem ao domínio da necessidade e da uniformidade. Assim, ele exclui de sua estética a consideração de beleza natural, mesmo que tenha formado um dos principais objetivos de Kant. A beleza artística é "mais alta" do que a belezanatural, pois expressa um conteúdo reconhecível que pode ser considerado uma consideração filosófica. Na visão de Hegel (apud GAIGER, 2002), o caráter mutável da arte está intimamente ligado às visões religiosas de diferentes povos, articulando diferentes formas de autocompreensão humana, bem como diferentes concepções do fundamento divino e da existência humana. Na verdade, Hegel (apud GAIGER, 2002) afirma que a arte difere da religião e da filosofia apenas no modo em que as ideias mais profundas são expressas. Enquanto a filosofia opera no nível do pensamento ou do conceito e da religião sobre a imaginação ou a representação, Hegel identifica o caráter sensual ou material da arte como sua característica distintiva. O reino da arte é definido como a "aparência sensual" da ideia. TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 161 As obras de arte sustentam, portanto, uma tensão produtiva entre o conteúdo ou as ideias que expressam e a forma particular através da qual o conteúdo é dado. Na visão de Hegel, o conteúdo e a forma podem ser inadequados e ambos podem ser inadequados em relação uns aos outros. É com base na relação cambiante que ele desenvolve seu relato das diferentes formas de arte e das mudanças históricas que sofreram. Como o primeiro e mais primitivo estágio ele designa o simbólico, aqui ele se preocupa principalmente com a arte das antigas civilizações orientais e do antigo Egito. A principal característica da arte simbólica é a incongruência entre a ideia e a forma com que ela é expressa. Na fase em questão, Hegel (apud GAIGER, 2002) afirma que o divino é concebido apenas como algo abstrato, como um poder absoluto que está "além" do mundo da experiência. Assim, por exemplo, enquanto as grandes pirâmides envolvem um significado interno, esse significado está completamente envolvido e escondido pela forma externa. As formas em que o divino é representado permanecem arbitrárias ou são distorcidas, como nas figuras dos deuses na arte indiana, com seus múltiplos membros e combinação de diferentes partes de animais. O segundo estágio clássico é o da Grécia antiga. A luta pela expressão e a busca sem fim de um meio adequado de representação dão lugar à calma e à serenidade, ideais da arte grega e da escultura grega em particular. O divino é agora concebido em termos da individualidade concreta e o caráter dos diferentes deuses e é expresso pela primeira vez na forma humana. A vida interior do espírito é tornada visível na superfície animada do corpo humano, em que encontra seu próprio veículo de expressão. Para Hegel (apud GAIGER, 2002), o tipo clássico de arte representa a "excelência máxima" que a arte pode alcançar, conseguindo, mesmo que por curta duração, uma unidade de conteúdo perfeita. Como terceiro e último estágio, Hegel nomeia o romântico. Em contraste com o nosso uso atual da palavra, emprega o termo para descrever toda a arte desde a antiguidade grega, ligando-a de perto ao surgimento do cristianismo. A chave para a discussão é a sua afirmação de que a nova concepção do divino, articulada na fé cristã, não pode mais encontrar uma expressão adequada em forma sensível. No caso da arte grega, a consciência religiosa e a expressão artística permaneceram totalmente unificadas. Em contraste, o conteúdo da fé cristã é articulado doutrinariamente, e a doutrina possui uma existência anterior e independente de qualquer tentativa de representá-la artisticamente. Ainda, Hegel (apud GAIGER, 2002) sustenta que, com a propagação do cristianismo, surgiu uma nova forma de interioridade subjetiva e de autorreflexão, cujo meio de expressão adequado não pode mais ser encontrado na forma sensível da arte, mas apenas no domínio do pensamento. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 162 A unidade alcançada pela arte grega é perdida para sempre e surge em seu lugar uma nova e irreconciliável divisão de forma e conteúdo. A arte do período romântico continua a ser além de si mesma, indicando ser, porém, incapaz de representar um conteúdo que nunca pode se articular completamente. Hegel sugere que o tempo em que a arte podia representar nossas mais altas necessidades e interesses definitivamente passou e que a arte foi substituída pela religião e pela filosofia. A tese muito mal interpretada de Hegel do "fim da arte" tem dois domínios de aplicação diferentes. O primeiro relaciona, como vimos, com a transição do período clássico para o período romântico. É somente no período clássico que a arte alcança uma perfeita correspondência de forma e conteúdo. A era pós-clássica ou romântica é marcada por novas formas de conhecimento, que não podem mais ser articuladas adequadamente de forma sensual. O segundo domínio de aplicação, no entanto, situa-se na própria época vivida por Hegel. Ele sustenta que a cultura altamente reflexiva da vida contemporânea, que aprendeu a regular suas práticas em termos de regras e códigos de comportamento formalizados, não pode mais apreciar a mesma resposta imediata às obras de arte que a de uma idade mais precoce. O "joelho não mais se dobra" e já nós, ocidentais, não veneramos obras de arte como expressões da revelação divina. Ao invés, consideramos a arte como algo que queremos entender e que procuramos compreender por meio do pensamento e do sentimento. As palestras de Hegel sobre a estética são marcadas por uma profunda ambivalência quanto ao status e à função da arte em relação à filosofia. Por um lado, Hegel distingue a arte do mero desvio ou do entretenimento, reconhecendo-a como um modo no qual nossas ideias mais profundas sobre nós mesmos e nossa relação com o mundo são articuladas. Por outro lado, a arte é identificada como um estágio anterior e subordinado ao desenvolvimento da "ideia" filosófica, que engloba e substitui todas as formas anteriores de expressão. Da mesma forma, embora Hegel reconheça a natureza sensual ou material da arte como característica distintiva, a arte expressa um "conteúdo" que pode ser articulado de forma mais adequada, na forma de representações religiosas ou de pensamento conceitual. A tentativa de compreender a arte do ponto de vista supostamente "mais alto" da filosofia foi sujeita a críticas vigorosas. Muitos artistas e filósofos são altamente resistentes à ideia de que a arte pode ser substituída pela filosofia, insistindo que ela representa uma forma distinta e irredutível de autoexpressão humana que não pode ser "ocupada" por qualquer outra forma de representação. Da mesma forma, Hegel foi criticado por relacionar a arte com as preocupações da religião e da filosofia, negligenciando os muitos outros papéis importantes que ela cumpre. Muitos dos julgamentos de Hegel agora podem ser compreendidos como reflexos dos gostos e dos preconceitos da sua época, ao invés de formarem as TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 163 consequências necessárias de algum ponto de vista filosófico absoluto. Ainda, há um ceticismo generalizado quanto à possibilidade e ao desejo de fornecer o tipo de narrativa histórica e filosófica que depende da sua estética. No entanto, o reconhecimento de Hegel, de que toda obra de arte pertence à sua época e é o produto de uma constelação historicamente específica de ideias e valores, tornou-se um pré-requisito indispensável para qualquer estudo sério da arte. Com Hegel, o estudo empírico da arte do passado foi combinado, pela primeira vez, com a reflexão filosófica sobre as causas da mudança histórica. Da beleza clássica grega ao niilismo da arte contemporânea: a importância de compreender as radicais transformações da arte através do tempo FIGURA 2 – VÊNUS DE MILO, 200 A.C. FIGURA 3 – O PRAZER DA CARNE, DE CAROLEE SCHNEEMANN, 1964 FONTE: Disponível em: <https://www. boutiquesdemusees.fr/en/shops/muse e-du-louvre/aphrodite-known-as-the- venus-de-milo-poster/2812.html>. Acesso em: 1 fev. 2018. FONTE: Disponível em: <http://viraltime777. com/the-weirdest-grossest-and-most-shocking-art-through-the-ages/>. Acesso em: 1 fev. 2018. A abordagem foi extremamente influente em uma geração posterior de estudiosos, incluindo figuras como Alois Riegl, Heinrich Wolfflin e Aby Warburg, que efetivamente fundaram a história da arte como uma disciplina acadêmica nas últimas décadas do século XIX. O reconhecimento de Wolfflin, de que nem tudo é possível em todos os momentos, reflete um reconhecimento essencialmente hegeliano da historicidade fundamental da criação e apreciação da arte. A posição de Hegel marca o ponto alto e o ponto final da tentativa de articular o conhecimento humano em um "sistema" de filosofia completo e interligado. A ruptura subsequente dos grandes sistemas idealistas, em uma pluralidade de disciplinas distintas ou ciências especiais, sendo que cada foi necessária para garantir sua própria metodologia e status como forma de conhecimento, também mudou nossa compreensão das artes. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 164 Considerando que Hegel ainda podia combinar uma discussão de todas as várias artes, incluindo pintura, poesia, música, arquitetura e escultura, com um relato da mudança da função social e religiosa que a arte realizou desde o início da história humana, o amplo campo tem agora se fragmentado em uma pluralidade de disciplinas diferentes. A recente preocupação com o cruzamento, ou com a quebra de barreiras disciplinares, reflete uma crescente insatisfação com os custos de tal especialização. Na estética ou na teoria da arte, a abordagem de Hegel oferece uma alternativa poderosa ao formalismo, estabelecendo a importância do conteúdo para a nossa compreensão e apreciação das obras de arte. Seguindo de forma consistente, no entanto, também deve levar-nos a reconhecer que a reflexão sobre o caráter e o valor da arte também deve abranger a reflexão sobre as importantes mudanças históricas, que tanto a prática como o conceito de arte foram submetidos. O estudo da arte é, ao mesmo tempo, o estudo de sua história e das diferentes categorias conceituais através das quais foi feita e compreendida. 4 FRIEDRICH SCHILLER E A EDUCAÇÃO ESTÉTICA “A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento” SCHILLER (2002, p. 51). As cartas sobre Educação Estética, de Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759-1805), que foi um filósofo e historiador alemão, segundo o olhar de Moland (2017), destilam uma série de conceitos das ideias de Kant sobre estética. Para Schiller (2002), a estética é inerentemente política porque, para o filósofo, a beleza equipara-se com a bondade e o treinamento estético também é um treinamento político, o que pode sugerir uma utopia de influência fascista. Ao escrever as cartas, após a Revolução Francesa, Schiller (2002) responde diretamente ao meio político de seu tempo. Ele defende o estudo da arte em um tempo de revolução, alegando que seu estudo não é trivial, pois somente a beleza nos mostra o caminho para a liberdade. Como Kant, Schiller vê a estética como uma espécie de interesse de transição no caminho para uma política utópica e uma espécie de desenvolvimento teleológico da história, em que a totalidade do intelecto e da natureza se converteu em práticas fragmentadas e especializadas. Embora tenhamos progredido coletivamente, Schiller indaga se o ser humano se beneficiou, de algum modo, de determinado processo político. Por que a revolução falhou? O fracasso parece prejudicar Schiller e outros pensadores da época. "Viva em seu século, mas não seja sua criatura", ele escreve na carta. Schiller admira as ideias de Kant, mas pensa que ele só pode surgir em uma sociedade tão fragmentada que precisa teorizar a leitura da poesia. TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 165 Ele tenta explicar o uso e o abuso da razão, para o corpo e para o sentimento. Se somos apenas sensuais, estamos em um empirismo completo e não temos um "self". Se somos apenas intelectuais, estamos no solipsismo egoísta, e somos todos nós um "self". A beleza é a forma equilibrada do sensual e do intelectual e leva-nos para um espaço entre a matéria e a forma, sentimento e pensamento, experiência e razão. Para Schiller (2002), o indivíduo e o estado se colocam em posições paralelas. Um estado pode impor a condição pela força ou os cidadãos lentamente se adaptam ao ideal através de um longo e lento processo de adaptação para se ajustarem à ideologia do Estado. As "Cartas sobre a Educação Estética do homem", de Schiller, muitas vezes referidas simplesmente como "Cartas estéticas", é talvez o seu trabalho teórico mais conhecido. Publicado em seu jornal Horen, em 1795, e escrito sob a forma de cartas para seu novo patrono, para o Príncipe de Schleswig-Holstein- Augustenburg, são assustadoramente ambiciosas, abrangendo um diagnóstico da Revolução Francesa, uma crítica ao Iluminismo, uma análise transcendental de beleza, uma análise da psicologia humana, uma avaliação da importância psicológica e política da arte e uma imagem de uma nova e ideal forma de governo destinada a permitir que os humanos alcancem todo seu potencial. As "Cartas estéticas" começam com uma análise quase desanimada da condição humana moderna. O Estado está cambaleando, suas fundações apodrecidas estão cedendo. As esperanças, para a liberdade e o progresso, revelam-se inúteis diante de instintos grosseiros e sem lei entre alguns cidadãos, e um espetáculo repugnante de letargia entre outros (PETERSEN, 1943). Schiller elogia os gregos por sua relação simples e harmoniosa com seu mundo e lamenta a escravização da sociedade moderna às necessidades fabricadas. A história recente mostrou com clareza dolorosa que, se o caráter moral das pessoas não for desenvolvido, mesmo a revolução mais idealista falhará. Um ciclo vicioso sugere que, sem o Estado, não pode haver moral e, sem moral, não pode haver Estado. Apesar dos altos objetivos do Iluminismo, Schiller lamenta que “vemos o espírito da época vacilante entre a perversidade e a brutalidade, entre a naturalidade e a mera natureza, entre superstição e descrença moral, e é somente através de um equilíbrio de males que tudo se mantém sob controle” (PETERSEN, 1943, p. 320). A possibilidade moral falta, Schiller conclui. Entre os culpados a serem responsabilizados pela condição estão a excessiva ênfase do Iluminismo sobre a razão e a prevenção de fatores de sentimento que, Schiller sugere, levaram aos excessos bárbaros da Revolução Francesa. "O desenvolvimento da capacidade de sentimento do homem é, portanto, a necessidade mais urgente da nossa idade" (PETERSEN, 1943, p. 332). UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 166 O que é necessário é um instrumento que pode desenvolver a capacidade de sentir sem negligenciar as capacidades racionais dos seres humanos. Na Carta nove, ele oferece a solução: "Este instrumento é uma bela arte" (PETERSEN, 1943, p. 333). O artista, então, é chamado para influenciar o mundo para o bem, resistidas às distrações do presente no interesse da própria humanidade. Schiller exorta seus colegas artistas a cercarem seus contemporâneos com as grandes e nobres formas de gênio, e as englobam com os símbolos da perfeição, até a aparência conquistar a realidade e a arte triunfar sobre a natureza (PETERSEN, 1943). No entanto, Schiller admite um problema. Historicamente falando, a arte tem, muitas vezes, um efeito corruptor. Talvez devêssemos resistir a ser "entregues à influência enervante" (PETERSEN, 1943, p. 340). Antes de tirar determinada conclusão e abandonar a arte como uma solução para os males do mundo moderno, no entanto, devemos avaliar qual a definição de arte que estamos usando para avaliar suas falhas. Contudo, contra o que devemos avaliar as definições históricas da arte? Tal inquérito parecepressupor um conceito de beleza e se o conceito em si vem de exemplos históricos, a questão de como avaliar a arte objetivamente permanece não resolvida. Uma análise adequada do potencial da arte, então, parece exigir uma definição não histórica de beleza. Mais uma vez, canalizando o método transcendente de Kant, Schiller então sugere que "talvez a experiência não seja o tribunal através do qual tal questão possa ser decidida" (PETERSEN, 1943, p. 340). Qualquer definição de beleza "deveria ser deduzida das potencialidades de nossa natureza sensuo-racional" (PETERSEN, 1943, p. 340). A busca da beleza exige um "conceito puro de natureza humana como tal". Uma vez que o conceito, por sua vez, não pode ser derivado da experiência, devemos seguir "o caminho transcendental" para a verdade (PETERSEN, 1943). Assim, Schiller começa, na Carta 11, com um exame da natureza humana. No mais alto nível de abstração, ele sugere que devemos encontrar, nos seres humanos, uma distinção entre a pessoa e sua condição ou "o self e seus atributos determinantes" (PETERSEN, 1943, p. 341). O conceito de “self”, de Schiller, associa-se à personalidade autônoma, à independência e forma; associa com encarnação, dependência e matéria. Os dois lados opostos, no entanto, coexistem nos seres humanos, resultando no imperativo de serem colocados em harmonia. Cada pessoa deve "externalizar tudo o que há dentro dela e dar forma a tudo que há fora dela" (PETERSEN, 1943, p. 344). Na Carta 12, Schiller afirma que os humanos são impulsionados para o cumprimento de determinado imperativo por duas unidades correspondentes: o impulso da forma e o impulso dos sentidos. O impulso sensorial "procede da existência física do homem" (PETERSEN, 1943, p. 344). Situa o humano dentro do TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 167 tempo e, portanto, dentro da mudança: O homem, neste estado, não é senão uma unidade de quantidade, um momento de tempo ocupado ou ao contrário, não é do todo, pois sua personalidade está suspensa enquanto ele é governado pela sensação (PETERSEN, 1943). O impulso da forma por contraste afirma que a pessoa é constante durante a mudança. Anula o tempo e anula a mudança, quer que o real seja necessário e eterno, e o eterno e o necessário, reais. Em outras palavras, insiste na verdade e no direito (PETERSEN, 1943). Ainda, está dedicado à dignidade, enquanto o impulso dos sentidos está dedicado à autopreservação. Na política, o impulso da forma resulta em princípios abstratos, já o impulso dos sentidos resulta em anarquia. Na Carta 14, Schiller sugere que, quando um humano experimenta ambos os impulsos em equilíbrio, quando é "ao mesmo tempo consciente de sua liberdade e sensível à existência" e pode "sentir-se importante e conhecer-se como uma mente", um novo impulso é despertado, “o impulso do jogo” (PETERSEN, 1943, p. 353). No impulso do jogo, as outras unidades funcionam em conjunto. São "direcionadas para anularem o tempo dentro do tempo, reconciliando o tornar-se com o ser absoluto e a mudança com a identidade" (PETERSEN, 1943, p. 353). Ao manter as duas primeiras unidades em harmonia, o impulso de jogo libera os seres humanos da dominação de cada um. Na medida em que priva os sentimentos e as paixões de seu poder dinâmico, isso os harmonizará com as ideias da razão; e na medida em que priva as leis do motivo de sua compulsão moral, as reconciliará com os interesses dos sentidos (PETERSEN, 1943). Se puder ser alcançado, o ser humano receberá "uma intuição de sua natureza humana, e o objeto que lhe proporcionou determinada visão se tornaria para ele um símbolo de seu destino consumado" (PETERSEN, 1943, p. 353). O que, então, pode despertar o impulso do jogo? Na Carta 15, Schiller sugere que cada impulso também tenha um objeto. O objeto do impulso dos sentidos é a vida, o da forma é a própria forma. Como o impulso de jogo permite que atuem em conjunto, seu objeto é a forma viva (PETERSEN, 1943). A forma viva, por sua vez, é nada menos do que a beleza. Objetos belos, então, podem colocar os seres humanos no estado em que percebemos nosso maior potencial. Quando, para usar o exemplo de Schiller, contemplamos o Juno Ludovisi, sentimos que o nosso impulso dos sentidos e de forma estão em equilíbrio. Em tal momento, "nos encontramos ao mesmo tempo em um estado de absoluto repouso e de agitação extrema" (PETERSEN, 1943, p. 360). UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 168 FIGURA 4 – A COLOSSAL CABEÇA ROMANA EM MÁRMORE DE JUNO LUDOVISI, 01 D.C. FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.pt/pin/78109993 23692633/>. Acesso em: 1 fev. 2018. Uma vez que a contemplação da beleza não nos deixa dominados nem pelo impulso sensorial nem pelo impulso de forma, o impulso de jogo "dá origem à liberdade" (PETERSEN, 1943, p. 373) e permite que a vontade, que existe independentemente de ambos impulsos, escolha entre elas (PETERSEN, 1943). A liberdade não se correlaciona com nossa capacidade de articular e seguir a lei moral. A liberdade é, antes, a capacidade de examinar tanto essa lei, como nossos desejos sensuais e escolher entre eles. Ao facilitar a habilidade e permitir a liberdade, a contemplação da beleza completa o conceito de natureza humana (PETERSEN, 1943). Assim que a razão "pronuncia que a humanidade exista, com esse mesmo pronunciamento também promulgou a lei: que haja beleza" (PETERSEN, 1943, p. 356). O jogo, então, para Schiller, permite que os seres humanos atinjam suas próprias naturezas. "O homem só joga quando atinge seu potencial como um ser humano, e ele é apenas um ser humano quando ele joga" (PETERSEN, 1943, p. 359). A capacidade da beleza de liberar nossas mentes de determinações explica um paradoxo aparente. Por um lado, a beleza não produz conhecimento ou constrói caráter. Entretanto, por outro lado, precisamente porque a beleza não realiza nada, algo é alcançado; quando nossos impulsos são convertidos em harmonia, nossa vontade pode realmente escolher livremente. Assim definindo, o estado estético é "o mais frutífero de todos em relação ao conhecimento e à moralidade; ao comprometer-se a não formar nem importar, e contém o potencial máximo para ambos” (PETERSEN, 1943, p. 379). TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 169 A elevada equanimidade e liberdade do espírito, combinada com poder e vigor, diz Schiller, é o clima em que uma verdadeira obra de arte deve nos libertar. Depois de testemunhar a arte, "devemos, com a mesma facilidade, tornar-nos sérios ou jogar, repousar ou mover, cumprir ou resistir" (PETERSEN, 1943, p. 380). Ao facilitar a condição, a beleza nos dá o "dom da própria humanidade", diz Schiller, é o nosso "segundo criador" (PETERSEN, 1943, p. 378). Nosso status, como criaturas finitas, mostra que o estado permanecerá apenas um ideal, que cada arte em particular deve lutar para se aproximar a seu modo (PETERSEN, 1943). Toda arte genuína produzirá um estado de equilíbrio, que coloca à vontade em uma posição de poder máximo e autodeterminação (BEISER, 2005). O tipo de experiências necessárias, para que cada humano atinja a condição estética, variará. Para resolver o fato, Schiller postula uma dicotomia dentro da própria beleza. A beleza energizante, diz ele, nos acentua, prepara nossa natureza e encoraja uma rápida reação. É necessária para o "homem sensível", que sente demais e pode ser levado ao equilíbrio pela exposição à forma ou ao pensamento. A beleza que derrete, ao contrário, libera, relaxa nossa natureza e é especialmente necessária para o "homem espiritual", que pensa demais e precisa ser levado à beleza pelos seus sentidos. Ambos os tipos de beleza podem ser perigosos: a beleza energética pode se tornar extravagante e a beleza derretida pode resultar em energia ou vazio sufocante (PETERSEN, 1943). Quando se combinam para produzir uma harmonia que cancela os respectivos extremos, podem permitir que humanos individuaisalcancem seu maior potencial. Com base nas distinções, Schiller afirma, na Carta 24, que os seres humanos e a humanidade devem seguir três estágios de desenvolvimento: físico, estético e moral (PETERSEN, 1943). Em seu estado natural inicial, os seres humanos são governados pela natureza. Quando a razão começa a agitar, "o homem deixa os limites estreitos do presente em que a mera animalidade permanece encadernada, a fim de se esforçar para um futuro ilimitado" (PETERSEN, 1943, p. 390). Como a razão parece totalmente contrária à vida natural, as leis incondicionais são vivenciadas apenas como coercivas. Os humanos, então, resistem à lei da razão, recorrem ao eudemonismo ou se escravizam para ela, negando inteiramente suas naturezas sensuais. A beleza, ao contrário, pode unir os lados naturais e racionais dos seres humanos e pode facilitar a nossa entrada no "mundo das ideias", mas sem deixar para trás "o mundo dos sentidos" (PETERSEN, 1943). Pode, então, convencer- nos de que a lei moral não é uma imposição estrangeira e nos permite viver em harmonia com os seus ditames. UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 170 Eudemonismo: doutrina que considera a busca de uma vida feliz, seja em âmbito individual, seja coletivo. O princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade. IMPORTANT E Nas cartas 26 e 27, Schiller imagina as circunstâncias que devem ter sido necessárias para que os primeiros humanos desenvolvam um sentido estético. Traços de jogo podem ser encontrados na natureza, sempre que houver uma abundância de recursos. Os leões jogam quando eles têm excesso de energia e não estão sob ameaça. As plantas enviam mais brotos do que o necessário quando são adequadamente alimentadas, desperdiçando energia "em um movimento de alegria despreocupada" (PETERSEN, 1943, p. 406). Uma abundância de recursos, entre os seres humanos, inspira indiferença à realidade e ao interesse da aparência, em uma nova camada de significado que os humanos reconhecem como sua própria criação. A aparência é posicionada entre a "estupidez" e a verdade, que buscam apenas o real. Uma natureza que se delicia com a aparência, em contraste, não está mais tendo prazer no que recebe, mas no que faz (PETERSEN, 1943). A aparência é evidente nas armas adornadas, na transição do movimento para a dança e na evolução do desejo para o amor. Quando encontramos os vestígios de uma apreciação desinteressada e incondicional da aparência pura, as pessoas em questão "começaram a se tornar verdadeiramente humanas" (PETERSEN, 1943, p. 405). Em um conjunto final de distinções, Schiller aplica suas análises tripartidas aos estados políticos. No "estado dinâmico dos direitos", os humanos limitam o comportamento do outro através da força. No "estado ético", os humanos impedem seus desejos por respeito a uma lei moral abstrata. A terceira opção, "estado estético" que, segundo ele, tem o maior potencial, consuma a vontade do todo através da natureza do indivíduo (PETERSEN, 1943). No estado estético, os cidadãos fazem o seu dever por inclinação, acabam por encorajar o equilíbrio das capacidades racionais e sensuais dos seus concidadãos e ainda, atuam como seres humanos unificados e harmoniosos. Em tal estado, nenhum privilégio ou autocracia pode ser tolerado. Schiller admite, no último parágrafo, que o estado de aparência estética é raro, mas existe em "alguns círculos escolhidos, em que os humanos são governados pela sua natureza estética e, portanto, existem em liberdade e cooperação com os outros” (PETERSEN, 1943, p. 412). TÓPICO 1 | ESTÉTICA E MODERNIDADE: KANT, HEGEL E SCHILLER 171 O final das Cartas deixou muitos leitores confusos e insatisfeitos. Schiller parece não ter deixado claro se o estado estético é um meio para a conquista da humanidade plena ou se é um fim. Ele parece, em suma, não ter respondido a uma de suas perguntas originais, a saber, qual viria primeiro, um bom estado ou bons cidadãos. Schiller também foi acusado de encorajar o elitismo e retirar o apoliticismo através da imagem de um estado estético, uma acusação mais poderosa no próximo século por críticos marxistas. Outros, pelo contrário, veem as Cartas como um testemunho do engajamento político e do republicanismo de Schiller. Em todo caso, não há dúvida de que as “Cartas Estéticas” foram extremamente influentes. O conceito de jogo foi assumido e desenvolvido por filósofos como Charles Sanders Peirce e Hans-Georg Gadamer. A ideia de jogo como uma cura para a alienação influenciou a Escola de Frankfurt através dos escritos de Herbert Marcuse. Eagleton (1991) mencionava que a tradição estética radical de Coleridge a Herbert Marcuse sustenta a profética de [Schiller] denúncia da condição moderna. Jürgen Habermas encontrou, na ideia de Schiller sobre um estado estético, uma visão de uma "força de arte comunicativa, construtiva e solidária" (HABERMAS, 1985, p. 59-64), na qual a arte é capaz de "revolucionar as condições do entendimento mútuo" (HABERMAS, 1985, p. 46). Uma visão que, por mais problemática que seja, é uma fonte de percepção da natureza da política moderna. 172 Neste tópico, você aprendeu que: • Para Kant, a experiência do prazer na beleza se dá a partir de uma sintonização dinâmica, de um jogo livre entre as faculdades de imaginação e compreensão, e o julgamento de gosto se reivindica através de uma qualidade intersubjetiva. Kant utiliza dois critérios para o julgamento estético: a necessidade de um julgamento desinteressado, livre de interesses morais e sensuais, e a preocupação apenas com a "finalidade da forma", ou seja, apenas com as propriedades formais do objeto. Na visão, uma experiência estética de uma obra de arte exige que atendamos apenas à sua apresentação externa ou aparência em abstração de qualquer conteúdo moral, social ou político, que possa ser visto para expressar e, em segundo lugar, que dirigimos nossa atenção exclusivamente para suas características formais, e não para suas características de representação. • O formalismo, ou a estética formalista, preconizada por Kant, foi apropriada para explicar as obras de arte modernistas produzidas muito tempo depois de sua morte. A estética de Kant pode ser vista para oferecer não só uma maneira importante de entender as características distintivas do nosso prazer no belo, mas uma maneira para entender o significado mais profundo da arte e da beleza em relação a outros domínios da experiência humana. • Para Kant, a estética de uma obra de arte se situava na resposta do sujeito individual aos objetos de beleza, enquanto Hegel se concentra mais no significado e no conteúdo das obras de arte. Sua proposta de estética se caracteriza por um conhecimento amplo da arte e dos costumes de diferentes idades e povos, juntamente com um relato histórico, que analisa o desenvolvimento da arte através de diferentes épocas. • O mundo da arte é definido por Hegel como a "aparência sensual" da ideia. Ao mesmo tempo, a arte expressa um "conteúdo" que pode ser articulado de forma mais adequada na forma de representações religiosas ou de pensamento conceitual. Através das ideias de Hegel, o estudo da arte do passado foi combinado, pela primeira vez, com a reflexão filosófica e histórica. • Como Kant, Schiller vê a estética como uma espécie de interesse de transição no caminho para uma política utópica, ou seja, a dinâmica estética também seria uma dinâmica política, de jogo, e o indivíduo e o estado se colocam em posições paralelas. A beleza, para o filosofo, seria a forma equilibrada do sensual e do intelectual. Em suas “Cartas Estéticas”, Schiller faz uma crítica RESUMO DO TÓPICO 1 173 à modernidade, ao expor que “vemos o espírito da época vacilante entre a perversidade e a brutalidade, entre a naturalidade e a mera natureza, entre superstição e descrença moral; e é somente através de um equilíbrio de males quetudo se mantém sob controle” (PETERSEN, 1943, p. 320). • As obras de arte, através da beleza, poderiam colocar, segundo Schiller, os seres humanos em um estado de maior potencial. O jogo estético e político, para Schiller, permite que os seres humanos atinjam suas próprias naturezas, e “o homem só joga quando atinge seu potencial como um ser humano, e ele é apenas um ser humano quando joga" (PETERSEN, 1943, p. 359). • Para Schiller, os seres humanos e a humanidade devem seguir três estágios de desenvolvimento: físico, estético e moral. No estado estético, os cidadãos fazem o seu dever por inclinação, encorajam o equilíbrio das capacidades racionais e sensuais dos seus concidadãos e atuam como seres humanos unificados e harmoniosos. Tal estado de aparência estética seria raro e apenas presente em alguns "alguns círculos escolhidos", em que os humanos são governados pela sua natureza estética e, portanto, existem em liberdade e cooperação com os outros. As principais teorias estéticas de Kant, Hegel e Schiller Autor Período Conceito Kant Século XVIII Formalismo: o foco na aparência do objeto e na finalidade da forma. Arte é ligada à lógica e à ética e vista como um conhecimento reflexivo, autônomo e de validade universal. Hegel Século XIX Arte com conteúdo e como reflexão filosófica a respeito da espiritualidade e da mudança histórica. A arte, como aparência sensual da ideia, ocupa o seu lugar ao lado da religião e da filosofia, como uma forma de autocompreensão através da qual os seres humanos chegam ao conhecimento sobre eles e o mundo em que habitam. Schiller Século XVIII A estética é vista como fator político, uma vez que a beleza se equipara com a bondade. O objeto do impulso dos sentidos é a vida, e o objeto do impulso da forma é a própria forma. Como o impulso de jogo permite que tais impulsos atuem em conjunto, seu objeto é a forma viva. A forma viva é a beleza. A arte, então, pode colocar os seres humanos em seu melhor potencial. 174 1 Kant, Hegel e Schiller se posicionam de maneiras similares e/ou diferentes a respeito da relevância histórica em suas teorias estéticas? Explique. 2 As ideias de Kant, Hegel e Schiller foram muito influentes para a modernidade na arte. Assim, associe as duas colunas, estabelecendo relações entre os filósofos e suas principais teorias da arte: I - O formalismo de Kant. II - A historicidade de Hegel. III - A estética política de Schiller. ( ) O homem só joga quando atinge seu potencial intelectual e sensível como um ser humano. ( ) Ao considerar a beleza de um objeto, devemos nos preocupar apenas com as propriedades formais do objeto, sem pressupor qualquer conceito do que se pretende significar. ( ) O estudo empírico da arte do passado foi combinado, pela primeira vez, com a reflexão filosófica sobre as causas da mudança histórica. A sequência correta da associação é: a) III-II-I. b) I-II-III. c) III-I-II. d) II-III-I. AUTOATIVIDADE 175 TÓPICO 2 ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Em meados do século XX, o mundo ocidental havia experimentado uma grande mudança de paradigma. Duas guerras mundiais devastadoras, milhões de vidas perdidas, ideologias comunistas destruídas e armas nucleares utilizadas. O otimismo modernista, que havia dominado um mundo pré-guerra, agora parecia irrelevante, desatualizado e fadado ao fracasso. A Europa não era mais o centro da arte moderna ou da vanguarda. O foco do mundo da arte se mudou para a cidade de Nova York e para os expressionistas abstratos, que estavam florescendo em uma nova era de capitalismo revigorado do pós-guerra. Determinado grupo, no entanto, ainda era muito marcado por seu modernismo, com o movimento firmemente apoiado por Greenberg, como uma alta arte para a qual toda a arte estava se movendo inexoravelmente desde o século XIX. Assim, fora do enclave de arte, a América, na década de 1950, vivia um ‘boom’ consumista e cultural, além de um clima político tempestuoso. Uma vez que o expressionismo abstrato se tornou um movimento convencional, os jovens artistas começaram a questioná-lo por sua falta de referência tanto ao estado do mundo quanto à florescente cultura popular da qual seus artistas faziam parte. Motivados por tais sentimentos e com o desejo de uma arte que reconhecesse a vida cotidiana, artistas como Jasper Johns (1930) e Robert Rauschenberg (1925- 2008) começaram a experimentar novos estilos, que emprestavam e recriavam imagens da cultura de massa que os rodeava. O estilo Neo-Dada, com o qual eles se tornariam associados, foi o primeiro dos movimentos artísticos genuinamente pós-modernos. Os artistas foram influenciados por John Cage (1912-1992), e muitos de seus experimentos dariam origem à Pop Art e ao Minimalismo. O pós-modernismo é melhor compreendido definindo o etos modernista que ele substituiu, o da vanguarda que atuava de 1860 a 1950. Os vários artistas foram impulsionados por uma abordagem radical e progressista, ideias de 176 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA positividade tecnológica e grandes narrativas de dominação e progresso ocidentais. A chegada de Neo-Dada e Pop Art, na América do pós-guerra, marcou o início de uma reação contra a mentalidade que veio a ser conhecida como pós- modernismo. A reação assumiu múltiplas formas artísticas pelas próximas quatro décadas, incluindo arte conceitual, minimalismo, videoarte, arte performática e arte de instalação. Os movimentos são diversos e díspares, mas conectados por certas características, como o tratamento irônico e lúdico de um sujeito fragmentado, a quebra de hierarquias de alta e baixa cultura, o enfraquecimento dos conceitos de autenticidade e originalidade e a ênfase na imagem e no espetáculo. Ainda, muitos artistas e tendências menos pronunciadas continuam na veia pós-moderna até hoje. Para melhor compreender a passagem da modernidade para a pós- modernidade em termos estéticos, vamos agora analisar algumas das principais ideias de filósofos de arte desse período controverso e agitado, como Nietzsche, Heidegger e Merleau-Ponty. 2 NIETZSCHE E O ARTISTA “Arte é nada além de arte! É o grande meio de tornar possível a vida, a grande sedução da vida, o grande estímulo da vida” Nietzsche, “A Vontade de Poder” (1968). Em “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche (1844-1900), filósofo, crítico cultural e poeta alemão, deu uma descrição clara de sua visão do homem como sendo a unificação entre a criatura e o criador (NIETZSCHE, 1973). Complementou as tendências de seus escritos para enfatizar, de certo modo, o lado instintivo e natural do animal humano forçado a sobreviver em um mundo cruel e sem sentido e, por outro lado, dar um alto valor ao lado artístico do homem, que poderia forjar significado de uma experiência tão caótica. A originalidade de Nietzsche, segundo White (2002), foi ver os dois polos humanos como criaturas e como criador, de forma entrelaçada uma com a outra, e não em oposição. Enquanto ele herdou, da tradição romântica alemã, a ideia de que a arte oferece um momento de percepção da existência, rejeitou qualquer ideia de que a visão pudesse oferecer uma libertação da vida ou uma intuição transcendental. Enfatizou a existência criativa e viu o artista como o antídoto para o ideal ascético da religião e da metafísica. É claro que certas tendências modernistas, notadamente o expressionismo alemão, deram sua ênfase ao imediatismo e à superabundância da vitalidade do vocabulário altamente carregado de Nietzsche, exemplos dos quais serão discutidos a seguir. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 177 Tais exemplos nos levaram à concepção popular do artista nietzscheano como uma força natural que só responde a si mesmo, uma figura de poder físico e energia espontânea. Além da imagem bombástica do artista como um super- homem, no entanto, existe uma sutileza real norelato de atividade criativa de Nietzsche, que se envolve com teorias estéticas que remontam para Platão e para Aristóteles. Ele também teve uma profunda influência sobre pensadores posteriores, como Freud, Martin Heidegger e Jacques Derrida. Por sua descrição do artista, Nietzsche conseguiu combinar dois elementos que são incompatíveis: um relato fisiológico do corpo criativo e um conceito de arte como o que dá sentido à existência. Se a manufatura da arte é vista como uma questão de fisiologia e o subproduto do sistema nervoso ou de algum outro processo corpóreo, como pode criar valor por conta própria ou determinar os padrões pelos quais podemos viver nossas vidas? A resposta será encontrada a distância que Nietzsche tem de qualquer noção mecanicista ou biologicamente determinista de fisiologia. O físico é, para ele, sempre algo que já é psicológico e tipificado na atividade do artista. 2.1 DIONISÍACO E APOLÍNEO Na primeira obra publicada por Nietzsche, “O Nascimento da Tragédia”, de 1872, ele introduziu duas disposições necessárias para a possibilidade da arte: os conceitos de dionisíaco e apolíneo. Foram encontrados nos estados corporais de intoxicação e de sonho, respectivamente. A realização da tragédia grega deveria ter colocado as duas atitudes em uma relação correta. A intoxicação dionisíaca, como um exagero de energia sensual, é acompanhada por um aumento do sentimento de poder e conexão com os outros. Por sua vez, o sonho apolíneo, que coloca o corpo em calma, é atendido por belas ilusões na consciência de quem se entrega. Dado que o assunto de Nietzsche era ostensivamente a arte híbrida do drama trágico, as duas tendências se inclinam para a música, por um lado, e as imagens visuais, por outro. O dionisíaco se manifesta na dança e no movimento e, o apolíneo, na criação de imagens. O envolvimento total é complementado pela distância e pela contemplação. 178 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA FIGURA 5 – BACCHUS (1595), DO PINTOR RENASCENTISTA MICHELANGELO MERISI DA CARAVAGGIO (NA ESQUERDA) E APOLO BELVEDERE, CÓPIA ROMANA DE UM ORIGINAL GREGO QUE SE PERDEU (ARTISTA E DATA DESCONHECIDA, NA DIREITA) FONTE: Disponível em: <http://evolucaolgbt.blogspot.com/2015/08/forcas- apolineas-e-forcas-dionisiacas.html>. Acesso em: 1 fev. 2018. O aspecto dionisíaco (de Dioniso, rei grego do vinho), representado na criação artística, remete às características simbólicas ligadas à escuridão, à noite, ao desejo carnal e à embriaguez. O aspecto apolínio (deus grego Apolo, rei da beleza) remete às características ligadas à luz do dia, à clareza, à razão e ao equilíbrio. A interpretação da civilização clássica, oferecida na obra “Nascimento da Tragédia” (1967), foi um desafio radical que prevaleceu em Johann Wolfgang von Goethe ou na Alemanha de Johann Joachim Winckelmann, um século antes. A redescoberta de Nietzsche do dionisíaco apresentou a Grécia pré-socrática como tendo uma atitude saudável em relação às forças instintivas e sua arte emergindo de um excesso de energia, que mais tarde se comparou com os mistérios da sexualidade (NIETZSCHE, 1968). No entanto, a descrição do apolíneo, como o prazer da contemplação da ilusão, também foi uma desvantagem dos valores de ordem e racionalidade normalmente associados à antiguidade clássica. Entretanto, depois de ter descrito o nascimento, Nietzsche procedeu a descrever o desaparecimento da tragédia que ele viu nas peças de Eurípides. No "socratismo estético" do último, como ele descreveu, Nietzsche testemunhou o apolíneo corrompido e dominado por argumentos fundamentados na razão. Quando o estado dos sonhos apolíneos está perdido, o acesso ao dionisíaco também é bloqueado. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 179 O pensamento filosófico sobrepõe a arte e obriga-a a se aproximar do tronco da dialética. A tendência apolínea se retirou no casulo do esquematismo lógico; assim como no caso de Eurípides, observamos algo análogo, bem como a transformação do dionisíaco em efeito naturalista. “Sócrates, o herói dialético do drama platônico, lembra-nos a natureza amável do herói euripideano, que deve defender suas ações com argumentos e contra-argumentos e, no processo, muitas vezes arrisca a perda de nossa piedade trágica” (NIETZSCHE, 1967, p. 91). Em resumo, na tragédia, Nietzsche viu as duas forças do apolíneo e do dionisíaco trabalhando em combinação. O dionisíaco alcançou as forças caóticas da natureza, excitantes e aterrorizantes, e a visão arrebatadora apolínea proporcionou a forma suportável, de fato bonita, através da qual o caos poderia encontrar expressão. Ele fala de "simbolização da sabedoria dionisíaca através dos artifícios apolíneos" (NIETZSCHE, 1967, p. 113). Na sua visão da tragédia, Nietzsche também contestou a célebre teoria da catarse de Aristóteles, que colocou grande ênfase no teatro e, acima de tudo, na práxis (ação), chegando a definir a tragédia como "a imitação de uma ação". A audiência foi removida de emoções perigosas, compreendendo intelectualmente as reversões na trágica narrativa. Nietzsche colocou a música acima do teatro e viu pathos (identificação emocional) em vez de práxis (prática) como o principal veículo da tragédia. Ao invés de uma libertação da emoção, a tragédia, para Nietzsche, aumenta o sentimento e afirma a vida, mesmo na sua forma mais aterrorizante. Ao mesmo tempo, sua descrição do dionisíaco e do apolíneo, como estados fisiológicos, levou-o a correlacionar o processo criativo, o produto artístico e seus efeitos. Nietzsche estava menos interessado na lógica do enredo do que nas origens do impulso artístico. A boa tragédia, como modelo da obra bem-sucedida de arte em geral, é aquela que recupera o caminho da própria vida. O dionisíaco precisava ser percebido através do véu do apolíneo. O efeito total da tragédia, como Nietzsche descreve, é destruir o artifício pelo qual Apollo fala finalmente a linguagem de Dionísio. A experiência da audiência receptiva é precisamente a mesma do poeta trágico, um êxtase coletivo que se sente como um aumento no vigor corporal. “Toda arte exerce o poder de sugestão sobre os músculos e os sentidos, que no temperamento artístico são originalmente ativos: sempre fala apenas aos artistas – fala para esse tipo de flexibilidade sutil do corpo [...]. Todos os trabalhos de arte aumentam a força, inflamam o desejo [...]. Até hoje, ainda se ouve com os músculos, até se lê com os músculos” (NIETZSCHE, 1968, p. 427-428). 180 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA FIGURA 6 – O PINTOR JACKSON POLLOCK EM SEU ESTÚDIO FIGURA 7 – A BAILARINA INDIANA DE DANÇA CONTEMPORÂNEA HEMABHAEATHY PALANI FONTE: Disponível em: <https://www. pinterest.com.au/mamoworks/art/>. Acesso em: 1 fev. 2018. FONTE: Disponível em: <https://eastmidland stheatre.com/2017/08/12/outlands-uk-tour- 2017-a-triple-bill-of-contemporary-dance-by- and-for-three-female-choreographers-from- india-and-the-uk/>. Acesso em: 1 fev. 2018. O retorno à experiência do artista não só colocou o maior valor na origem do impulso artístico, mas também marcou uma pausa, como Nietzsche viu, com a tradição de estética que enfatizava a contemplação distanciada e privilegiava o papel do espectador. Nietzsche se imaginou escrevendo contra a tradição kantiana, embora sua leitura do próprio Kant pareça ter sido parcial. Um texto que ele leu em profundidade foi o “Mundo como Vontade e Representação”, de 1819, de Arthur Schopenhauer (1788-1860). O livro definiu a agenda para os primeiros escritos de Nietzsche, mas sua eventual conclusão, de que o julgamento estético só pode ser feito a partir do ponto de vista do máximo interesse, contradiz a posição de Schopenhauer (1999). Em o “Nascimento da Tragédia” (1967), Nietzsche reconheceu diretamente a correspondência da distinção dionisíaca e apolínea através das ideias de Schopenhauer, entre o querer e a representação. No primeirotermo, Schopenhauer (1999) descreveu a natureza do mundo como energia cega, pelo segundo a disponibilidade do mundo para a percepção humana. Forçados a viver no mundo da representação, um reino de mera aparência, os objetos que podemos perceber são meramente um elenco de véu sobre a vontade. A leitura de Nietzsche, de Schopenhauer, centrou-se nos dois momentos que o último descreveu quando o querer era mais manifesto para a consciência humana. A primeira é a experiência que temos de nossos próprios corpos. Como o objetivo de nossa própria vontade, o corpo é o local onde experimentamos o conflito entre nossa disposição e a vontade como a necessidade infinita de satisfazer os desejos, cuja frustração causa angústia e dor. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 181 O segundo, e mais significativo para Schopenhauer (1999), encontra-se na experiência estética, nomeadamente a da música, que ele considerou ser uma cópia imediata da vontade. O autor distinguiu os dois momentos uns dos outros. A experiência corporal ainda estava ligada ao mundo das aparências individuais, enquanto a contemplação estética poderia abordar a "percepção pura", e o sujeito foi temporariamente liberado da identidade pessoal e se fez uno com a vontade. Reflete na declaração duas vezes repetida de Nietzsche no “Nascimento da Tragédia” (1967), de que é "apenas como um fenômeno estético que a existência e o mundo estão eternamente justificados" (NIETZSCHE, 1967, p. 52). 2.2 O DESEJO DE PODER Enquanto o dionisíaco tinha conexões óbvias com os instintos vitais, a origem de seu parceiro, o apolíneo, era mais dificilmente explicada por Nietzsche, fora de uma oposição tradicional de essência e existência, forma e aparência. Mesmo que o apolíneo fosse considerado secundário, o vestígio de seus fundamentos metafísicos era muito forte. Em seus escritos subsequentes, portanto, Nietzsche subsumiu o apolíneo sonhando no estado dionisíaco de intoxicação e estabeleceu oposição para a decadência que ele associou à moral religiosa e à metafísica. Assim, transformou a relação dos dois termos de um esquema metafísico a um psicológico central, ao qual era o conceito de sublimação. Dionísio e Apollo já não eram qualitativamente distintos, mas havia a expressão de uma unidade básica em diferentes níveis, uma unidade para a qual ele finalmente daria o nome de 'vontade de poder'. Em outra transcrição de Schopenhauer, Nietzsche adaptou a objetivação da vontade através da arte, ao invés da contemplação da obra de arte, como o canal para a vontade de poder e sua sublimação na atividade criativa. Nas notas coletadas para formar o livro “O Desejo de Poder” (2001), Nietzsche frequentemente equivale a intoxicação como o estado de criação de arte com a sexualidade e sugere que a arte nos lembra “estados de vigor animal”. Em uma associação não atípica para o século XIX, ele comparou diretamente a criatividade com a potência sexual e chegou a correlacionar "o instinto criativo do artista e a distribuição do sêmen em seu sangue" (NIETZSCHE, 1968, p. 424). Declarações assim foram tomadas como a fonte de nossa imagem do artista nietzscheano, como a encarnação de uma força viril da natureza. É determinado aspecto da escrita de Nietzsche, sobre a arte e o artista, que tem correlação mais próxima com as tentativas de artistas alemães de renovarem ou regenerarem as artes visuais no início do século XX. Os artistas de Die Brücke (A Ponte), grupo fundado em Dresden, em 1905, estavam convencidos de que a arte tinha suas raízes em instintos vitais e não no intelecto. 182 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA O "Programa da Ponte" clama diretamente pela libertação do impulso criativo. Também afirma o desejo de liberar nossas vidas e membros (do corpo) dos poderes mais antigos estabelecidos. A última exigência, para a emancipação do corpo, pode ser encontrada em conteúdos sensuais de algumas pinturas do grupo Die Brücke. Certos comentaristas encontraram a marca de Die Brücke como a celebração do sexo através da arte ou mesmo, seguindo um princípio de sublimação, "transposição de instintos para arte socialmente aceitável" (GORDON, 1987, p. 14). FIGURA 8 – DEBAIXO DAS ÁRVORES, DE MAX PECHSTEIN, 1911 FONTE: Disponível em: <http://www.theartstory.org/movement-die-brucke- artworks.htm>. Acesso em: 1 fev. 2018. Entre as filosofias radicais, o movimento artístico Die Brücke defendeu o naturismo (nudismo) como contraponto à industrialização da cidade moderna. Pintado no ano em que o grupo Die Brücke se mudou para a metrópole de Berlim, a obra “Debaixo das Árvores” é um exemplo icônico do impulso anti-urbano, da aceitação do corpo humano e da sexualidade, como parte da natureza. A sublimação deve ser entendida, portanto, não como a liberação da tensão, mas como uma abertura para fontes de prazer negadas e um ganho de excitação sexual. Na “Vontade de Poder” (1872), Nietzsche observa que o efeito de obras de arte "é excitar o estado que cria arte – intoxicação" (NIETZSCHE, 1968, p. 434). Enquanto o princípio da sublimação sugere a transformação da unidade original, Nietzsche acredita que pode nos levar de volta à fonte do estímulo. Assim, as imagens das pinturas do grupo e de outros expressionistas tiveram um intuito de expor ao público o dionisíaco, em um nível emocional direto. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 183 A intoxicação e o prazer são uma e a mesma coisa em determinado esquema e, como já foi mencionada, a arte deve encorajar o vigor corporal. No entanto, Nietzsche dedicou uma atenção considerável em sua escrita ao feio, ao doloroso e ao horrível. A tragédia foi, para ele, um reforço da vida e uma intensificação do sentimento. O prazer não é, portanto, um fim em si mesmo, mas um subproduto do conflito de forças, que Nietzsche entendeu como vontade de poder. O prazer não exclui a dor, pois a vontade de poder, por sua natureza, busca resistência e obstáculos a serem superados. A atividade do artista tem o poder de transformar a feiura e levar ao prazer. No entanto, é importante notar que a vontade de poder é distinta de qualquer propósito ou intenção por parte do artista. O estado de intoxicação é experimentado em êxtase, e o artista se torna "o ponto alto de comunicação e transmissão entre criaturas vivas" (NIETZSCHE, 1968, p. 428). A obra de arte não é mencionada por Nietzsche. O que é constantemente afirmado é o estado de criação de arte, que é tão significativo para o criador, como para o observador. A tendência encontra interpretação literal não apenas no expressionismo, mas em fenômenos artísticos do final do século XX, como na arte performática. O Teatro de Mistérios das Orgias de Hermann Nitsch (1938), iniciado em Viena, em 1962, por exemplo, usa a dor ritualizada como meio de experiência coletiva. Embora o dionisíaco tenha chegado a dominar o pensamento posterior de Nietzsche, ainda encontrou lugar para o apolíneo dentro do reino da intoxicação, como sendo uma "intoxicação do olho". Em “O Nascimento da Tragédia”, a disposição visionária é descrita em termos de sonhos. É o prazer profundo da contemplação, mas acompanhado pela sensação de que o que está envolvido é meramente aparência. Contudo, embora ilusória, a visão apolínea era "ao mesmo tempo o análogo simbólico da faculdade devastadora e das artes em geral, o que torna a vida possível e que vale a pena ser vivida" (NIETZSCHE, 1967, p. 35). Passando da noção de justificação do mundo como um fenômeno estético, algumas das declarações mais intrigantes de Nietzsche, quanto à necessidade da decepção para a vida, são de 1882, do livro “A Gaia Ciência”. Já figurada no título, é uma forma de conhecimento oposto ao empírico. No entanto, se fosse ser ciência do ponto de vista do artista, também seria a constatação de que "a ilusão e o erro são condições do conhecimento humano" (NIETZSCHE,1974, p. 163). A arte não é apenas um "culto do falso", mas garante que "como um fenômeno estético, ainda é suportável para nós" (NIETZSCHE, 1974, p. 163). 184 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA O ataque sem remorso, de Nietzsche, aos dualismos, alinhava a verdade e o erro ao longo de um único contínuo. "Possuímos arte para que não morramos com a verdade" (NIETZSCHE, 1968, p. 435). Da mesma forma, a celebração da falsidade não deve ser entendida como escapismo. “A arte é uma consequência da insatisfação com a realidade? Ou uma expressão de gratidão pela felicidade usufruída? No primeiro caso, o romantismo; no último, auréola e ditirambo (em suma, arte de apoteose). Rafael também pertence aqui; Ele simplesmente tinha a falsidade para deificar o que parecia a interpretação cristã do mundo” (NIETZSCHE, 1968, p. 445). FIGURA 9 – A DEPOSIÇÃO, PINTURA RENASCENTISTA DE RAFAEL SANZIO DA URBINO, 1507 FONTE: Disponível em: <http://www.italymagazine.com/featured-story/ italys-treasures-raphael-sanzio-da-urbino>. Acesso em: 1 fev. 2018. Nietzsche observou, nas obras de Rafael, uma característica dionisíaca, disfarçada por outra apolínea. Perceba aqui como uma temática supostamente religiosa, como a morte de Cristo, foi usada como pretexto para a criação de uma obra plena de contrastes formais e emocionais. Em termos formais havia a sombra e a luz, o choque de cores complementares (vermelho e verde), o movimento e o repouso, os movimentos em linhas diagonais opostas. Em termos emocionais, a vida e a morte, a luta, a resignação, o amor e a dor. A equação do pintor renascentista Raffaello Sanzio da Urbino (1483-1520), conhecido como Rafael, com o ditirambo, classificando a pintura renascentista com o hino extático para Dionísio, mostra o quão longe Nietzsche foi para entrelaçar o apolíneo com sua contraparte e impedir que se endurecessem em uma dicotomia. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 185 Sua rejeição do romantismo também deve ser devidamente observada e foi associada ao ascetismo. O arrebatamento apolíneo ainda conterá a sexualidade e a voluptuosidade melhor associada ao dionisíaco, mas agora transposta para "calma, simplificação, abreviatura, concentração" (NIETZSCHE, 1968, p. 420). Você sabe o que é o ditirambo? E os Ditirambos de Dionísio de Nietzsche? O ditirambo, na origem do teatro grego, consistia em uma ode, em um canto coral entusiástico, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados companheiros do deus Dionísio, em honra do qual se prestava a homenagem ritualística. Os Ditirambos de Dionísio são também poemas de caráter lírico, compostos por Friedrich Nietzsche, finalizados em 1888, e publicados em um único volume em 1900, após a morte do autor. Referindo-se à dicotomia proposta por Nietzsche, entre o carácter apolíneo e dionisíaco da arte, proposta em "A Origem da Tragédia", os poemas fazem a apologia da sedução estética e da característica sensorial da figura do deus tomado como referência (Dionísio). IMPORTANT E A fisiologia da arte de Nietzsche, na verdade, chega até a conectar o físico e o lógico, para afirmar o prazer corporal tomado na ordem em que a "simplificação lógica e geométrica é uma consequência do reforço da força" (NIETZSCHE, 1968, p. 420). Para reafirmar o ponto, a sublimação da vontade de impulsionar a arte não permitiu, para Nietzsche, resultar em apenas um tipo de produto. Sua contínua ênfase no estado criativo e na experiência do artista o deixou aberto a variadas formas de expressão, algumas das quais podem parecer surpreendentes para o leitor contemporâneo. Se a intoxicação dionisíaca como comunicação sensível direta parece fornecer o elemento essencial para a estética expressionista, o apolíneo ainda pode ser encontrado em sua tendência acompanhante para a estilização e a abstração. Nietzsche concedeu louvores significativos à habilidade de um artista para impor estilo, conectando-o à incorporação do poder e até mesmo à realização do autocontrole. É o processo de obrigar o mundo a assumir uma determinada forma, que é a melhor indicação da vontade de poder em ação. Quando ele discutiu a arte em seu sentido essencial e definitivo, Nietzsche usou a frase "o grande estilo", que se encontra na capacidade de "compelir o caos de alguém para tornar-se forma: tornar-se lógico, simples, inequívoco, matemática, lei" (NIETZSCHE, 1968, p. 444). 186 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Se soa como um manifesto para um neoclassicismo rígido, devemos lembrar até que ponto Nietzsche já havia ido a redefinir a base da antiga civilização grega. O amor apolíneo da forma não tem conexão privilegiada com a verdade, mas é, de fato, sua renúncia gloriosa. “Ah, esses gregos! Eles sabiam como viver. O que é necessário é parar com coragem na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, tons, palavras, em todo o Olimpo da aparência. Aqueles gregos eram superficiais – na profundidade” (NIETZSCHE, 1974, prefácio à segunda edição, p. 38). Como escritor, Nietzsche foi um grande estilista e, no seu texto autobiográfico “Ecce Homo” (1979), chegou a proclamar que possuía "a mais variada arte de estilo que qualquer homem tinha à disposição" (NIETZSCHE, 1979, p. 74). A pluralidade estilística era um meio de alcançar um tipo de filosofia não sistemática e não dispersiva, mas arriscava a carga da decadência. Suas referências persistentes ao "grande estilo" ocorrem no contexto do ecleticismo do final do século XIX, que julgou ser uma indicação de declínio físico. O estilo serviu para Nietzsche para não ser bom por si só, mas "comunicar um estado, uma tensão interna do pathos através dos sinais" (NIETZSCHE, 1979, p. 74). Mais uma vez, o fisiológico não está longe pois, mesmo por escrito, Nietzsche viu o estilo conectado ao ritmo, ao tempo, ao gesto e, de fato, à noção de comportamento corporal. O artista, cujo corpo manifesta a vontade de poder, é contrastado por Nietzsche com a histeria, que viu como falta de vontade, além da cuja incapacidade de se comunicar, que observou como uma indicação de degeneração. O expressionismo herdou a obsessão de Nietzsche com o estilo e seu julgamento de que o século XIX foi uma era de decadência cultural (GORDON, 1987, p. 10). Pode haver a reflexão em documentos, como no “Almanaque do Cavaleiro Azul”, de 1912, editado por Franz Marc (1880-1916) e Wassily Kandinsky (1866-1944). A multidão de ilustrações, desenhada não apenas pela tradição ocidental, mas também pelas culturas não europeias, arte popular e arte das crianças, contradiz a ideia de um único estilo válido para todos os tempos. A presença, no entanto, é para confirmar que todos fazem parte de um impulso. No artigo “Duas Imagens”, Marc afirma categoricamente que o estilo artístico, que era a possessão inalienável de uma era anterior, experimentou um colapso catastrófico em meados do século XIX. Não houve estilo desde então. Está perecendo em todo o mundo como se fosse apreendido por uma epidemia. (KANDINSKY; MARC, 1974). O próprio Kandinsky perseguiu questões semelhantes em suas próprias contribuições ao almanaque, especialmente no ensaio “Sobre a Questão da Forma”. Ao enfatizar a "necessidade interior" expressada em obras de arte, ele TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 187 concluiu que em princípio, não há questão de forma ou, pelo menos, não é uma questão de disparidade entre um significado interno e uma aparência externa (KANDINSKY; MARC, 1974). A busca é, como vimos nos termos de Nietzsche, de ordem genealógica, que remonta à vontade de poder. Kandinsky também estabelece uma distinção entre o estilo e a forma, que se aproxima do obscuro comentário de Nietzsche em “O Desejo de Poder”. "Uma pessoa só é um artista quando considera, ao contrário dos não artistas, a forma como conteúdo, como a matéria em si" (NIETZSCHE,1968, p. 433). Tendo tornado a arte uma questão de volição, seu valor é derivado da sua capacidade de conduzir de volta a uma força pela qual o artista é o canal. Um dos poucos artistas visuais que Nietzsche elogia diretamente em seus escritos é o pintor Rafael. Nietzsche não via Rafael como um cristão, ou como propagador do cristianismo, pois acreditava que sua arte, sua capacidade de transformar o mundo, não era portadora de uma mensagem moral, mas a indicação de um poder excessivo que se deleita em si mesmo. 3 OS TRÊS PILARES DA ESTÉTICA DE HEIDEGGER “A Fonte Romana, de Conrad Ferdinand Meyer” Jorra para o alto o jacto, e, ao cair, Enche a marmórea taça até a borda, E esta, coifando-se de um véu, desborda. Para a outra taça a seguir Esta outra, já por demais rica. Dá à terceira a onda refluente, E cada qual recebe e dá conjuntamente E transborda e fica. Tradução de Paulo Quintela (MEYER, 2001). A “Origem da Obra da Arte”, um texto que o filósofo, escritor e professor alemão Martin Heidegger (1889-1976) preparou entre 1935 e 1936 é, de longe, segundo Thomson (1968), a fonte mais importante para entender a tentativa de articular uma alternativa à compreensão estética da arte, embora diversas outras obras, como contemporâneas e posteriores, também fornecem pistas importantes para sua visão. Na versão final do famoso ensaio, Heidegger analisa três obras de arte diferentes: a pintura de “Um Par de Sapatos”, de Vincent van Gogh (1853-1890); um poema intitulado “A Fonte Romana”, de Conrad Ferdinand Meyer (1825- 1898) e um templo grego não especificado em Paestum (provavelmente o templo de Hera). 188 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Os principais estudiosos de Heidegger, como Hubert Dreyfus e Julian Young, dependem quase inteiramente da interpretação de Heidegger, do antigo templo grego, para explicarem sua visão inovadora do potencial historicamente revolucionário da arte, sua capacidade de se concentrarem e transformarem nosso senso do que é e do que importa. A análise de Heidegger de cada uma das três obras contribui com algo importante para a tentativa geral de orientar os leitores para um encontro fenomenológico com a arte, que é capaz de nos ajudar a transcender a estética moderna a partir da essência. Simplificando, o templo motiva e ajuda a desenvolver os detalhes do projeto maior de Heidegger. O poema contextualiza e explica de maneira explícita e a pintura exemplifica-a diretamente. A reconstrução imaginativa de Heidegger, do templo perdido, ajuda a motivar a busca por um encontro não estético com a arte, mas não porque ele busca algum retorno nostálgico ao mundo grego. FIGURA 10 – TEMPLO DE HERA DE PAESTUM, ITÁLIA, 530 A.C. FONTE: Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/173529391876344270/>. Acesso em: 1 fev. 2018. Heidegger descarta tal avivamento como uma impossibilidade, pois o templo antigo, assim como a catedral medieval, não reúne seu mundo histórico em torno dele e, portanto, não funciona como uma arte maravilhosa, e tal "retirada do mundo e desintegração do mundo nunca podem ser revertidas” (HEIDEGGER, 1971, p. 32). O templo grego mostra que a arte já se encontrou de uma maneira diferente da experiência estética intensa de um sujeito e, assim, sugere que, enquanto esses mundos antigos e medievais se perderam, outras obras de arte ainda podem ser encontradas não esteticamente no nosso mundo moderno tardio. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 189 Heidegger, portanto, elabora sua visão filosófica de como o templo trabalhou por um tempo para unificar um mundo histórico coerente e significativo em torno de si, a fim de sugerir que um encontro não estético com a arte ainda pode fazer o mesmo uma vez mais. Uma obra de arte ainda pode ajudar a reunir um novo mundo histórico em torno de si mesma, focalizando e iluminando uma compreensão de ser que não reduz as entidades para objetos modernos a serem controlados ou a recursos a serem otimizados em uma modernidade tardia. Embora o projeto de Heidegger seja inspirado no passado, essa inspiração tem, como objetivo, ajudar-nos a avançar para o futuro. Sua esperança, como vimos, é a de que um encontro não estético, com uma obra de arte contemporânea, ajudará a aprendermos a compreender o ser das entidades não como objetos modernos ("subjetivismo") ou como recursos modernos tardios, mas como uma forma genuinamente pós-moderna, propondo assim um outro começo histórico. Então, qual a obra de arte que Heidegger pensa que pode nos ajudar a transcender a estética moderna e assim nos ajudar a descobrir um caminho que nos leve para além da modernidade? Existem apenas duas obras viáveis para preencher tal papel crucial na “Origem da Obra de Arte”: o poema de Meyer e a pintura de Van Gogh. Então, por que Heidegger dá um lugar tão importante ao poema de Meyer? A resposta ao quebra-cabeça é que o poema apresenta o contexto filosófico mais amplo do projeto de Heidegger, transmitindo sua compreensão emergente da historicidade, a doutrina segundo a qual o nosso sentido fundamental da realidade muda ao longo do tempo. A "verdade" ontológica que o poema de Meyer encarna e se ajusta para o trabalho, na aceitação criativa de Heidegger do poema, é que a própria verdade é essencialmente histórica e, além disso, essa história essencial da verdade forma três "épocas" sucessivas da mesma forma que o "jato" de água preenche as três "bacias" consecutivas na fonte de Meyer. Para Heidegger, as relações que o poema de Meyer descreve entre o "jato" original da fonte e suas três bacias de água sucessivas iluminam as relações entre o "ser", ou seja, a fonte ontológica inesgotável da inteligibilidade histórica e as três principais "épocas" históricas da compreensão ocidental da humanidade, a saber, a "Grécia Antiga", "a Idade Média" e "a Idade Moderna", (HEIDEGGER, 1971). Assim, por exemplo, como o "jato" original de água "cai" nas bacias sucessivas da fonte, então as riquezas ontológicas "transbordantes", escondidas no mundo antigo, foram primeiro diminuídas no mundo medieval. "A Origem da Obra da Arte" faz o argumento contencioso de que a diminuição ontológica "começa" quando os conceitos fundamentais para 190 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA o entendimento da Grécia antiga foram traduzidos para o latim, sem um conhecimento mais profundo acerca do que os conceitos revelaram originalmente. Daí o apelo óbvio de Heidegger acerca da frase sugestiva de Meyer: "ao se lavar, esta [primeira bacia] transborda/no chão de uma segunda bacia" (HEIDEGGER, 1971, p. 43). O que restava das "riquezas" ontológicas no mundo medieval foi então transposto e reduzido ainda mais na época moderna que, como a terceira bacia da fonte, fica mais afastada de sua fonte original. Parece claro, portanto, que Heidegger incluiu o poema de Meyer, porque acreditava que iluminava sugestivamente a forma como a história se desdobrava em uma história de declínio, uma "queda" que resulta do crescente esquecimento da história da fonte, de onde ela finalmente brota (a "origem" do título do ensaio de Heidegger), em uma palavra: "ser", o famoso nome de Heidegger para a fonte da qual toda inteligibilidade histórica se origina, por meio de sua compreensão da essência "poética" da arte. Em outras palavras, Heidegger usa o poema de Meyer para aludir ao contexto filosófico mais amplo, que ajuda a explicar e motivar o início histórico que ele espera que a arte nos ajude a inaugurar. O uso de Heidegger do poema particular sugere que para realizar o "outro começo", a humanidade ocidental precisa aprender a voltar para a fonte original, ontológica (o "jato" transbordante do ser), e que essa reconexão com a origem da inteligibilidade histórica é algo que a arte ainda pode nos ensinar. Enquanto o templo como o poema permanece importante, apenas a pintura de Van Gogh exemplifica diretamente o que Heidegger acha quesignifica deparar com a arte, de uma maneira que nos permita transcender a estética moderna a partir de sua essência. Significa que a interpretação de Heidegger da pintura de Van Gogh, longe de ser irrelevante é, na verdade, a parte mais importante de seu texto. É apenas a partir da interpretação fenomenológica de Heidegger, da obra de arte de Van Gogh, que os modernos tardios podem aprender a transcender a estética moderna de dentro para fora e compreender com a arte o que significa se encontrar de forma pós-moderna. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 191 FIGURA 11 – O PAR DE SAPATOS DE VINCENT VAN GOGH, 1886 FONTE: Disponível em: <https://bridgetwhelan.com/2018/02/16/the- stories-old-boots-can-tell-and-a-decent-pair-of-jimmy-choos-art-for- writers/>. Acesso em: 1 fev. 2018. A introdução de Heidegger de "uma pintura bem conhecida de Van Gogh, que pintou vários sapatos várias vezes" (HEIDEGGER, 1971, p. 45) é notoriamente abrupta e desconcertante para muitos. Olhando para trás, em “A Origem da Obra da Arte”, dois anos depois, em 1938, Heidegger escrevera que: A questão da origem da obra de arte não visa a estabelecer uma determinação atemporal da essência da arte, que também poderia servir como fio orientador para um esclarecimento historicamente retrospectivo da história da arte. A questão está intimamente relacionada com a tarefa de superar a estética, o que também significa superar uma certa concepção de entidades como o que é objetivamente representável” (HEIDEGGER, 1971, p. 354). A estética tenta descrever as obras de arte como objetos que expressam e intensificam as experiências de vida dos seres humanos, sendo que a abordagem começou em um período tardio. A estética moderna pressupõe a perspectiva de um sujeito que enfrenta um objeto externo e, portanto, perde a maneira como a arte trabalha discretamente no fundo da existência humana, para moldar e transformar nosso senso do que é e do que importa. Heidegger expande a crítica para incluir a "representação", pois as representações são o que a filosofia moderna geralmente usa para tentar unir a divisão que René Descartes (1596-1650) abriu entre sujeitos e objetos. Não nega que elas, às vezes, intermedeiam nossa experiência do mundo. O que ele nega é que as representações possam realmente alcançar todas as profundezas da existência. 192 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Elas pressuporiam um nível de existência que não poderia ser completamente explicado. É em determinado nível primordial de existência engajada e de representação estética que Heidegger situa a pintura de Van Gogh. Segundo Heidegger, a pintura de Van Gogh nos permite encontrar a própria essência da arte. Como expõe Heidegger, o seu ensaio não procura estabelecer uma "determinação intemporalmente válida" da essência da arte, que se aplicaria retrospectivamente para toda a história da arte, mas é apenas porque ele não acredita que as essências fossem "determinações atemporalmente válidas", da maneira como foram entendidas por Platão a Saul Kripke. De fato, “A Origem da Obra da Arte” tenta descobrir e comunicar a "essência" histórica da arte, permitindo que a arte se revele de maneiras diferentes, na medida em que se desenvolve no entendimento humano ao longo do tempo. O que é confuso para muitos leitores é que a essência histórica da arte não é uma substância subjacente às diferentes formas de arte ou mesmo uma propriedade fixa que nos permita distinguir a arte da não-arte mas, em vez disso, uma mudança insubstancial em fluxo, um conflito essencial que é incorporado na estrutura de toda inteligibilidade, a estrutura pela qual as entidades se tornam inteligíveis como entidades. Ao invés de forçar Heidegger a desenvolver toda uma história de arte, as demandas normativas de seu projeto crítico exigem apenas que ele se concentre em dois momentos históricos cruciais na mudança da humanidade ocidental na compreensão histórica da arte. Uma espécie de antes e depois, por assim dizer, que contrasta a plenitude do que foi possível, no passado, com a estreiteza do que é a arte na atualidade. Heidegger está, portanto, preocupado principalmente em mostrar, primeiro, como os antigos gregos encontraram arte de forma não estética (e assim consagraram-no em seus templos) e, segundo, como a arte é tipicamente compreendida e experimentada por nós, modernos tardios, que permanecemos presos no auge da estética moderna e, portanto, sob a influência do "subjetivismo moderno" (HEIDEGGER, 1971). Enquanto que a ambição ilimitada do subjetivismo se estabelece como um "domínio sobre a totalidade do que é" (HEIDEGGER, 1971, p. 132) e trabalha para objetivar até mesmo o celebrado sujeito da modernidade, ela transforma cada vez mais o subjetivismo moderno em uma característica central do período moderno tardio. Na “A Origem da Obra da Arte”, Heidegger sugere que o subjetivismo moderno pode ser compreendido como sintoma da contínua incapacidade da humanidade ocidental de aceitar a sua finitude existencial. A ambição ilimitada de nossa busca subjetivista, para dominar toda realidade, resulta de nossa recusa TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 193 em possuir, estabelecer a paz e encontrar maneiras não niilistas de afirmar a trágica verdade que Heidegger conhece dos antigos. Muito do que não pode ser trazido sob o domínio da humanidade, apenas um pouco se torna conhecido. O que se sabe permanece aproximado; o que é dominado permanece instável. O que realmente é nunca é algo [inteiramente] feito pelo homem ou mesmo apenas uma representação, pois tudo pode aparecer facilmente” (HEIDEGGER, 1971, p. 53). Heidegger retirou o trecho da segunda ode coral do Antígona de Sófocles, que ele discutiu extensamente na Introdução à Metafísica, de 1935. Para os anciãos de Tebas de Sófocles, a única coisa que a humanidade não poderia dominar era a morte. Para Heidegger, pensar em morte nos abre até a visão terrivelmente "incrível" de que o conhecido repousa sobre o desconhecido, dominado no desmascarado, como um pequeno navio flutuando em um "mar" profundo e tempestuoso (HEIDEGGER, 2000). Gostamos de acreditar que a humanidade está bem no caminho para dominar o universo, mas a arte nos ensina que estamos longe de ter esgotado as possibilidades inerentes à inteligibilidade. Antígona é uma tragédia grega de Sófocles, composta por volta de 442 a.C. É cronologicamente a terceira peça de uma sequência de três, tratando do ciclo tebano, embora tenha sido a primeira a ser escrita. A personagem do título é Antígona, filha de Édipo, e irmã de Etéocles e Polinice. IMPORTANT E No entanto, ao invés de nos levar ao desespero sobre a nossa finitude humana essencial, em relação ao fato de que nunca vamos dominar a totalidade da existência, a arte nos ajuda a aprender a adotar a finitude lembrando-nos do outro lado, ou seja, o fato de que a inteligibilidade nunca esgotará sua fonte. É possível continuar a se tornar recém-inteligível apenas se não puder se tornar totalmente inteligível. A arte assim nos ensina a abraçar a percepção de que os significados nunca serão esgotados tão precisamente, o que nos permite continuar a descobrir novos significados. Assim, a arte nos ajuda a ver que a finitude humana não é algo pelo qual devemos desesperar ou procurar negar as fantasias subjetivistas compensatórias. Claro, a afirmação de que devemos desistir, pensando que nunca saberemos de tudo, não implica que devemos desistir de conhecer coisas novas. 194 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Se o heroico é o que nos ajuda a afirmar e assim transformar o trágico, como o famoso discurso de Sarpedon na Ilíada de Homero sugere, o pensamento de Heidegger sobre a arte é heroico: a arte nos ensina a abraçar a visão inicialmente trágica de que a existência jamais será totalmente revelada completamente a tempo,pois a única coisa que nos faz compreender a natureza das coisas está nas maneiras novas e potencialmente mais significativas. Em suma, a intenção da justaposição de Heidegger da modernidade com a antiguidade clássica não é a de exigir o renascimento impossível do passado grego perdido, mas sim a de ajudar a motivar um novo entendimento pós-estético sobre o que a arte ainda poderia significar para nós, agora e no futuro. Se, ao invés de tentarmos obter uma espécie de domínio cognitivo sobre a arte através da estética, ou usar a estética para estender o nosso conhecimento tardio-moderno de tudo o que é, como um recurso intrinsecamente sem sentido, devemos simplesmente nos permitir experimentar o que está acontecendo dentro de uma obra de arte de qualidade. Heidegger acredita, assim, que poderemos encontrar os "conflitos essenciais" onde uma verdadeira obra de arte paradoxalmente "descansa" e encontra seu "repouso". Quando encontramos o "movimento" que repousa paradoxalmente na "compostura" magistral de uma grande obra de arte, descobrimos uma "instabilidade" subjacente para toda a ordem inteligível, para uma tensão ontológica (entre revelação e dissimulação, emergência e retirada) que nunca podem ser permanentemente estabilizadas e, portanto, permanecem mesmo no que é "dominado". Na verdade, o que realmente é dominado artisticamente, sugere Heidegger, é o que de alguma forma captura, preserva e comunica determinada tensão na estrutura da inteligibilidade, permitindo-nos encontrar e compreender a tensão essencial de uma forma, que nos ajuda a aprender a transcender os limites de nossos modos modernos, em compreender a natureza dos seres. 4 MERLEAU-PONTY E A HISTORICIDADE DA ARTE Há uma noção de significado que é central no discurso histórico-artístico. Ela sustenta que o significado de um artefato ou obra de arte é uma função da relação que existe entre a obra e as circunstâncias históricas específicas de sua produção, como vimos antes. A noção-relação externa do significado é adequada se a tomamos para significar não mais do que um significado histórico da obra como uma obra de arte. Em tempos pós-modernos, no entanto, determinada noção tem sido cada vez mais usada para representar o significado da arte como tal. Entretanto, há realmente muito mais por trás do significado da arte. TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 195 Na realidade, qualquer momento ou fase da consciência possuem um papel na interação entre circunstâncias históricas específicas e os recursos constantes da condição humana. As questões são, muitas vezes, ligadas às relações entre uma atividade significante e às competências físico-corporais básicas. A estrutura filosófica geral que sustenta a abordagem provém, segundo Crowther (2002), das ideias de Kant e da filosofia europeia pós-kantiana, exposta pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Merleau-Ponty é de particular importância para a compreensão da arte, pois ele fornece uma fenomenologia rigorosa das origens experimentais da obra de arte e sua expressão física no objeto feito. Menciona que "é a operação expressiva iniciada na menor percepção do corpo que se amplifica na pintura e na arte" (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 83). A significação é um processo de conclusão ao invés de uma simples tradução do sujeito do estado em uma forma mais duradoura. A manipulação do meio do artista é de importância decisiva, pois no ato de pintar, montar, escrever ou o que quer que seja, o artista é capaz de reunir e focar suas opiniões perceptivas ou de interpretação do mundo. O trabalho do artista exemplifica "o emblema de uma certa relação com o ser" (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 54). Merleau-Ponty enfatiza o significado duradouro da arte como uma força produtiva que articula possíveis modos de percepção e de atuação no mundo. Como um objeto, de fato, a obra de arte tem sua própria historicidade distintiva através da sua relação com a tradição. Esta é a historicidade que vive no pintor durante o seu trabalho, quando com um único gesto ele liga a tradição que ele recaptura e a tradição que ele encontra. É a historicidade que de um golpe o conecta com tudo que já foi pintado antes no mundo, sem ter que deixar seu lugar, seu tempo ou o seu abençoado ou maldito trabalho” (Merleau- Ponty, 1964, p. 63). Entretanto, porque será que a ideia se tornou tão importante na época? Há vários fatores envolvidos. O primeiro é o declínio do formalismo, defendido por Kant. No início do século XX, críticos argumentaram que a base de um significado artístico distinto era a posse de qualidades harmoniosas formais (BELL, 1916; FRY, 1968). Na segunda metade do século, as preocupações formalistas do crítico de arte Clement Greenberg expressaram-se de maneira mais sofisticada. Em particular, Greenberg afirmou a importância da forma, ao declarar o que era mais característico da pintura: o seu aspecto bidimensional ou plano. 196 UNIDADE 3 | ESTÉTICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA O formalismo, na teoria da arte, é a crença de que os valores estéticos podem subsistir por si mesmos e que o juízo da arte pode ser isolado de outras considerações estéticas, culturais ou sociais. Em outras palavras, que o significado da arte pudesse existir em sua forma, independentemente de seu contexto histórico ou cultural. A característica principal do formalismo é a austeridade, que passa além dos valores geométricos, combinando a forma e conteúdo. IMPORTANT E Os primeiros ataques significativos ao formalismo se originaram, em realidade, dentro da própria arte. Movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo são extremamente difíceis de se assimilar em termos puramente formais, pois possuem significados simbólicos atrelados ao universo do subconsciente. As tendências nas décadas de 1950 e 1960, como o "Neo-Dada", a Pop Art e, no outro extremo, a Arte Minimalista, são ainda mais resistentes às abordagens formalistas. Ao mesmo tempo, temos que considerar a influência dos efeitos do utopismo político dos anos 1960. Figuras como Joseph Beuys buscaram ativamente, através do trabalho, da ação e da propaganda, colocar um fim na barreira entre a arte e a vida e, ao removerem a base elitista e especializada da produção artística, desejaram democratizar a criação e o consumo da arte. Outro fator envolvido no ataque sobre os valores formalistas tem sido uma recente reafirmação do significado da arte de Marcel Duchamp (1887-1968). Em particular, sua ênfase na primazia da ideia sobre a elaboração de um objeto pelo artista provou ser extremamente importante para estimular o surgimento da arte conceitual. A arte conceitual é uma vanguarda artística moderna e contemporânea que surgiu nos anos 60 e 70, na Europa e nos Estados Unidos e, como o próprio nome indica, trata-se de uma expressão artística mais pautada nos conceitos, reflexões e ideias, em detrimento da própria estética (aparência) da arte, do formalismo na arte. Em outras palavras, a arte conceitual é uma “arte-ideia” em detrimento da “arte-visual”, sendo o principal material da arte a "linguagem". Assim, os artistas conceituais se preocupam em criar reflexões visuais para seus espectadores. IMPORTANT E TÓPICO 2 | ESTÉTICA E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: NIETZSCHE, HEIDEGGER E MERLEAU-PONTY 197 As negações do formalismo foram profundamente complementadas por outros desenvolvimentos no mundo intelectual mais amplo. Na década de 1970, a teoria textual e cultural, conhecida como pós-estruturalismo, tornou-se amplamente influente além de seus contextos contextuais. As obras de Roland Barthes, Jacques Lacan, Jacques Derrida e Michel Foucault também receberam uma dimensão extra de significado, através da sua apropriação pelos críticos culturais feministas, tais como Julia Kristeva, Luce Irigaray e, mais especificamente no campo das artes visuais, por escritores como Laura Mulvey, Griselda Pollock, Norman Bryson e Victor