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As Melhores Histórias da Arte- Inveja Ódio e Amor- João Ricaldes

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INTRODUÇÃO
1.	ARTE	DA	INVEJA
A	inveja	mata	(o	invejoso)
"A	alegria	com	o	mal	do	outro	homem"
Homem	de	Deus	Também	Inveja
"Eu	te	invejo"
2.	A	ARTE	DO	ÓDIO:	PINTURA	E	LITERATURA
Arte,	imaginação	fiel	-	a	guerra	segundo	Goya
Ódio	contra	judeus	-	Dois	mil	anos	de	perseguição
Ódio	contra	palestinos	–	o	terrorismo	de	Estado
Ódio	contra	alemães	–	o	genocídio	alemão
Ódio	contra	islâmicos	-	em	nome	de	Jesus
Ódio	contra	negros	–	diáspora	africana,	origem	do	Brasil
Ódio	contra	negros	–	Moçambique	-	o	apartheid	português
Ódio	contra	armênios	-	a	herança	do	ódio	tem	fim
A	guerra	de	Picasso	-	cubismo	neoclássico	e	psicológico
3.	A	ARTE	DO	ÓDIO	-	PINTURA	E	ESCULTURA
A	vida	no	Inferno	segundo	Bouguereau
"Ugolino	e	Seus	Filhos"	de	J.B.	Carpeaux
“Ugolino”	de	Rodin
4.	A	ARTE	DO	AMOR	–	POESIA	E	PINTURA
O	arrebatamento	da	alma
Amores	estranhos
O	arrebatamento	do	corpo
A	paixão
A	separação,	segundo	Belmiro	de	Almeida
A	separação,	segundo	Frida	Kahlo
CONCLUSÃO
O	AUTOR
BIBLIOGRAFIA
	
	
	
Ricaldes,	João	(1962	-	)
					As	Melhores	Histórias	da	Arte:	inveja,	ódio	e	amor.	Mogi	Mirim,	Edição	do	Autor,	2016,	73	páginas.
					ISBN:	978-85-919252-0-9
	
	
	
	
	
	
	
	
	
Para	Laura,	Pedro	e	Júlia.
PRÓLOGO
Para	embarcar	neste	roteiro	sentimental,	você	precisa	apenas	da	bagagem	de	mão,	sem	precauções,	nem
compromissos.	Basta	ter	em	mente	suas	próprias	vivências	no	amor,	no	ódio	e	na	inveja	e	compará-las
com	aquelas	 que	pintores,	 escultores	 e	 escritores	 nos	 deixaram	plasmadas	 em	óleo,	 bronze,	 desenhos,
poemas	e	 romances.	Acompanhe	a	 leitura	de	 imagens	e	excertos	e	 terá	diante	de	si	a	 revelação	de	um
mundo	 de	 fantasias,	 paixões	 e	 perdas,	 além	 das	 dificuldades	 da	 vida	 em	 sociedade	 (inveja,	 sucesso,
fracasso,	 orgulho,	 ira).	 São	 temas	 das	 obras	 primas,	 não	 invenções.	 São	 testemunhos	 dos	 mesmos
problemas	 que	 vivenciamos,	 abordados	 através	 de	 uma	 espécie	 de	 leitura	 tridimensional.	A	 dimensão
histórica,	 a	 dimensão	 estética	 e	 a	 dimensão	psicológica	 fundem-se	 para	 seu	 deleite	 e	 autorreflexão.	É
uma	 oportunidade	 para	 avaliarmos	 o	 mundo	 que	 temos	 construído	 até	 aqui.	 Assim,	 a	 obra	 que	 nós
observamos	também	nos	observa.
João	Ricaldes
INTRODUÇÃO
Você	 começa	 aqui	 uma	 jornada	 inusitada	 que	 se	 inicia	 pelo	 submundo	 dos	 sentimentos	 destrutivos	 da
inveja	e	do	ódio	para	então	alcançar	o	amor,	sempre	tão	elevado	espiritualmente	e	ao	mesmo	tempo	tão
perigoso,	já	que	obriga	aquele	que	ama	à	tarefa	de	aceitar-se	vulnerável.
Sobre	 o	 poder	 autodestrutivo	 da	 inveja,	 o	 místico	 pintor	 holandês	 Hieronymus	 Bosch	 (1450	 –
1516)	 deixa	 uma	 mensagem	 codificada	 em	 tela	 enigmática:	 o	 invejoso	 prejudica	 a	 si	 mesmo,	 pois
abandona	as	próprias	dádivas	para	desejar	as	dos	outros,	não	enxerga	o	que	tem	e	perde	suas	próprias
oportunidades	só	para	se	ocupar	da	vida	dos	semelhantes.
Um	tema	assim	 tão	humano	e	prosaico	comparece	 também	no	 texto	sagrado.	Com	uma	acentuada
dose	 de	 voyeurismo,	 o	 pintor	 maneirista	 Giovanni	 Battista	Naldini	 (1537-1591)	 retrata	 um	 momento
desconcertante	na	vida	do	herói	David.	Outrora	tomado	por	coragens	anônimas	desprovidas	de	cautela	e
de	 ambição	 –	 diante	 do	 gigante	Golias	 -	 o	 já	 aclamado	 rei	 perde	 a	 pose,	 perde	 também	o	 sentido	 do
dever	e	inveja	seu	general	Urias,	mas	primeiro	foi	invejado	pelo	rei	Saul,	o	governante	que	o	precedeu
no	trono	do	povo	escolhido	por	Deus.	Ao	final,	David	foi	invejado	pelo	próprio	filho	Absalão,	 também
atento	ao	mesmo	trono.
Bom	mesmo	é	livrar-se	da	inveja	alheia.	Para	isto	a	humanidade	criou	vários	estratagemas,	que	vão
desde	os	pequenos	pênis	de	pedra	com	os	quais	a	elite	romana	decorava	suas	casas,	uma	variante	da	figa
(a	 genitália	 feminina)	 até	 a	 carranca	 africana	 e	 a	 medusa	 grega,	 como	 retratam	 os	 pintores	 barrocos
Michelangelo	Caravaggio	(1571	–	1610)	e	Peter	Paul	Rubens	(1577	–	1640).	Haja	seca-pimenteira!
Mas	a	inveja	é	sempre	dos	outros,	nunca	a	nossa	mesma.	Só	que	não,	não	é?	A	partir	do	simpático
gato	do	pintor	cearense	Aldemir	Martins	(1922	–	1906)	você	descobrirá	a	inveja	que	nos	habita	a	todos,
na	 infância,	 na	 adolescência,	 na	 vida	 adulta	 e	 na	 velhice.	 Não	 pense	 que	 é	 a	 inveja	 saudável.	 Você
também	inveja	sim.
Para	a	jornada	na	seara	do	ódio,	terreno	inóspito	semeado	com	os	piores	horrores	da	humanidade,
recorremos	a	duas	obras-primas	da	pintura	espanhola:	a	série	Desastres	de	 la	guerra	de	Francisco	de
Goya	y	Lucientes	(1746	–	1828)	–	testemunho	da	invasão	napoleônica	-	 	e	Guernica	de	Pablo	Picasso
(1881	–	1973),	testemunho	da	invasão	nazista.	Com	a	primeira,	proveniente	do	romantismo,	introduzimos
alguns	 elementos	 universalmente	 encontrados	 nos	 históricos	 genocídios	 que	 marcaram	 a	 humanidade.
Com	 a	 segunda,	 modelo	 cubista,	 abordamos	 o	 efeito	 transcendente	 que	 a	 violência	 cria	 sobre	 o
observador.
Entre	os	dois	mestres	espanhóis	cuidaremos	de	seis	casos	de	genocídios	para	então	esmiuçar	como
o	ódio	opera	não	apenas	em	tempos	de	guerra,	mas	também	em	tempos	de	paz,	no	trabalho,	na	família	e
na	 escola.	 Prepare-se	 para	 o	 pior.	Antecipadamente	 já	 pedimos	 desculpas	 se	 o	 show	 de	 horrores	 lhe
parecer	 desnecessário.	 É	 preciso	 falar	 da	 dor	 e	 do	 ódio	 para	 superá-los	 e	 nesta	 tarefa	 os	 romances
históricos	terão	muita	valia.	Sim,	recorremos	ao	romance	de	ficção	histórica	para	acentuar	a	gravidade
da	realidade,	ao	mesmo	tempo	em	que	apreciamos	alguns	destaques	da	literatura	contemporânea	mundial.
Evitamos,	assim,	a	 fria	 letra	das	 teses	acadêmicas	e	o	sensacionalismo	dos	documentários	 televisivos,
apressados,	 parciais,	 entremeados	 de	 comerciais.	 O	 leitor	 poderá	 saborear	 ainda	 diferentes	 estilos
literários	e	formas	de	associar	imaginação	e	realidade.
Mas	ainda	tem	mais	ódio,	desta	vez	não	aquele	que	aprendemos	nos	livros	de	história,	mas	aquele
que	experimentamos	na	própria	carne.	Será	o	momento	de	averiguar	como	o	ódio	opera	no	corpo	e	na
alma	daquele	que	o	tem	e	o	cultua,	com	a	ajuda	de	uma	tela	de	William	Bouguereau	(1825	-	1905).	Os
escultores	Jean-Baptiste	Carpeaux	(1827	–	875)	e	Auguste	Rodin	(1840	–	1917),	por	sua	vez,	nos	darão
uma	visão	tridimensional	de	como	o	ódio	transfigura	o	corpo	e	a	alma	daquele	que	sofre	a	ira	de	outrem.
Ao	deixar	para	trás	os	campos	de	guerra	e	adentrar	nos	bosques	do	amor,	o	leitor	por	certo	terá	a
sensação	 de	 que	 está	 diante	 de	 outro	 livro,	 outro	 autor	 e	 outro	 assunto,	 como	 se	 por	 imprudência	 do
revisor	no	uso	da	ferramenta	copiar-colar,	um	elemento	estranho	fosse	 inserido	em	local	 inadequado	e
impertinente.
O	estranho	aqui	é	ato	deliberado,	pois	muito	estranho	mesmo	é	a	constatação	de	que	o	mesmo	ser
que	odeia	e	inveja,	também	ama	e	idolatra.	Você	vai	se	deparar,	por	exemplo,	com	um	oficial	nazista	que
leva	 a	 noiva	 em	 núpcias	 para	 assistir	 algumas	 execuções	 dentro	 do	 campo	 de	 concentração.	Mas	 não
precisa	 ir	muito	 longe	 não.	Basta	 você	mesmo	 averiguar	 em	pessoas	muito	 próximas	 esta	 contradição
ambulante,	 na	 família,	 numa	 briga	 de	 trânsito	 e	 até	 no	 facebook.	 Lembra	 até	 uma	 característica	 da
mentalidade	medieval,	já	apontada	por	especialistas,	chamada	“sensação	da	dupla	espionagem”.	Se	faço
algo	de	muito	bom,	foi	obra	de	um	anjo	que	me	guiou.	Se	faço	algo	muito	cruel,	foi	o	ser	lá	do	outro	lado
(do	ombro).	Sou	apenas	um	campo	de	ação	de	entidades	externas	em	luta	pela	minha	alma.
Feita	esta	reparação,	vamos	nos	deliciar	logo	de	uma	vez	no	paraíso	terrestre	da	paixão,	do	sexo	e
do	amor.	Picasso	comparece	novamente,	dessa	vez	com	a	colorida	tela	cubista	chamada	“O	Sonho”,	na
qual	somos	lançados	de	imediato	nas	sublimes	instâncias	do	amor	carnal.	O	mesmo	corpo	que	abrigou	a
ira,	agora	entrega-se	deliciosamente	ao	arrebatamento	dos	sentidos,	melhor	compreendido	pela	poesia	de
Chico	Buarque,	que	nos	ajuda	ainda	a	ler	a	imagem	picante	de	Picasso.	Poetas	lusitanos	como	Camões	e
Fernando	Pessoa	contribuem	para	nossa	 jornada	de	exploração	do	arrebatamento	da	alma,junto	com	a
chilena	Violeta	Parra,	ao	passo	que	Pessoa	retorna	para	tornar	mais	claro	o	que	Freud	explica	sobre	a
paixão,	aquela	entrega	a	outro	ser,	outro	no	sentido	de	ser	um	que	criamos	em	nossa	mente,	nem	sempre
igual	ao	que	temos	à	nossa	frente.
Para	finalizar	vamos	estragar	a	festa	e	pensar	na	separação,	da	qual	afinal,	ninguém	está	livre.	A
tela	“Arrufos”	(1877)	do	pintor	mineiro	Belmiro	de	Almeida	(1858	-	1935)	aponta	para	o	medo	de	amar,
medo	 de	 levar	 um	 fora,	 o	 que	 Frida	 Kahlo	 (1907	 -	 1954)	 converte	 em	 desforra	 na	 obra	 surrealista
"Autorretrato	 con	 pelo	 corto"	 (1940)	 e	 Melanie	 Klein	 (1882-1960)	 transforma	 em	 lição	 de	 vida,
principalmente	 para	 aqueles	 que	 não	 “desencarnam”	 da	 relação	 já	 há	 muito	 rompida.	 Espero
sinceramente	prolongar	o	amor	e	o	prazer	do	 leitor,	mas	para	 isto	não	se	pode	 ter	medo	de	encarar	"a
vida	que	é	vivida",	nem	permanecer	na	"vida	que	é	pensada",	muito	menos	ter	medo	de	"sentir	o	fogo	que
arde	sem	se	ver",	isto	é,	"medo	de	amar".	Boa	leitura!
	
1.	Arte	da	inveja																																																					
	
A	inveja	mata	(o	invejoso)
A	inveja,	esta	nossa	velha	conhecida	de	cada	dia,	 também	serviu	de	 tema	aos	pintores	e	escultores	de
períodos	e	contextos	culturais	diversos,	como	Caravaggio	e	Rubens.
	
"A	alegria	com	o	mal	do	outro	homem"
A	inveja,	ao	contrário	dos	demais	pecados	capitais,	não	tem	objeto	definido,	nem	outro	objetivo	que	não
seja	destruir	todas	as	virtudes	alheias.
	
Homem	de	Deus	também	inveja
O	rei	Saul	 invejava	 seu	general	Davi,	por	 suas	vitórias	em	 todas	as	batalhas.	Davi	 se	 tornou	 rei,	mas
invejou	seu	general	Urias,	 tomando-lhe	a	 linda	esposa.	Depois	mandou	seus	soldados	abandoná-lo	aos
inimigos.	David	sofreu	o	castigo	de	Deus.	Foi	 traído	por	Absalão,	seu	filho	preferido	que,	por	 inveja,
queria	lhe	tomar	o	trono.
	
"Eu	te	invejo"
Se	você	já	chegou	a	proferir	esta	frase,	isto	é,	se	já	confessou	para	si	e	para	os	outros	a	inveja	que	nutre
em	seu	coração,	tranquilize-se,	você	é	normal.	Mas	acredite,	a	inveja,	como	manifestação	negativa,	está
presente	universalmente	na	infância,	na	adolescência,	na	velhice.
A	inveja	mata	(o	invejoso)
Imagem:	“Medusa”	Caravaggio
	
A	inveja,	esta	nossa	velha	conhecida	de	cada	dia,	também	serviu	de	tema	aos	pintores	e	escultores
de	períodos	e	contextos	culturais	diversos.	Inspirados	no	mito	da	Medusa,	Caravaggio	e	Rubens	nos
oferecem	 versões	 eloquentes	 sobre	 esta	 energia	 destruidora	 que	 corrói	 lentamente	 o	 convívio
humano,	na	escola,	no	trabalho	e	até	mesmo	na	família.
	
Segunda	a	lenda	grega,	Medusa	foi	uma	jovem	deusa	cuja	beleza	era	tanta	que	deuses	a	desejaram	e
deusas	a	invejaram.	Poseidon,	deus	do	Mar,	apaixonou-se	e	a	violentou.	Incontrolavelmente	enciumada,
Atena,	 deusa	 da	 guerra,	 castigou	 a	 jovem	 (e	 não	 o	 violentador!)	 transformando-a	 em	 uma	mortal	 com
escamas	 no	 lugar	 da	 pele	 e	 serpentes	 no	 lugar	 dos	 lindos	 cabelos,	 além	 de	 dotá-la	 de	 uma	maldição
adicional:	 quem	 ousasse	 olhar	 para	Medusa	 seria	 transformado	 em	 pedra.	 Coube	 ao	 jovem	 guerreiro
Perseu	dar	um	fim	ao	sofrimento	de	Medusa,	arrancando-lhe	a	cabeça.
Entregue	 a	Atena,	 a	 cabeça	da	Medusa	 foi	 inserida	 em	seu	 escudo	de	guerra,	 o	que	 foi	 copiado
pelos	 guerreiros	 gregos,	 um	 astuto	 expediente	 para	 distrair	 e	 derrotar	 os	 inimigos	 que	 no	 campo	 de
batalha	 olhassem	 para	 a	 cabeça	 despedaçada,	 ainda	 tomada	 de	 serpentes:	 não	 se	 converteriam	 em
estátuas	de	pedra,	apenas	em	poças	de	sangue!
Outras	 culturas	 geraram	mecanismos	 semelhantes	 para	 derrotar	 o	 inimigo,	 seja	 na	 guerra	 aberta,
seja	nos	combates	sorrateiros	que	os	maldosos	travam	com	a	arma	da	inveja,	dentro	de	nossas	casas.	Na
luxuriante	Roma	Imperial	era	comum	o	uso	de	pequenos	pênis	de	pedra,	dispostos	por	toda	a	residência,
para	atrair	os	olhares	enciumados	dos	visitantes.
Hoje	 há	 quem	prefira	 os	 espelhos	 no	 hall.	Ainda	 na	Roma	Antiga,	 era	 conhecida	 uma	 inusitada
escultura	de	um	falo	avantajado,	com	cerca	de	oitenta	centímetros	de	"altura",	dotado	de	asas	e	pezinhos.
Alguns	povos	africanos,	por	sua	vez,	 transmitiram	aos	brasileiros	o	amuleto	protetor	em	forma	de	figa
(símbolo	da	genitália	feminina)	ou	as	conhecidíssimas	carrancas	dos	navios.
Medusa,	figa,	carranca,	espelho	ou	pintos	de	pedra,	todos	funcionam	como	verdadeiras	armadilhas
para	o	olhar	do	outro.	Numa	espantosa	manifestação	de	unidade	psíquica,	culturas	variadas	em	tempos
diversos	inventaram	mecanismos	sutis	para	paralisar	o	adversário,	desarmar-lhe	os	humores	destrutivos
e	extrair-lhe	a	energia	negativa	que	estava	ávido	por	depositar	em	solo	alheio.	A	carranca	e	a	medusa	são
derivativos	da	ideia	de	que	o	terror	é	capaz	de	imobilizar	o	mal.	Já	os	genitais	se	servem	da	estratégia	de
que	o	mal	não	tem	como	recusar	o	obsceno.	Num	caso	ou	no	outro	não	há	"seca-pimenteira"	que	resista.
http://www.humanarte.net/inveja1.html
"A	alegria	com	o	mal	do	outro	homem"	(Geofrey	Chaucer,	escritor	inglês,	século	XIV)
	
Imagem:	"Os	sete	pecados	capitais"	(1475)	J.	Bosch.	Museo	del	Prado
	
A	inveja,	ao	contrário	dos	demais	pecados	capitais,	não	tem	objeto	definido,	nem	outro	objetivo	que
não	seja	destruir	todos	as	virtudes	alheias.	A	gula	é	a	falta	de	moderação	no	comer,	assim	como	a
ira	a	 falta	de	autocontrole	emocional,	a	 luxúria	o	excesso	de	sexo	e	a	avareza,	por	sua	vez,	o	de
apego	 aos	 bens	materiais.	Na	 preguiça	 falta	 trabalho	 e	 no	 orgulho,	 ou	 soberba,	 há	 excesso	 de	 si
mesmo.	Só	a	 inveja	não	tem	endereço	certo,	pois	quer	o	 fim	de	tudo	que	é	alheio,	mesmo	que	de
nada	possa	se	apossar.
"Só	a	inveja	não	traz	vantagem	alguma,	pois	ela	destrói	o	objeto	de	admiração,	o	torna	indesejável.	A
única	vantagem	seria	o	prazer	sádico,	'a	alegria	com	o	mal	do	outro	homem”[1]
Hieronimus	 Bosch,	 misterioso	 e	 místico	 pintor	 holandês,	 realizou	 a	 obra	 "Os	 sete	 pecados
capitais"	 (1475)	possivelmente	para	uma	irmandade	católica,	em	um	contexto	em	que	já	era	grande	na
Europa	o	desgaste	da	Igreja	diante	de	seus	tantos	pecados	mundanos.	A	composição	circular	reserva	sete
nichos	para	expressar	os	pecados	de	forma	alegórica	e	narrativa,	bem	ao	gosto	dos	provérbios	nórdicos.
A	cena	dedicada	à	Inveja	traz	um	sutil	cruzamento	de	olhares	invejosos.	A	começar	no	chão,	onde	os	cães
simplesmente	ignoram	os	ossos	mais	próximos	para	se	fixar	naquele	que	está	na	mão	de	seu	dono.	Este
por	sua	vez,	junto	a	sua	esposa,	fixa	os	olhos	na	elegância	do	transeunte,	ao	passo	que	sua	filha	recebe	um
pretendente	mais	adequado	a	sua	idade,	mas	ignorado	pelos	pais.
A	mensagem	é	 clara:	 o	 invejoso	prejudica	 a	 si	mesmo,	 pois	 abandona	 as	 próprias	 dádivas	 para
desejar	as	dos	outros,	não	enxerga	o	que	 tem,	perde	suas	próprias	oportunidades	só	para	se	ocupar	da
vida	dos	semelhantes.
http://www.humanarte.net/inveja2.html
Homem	de	Deus	Também	Inveja
	
Imagem:	“O	banho	de	Betsabé”	(1570)	Giovanni	Battista	Naldini
	
O	rei	Saul	invejava	seu	general	Davi,	por	suas	vitórias	em	todas	as	batalhas.	Davi	se	tornou	rei,	mas
invejou	seu	general	Urias,	 tomando-lhe	a	 linda	esposa.	Depois	mandou	seus	 soldados	abandoná-lo
aos	 inimigos.	David	sofreu	o	castigo	de	Deus.	Foi	 traído	por	Absalão,	 seu	 filho	preferido	que,	por
inveja,	queria	lhe	tomar	o	trono.
	
Os	 sete	 pecados	 capitais	 não	 estão	 alistados	 na	 Bíblia.	 Não	 adianta	 procurar.	 Trata-se	 de	 uma
tradição	 da	 antiguidade,	 muito	 antes	 de	 Cristo	 e	 do	 judaísmo.	 Foram	 adotados	 pela	 Igreja	 na	 Idade
Média,	período	em	que	também	foi	inventado	o	Purgatório,	não	previsto	nos	textos	sagrados.	No	entanto,
a	inveja,	mãe	de	todos	os	pecados,	comparece	em	vários	eventos	sagrados.	Irmão	trai	irmão,	por	inveja,
já	no	 livro	do	Gênesis,	que	 relata	o	caso	de	Abel	e	Caim.	No	 livro	de	Samuel,	os	casos	de	 inveja	 se
sucedem	de	forma	espantosa:
"Tudo	o	que	Saul	lhe	ordenava	fazer,	Davi	fazia	com	tanta	habilidade	que	Saul	lhe	deu	um	posto
elevado	no	exército.	Isso	agradou	a	todo	o	povo,	bem	como	aos	conselheiros	de	Saul.Quando	os	soldados	voltavam	para	casa,	depois	que	Davi	matou	o	filisteu,	as	mulheres	saíram
de	 todas	 as	 cidades	 de	 Israel	 ao	 encontro	 do	 rei	 Saul	 com	 cânticos	 e	 danças,	 com	 tamborins,	 com
músicas	alegres	e	instrumentos	de	três	cordas.
As	mulheres	dançavam	e	cantavam:	"Saul	matou	milhares;	Davi,	dezenas	de	milhares".
Saul	 ficou	muito	 irritado	com	esse	refrão	e,	aborrecido,	disse:	"Atribuíram	a	Davi	dezenas	de
milhares,	mas	a	mim	apenas	milhares.	O	que	mais	lhe	falta	senão	o	reino?"	Daí	em	diante	Saul	olhava
com	inveja	para	Davi"	(1	Samuel:	18,	5-9)
O	Segundo	Livro	de	Samuel	conta	que	o	Rei	Davi,	já	famoso	e	consagrado	por	suas	ações	heroicas,
apaixonou-se	por	Betsabé	 ao	 vê-la	 banhar-se	 do	 alto	 do	 terraço	 de	 seu	 palácio.	Um	caso	 clássico	 de
voyeurismo.	 Ele	 a	 chamou	 a	 seu	 quarto	 e	 a	 engravidou.	 Davi	 convocou	 o	 general	 Urias,	 marido	 de
Betsabé,	sugerindo	que	 fosse	passar	uma	noite	com	a	esposa,	 imaginando	assim	que	poderia	atribuir	a
gravidez	ao	próprio	marido.	Urias	recusou,	pois	estava	em	campanha.	Os	soldados,	às	vésperas	de	uma
guerra,	 deveriam	 se	 abster	 de	 sexo,	 como	 fazem	 hoje	 os	 jogadores	 de	 futebol	 ante	 de	 uma	 partida
importante.	Davi	então	deu	ordens	para	colocar	Urias	na	frente	da	batalha	e	deixá-lo	sem	proteção.	Urias
morreu	em	combate,	a	serviço	de	seu	rei,	o	invejoso.
Giovanni	Battista	Naldini	 (1537-1591),	 pintor	 da	 escola	maneirista	 de	 Florença,	 retrata	 o	 exato
momento	em	que	o	Rei	David	cai	em	pecado,	espia	a	nudez	da	esposa	de	Urias	e	 resolve	montar	uma
estratégia	para	possuí-la,	ou	melhor,	roubá-la.
http://www.humanarte.net/inveja3.html
"Eu	te	invejo"
Imagem:	“Gato	azul”	(1982)	Aldemir	Martins
	
Se	você	já	chegou	a	proferir	esta	frase,	isto	é,	se	já	confessou	para	si	e	para	os	outros	a	inveja	que
nutre	em	seu	coração,	tranquilize-se.	Você	é	normal.	Há	um	derivativo	saudável	da	inveja,	aquela
que	 se	manifesta	 como	 imitação,	 força	 inspiradora	 para	 também	 realizar	 o	 que	 o	 outro	 realizou.
Mas	acreditem,	sua	manifestação	negativa,	porém,	se	faz	presente	universalmente	na	infância,	na
adolescência	e	na	velhice.
A	inveja	nos	acompanha,	a	todos,	desde	tenra	idade:	a	inveja	de	um	irmão	mais	novo;	a	inveja	do
pai	ou	da	mãe	ou,	o	que	é	mais	comum,	da	 relação	entre	os	dois,	o	que	 induz	a	criança	a	 interromper
sistematicamente	 a	 conversação	 dos	 pais.	Há	 aquela	 ainda	 que	 se	 revela	 na	 pele	 de	 sua	 congênere,	 o
ciúme.	Este	tem	objeto	definido,	pois	quer	a	posse	de	algo	ou	de	uma	pessoa	determinada,	supostamente
na	 posse	 de	 outrem	 e	 não	 se	 importa	 em	 destruí-lo,	 na	 linha	 de	 pensamento	 e	 de	 ação	 do	 assassino
passional	que	diz	"se	não	for	minha,	não	será	de	ninguém".	Já	na	adolescência,	a	inveja	alimenta	ainda
mais	o	turbilhão	de	sensações	que	toma	o	mundo	interior	do	menino	e	da	menina.
"O	adolescente	se	refugia	no	ceticismo	quanto	aos	valores,	ao	trabalho	e	às	relações	dos	adultos
-	 o	 que	 talvez	 denuncie	 uma	 inveja	das	 coisas	 que	parecem	difíceis	 de	 conseguir.	O	adolescente	 se
recusa	 a	 estudar,	 a	 conseguir	 um	 emprego,	 a	 ajudar	 em	 casa,	 achando	 insuportável	 não	 ter
imediatamente	 as	 pretensas	 realizações	 da	 vida	 adulta.	 Nessa	 faixa	 etária,	 as	 pessoas	 são
especialistas	em	causar	inveja	nos	outros.	As	meninas	e,	cada	vez	mais,	os	meninos	usam	as	roupas	e	a
aparência	para	transmitir	inveja	aos	amigos,	certos	de	que	estão	"numa	boa".	Estar	"numa	boa"	é	dar
a	impressão	de	não	estar	angustiado,	de	não	ser	afetado	pela	ansiedade	e	pela	agitação	dos	amigos	e,
claro,	deles	mesmos.	Assim,	a	inveja	projetada	é	a	inveja	de	um	estado	de	espírito	despreocupado,	em
que	 o	 adolescente	 não	 se	 sente	 na	 turbulência	 inevitável	 da	 idade.	 A	 inveja	 do	 adolescente	 quase
sempre	está	acompanhada	da	insegurança"[2].
A	 paz	 de	 espírito	 do	 outro	 continua	 sendo	 motivo	 de	 inveja	 na	 idade	 adulta.	 Não	 apenas	 o
adolescente,	 mas	 todo	 mundo	 deseja	 um	 pouquinho	 da	 tranquilidade	 mental	 que	 se	 projeta	 no	 outro
(muitas	vezes	nada	 tranquilo,	na	verdade	de	 sua	dura	vida	psíquica).	O	gato,	o	bandido	e	o	humorista
corporificam	esta	projeção	psíquica.
Em	seu	célebre	estudo	sobre	o	narcisismo,	Freud	nos	explica,	ao	descrever	o	amor	feminino	e	o
masculino,	que	todos	admiram	a	estabilidade	psíquica	destes	três	personagens.	O	gato	é	autossuficiente,	a
própria	 imagem	da	autonomia,	da	 liberdade,	com	direito	a	certa	elegância,	bem	ao	contrário	do	cão,	o
seu	 companheiro	 doméstico	 que	 sempre	 se	 humilha	 e	 suplica	 por	 um	 carinho.	 O	 público	 também
manifesta	um	discreto	apego	a	Bonnie	&	Cleide.	Quem	não	torceu	pelos	bandidos	do	Assalto	ao	Banco
Central	de	Fortaleza	(CE)?	Parecem	inabaláveis	aos	ataques	das	entidades	mais	poderosas	do	planeta.	Já
o	humorista,	por	sua	vez,	do	tipo	de	Jô	Soares,	como	os	outros	dois,	também	se	mostra	inabalável	diante
de	qualquer	autoridade,	pois	tudo	vira	piada.	Diz	Freud:
"..os	gatos,	os	grandes	animais	de	rapina,	o	grande	criminoso	e	o	humorista	conquistam	o	nosso
interesse,	na	representação	literária,	pela	coerência	narcísica	com	que	mantem	afastados	de	seu	Eu
tudo	o	que	possa	diminuí-lo.	É	como	se	os	invejássemos	pela	conservação	de	um	estado	psíquico	bem-
aventurado,	uma	posição	libidinal	inatacável,	que	desde	então	nós	mesmos	abandonamos"[3].
A	 inveja	não	 te	 abandonará	nem	mesmo	na	 sua	 aposentadoria	 e	na	 tranquilidade	de	 sua	 "melhor
idade".	Quando	envelhecem,	as	pessoas	têm	dificuldade	de	esconder	a	inveja	da	juventude	que	tem	todo
o	futuro	pela	frente:
http://www.humanarte.net/inveja4.html
"A	inveja,	se	for	muito	intensa,	pode	levar	à	crítica	dos	'jovens	de	hoje',	uma	inveja	disfarçada
de	desaprovação"[4].
Pior	que	isso	é	a	inveja	dos	mais	velhos	para	com	os	mais	jovens,	quando	ocorre	dentro	do	lar,	no
aconchego	 da	 vida	 familiar.	 Algumas	 vezes,	 podemos	 suspeitar	 dos	 esforços	 altruístas	 de	 certos	 pais
dedicados	 e	 atenciosos.	 Trata-se	 de	 uma	 derivação	 edipiana	 extremamente	 constrangedora,	 quando	 os
filhos	se	dão	conta	disso.	O	pai	também	teme	o	sucesso	do	filho:
“O	caráter	familiar	dos	deuses	e	humanos	coloca	desafios	de	aspectos	edipianos.	Quando	estes
desafios	 estão	no	campo	da	criatividade	o	narcisismo	de	ambos	é	 colocado	em	 jogo.	 (...)	Por	outro
lado,	os	pais	sabem	que	um	dia	eles	[os	filhos]	vão	crescer	e	que	poderão	ser	superados,	o	que	gera
um	ressentimento	inconsciente	e	um	desejo	de	destruir	o	filho,	ainda	que	conscientemente	manifestem
o	desejo	de	que	os	filhos	tenham	sucesso”[5]
Essa	 operação	 mental	 tão	 poderosa	 e	 destrutiva	 é	 de	 caráter	 milenar	 e	 tem	 como	 modelo	 de
funcionamento	 a	 passagem	 bíblica	 da	 Torre	 de	Babel,	 amplamente	 reproduzida	 na	 história	 da	 arte.	A
punição,	 de	 corte	 geográfico	 e	 linguístico,	 pode	 ser	 lida	 como	uma	 resposta	 do	Criador	 à	 ousadia	 da
criatura	em	utilizar	as	habilidades	herdadas	para	atingir	o	espaço	do	Pai	Celestial.
Tudo	 isto	 é	 muito	 constrangedor	 para	 a	 cultura	 cristã	 e	 judaica,	 mas	 amplamente	 conhecido	 na
cultura	 da	 antiguidade	 clássica,	 onde	 deuses	 e	 deusas	 não	 se	 envergonham	 de	 invejar	 e	 castigar	 os
mortais	(como	já	pudemos	demonstrar).
Curioso	processo	em	que	começamos	a	vida	invejando	o	pai	e	terminamos	por	invejar	o	filho.
2.	A	arte	do	ódio:	Pintura	e	Literatura
	
Arte,	imaginação	fiel
Inspirados	 pelas	 gravuras	 apavorantes	 de	Goya	 (Desastres	 de	 La	Guerra)	 e	 pela	 denúncia	 cubista	 de
Picasso	(Guernica),	vamos	abordar	o	ódio	nos	atos	de	genocídios,	reconstruídos	a	partir	da	imaginação
não	da	pintura,	nem	do	desenho,	mas	da	literatura	contemporânea.
Ódio	contra	judeus
O	Massacre	de	judeus	em	Josefow	(Polônia),	1942.
Ódio	contra	palestinos
O	Nakba	de	1948:	perseguição,	expulsão,	morte	e	humilhação	dos	palestinos	da	Galileia.
Ódio	contra	alemães
Nemmersdorf	(Rússia),	1944.	Mulheres	alemãs	massacradas,	afogadas,	estupradas	e	crucificadas	pelos
soviéticos
Ódio	contra	islâmicos
Granada,	1492.	Diáspora	dos	islâmicos	da	Espanha
Ódiocontra	negros	(Brasil)
Salvador,	1817.	Captura,	travessia,	humilhação,	estupro:	cenas	da	escravidão	no	Brasil
Ódio	contra	negros	(Moçambique)
Moçambique,	1972.	Massacre	de	civis	negros	na	floresta	moçambicana.
Cubismo	neoclássico	e	psicológico
Guernica,	1937:	primeiro	retrato	de	bombardeio	aéreo	contra	civis
Arte,	imaginação	fiel	-	a	guerra	segundo	Goya
	
Imagem:	“Desastres	da	guerra”	(1812)	Goya
	
Na	heroica	 batalha	de	 Saragoça	 (verão	 de	 1808)	 a	 população	 civil	 espanhola	 oferece	 resistência
inimaginável	 ao	 avanço	 das	 tropas	 napoleônicas,	 casa	 por	 casa,	 rua	 por	 rua,	 o	 que	 levou	 alguns
historiadores	 a	 compará-la	 com	 a	 resistência	 russa	 às	 tropas	 alemãs	 no	 inverno	 de	 1943,	 em
Stalingrado.	Após	a	batalha,	o	pintor	Francisco	Goya,	já	com	mais	de	sessenta	anos	de	idade,	visitou
a	cidade,	na	qual	havia	vivido,	 crescido	e	recebido	suas	primeiras	encomendas,	muito	antes	de	 se
tornar	o	pintor	da	Corte	de	Madri.
Como	 seu	 futuro	 conterrâneo	 ilustre	 Pablo	 Picasso	 faria	 quase	 cento	 e	 trinta	 anos	 depois,	 por
ocasião	da	destruição	de	Guernica	na	Guerra	Civil	Espanhola,	Goya	não	viu	a	batalha,	mas	registrou	as
cenas	 mais	 dramáticas	 de	 crueldade	 e	 irracionalidade	 que	 um	 conflito	 militar	 pode	 causar,
principalmente	aos	civis.	Baseado	em	relatos	que	recolheu,	colocou	a	imaginação	a	serviço	da	verdade,
criando	 o	 primeiro	 registro	 de	 guerra,	 através	 do	 desenho,	 do	 tipo	 “as	 imagens	 não	mentem”,	 em	 um
conjunto	 de	 oitenta	 pequenas	 gravuras	 em	 metal	 (técnica	 da	 água-tinta)	 que	 só	 seria	 publicado
postumamente.	 A	 verdade	 a	 que	 se	 dedicaram	 ambos	 os	 mestres	 espanhóis,	 segundo	 seus	 próprios
códigos	 de	 linguagem,	 inéditos	 e	 individuais,	 refere-se	 à	 verdade	 da	 dor,	 da	 destruição,	 do
despedaçamento	da	vida	e	dos	corpos,	dos	sonhos,	da	razão	e	da	civilização.
Embora	 tenha,	 em	 grande	 número	 das	 gravuras,	 identificado	 o	 invasor	 francês	 nas	 peças	 do
uniforme	 militar,	 Goya	 não	 acentua	 o	 caráter	 nacional	 do	 conflito.	 Com	 poucos	 traços,	 rápidos	 e
expressivos,	 ausência	quase	 total	 de	paisagem	e	 linhas	 econômicas	 e	precisas	que	 apenas	 esboçam	as
cenas,	o	pintor	espanhol	não	restringe	sua	denúncia	a	uma	data	e	a	um	local.	Vai	além.	A	mensagem	assim
construída	é	imediata	e	aprisiona	o	olhar	do	observador	para	o	que	há	de	mais	irracional	e	inacreditável
no	ser	humano,	não	apenas	nos	humanos	franceses	do	período.
Vejamos,	por	exemplo,	a	lâmina	34,	que	traz	na	parte	inferior	a	significativa	frase	“Yo	lo	vi”	 (Eu
vi):	um	grupo	de	mulheres,	crianças	e	velhos	corre	em	disparada	e	já	alcança	os	arredores	da	cidade	que
vão	deixando	para	trás,	ao	fundo	e	à	esquerda	da	composição.	Os	invasores	não	aparecem	no	desenho,
mas	 se	 impõe	como	uma	sombra	ameaçadora	que	 surge	à	direita,	o	que	é	denunciado	pela	criança	em
primeiro	plano,	estarrecida	e	boquiaberta,	logo	socorrida	pela	corajosa	mãe,	a	única	que	se	desloca	em
sentido	 contrário,	 na	missão	de	 resgatar	o	 filho.	À	esquerda	um	padre	 foge	 com	um	saco	de	dinheiro.
Impressiona	 a	 economia	 de	 traços	 e	 o	 efeito	 dramático	 da	 composição,	 que	 revela	 ainda	 uma	 certa
inspiração	neoclássica.	A	mãe	e	o	homem	à	sua	esquerda	evidenciam	linhas	diagonais	antagônicas,	em
um	imenso	triângulo	invertido	dado	pelas	pernas	esquerdas	de	ambos.	A	cena	se	fecha	pelo	triângulo	ao
fundo	 formado	 pela	 colina,	 salientando	 o	 movimento	 de	 fuga	 do	 grupo	 que	 se	 enquadra	 entre	 os
triângulos.
Na	lâmina	5,	que	traz	a	frase	“Y	son	fieras”,	Goya	destaca	a	coragem	das	mulheres	de	Saragoça,
que	se	tornaram	famosas	pela	participação	na	guerrilha	(palavra	que	deriva	deste	episódio	histórico	de
resistência	 do	mais	 fraco	 ao	mais	 forte).	 Em	 primeiro	 plano,	 uma	mãe	 segura	 a	 criança	 com	 o	 braço
esquerdo,	às	costas,	enquanto	usa	a	direita	para	cravar	uma	imensa	estaca	no	soldado	francês.	Um	pouco
adiante,	 outra	 combatente	 se	 defende	 com	 uma	 pesada	 pedra	 já	 alçada	 sobre	 a	 cabeça.	 Pedra	 contra
pólvora.	Civis	contra	militares.	Mães	contra	soldados.	Mulheres	contra	homens.	O	desalento	da	situação
se	expressa	no	rosto	da	mulher	no	canto	esquerdo,	um	misto	de	dor,	desfalecimento	e	derrota.
Após	a	derrota	em	campo	de	batalha,	outra	luta	está	à	espera	dos	combatentes,	desta	vez	contra	o
sadismo	dos	vitoriosos.	Corpos	desmembrados	são	fincados	em	galhos	(lâmina	39).	Prisioneiros,	ainda
http://www.humanarte.net/ira1.html
vivos,	 são	castrados.	Mulheres	estupradas	coletivamente.	Há	ainda	uma	cena	de	suprema	bestialidade,
desta	feita	cometida	pelos	espanhóis.	A	lâmina	que	Goya	chama	de	Populacho,	traz	um	grupo	inflamado
pelo	ódio	que	assiste	à	execução	sumária	de	um	homem	jogado	ao	chão,	arrastado	pelas	cordas	que	o
prendem	 nos	 calcanhares.	 Não	 possui	 nenhuma	 identificação	 francesa,	 pois	 talvez	 se	 trata	 de	 um
colaborador,	isto	é	um	traidor,	que	então	eram	chamados	de	“afrancesados”.	Enquanto	a	mulher	à	direita
se	se	empenha	em	um	golpe	enérgico	com	uma	barra	(de	ferro,	talvez),	o	homem	da	esquerda	empunha	a
“media-luna”,	uma	estaca	muito	conhecida	nas	touradas	para	cortar	os	tendões	dos	touros	e	assim	deixá-
los	 indefesos.	 O	 corajoso	 camponês	 está	 prestes	 a	 introduzir	 esta	 imensa	 estaca	 no	 ânus	 do	 inimigo
imobilizado.
														“Nenhum	artista	antes	dele	transmitiu	a	irracionalidade	da	multidão,	especialmente	de	uma
multidão	inflamada	por	uma	visão	comum	–	religiosa,	política,	não	faz	diferença	–	com	um	poder	tão
desprovido	de	sentimento.	Essas	figuras	possuem	a	ferocidade	de	criaturas	tentando	se	fazer	ouvir	do
outro	lado	de	um	vidro	fechado.	Elas	são	as	criaturas	da	surdez	do	próprio	Goya”[6].
Embora	surdo,	Goya	viveu	o	bastante	para	testemunhar	as	voltas	que	em	sua	época	o	mundo	deu,
invertendo	os	papéis	entre	agressores	e	agredidos	sem,	entretanto,	alterar	o	roteiro	da	agressão,	 isto	é,
sempre	 com	 a	 desconcertante	 permanência	 da	 crueldade	 e	 do	 sadismo.	 Isso	 dá	 à	 sua	 obra	 um	 caráter
universal,	profético	até.
Os	 séculos	 seguintes	 apenas	 confirmariam	 a	 estranha	 vocação	 humana	 para	 a	 violência	 bestial,
principalmente	aquela	cometida	em	nome	de	uma	coletividade,	de	um	ideal	nacional,	racial,	confessional
ou	 ideológico.	Suas	gravuras	denunciam	atrocidades	atemporais,	então	cometidas	napoleonicamente,	 já
escravocratamente	 praticadas,	 mais	 tarde	 globalizadas	 capitalistamente,	 aprimoradas	 nazistamente,
retomadas	sovieticamente	e	prodigamente	trocadas	entre	judeus	e	palestinos,	armênios	e	turcos,	hutus	e
tutsis,	sérvios	e	croatas.
Tomemos	novamente	o	caso	das	mulheres	em	fuga	com	suas	crianças.	Ou	das	mulheres	estupradas.
Podemos	inserir	legendas	nas	gravuras,	ora	como	mulheres	judias,	ora	como	palestinas,	armênias,	negras,
moçambicanas,	russas	e	mesmo	alemãs,	dependendo	apenas	da	data.
Pois	bem,	 se	o	 leitor	 chegou	até	aqui,	nesta	 introdução	que	 já	vai	 ficando	 longa	para	os	moldes
deste	 capítulo,	 vamos	 esclarecer	 nossa	 proposta.	 Abordaremos	 o	 tema	 do	 ódio	 que	 guiou	 atos	 de
genocídios,	reconstruídos	a	partir	da	imaginação	da	pintura,	do	desenho	e,	principalmente,	da	literatura
contemporânea.	Sempre	escorados	em	extensa	documentação,	os	romances	históricos	que	elencamos	têm
em	comum	o	dom	de	dar	nome	e	identidade	às	pessoas	que	vivenciaram	massacres	e	receberam	na	alma	e
na	carne	os	golpes	dramáticos	do	ódio	coletivo.
Vamos	evocar	os	poderes	sobrenaturais	da	arte	para	exorcizar	a	besta	fera	que	teima	em	habitar	a
humanidade.	Vamos	 falar	 das	 desgraças	 que	 todos	 devemos	 evitar.	Ao	 final,	 esperamos	 demonstrar,	 a
título	de	nobre	advertência,	rogando	a	todos	muita	prudência,	como	o	ódio	também	se	instala	em	tempos
de	paz,	no	trabalho,	na	escola	e	até	nas	famílias.
		
Ódio	contra	judeus	-	Dois	mil	anos	de	perseguição
	
Na	manhã	de	12	de	julho	de	1942,	o	Batalhão	101	da	Polícia	Alemã,	composto	por	aproximadamente
quinhentos	policiais	reservistas	provenientes	de	Hamburgo,	chegou	na	pequena	vila	de	Josefow,	no
sul	da	Polônia,	para	umaoperação	de	“limpeza	étnica”.	A	missão	era	eliminar	toda	a	população	de
judeus	da	cidade.
Todas	 as	 casas	 foram	 invadidas	 e	 seus	 moradores	 –	 homens,	 mulheres,	 crianças	 e	 idosos	 -	 foram
conduzidos	 à	 praça	 do	mercado,	 onde	 embarcaram	 em	 caminhões	 que	 os	 conduziram	 a	 uma	 floresta.
Antes	da	matança,	os	soldados	receberam	instruções	técnicas	do	médico	do	pelotão:	deveriam	colocar	os
judeus	 deitados	 de	 cabeça	 para	 baixo,	 encostar	 a	 baioneta	 na	 nuca	 e	 atirar.	 As	 instruções	 se	 faziam
necessárias,	já	que	o	pelotão	de	fuzilamento	tinha	uma	composição	peculiar:	a	idade	média	dos	soldados
era	de	39	anos,	apenas	20%	eram	filiados	ao	Partido	Nazista	e	nunca	tinham	realizado	nada	semelhante.
Eram	todos	evangélicos,	pessoas	de	classe	média	baixa,	trabalhadores	braçais,	motoristas	de	caminhão	e
alguns	 tinham	 até	 especialização	 acadêmica,	 antes	 da	 chegada	 do	 nazismo	 ao	 poder	 em	 1933.	 Foi
permitido	a	recusa,	mas	apenas	13	homens	o	fizeram.	O	restante	levou	a	tarefa	a	cabo:
“Os	 soldados	 começaram	 a	 atirar,	 mas	 as	 mãos	 estavam	 tão	 trêmulas	 que	 muitos	 erraram,
apesar	da	distância	incomumente	curta.	Tendiam	a	mirar	os	rifles	no	crânio	da	vítima,	que	explodia
quando	era	atingido	por	balas	de	alto	calibre.	Os	homens	recebiam	sem	parar	respingos	de	matéria
encefálica.	Com	o	 passar	 do	 dia,	muitos	 desmaiavam,	 vomitavam	e	 geralmente	 ficavam	 fisicamente
incapazes	de	continuar,	e	um	número	cada	vez	maior	pedia	para	deixar	de	participar	do	assassínio.
Outros	se	escondiam,	ou	 levavam	um	tempo	 implausivelmente	 longo	para	revistar	casas	que	sabiam
que	estavam	vazias,	ou	erravam	deliberadamente	quando	atiravam	nos	judeus	que	fugiam”[7]
Entretanto,	com	o	tempo	–	e	doses	extras	de	vodka	-	todos	se	acostumaram	a	matar.	Em	dez	meses
de	“trabalho”	este	batalhão,	conduzido	pelo	Major	Wilhelm	Trapp	(conhecido	como	o	“Pappa	Trapp”)
alcançou	a	cifra	de	83	mil	 judeus	assassinados	naquela	 região	polonesa.	A	citação	acima	se	baseia	na
pesquisa	do	historiador	Christopher	Browning	publicada	em	1992	sob	o	título	Ordinary	Men:	Reserve
Police	Battalion	101	and	the	Final	Solution	in	Poland.	Browning	descreve	uma	tipologia	da	crueldade:
“Há	o	oficial	da	SS	normalmente	"rigoroso	e	inacessível",	que	fica	preso	ao	leito	com	diarreia	e
dores	na	barriga	toda	vez	que	é	anunciada	outra	"ação	com	judeus".	Há	o	oficial	talentoso	e	confiante
que	 gosta	 de	 dirigir	 seu	 carro	 de	 pé,	 como	um	general.	Ele	 levou	 a	 jovem	 esposa	 em	 lua-de-mel	 à
Polônia	e	a	convida	a	acompanhá-lo	em	uma	operação	no	gueto.	Há	o	grupo	de	artistas	de	Berlim,
cujos	membros	imploram	para	se	unir	à	ação	contra	os	judeus	e	cometem	alguns	dos	assassinatos.	Há
o	cuidado	observado	por	alguns	soldados	quando	recebem	ordens	de	matar	seus	próprios	"judeus	da
cozinha".	 Eles	 evitam	 levantar	 qualquer	 suspeita	 e	 tomam	 o	 cuidado	 extremo	 de	 atirar	 em	 seus
criados	 repentinamente	pelas	 costas	 e	 a	 curta	distância,	 de	modo	que	os	 serviçais	 não	 sofram	nem
vivam	o	pavor	a	que	os	outros	judeus	são	expostos”[8]
Atualmente	há	um	memorial	na	cidade	de	Josefow,	que	ainda	existe	e	abriga	2	mil	e	500	habitantes.
Mas	não	há	mais	judeus	lá.
Aos	 judeus	 todas	 as	 desgraças	 do	mundo	 já	 foram	 atribuídas.	 	 Pestes,	 secas,	misérias,	 guerras,
derrotas,	dívidas	e	até	crises	econômicas	já	foram	cobradas	com	sangue,	tortura,	humilhação	e	morte	aos
judeus,	grupo	étnico-religioso	que	hoje	congrega	quase	14	milhões	de	seguidores	e	que	 foi	perseguido
incansavelmente	durante	séculos.
A	grande	 diáspora	 judaica	 ocorreu	 no	 ano	 70,	 por	 ordem	do	 Imperador	 romano	Tito.	Os	 judeus
foram	o	alvo	preliminar	dos	cruzados	de	1095,	que	decidiram	primeiro	matar	os	“assassinos	de	Jesus”	(e
lhes	roubar	o	dinheiro)	para	depois	combater	os	islâmicos.	Foram	expulsos	da	Inglaterra	em	1290	e	da
Espanha	em	1492.	Em	Lisboa,	na	Semana	Santa	do	ano	de	1506,	centenas	de	judeus	foram	assassinados,
por	ordem	de	freis	dominicanos,	que	os	responsabilizaram	pela	seca	e	pela	peste	que	atingia	Portugal.	Na
Rússia,	entre	1880	e	1920,	dois	milhões	de	judeus	emigraram	devido	às	ondas	de	perseguição	e	violência
(Clarice	Linspector,	com	apenas	1	ano	de	idade,	migrou	neste	período	da	Ucrânia	para	o	Brasil).	Durante
a	 Revolução	 Russa	 eram	 perseguidos	 tanto	 pelo	 Exército	 Vermelho,	 quanto	 pelo	 Branco,	 que	 os
consideravam	parte	de	um	complô	judaico-bolchevique.
Mas	 de	 fato	 nada	 se	 compara	 ao	 Holocausto.	 Houve	 cálculo	 no	 ódio	 nazista.	 Cálculo	 para
organizar	 a	 matança,	 para	 inventar	 e	 aplicar	 novos	 métodos,	 para	 registrar	 os	 avanços	 e	 metas
conseguidos.	Talvez	por	isso	seja	o	genocídio	mais	bem	documentado	da	história	da	(des)	humanidade.
Além	 disso	 houve	 teoria	 no	 ódio	 nazista.	 Uma	 pretensa	 justificativa	 científica,	 inspirado	 numa
leitura	 grotesca	 do	 darwinismo,	 forjou	 uma	 base	 biológica	 para	 o	 extermínio,	 ao	 passo	 que	 os	 outros
exterminadores	 do	 passado	 não	 se	 deram	 ao	 trabalho	 de	 elucubrar,	 nem	 calcular,	 sobre	 o	 seu	 ódio
coletivo.	Apenas	se	entregaram	a	ele.
“Qualquer	animal	só	se	ajunta	com	um	congênere	da	mesma	espécie:	a	cegonha	com	a	cegonha,
o	rato	com	a	rata,	o	lobo	com	a	loba,	etc.	Todo	cruzamento	de	dois	seres	de	valor	desigual	dá	como
produto	um	meio-termo	entre	os	valores	dos	pais.	Tal	ajuntamento	está	em	contradição	com	a	vontade
da	natureza,	que	tende	a	elevar	o	nível	dos	seres.	Este	objetivo	não	pode	ser	atingido	pela	união	de
indivíduos	de	valor	diferente,	mas	só	pela	vitória	completa	e	definitiva	dos	que	representam	o	mais
alto	valor.	O	papel	do	mais	forte	é	o	de	dominar	e	não	o	de	fundir-se	com	o	mais	fraco,	sacrificando
assim	 a	 sua	 própria	 grandeza.	 Só	 o	 fraco	 de	 nascimento	 pode	 achar	 cruel	 esta	 lei,	 mas	 é	 por	 ser
apenas	um	homem	fraco	e	limitado.”	(Adolf	Hitler,	Minha	luta.)[9]
Hoje,	qualquer	vestibulando	sabe	que	a	Genética	não	permite	este	raciocínio,	mesmo	se	aplicado	a
uma	 só	 espécie,	 o	 que	 o	 perverso	 autor	 acima	 procurou	 ocultar,	 ao	 iniciar	 o	 argumento	 com	 espécies
diferentes	(que	nunca	vão	se	“ajuntar”	mesmo)	para,	ao	final,	justificar	a	limpeza	ética.
Ódio	contra	palestinos	–	o	terrorismo	de	Estado
	
Já	 no	 ano	 de	 seu	 lançamento,	 em	 1998,	 o	 romance	 de	 Elias	 Khoury	 intitulado	 “Porta	 do	 Sol”
(Record,	2008)	provocou	grande	repercussão	na	Europa,	EUA	e	Israel.	Em	2002	foi	eleito	o	livro	do
ano	 pelo	 jornal	 Le	 Monde	 Diplomatique.	 O	 livro	 é	 um	 imenso	 resgate	 da	 memória	 das	 famílias
palestinas	 que	 sofreram	 a	 perseguição,	 a	 expulsão,	 a	 morte	 e	 a	 humilhação	 impostos	 pelas	 tropas
israelenses	entre	a	Guerra	da	Galileia,	em	1948,	e	o	Massacre	de	Sabra	e	Chatila,	em	1982.	Mas	o	livro
não	é	uma	denúncia	de	ódio	e	vingança,	apesar	da	experiência	do	autor	nas	lutas	dos	povos	de	religião
islâmica.
Elias	Koury	nasceu	no	Líbano	em	1948	e	aos	19	anos	se	 incorporou	às	 tropas	do	Fatah,	o	braço
armado	da	Organização	para	a	Libertação	da	Palestina	(OLP).	Nos	anos	1970	defendeu	a	causa	palestina
como	pesquisador	e	jornalista,	mas	voltou	ao	combate	na	Guerra	Civil	Libanesa	(1975	-	1990),	quando
ficou	gravemente	ferido.	Entre	1993	e	2009	foi	editor	do	suplemento	cultural	do	jornal	libanês	Al-Nahar.
É	professor	de	Estudos	Islâmicos	e	do	Oriente	Médio	na	Universidade	de	Nova	York.
O	 título	 Porta	 do	 Sol	 se	 deve	 ao	 nome	 de	 uma	 caverna	 da	 Galileia,	 na	 qual	 se	 refugiou	 o
combatente	 Yunis,	 herói	 de	 guerra	 do	 povo	 palestino.	 A	 obra	 é	 construída	 através	 de	 uma	 série	 de
encontros	em	que	o	enfermeiro	Khalil	imagina	um	diálogo	com	Yunis,	então	em	estado	de	coma.	Nestes
diálogos,	Khalil	dá	voz	a	 inúmeros	personagens	que	viveram	em	torno	de	Yunis,	conferindo	à	obra	um
atraente	 aspecto	 de	 oralidade,	 em	 que	 o	 leitor	 é	 inserido	 em	 rodas	 de	 conversas	 entre	mães,	 idosos,
combatentes,	 órfãos	 e	 até	 mesmo	 personagens	 do	 lado	 israelense	 desta	 história	 de	 massacres
intermináveis.
Como	 afirma	 o	 escritor	 Milton	 Hatoumsobre	 Porta	 do	 Sol,	 “cada	 narrativa,	 cada	 voz	 se
entrelaça	com	outras,	em	tempos	e	lugares	diferentes.	O	fim	de	uma	história	é	o	começo	de	outra	e	a
única	 saída	 neste	 labirinto	 de	 batalhas,	 tragédias	 e	 humilhações	 é	 o	 amor,	 o	 desejo	 de	 viver	 em
liberdade,	com	amor”.[10]
Apesar	de	procurar	um	tom	de	superação	da	dor	e	do	ódio,	e	de	buscar	uma	solução	do	amor,	muito
bem	apontado	por	Hatoum,	as	histórias	de	Porta	do	Sol	surpreendem	pela	crueldade,	principalmente	para
o	público	mais	acostumado	ao	massacre	diário	da	mídia	hegemônica	e	à	 ideia	de	que	Israel	apenas	se
defende	de	terroristas	desumanos,	homens-bomba	e	fanáticos	ávidos	de	sangue	e	vingança.
Não	 apenas	 a	 história	 de	 uma	 pessoa	 parece	 começar,	 quando	 a	 de	 outra	 parece	 terminar,	 mas
também	 a	 dos	 povos.	 Após	 a	 Segunda	 Guerra	 Mundial	 (1939	 –	 1945)	 e	 a	 revelação	 do	 horror	 do
holocausto	judeu,	o	mundo	todo	se	compadece	da	dor	do	heroico	povo	hebreu,	que	desde	tempos	bíblicos
e	 romanos	 resistiu	 a	 perseguições	 e	 humilhações.	 Ou	 quase	 todo	 o	 mundo,	 pois	 os	 povos	 árabes
assistiram	revoltados	à	divisão	da	Palestina	-	onde	viviam	por	milhares	de	anos	-	pela	ONU	em	1947
para	a	criação	do	gigantesco	assentamento	da	nação	de	Israel,	que	acolheria	todos	os	judeus	do	mundo,
inclusive	os	sobreviventes	do	Holocausto.
Desde	então,	quatro	grandes	guerras	se	desenvolveram	entre	árabes	e	 israelenses	até	os	 recentes
acordos	de	Paz,	sempre	com	a	vitória	dos	judeus,	muito	bem	aparelhados,	treinados	e	financiados	pelos
EUA.	Israel	se	converteu	na	potência	militar	da	região,	inclusive	com	sua	própria	bomba	atômica,	tomou
posse	de	sua	parte	e	 também	da	parte	dos	palestinos,	como	estratégia	de	defesa	de	seu	 jovem	Estado,
cercado	de	islâmicos	por	todos	os	lados.
A	ONU	protesta	reiteradamente	e	exige	a	devolução	dos	territórios	palestinos,	segundo	o	modelo
de	divisão	que	ela	mesma	concebeu.	Parte	deles	 foram	devolvidos,	como	Gaza,	mas	ainda	hoje	 faltam
outras	parcelas	reclamadas	pelos	palestinos,	como	Jerusalém	Oriental	e	as	Colinas	de	Golã,	na	fronteira
com	 a	 Síria.	 Falta,	 sobretudo,	 o	 reconhecimento	 do	 Estado	 da	 Palestina,	 o	 que	 os	 EUA	 negam
sistematicamente.
Portal	 do	 Sol	 se	 inicia	 pelo	 Nakba	 (catástrofe,	 em	 árabe),	 nome	 pelo	 qual	 ficou	 conhecido	 o
êxodo,	associado	a	massacres,	dos	povoados	palestinos	da	Galileia	em	1948,	período	que	Israel	registra
com	o	nome	de	Guerra	de	Independência.	Mais	de	700	mil	palestinos	foram	obrigados	a	abandonar	casas
e	plantações	e	se	deslocaram,	em	sua	maioria,	para	o	sul	do	Líbano.
Khalil	relembra,	junto	à	cama	do	emudecido	Yunis,	vários	casos	de	perda,	seguida	de	tentativa	de
retorno	 e	 nova	 expulsão,	 ou	morte.	Alguns	 se	 esconderam	nas	 florestas	 e	 voltavam	 soturnamente	 para
roubar	frutas	e	legumes	de	suas	próprias	hortas,	sendo	recebidos	à	bala.	Uma	senhora	volta	com	seu	filho
num	velho	Fusca	e	chega	a	localizar	a	casa,	convertida	agora	em	moradia	de	uma	velha	judia	de	Beirute.
Ambas	conversam	amigavelmente	e	até	trocam	gentilezas,	lembranças	e	revelações.	A	senhora	judia	tenta
devolver	à	palestina	a	moringa	de	barro	que	ficava	na	cozinha,	mas	esta	não	aceitou	e	disse:	“eu	a	dou
para	você”[11].	Caíram	na	gargalhada.
O	 mais	 comum,	 infelizmente,	 foi	 o	 retorno	 que	 levava	 ao	 encontro	 com	 a	 morte.	 As	 tropas
israelenses	procuravam	por	combatentes	 islâmicos	no	meio	da	população	civil	e,	quase	sempre,	nunca
fazia	diferença	entre	civil	e	militar.	Na	noite	de	1º	de	maio	de	1948,	por	exemplo,	na	vila	de	Ein-Azeitun
(Galileia),	um	grupo	retornou	para	resgatar	o	dinheiro	que	havia	escondido	no	quintal	e	o	que	se	viu	foi	o
massacre	de	mulheres,	crianças	e	idosos,	reunidos	no	centro	do	vilarejo	pela	guarda	especial	israelense,
o	Palmach.
Um	 senhor,	 chamado	Yussif,	 levantou	 da	multidão	 agachada	 e	 tentou	 solicitar	 um	 tratamento	 de
prisioneiro	de	guerra,	conforme	as	leis	internacionais:	"Um	oficial	jovem	aproximou-se	de	Yussif	e	lhe
deu	uma	tapa	na	cara,	depois	puxou	seu	revólver	e	deu-lhe	um	tiro	na	cabeça.	Seu	cérebro	explodiu	e
espalhou-se	no	chão”[12]
Há	 ainda	 o	 Massacre	 de	 Tarchiha,	 assim	 descrita	 pelo	 protagonista:	 “Escolheram	 sessenta
homens,	amarraram	suas	mãos	com	cordas	e	fizeram-nos	parar	em	fila.	Sessenta	homens	com	idades
diferentes	 pareciam	 uma	 parede	 comprida	 trespassada	 por	 uma	 única	 corda	 passando	 pelas	 mãos
amarradas	atrás	das	costas.	Atiraram.	O	barulho	das	metralhadoras	ensurdecia.	Os	homens	caíam,	as
pessoas	agrupadas	na	praça	corriam	para	as	plantações.	Era	a	morte”[13]
Há	 também	 o	Massacre	 da	 Lama,	 ocorrido	 em	 dezembro	 de	 1948:	 "Nahila	 me	 contou	 sobre	 o
massacre	dos	velhos	e	como	Abraham,	o	oficial	israelense,	entrara	no	vilarejo	e	ordenara	que	todos	se
agrupassem	 ao	 redor	 do	 tanque.	 Caminhou	 por	 entre	 eles,	 como	 quem	 inspecionasse	 um	 batalhão.
Mesmo	Hajj	Mussa	Drawich,	o	paralítico,	foi	trazido	de	sua	casa,	por	ordem	dele”[14].
Após	a	morte	do	paralítico,	o	oficial	(cujo	nome	cobriria	de	vergonha	o	Patriarca)	escolhe	vinte
idosos	 a	 dedo	 e	 os	 coloca	 em	 um	 caminhão,	 dispersando	 a	 tiros	 os	 restantes,	 que	 se	 dispersaram
aterrorizados	 nos	 bosques	 e	 plantações	 mais	 próximos.	 Pouco	 mais	 tarde	 os	 vinte	 velhinhos	 foram
metralhados	 em	 um	 lamaçal,	 durante	 uma	 chuva	 torrencial,	 de	 tal	 forma	 que	 se	misturavam	 a	 lama,	 o
sangue,	os	corpos	mortos	e	os	que	ainda	escorregavam.
A	 diáspora	 palestina	 de	 1948	 teve	 como	 destino	 o	 sul	 do	 Líbano,	 onde	 se	 formaram	 imensos
campos	de	refugiados,	em	meio	aos	quais	a	luta	armada	recrutava	seus	fiéis	militantes.	Estabeleceu-se	um
círculo	 de	 ódio.	 A	 violência	 do	 Estado	 de	 Israel	 é	 imensamente	 desproporcional	 aos	 ataques	 das
guerrilhas	 palestinas,	 cujas	 fileiras	 são	 permanentemente	 alimentadas	 pelo	 crescente	 contingente	 de
humilhados	 do	 lado	 palestino,	 que	 sobrevive	 na	 mais	 dura	 miséria.	 Guerrilhas	 que	 Israel	 chama	 de
terrorismo,	lembrando	atos	como	o	massacre	da	equipe	esportiva	de	Israel	nas	Olimpíadas	de	Munique
de	1972	pelo	comando	Setembro	Negro,	uma	dissidência	radical	da	Fatah.
Para	desmoralizar	o	inimigo,	o	Estado	de	Israel	protagoniza	em	16	de	setembro	de	1982,	um	dos
capítulos	 mais	 sórdidos	 e	 cruéis	 do	 século	 XX,	 o	 Massacre	 de	 Shabra	 e	 Chatila,	 dois	 daqueles
acampamentos	 de	 refugiados.	 Ariel	 Sharon,	 então	 Ministro	 da	 Defesa	 de	 Israel,	 responsável	 pela
“proteção”	 do	 sul	 do	Líbano,	 invadido	 por	 Israel,	 permitiu	 a	 entrada	 noturna	 de	 uma	milícia	 libanesa
antipalestina	 (a	Falange	Libanesa)	que,	 sob	as	 luzes	poderosas	do	Exército	 Israelense,	matou	cerca	de
3000	civis,	entre	homens,	mulheres	e	crianças.
Nosso	protagonista	não	 reconta	a	história	de	Sabra	e	Chatila,	pois	 romperia	com	a	oralidade	da
estrutura	do	romance,	construída	com	o	material	da	memória	dos	palestinos.	Foi	numa	mesa	de	bar	em
Jerusalém	 que	 conhece	 detalhes	 do	 lado	 israelense	 e	 falangista	 do	 Massacre,	 como	 por	 exemplo	 a
execução	 sumária	 de	 duas	 crianças	 palestinas	 com	 apenas	 um	 tiro:	 “Contou	 que	 o	 chefe	 Joseph
encontrou	 três	 crianças	 e	 pediu	 a	 um	de	 seus	 acompanhantes	 para	 segurá-las.	Disse	 que	 lhe	 pediu
para	 que	 as	 colocasse	 uma	 perto	 da	 outra	 sobre	 a	mesa.	 "Peguei	meu	 revólver,	 queria	 verificar	 o
alcance	de	um	tiro	da	Magnum"	Um	dos	meninos	escorregou	da	mesa,	a	luz	queimava	os	olhos,	pedi
para	o	colega	afastar	o	rosto,	ele	não	entendeu	o	que	eu	quis	dizer,	deixou	os	dois	meninos	e	saiu	da
casa.	Aproximei-me	deles,	queria	amarrá-los	e	me	afastar,	mas	não	achei	uma	corda.	Juntei	os	dois
coladinhos,	coloquei	a	boca	do	revólver	perto	da	cabeça	de	um	deles	e	atirei.	A	bala	atravessou	as
duas	 cabeças;	 morreram	 imediatamente.	 Não	 vi	 o	 sangue,	 pois	 com	 aquela	 estranha	 luminosidade
israelense	não	era	possível	enxergar	o	sangue.	Quando	saí	da	casa,	tropecei	na	terceira	criança	que
havia	caído,	voltei	um	pouco	para	trás,	atirei	emalgo	pequeno	que	se	movia,	parou"[15].
Joseph	 (outro	 que	 renegou	 o	 nome)	 era	 um	 combatente	 da	 Falange	 Libanesa,	 aliada	 do	 Estado
Israelense.	Em	16	de	dezembro	de	1982,	a	Assembleia-Geral	das	Nações	Unidas	condenou	o	massacre
declarando-o	 um	 ato	 de	 genocídio.	 E	 como	 a	 história	 de	 uma	 pessoa	 leva	 ao	 começo	 da	 história	 de
outras,	 nosso	 protagonista,	 Khalil,	 acaba	 conhecendo	 cruzamentos	 ideológicos	 improváveis,	 como	 a
história	de	Sara	(esta	sim,	honrou	a	esposa	de	Abraão),	a	mãe	judia	dos	guerreiros	islâmicos	da	Fatah	de
Gaza	e	Jamal,	o	líbio,	que	conhece	seu	tio,	um	coronel	israelense.
Ódio	contra	alemães	–	o	genocídio	alemão
	
O	 mestre	 espanhol	 Francisco	 de	 Goya	 e	 Lucientes,	 inspirador	 deste	 capítulo,	 testemunhou	 a
inversão	de	papéis	entre	agressores	e	agredidos,	por	ocasião	da	 invasão	napoleônica	em	seu	país,
entre	 1807	 e	 1812.	 Viu	 a	 Inquisição	 exercer	 sua	 crueldade	 e	 em	 seguida	 ser	 extinta,	 para	 logo
retomar	 suas	 atividades	 e	 propriedades.	 Registrou	 em	 gravuras	 de	 metal	 a	 façanha	 dos
“libertadores”	franceses	que	trucidaram	a	população	civil,	em	nome	da	igualdade	e	da	fraternidade.
Pois	bem,	a	Europa	também	viria	a	testemunhar	a	mesma	inversão	de	papéis.
Os	grandes	libertadores	da	Segunda	Guerra	foram,	a	bem	da	verdade,	as	tropas	soviéticas,	em	que
pese	 a	 insistência	 ocidental	 no	Dia	D.	 Entre	 1940	 e	 1945,	 a	Alemanha	 colonizou	 toda	 a	 área	 que	 se
estendia	 entre	 sua	 fronteira	 oriental	 e	 a	URSS:	 Polônia,	Hungria,	 Tchecoslováquia,	Grécia,	 Finlândia,
Romênia.	Foi	barrada	já	dentro	do	território	russo,	precisamente	em	Stalingrado,	a	primeira	derrota	da
poderosa	Wehrmacth,	a	virada	da	Guerra,	no	ano	de	1943.	Foi	o	começo	do	fim	para	os	alemães,	pois	o
Exército	 Vermelho	 não	 apenas	 derrotou	 250	 mil	 soldados	 nazistas,	 como	 saiu	 no	 encalço	 dos
sobreviventes	por	 toda	a	Europa	Oriental,	 liberando	quase	 todos	os	países	acima	citados,	até	atingir	o
território	alemão	e	a	capital	Berlim,	o	ninho	da	cobra.
Até	mesmo	os	campos	de	concentração	poloneses,	como	Treblinka	e	a	 rede	Auschwitz-Birkenau,
foram	estourados	pelos	soviéticos.	O	emérito	historiador	britânico,	Eric	Hobsbawm,	na	obra	“A	Era	dos
Extremos”,	assim	resume	o	papel	histórico	dos	russos	na	Guerra:	“o	comunismo	salvou	o	capitalismo	do
nazismo”.	Salvou	a	humanidade,	podemos	dizer.
Mas	a	História	não	é	um	roteiro	de	cinema	feito	de	heróis	e	bandidos.	Hoje	sabemos,	os	soviéticos
transformaram	 num	 inferno	 a	 vida	 dos	 alemães	 que	 encontraram	 pelo	 caminho.	 Houve	 um	 massacre
generalizado	 da	 população	 civil	 alemã,	 milhões	 de	 mulheres	 e	 crianças	 que	 já	 habitavam	 as	 áreas
tomadas	pela	Alemanha	Nazista	na	porção	oriental	da	Europa.
“O	tema	 foi	 tabu	até	a	publicação	de	um	livro	alemão	sobre	o	assunto	em	1992,	Befreier	 und
Befreite	(Os	libertadores	tomam	liberdades),	uma	coletânea	de	artigos	organizada	por	Helke	Sander	e
Barbara	 Johr.	 Em	 um	 artigo,	 o	 estatístico	 Gerhard	 Reichling	 estima	 que	 1,9	 milhão	 de	 mulheres
alemãs	foram	estupradas	durante	os	meses	da	invasão.	O	número	exato	de	estupros	é	muito	maior,	uma
vez	que	era	raro	que	uma	mulher	fosse	estuprada	apenas	uma	vez.	Uma	proporção	maior	dos	40	mil
relatos	 escritos	 de	 testemunhas	 oculares	 mantidos	 no	 Bundesarchiv-Ostdokumentation	 alemão	 (um
arquivo	 estatal	 para	 a	 documentação	 sobre	 o	 front	 oriental,	 instalado	 na	 prefeitura	 de	 Bayreuth)
descreve	como	grupos	de	mulheres	 foram	mantidas	em	cativeiro	em	porões	para	serem	usadas	pelos
soldados	 como	 quisessem,	 a	 qualquer	 momento.	 Há	 vários	 relatos	 de	 testemunhas	 oculares	 que
descrevem	o	que	aconteceu	em	Nemmersdorf,	 cidade	do	 interior	no	 leste	da	Prússia,	onde	mulheres
nuas	 eram	 crucificadas	 nas	 portas,	 os	 pregos	 martelados	 em	 suas	 mãos	 e	 pés.	 Crianças,	 soldados
feridos	 do	 exército	 alemão	 e	 homens	 idosos	 que	 nunca	 foram	 convocados	 foram	baleados	 na	 nuca,
transportados	para	campos	de	concentração	russos	ou	espancados	até	a	morte”[16].
Muitos	dos	que	tentavam	voltar	à	pé	para	a	Alemanha	descobriram	a	façanha	dos	soviéticos	e	então
resolveram	voltar	de	navio,	utilizando	a	rota	do	Mar	Báltico,	a	partir	da	cidade	portuária	de	Gotenhafen,
no	norte	da	Polônia.	Mais	uma	tragédia	os	aguardava,	talvez	o	maior	acidente	marítimo	da	história.
O	gigante	transatlântico	alemão	Wilhelm	Gustloff	(assim	batizado	em	homenagem	a	um	líder	suíço
nazista)	recebeu	a	missão	de	ajudar	as	multidões	de	alemães	que	fugiam	do	avanço	soviético	no	Leste,
mas	foi	atingido	por	três	torpedos	do	submarino	soviético	S-13,	vindo	a	afundar	no	Mar	Báltico	em	30	de
janeiro	de	1945.	Tinha	a	bordo	cerca	de	nove	mil	e	seiscentos	passageiros	civis,	a	maioria	mulheres	que
fugiam	do	avanço	do	Exército	Vermelho	e	do	Massacre	da	aldeia	de	Nemmersdorf		(que	fora	uma	colônia
alemã	em	território	soviético),	em	outubro	de	1944.
O	Wilhelm	Gutloff	ficou	boa	parte	da	guerra	ancorado	em	Gotenhafen	como	navio-hospital.	Tinha
capacidade	para	1	880	passageiros	no	total.	Afundou	uma	hora	e	dois	minutos	depois	de	atingido.	Foram
resgatadas	 apenas	 964	 pessoas	 delas.	 Sabe-se	 que,	 das	 vítimas,	 cerca	 de	 4	 000	 eram	 crianças	 e
adolescentes,	além	de	muitos	soldados	feridos	e	refugiados	de	guerra.	O	número	exato	de	mortos	é	difícil
de	ser	estabelecido,	mas	estima-se	que	morreram	entre	8	500	e	9	600	pessoas,	cinco	vezes	mais	o	número
de	vítimas	do	Titanic.
Não	havia	nem	método,	nem	 teoria,	nem	ordem	na	matança	 soviética.	Apenas	a	volúpia	 cega	da
vingança.	Certamente,	a	fúria	ou	a	frieza	não	amenizam	a	crueldade.	 Ilya	Ehrenburg,	escritor	stalinista,
escreveu	em	um	panfleto	distribuído	aos	soldados	russos:
"Contem	 não	 os	 dias,	 nem	 os	 quilômetros	 percorridos.	 Contem	 apenas	 o	 número	 de	 alemães	 que
mataram.	Matem	alemães:	este	é	o	seu	lema.	Matem	alemães	-	este	é	o	apelo	da	terra	da	Rússia.	Não
hesitem.	Não	parem.	Matem."[17]
Estima-se	que	mais	de	2	milhões	de	civis	alemães	foram	assassinados	ou	morreram	de	inanição,	de
frio	ou	por	conta	das	terríveis	dificuldades	por	que	passaram	em	1945	e	nos	cinco	primeiros	anos	depois
que	a	paz	foi	declarada.
Ódio	contra	islâmicos	-	em	nome	de	Jesus
	
Em	 suas	 atividades	 comerciais	 e	 militares,	 vários	 membros	 da	 família	 Hudail,	 dona	 de	 imensa
propriedade	 com	 cerca	 de	 dois	 mil	 camponeses	 nos	 arredores	 de	 Curtuba,	 deslocam-se
continuamente	por	outras	centenárias	cidades	islâmicas,	como	Ixbilia,	Toletude	e	Garnata.	De	que
país	 estamos	 falando?	 Espanha.	 Sim,	 aqueles	 são	 os	 nomes	 originais	 das	 cidades	 fundadas	 pelos
árabes	 no	 sul	 da	 Espanha,	 onde	 nada	 havia,	 a	 não	 ser	 florestas	 e	 montanhas.	 São	 elas
respectivamente	Córdoba,	Sevilha,	Toledo	e	Granada.	Este	é	o	contexto	histórico	em	que	Tariq	Ali
apresenta	 um	 rico	 cenário	 multicultural	 composto	 pelos	 costumes	 de	 cristãos,	 mouros	 e	 judeus.
Granada	foi	palco	do	último	episódio	da	longa	Guerra	de	Reconquista,	pela	qual	os	cristãos	ibéricos
completam	seu	domínio	político	sobre	a	Espanha,	derrubando	o	poderio	dos	mouros,	que	ali	viviam
desde	o	século	VIII.
Mas	a	vitória	da	rainha	Isabel,	em	1492,	foi	selada	por	um	acordo	de	rendição	que	permitia	sob	o
comando	do	novo	governo	católico	a	preservação	dos	costumes	e	tradições	da	população	islâmica.	Nove
anos	depois,	no	entanto,	o	cardeal	Jimenez	de	Cisneros	ordena	a	incineração	pública	de	todos	os	livros
escritos	em	árabe.	Da	imensa	fogueira	só	escaparam	uns	300	manuscritos	de	medicina	–	a	mais	avançada
da	época	–	devido	aos	desesperados	pedidos	de	médicos	e	intelectuais	cristãos.
“Sombras	 da	 Romãzeira”	 (Editora	 Record,	 2006),	 primeiro	 livro	 da	 série	 intitulada	 Quinteto
Islâmico,	de	Tarik	Ali,	inicia-se	justamente	pela	fogueira	do	fanatismo	católico	contra	a	sabedoria	árabe.
Mas	haveria	mais:	em	1502,	os	reis	católicos	desprezaram	o	acordo	inicial	e	assinaram	um	decreto	de
conversão	que	impedia	a	prática	e	os	hábitos	da	religião	muçulmana	(culto	e	idioma	incluídos),	apagandoda	 história	 o	 longo	 período	 de	 convívio	 pacífico	 entre	 as	 três	 religiões	 derivadas	 das	 pregações	 de
Abraão.		Nunca	é	demais	relembrar	que	este	profeta	do	Corão	e	patriarca	do	Antigo	Testamento	(sagrado
para	cristãos	e	judeus)	deu	origem	aos	povos	do	deserto	(árabes),	quando	expulsa	Ismael	e	sua	mãe	Agar,
antes	de	Sara	conceber	Isaque.
Tariq	Ali,	reconhecido	intelectual	islâmico,	explica	por	que	escolheu	um	cenário	histórico	para	seu
livro:	 "Muito	 já	 foi	 escrito	 sobre	 o	 tratamento	 doentio	 contra	 os	 judeus	 em	 diversos	 períodos	 da
civilização,	mas	a	fé	dos	muçulmanos	permanece	escondida	na	história."[18]
Escritor	e	cineasta,	Tariq	Ali	nasceu	no	Paquistão	e	fez	seus	estudos	superiores	na	Universidade	de
Oxford,	na	Inglaterra.	Escreveu	vários	livros	sobre	história	e	política	internacional,	além	de	biografias,
entre	eles,	The	Nehrus	and	the	Gandhis,	Can	Pakistan	Survive?	e	Streetfighting	Years.	Este	volume	do
Quinteto	traz	uma	revelação	surpreendente	no	último	capítulo	–	que	não	será	aqui	desvendada	para	não
privar	o	 leitor	do	prazer	de	sua	própria	descoberta.	No	entanto,	 lá	vai	uma	pista.	 	A	biografia	de	uma
figura	 de	 triste	 lembrança	 para	 os	 povos	 pré-colombianos	 passa,	 na	 adolescência,	 por	 um	 episódio
sombrio	e	cruel	da	perseguição	católica	contra	os	mouros.	Afinal,	mouros	e	astecas	têm	mais	em	comum
do	que	se	imagina.	Confira.
Ódio	contra	negros	–	diáspora	africana,	origem	do	Brasil
	
Um	em	cada	cinco	escravos	não	sobrevivia	à	viagem.	Mortos,	 famintos	e	doentes	se	amontoavam
nos	porões	fétidos	e	escuros.	Os	que	desembarcavam	não	sobreviviam	mais	do	que	sete	anos.	Em
média,	um	engenho	“gastava”	duzentos	 escravos	por	ano,	 logo	repostos	pelos	negreiros.	Ao	 todo
foram	pelo	menos	seis	milhões	trazidos	para	o	Brasil,	em	trezentos	anos	de	escravidão,	o	que	fez	de
nosso	 país	 a	 maior	 nação	 escravista	 do	 mundo.	 Hoje	 todos	 os	 brasileiros	 negros	 e	 mulatos	 são
descendentes	dos	sobreviventes	da	diáspora	africana.
Em	Um	 defeito	 de	 cor	 (Record,	 2007),	 sem	 dúvida	 um	 dos	 melhores	 romances	 da	 literatura
brasileira	contemporânea,	a	jovem	escritora	Ana	Maria	Gonçalves	(1970	-)	recorre	à	bibliografia	mais
recente	sobre	a	escravidão	negra	no	século	XIX	para	criar	uma	narrativa	envolvente	e	de	profunda	carga
emocional.	O	 leitor	 se	 renderá	aos	encantos	da	história	da	pequena	Kehinde,	nascida	no	Daomé	 (hoje
Benin)	 e	 arrastada	 ao	 Brasil	 como	 escrava	 quando	 ainda	 não	 tinha	 completado	 sete	 anos	 de	 idade.
Rebatizada	Luísa	Gama,	Kehinde	é	na	verdade	uma	espécie	de	personagem	síntese	de	muitas	trajetórias
pessoais,	todas	capazes	de	tocar	profundamente	o	leitor.	Kehinde	encarna	principalmente	a	trajetória	de
Luíza	Mahin,	mãe	do	poeta	e	advogado	abolicionista	Luis	Gama	(1830-1882)
O	 livro	 segue	 um	 roteiro	 ao	mesmo	 tempo	 geográfico	 e	 histórico.	 Inicia-se	 em	 1817,	 ainda	 em
terras	 africanas,	 em	meio	 a	 conflitos	 entre	monarquias	 negras,	 nos	 quais	 a	mãe	 e	 o	 irmão	de	Kehinde
foram	mortos.	 Fugiu	 para	 a	 cidade	 de	Uidá,	 no	 litoral	 de	Benin,	 onde	 foi	 embarcada	 rumo	 ao	Brasil,
juntamente	 com	 a	 irmã	 gêmea	 e	 a	 avó.	 A	 trágica	 travessia	 do	 Atlântico	 é	 marcada	 por	 todo	 tipo	 de
crueldade	e	violência,	levando	à	morte	a	irmã	e	também	a	avó:
														“Eu	tentava	imaginar	outras	coisas	para	esquecer	a	vontade	de	fazer	xixi,	até	que	a	Taiwo
reclamou	novamente	e	a	Tanisha	disse	à	minha	avó	que	ela	teria	que	fazer	ali	mesmo,	deitada.	A	minha
avó	 então	 rasgou	 um	 pedaço	 da	 roupa	 e	 o	 deu	 à	 Taiwo,	 para	 que	 se	 enxugasse	 depois,	 tomando
cuidado	para	o	 xixi	 não	escorrer	 e	molhar	a	 cabeça	do	homem	que	estava	deitado	aos	 seus	pés.	O
homem	não	reclamou	e	nem	se	mexeu,	então	eu	disse	que	queria	fazer	também.	Estava	acostumada	a
fazer	xixi	em	qualquer	lugar	até	mesmo	no	meio	da	rua,	mas	fechada	naquele	porão	era	muito	difícil.
Principalmente	por	saber	que,	ao	ouvir	o	barulho	ou	sentir	o	cheiro,	alguém	mais	poderia	ficar	com
vontade	 e	 fazer	 também,	 aumentando	 o	 ranço	 daquele	 lugar.	 Tive	 nojo	 quando	 peguei	 o	 pano	 já
molhado	com	o	xixi	da	Taiwo	e	quis	desistir,	mas	não	consegui	segurar.	Senti	o	xixi	escorrendo	por
entre	as	pernas	e	apertei	o	máximo	que	pude	uma	contra	a	outra,	para	que	não	escorresse	muito	longe
e	não	molhasse	mais	o	meu	vestido,	que	ainda	estava	úmido	da	água	do	mar.	As	pessoas	enjoaram,
inclusive	 nós,	 que	 vomitamos	 o	 que	 não	 tínhamos	 no	 estômago,	 pois	 não	 comíamos	 desde	 o	 dia	 da
partida,	colocando	boca	afora	apenas	o	cheiro	azedo	que	foi	tomando	conta	de	tudo”[19]
Sozinha,	 Kehinde	 	 foi	 desembarcada	 na	 Ilha	 dos	 Frades,	 antes	 de	 ir	 à	 venda	 no	 mercado	 de
escravos	de	Salvador.	Passa	o	que	lhe	resta	da	infância	e	a	adolescência	num	dos	grandes	engenhos	da
Ilha	de	Itaparica.	Nas	primeiras	semanas	aprende	a	falar	o	português	e	acompanha	a	sinhazinha	nas	aulas
de	alfabetização.	É	uma	espécie	de	boneca	viva	da	filha	do	sinhô	José	Carlos	Gama.	Rebatizada,	Keinde
passa	 a	 ser	 Luísa	 Gama	 e	 dorme	 na	 Senzala	 pequena,	 reservada	 aos	 escravos	 da	 cozinha	 e	 da	 Casa
Grande.	 Mas	 é	 lá	 que	 presencia	 a	 vingança	 da	 sinhá,	 Dona	 Felipa,	 que	 manda	 imobilizar	 a	 escrava
Verenciana,	grávida	de	um	filho	do	sinhô,	para	então	arrancar-lhe	os	globos	oculares,	servidos	mais	tarde
ao	marido	em	um	pote	de	geleia.
Logo	 ela	 própria	 chama	 a	 atenção	 do	 sinhô	 e	 não	 consegue	 fugir	 ao	 destino	 das	moças	 negras,
reservadas	à	tara	dos	senhores	de	engenho.	Ocorre	porém,	que	ela	estava	namorando	o	negro	Lourenço,
em	 breves	 fugas	 ao	 matagal,	 com	 direito	 a	 maconha	 e	 cachaça.	 Lourenço	 trabalhava	 diretamente	 na
produção	do	açúcar,	segundo	uma	rígida	rotina.	Ao	se	dar	conta	de	que	poderia	perder	a	primazia	sobre	a
virgindade	de	sua	escrava,	o	sinhô	aplica	um	castigo	monstruoso	aos	dois.	Com	a	ajuda	de	alguns	dos
seus	capangas,	o	senhor	José	Carlos	Gama	estupra	Kehinde	e	também	o	negro	Lourenço,	que	em	seguida
é	 castrado	 com	 ferro	 em	 brasa.	 Misteriosamente,	 o	 sinhô	 é	 atingido	 por	 uma	 doença	 desconhecida,
definha	lentamente	e	morre.	A	sinhá	vende	o	engenho	e	se	muda	para	Salvador.
Lá	 Kehinde	 é	 alugada	 a	 uma	 família	 de	 ingleses,	 trabalha	 na	 rua	 como	 “escrava	 de	 ganho”	 e
adquire	 conhecimentos	 valiosos	 sobre	 culinária	 e	 comércio	 de	 alimentos.	 Aos	 vinte	 anos	 de	 idade
consegue	 comprar	 a	 alforria	 e	 monta	 uma	 padaria	 com	 seu	 novo	 namorado,	 Alberto,	 um	 português
acostumado	ao	jogo,	com	quem	tem	um	filho.	Junto	com	Alberto	enfrenta	a	onda	de	revoltas	antilusitanas
de	1831,	a	rebelião	mata-marotos,	as	revoltas	federalistas	do	período	da	abdicação	de	Dom	Pedro	I,	bem
como	 o	 clima	 de	 caça	 aos	 negros	 fugitivos	 ocorrida	 neste	 mesmo	 contexto.	 Além	 disto,	 participa
secretamente	da	revolta	dos	negros	muçulmanos	de	Salvador,	os	malês.
Então	vem	a	tragédia	central	do	romance:	endividado,	Alberto	vende	o	próprio	filho	como	escravo
e	desaparece,	o	que	de	 fato	ocorreu	na	 infância	do	 líder	abolicionista	Luis	Gama.	Kehinde	 inicia	 uma
longa	jornada	em	busca	do	filho.	Vai	ao	Rio	de	Janeiro,	onde	se	surpreende	com	a	diferença	dos	negros
de	 lá.	Vai	a	Santos,	São	Paulo	e	Campinas	e	finalmente	volta	a	Salvador.	Desiludida,	decide	refazer	a
vida	 na	 África	 e	 consegue	 realizar	 a	 viagem	 de	 retorno.	 Kehinde	 chega	 a	 residir	 em	 um	 bairro	 de
“retornados”	em	Lagos,	na	Nigéria,	hoje	chamado	Brazilian	Quartier,	um	local	formado	por	ex-escravos	
que	fizeram	a	viagem	de	volta	à	África.	Kehinde	tem	dois	filhos	com	o	namorado	inglês.	Os	dois	filhos
africanos	vão	estudar	na	França.	Mas	jamais	reencontra	o	primeiro	filho,	nascido	no	Brasil.
	
	
Ódio	contra	negros	–	Moçambique	-	o	apartheid	português
	
O	médico	José	Branco	não	tinha	a	menor	 ideia	do	que	estava	 fazendo,	quando	pegou	o	navio	em
Lisboa,	 logo	após	seu	casamento,	em	direção	à	então	cidade	de	Lourenço	Marques,	hoje	Maputo.
Era	um	homem	idealista	e	corajoso,	mas	dizia-se	apolítico.	Dedicou	sua	vidaa	um	projeto	inédito:
criou	o	primeiro	serviço	médico	aéreo	em	Moçambique,	pelo	qual	atendia	milhares	de	pessoas	que
sofriam	 de	 doenças	 crônicas.	 Aos	 poucos	 foi	 se	 irritando	 com	 o	 racismo	 da	 administração
portuguesa,	 que	 não	 tolerava	 negros	 com	 diploma	 universitário	 e	 não	 permitia	 tratamento
igualitário	entre	pacientes	negros	e	brancos.	José	Branco	era	mesmo	branco,	mas	 foi	 classificado
como	 perigoso	 pela	 polícia	 portuguesa,	 que	 chegou	 a	 transferi-lo	 para	 o	 norte	 da	 colônia,	 como
retaliação	ao	seu	comportamento	amistoso	com	os	negros.	O	chefe	da	polícia	havia	lhe	advertido:
"não	podemos	dar	cultura	em	demasia	aos	negros".
O	moçambicano	José	Rodrigues	dos	Santos,	escritor,	 jornalista	e	o	mais	famoso	apresentador	da
TV	 estatal	 de	 Portugal,	 relata	 em	 "O	 Anjo	 Branco"	 (Editora	 Gradiva,	 Lisboa,	 2011)	 a	 experiência
verídica	 do	 médico	 português	 que	 escolheu	 Moçambique	 como	 local	 de	 trabalho,	 nos	 anos	 70,	 sem
qualquer	informação	ou	preocupação	sobre	o	cenário	político	daquele	momento.
Desde	final	dos	anos	60	as	colônias	portuguesas	na	África	lutavam	pela	sua	independência,	sob	a
liderança	de	guerrilhas	de	inspiração	comunista:	Amílcar	Cabral	em	Guiné-Bissau;	Agostinho	Neto	em
Angola;	Eduardo	Mondlane	e	Samora	Machel	em	Moçambique.	Na	conjuntura	pós	Segunda	Guerra	todo	o
continente	 africano	 fervilhava,	 devido	 aos	 conflitos	 pela	 destruição	 do	 longo	 e	 nefasto	 colonialismo
europeu.	França	perdeu	a	Argélia,	Marrocos	e	Nigéria.	Inglaterra	perdeu	Egito	e	África	do	Sul,	mas	ali
se	 instalou	 um	 regime	 abertamente	 racista	 que	 seria	 destruído	 pela	 guerrilha	 de	 Mandela.	 Havia	 um
elemento	 agravante	 no	 caso	 português,	 uma	 vez	 que	 a	 ditadura	 salazarista,	 de	 inspiração	 nazista,
sobreviveu	à	Guerra	e	ao	próprio	Salazar	(1889-1970)	até	a	data	de	1974,	quando	caem	quase	ao	mesmo
tempo	o	colonialismo	e	o	fascismo	de	Portugal.
O	 romance	 não	 faz	 qualquer	 referência	 a	 este	 capítulo	 da	Guerra	 Fria	 em	 solo	 africano,	 o	 que
possivelmente	contribui	para	a	cadência	agradável	da	narrativa,	mas	 talvez	 isso	 torne	 tudo	ainda	mais
assustador	ao	 leitor,	quando	se	depara	com	a	frieza	e	a	crueldade	das	 tropas	especiais	portuguesas,	os
chamados	“comandos”	da	DSG,	em	suas	andanças	pelas	aldeias	à	caça	de	“turras”,	os	guerrilheiros.	A
experiência	 mais	 dolorosa	 de	 José	 Branco	 foi	 o	 Massacre	 de	Wiriyanu,	 ocorrido	 de	 fato	 em	 16	 de
dezembro	de	1972.	Não	esteve	no	 local	do	massacre,	mas	 recebeu	no	seu	modesto	hospital	os	poucos
sobreviventes	e	visitou	a	aldeia	destruída	pelos	"comandos"	portugueses.	Mas	o	padre	católico	Adrian
Hastings	(1929	–	2001)	esteve	e	denunciou	o	massacre	ao	jornal	britânico	The	Times	em	1972,	a	fonte
assumida	pelo	autor	de	“O	Anjo	Branco".
A	descrição	do	Massacre,	sustentada	na	reportagem	acima	citada,	fará	o	leitor	se	lembrar	do	filme
“Platoon”,	 na	 cena	 em	 que	 as	 tropas	 dos	 EUA	 vasculham	 uma	 aldeia	 de	 vietnamitas	 à	 procura	 dos
vietcongues.	 Também	 trará	 à	 lembrança	 muitas	 passagens	 já	 abordadas	 neste	 capítulo.	 As	 tropas
portuguesas	abordam	a	aldeia	de	Wirijanu	em	16	de	dezembro	de	1972	com	5	helicópteros:	 traçam	um
perímetro,	metralham	os	que	tentam	escapar	e	silenciam	a	multidão	de	nativos,	agachados	no	centro	das
palhoças:
"Tu	aí,	levanta-te!"	Uma	mulher	com	uma	criança	de	nove	meses	ao	colo	ficou	com	a	impressão	de	que
o	 dedo	 a	 identificava	 e	 ainda	 olhou	 em	 redor,	 na	 esperança	 de	 que	 fosse	 outra	 a	 interpelada,	mas
como	ninguém	se	acusou	teve	de	se	render	à	evidência.
"Eu,	patrão?"
"lá,	tu.	Põe-te	em	pé!"
A	mulher	ajeitou	o	filho	ao	colo,	acomodando-o	na	capulana	azul	e	dourada,	e	levantou-se.	Quando
olhou	na	direcção	do	homem	da	DGS	viu	que	ele	lhe	apontava	uma	espingarda	automática.	Crack!.	A
mulher	tombou	com	um	buraco	a	meio	da	testa.	A	criança	desenvencilhou-se	da	capulana	e	sentou-se
ao	lado	do	cadáver	da	mãe	a	chorar	convulsivamente.	O	ranho	escorria-lhe	das	narinas	para	o	lábio
superior	e	para	dentro	da	boca.	A	multidão	mostrava-se	atordoada	e	ninguém	se	atreveu	a	levantar-se
para	ir	buscar	a	criança.	O	choro	desconsolado	encheu	a	clareira."[20]
Antes	de	partir	para	cima	do	grupo	de	mulheres,	o	chefe	dos	comandos	especiais	-		a	tropa	de	elite
portuguesa	-	 	 já	havia	interrogado	e	matado	vários	homens	da	aldeia,	com	requintes	de	sadismo	(como
pisotear	 o	 corpo	 estendido	 no	 chão	 até	 a	morte).	Após	 a	 cena	 acima,	 a	DGS	 resolve	 ganhar	 tempo	 e
agrupa	centenas	de	aldeões	dentro	das	palhoças,	nas	quais	jogam	granadas	em	seguida:
“Num	movimento	 sincronizado,	 tiraram	as	cavilhas	das	granadas,	abriram	uma	 frecha	nas	portas	e
lançaram	 os	 explosivos	 lá	 para	 dentro.	 Depois	 trancaram	 as	 portas	 e	 afastaram-se.	 As	 explosões
sucederam-se	quase	em	simultâneo,	irrompendo	pelas	cubatas	como	uma	reacção	em	cadeia.	Quando
o	 saracoteado	 de	 detonações	 terminou,	 fez-se	 silêncio	 na	 aldeia.	 As	 palhotas	 fumegavam	 e	 o	 ar
cheirava	 a	 pólvora.	 Os	 soldados	 abriram	 as	 portas	 destroçadas	 e	 viram	 os	 corpos	 mutilados	 e
espalhados	 pelo	 solo,	 o	 sangue	 escarrapachado	 contra	 a	 palha.	 Cada	 comando	 inspeccionou	 uma
palhota.	Ao	penetrar	na	sua,	Angelino	ouviu	um	gemido,	identificou	o	sobrevivente	e	viu	que	era	uma
mulher	gravemente	ferida.	Sem	hesitar,	apontou-lhe	a	G3	à	cabeça	e	premiu	o	gatilho.	Ouviam-se	tiros
ocasionais	por	toda	a	aldeia;	um	disparo	numa	palhota	e	outro	noutra”	[21]
Durante	 a	Guerra	Colonial	morrem	10.000	moçambicanos	 e	 3500	 soldados	 portugueses,	 um	dos
fatores	da	queda	do	regime	fascista	de	Lisboa	em	1974.
Ódio	contra	armênios	-	a	herança	do	ódio	tem	fim
	
Com	apenas	21	anos,	Armonoush	resolve	viajar	às	escondidas	para	Istambul	e	investigar	as	raízes
de	sua	família	que	agora	mora	em	San	Francisco,	Califórnia.	O	encontro	inesperado	das	duas	jovens
cristaliza	um	encontro	de	duas	culturas.	Asya	Karanci	 é	 turca.	Armonoush	é	armênia.	Mas	o	que
realmente	significa	isto	para	duas	pessoas	que	têm	toda	a	vida	pela	frente	e	um	passado	remoto	e
trágico?	Somos	portadores	das	injustiças	cometidas	pelos	antepassados?
Ler	"De	 volta	 a	 Istambul"	 (2007),	 de	Elif	Shafak,	 é	 ao	mesmo	 tempo	 uma	 viagem	 ao	 histórico
conflito	entre	turcos	e	armênios,	e	um	vislumbre	de	uma	possível	solução	para	todos	os	conflitos	raciais
e	religiosos	que	dilaceram	o	mundo	por	séculos.	Longe	de	ser	um	relato	panfletário,	a	autora	oferece	uma
reconstrução	de	paisagens	fascinantes	da	cidade	atual	de	Istambul,	de	sua	agitada	e	caótica	vida	urbana	e
de	uma	certa	mescla	de	odores,	 temperos	e	sabores	que	fazem	do	romance	uma	leitura	multissensorial,
antes	mesmo	de	ser	multiétnica.
Trata-se	 de	 um	 grande	 diálogo	 que	 se	 estabelece	 entre	 duas	 adolescentes	 aproximadas	 pelos
caprichos	 do	 destino.	 Na	 Turquia	 a	 jovem	Asya	Karanci	 mora	 com	 três	 tias	 e	 a	 mãe,	 tão	 rebelde	 e
desbocada	 quanto	 a	 filha.	Há	 um	 tio	 que	muito	 cedo	migrou	 para	 os	 EUA	 e	 teve	 uma	 filha	 com	 uma
americana.	Ela	se	chama	Armonoush,	o	mesmo	nome	de	sua	avó,	uma	sobrevivente	do	genocídio	armênio
de	1915.
Os	armênios	faziam	parte	do	vasto	mosaico	cultural	que	existiu	no	secular	Império	Otomano,	entre
os	séculos	XIII	e	XX.	Istambul	foi	a	capital	deste	império	islâmico	que	começa	a	entrar	em	decadência
no	final	do	século	XIX	e	a	viver	a	lenta	desagregação	de	partes	de	seu	território	nos	Bálcans	em	meados
do	século	XIX,	perdendo	a	Grécia,	Bulgária	e	Iugoslávia.	O	Império	Otomano	foi	aliado	da	Alemanha	na
Primeira	 Guerra	 Mundial	 e,	 uma	 vez	 derrotado,	 foi	 esfacelado	 pela	 Inglaterra	 e	 pela	 França,	 dando
origem	à	Turquia	 (que	 resistiu	 ao	 domínio	 da	Entente),	Líbano,	Síria,	 Irã,	 Iraque	 e	 Jordânia.	Mas	 aos
curdos	e	armênios	não	foi	concedido	este	direito.	A	Armênia	só	se	tornaria	independente	em	1991,	após
o	colapso	da	URSS.
Ao	 final	da	Primeira	Guerra	ocorre	o	massacre	armênio	perpetrado	pelo	governo	da	Turquia,	 já
independente	 do	 Império	 Otomano.	 Na	 noite	 de	 24	 de	 abrilde	 1915	 foram	 aprisionados	 em
Constantinopla	mais	de	seiscentos	intelectuais,	políticos,	escritores,	religiosos	e	profissionais	armênios,
que	foram	levados	a	força	ao	interior	do	país	e	selvagemente	assassinados.	Depois	de	privar	o	povo	de
seus	dirigentes,	começou	a	deportação	e	o	massacre	dos	armênios	que	habitavam	os	territórios	asiáticos
do	 Império.	Segundo	documentos	encontrados	pelo	exército	britânico	em	Alepo,	o	massacre	 teria	 sido
planejado	 pelos	 dirigentes	 do	 governo	 turco,	 liderados	 pelo	 movimento	 Jovens	 Turcos.	 As	 cifras	 de
mortos	 variam	 entre	 centenas	 de	milhares	 a	 um	 1,5	milhão	 de	 vítimas,	 entre	 1915	 e	 1922.	Não	 foi	 o
Império	 Otomano	 o	 organizador	 do	 massacre,	 mas	 uma	 oposição	 turca	 ao	 Império,	 que	 chegou	 à
independência	da	Turquia	em	1923.	O	líder	dos	Jovens	Turcos	foi	Kemal	Atatürk,	 	primeiro	presidente
da	República	 turca.	Hoje	é	proibido	na	Turquia	fazer	referência	ao	genocídio,	ao	passo	que	em	alguns
países	 como	 a	 França	 e	 EUA	 já	 foram	 votadas	 medidas	 de	 condenação	 ao	 genocídio	 e	 de	 seu
reconhecimento	pelos	turcos.
Voltemos	ao	romance.	No	início,	Armonoush	parecia	buscar	uma	espécie	de	acerto	de	contas,	em
nome	de	sua	avó	e	de	todos	os	armênios,	mas	encontrou	algo	diferente,	intrigante	e	desafiador.	Depois	da
longa	viagem	transoceânica,	reuniu	as	mulheres	turcas	da	família	na	sala	e	fez	questão	de	lembrar	a	todos
a	história	do	genocídio	armênio:
“Intrigada,	Armanoush	olhou-as	uma	a	uma.	Estava	aliviada	ao	ver	que	a	família	não	recebera
tão	mal	a	história	como	 temia,	mas	 também	não	sabia	se	a	 tinham	realmente	recebido.	Na	verdade,
elas	não	tinham	se	recusado	a	acreditar	nem	contra-argumentaram.	Limitaram-se	a	ouvir	atentamente
e	 todas	 pareciam	 lamentar.	 Mas	 qual	 seria	 o	 limite	 de	 sua	 comiseração?	 E	 o	 que	 exatamente	 ela
estava	esperando?	Armanoush	sentiu-se	levemente	desconcertada	ao	imaginar	se	teria	sido	diferente
se	estivesse	conversando	com	um	grupo	de	intelectuais.	Lentamente,	ocorreu-lhe	que	talvez	esperasse
uma	admissão	de	culpa,	se	não	um	pedido	de	desculpas.	E	mesmo	assim	as	desculpas	não	vieram;	não
porque	 não	 lamentassem	 por	 ela,	 pois	 aparentemente	 lamentavam,	 mas	 porque	 não	 tinham	 feito
nenhuma	 ligação	 entre	 si	 mesmas	 e	 os	 perpetradores	 dos	 crimes.	 Como	 armênia,	 Armanoush
encarnava	os	espíritos	de	gerações	e	gerações	anteriores	de	seu	povo,	enquanto	o	turco	comum	não
tinha	essa	noção	de	continuidade	em	relação	a	 seus	ancestrais.	Os	armênios	e	os	 turcos	viviam	em
diferentes	estruturas	de	tempo.	Para	os	armênios,	o	tempo	era	um	ciclo	no	qual	o	passado	encarnava-
se	no	presente	e	o	presente	dava	nascimento	ao	futuro.	Para	os	turcos,	o	tempo	era	uma	linha	mista	de
formações	ancestrais,	onde	o	passado	terminava	em	algum	ponto	definido	e	o	presente	começava	de
novo	do	zero,	havendo	apenas	uma	ruptura	entre	os	dois”[22]
Imagine,	 o	 leitor,	 só	 por	 um	momento,	 se	 pudéssemos	 aplicar	 o	 raciocínio	 a	 todos	 os	 conflitos
étnicos	e	religiosos.	Se	uma	criança	não	tem	a	culpa	do	pai,	muito	menos	do	bisavô,	o	que	faz	o	agressor
acreditar	que	ela	 tem	sim	a	culpa	e	merece	desde	 já	pagar,	e	pagar	caro?	Poderão	viver	em	harmonia,
amar	e	 serem	amados,	os	herdeiros	de	agressores	e	agredidos	das	 tragédias	de	outrora?	Por	ora,	vale
frisar	a	importante	contribuição	da	autora	ao	ousar	romper	as	amarras	do	ódio.	Mas	não	foi	assim	que	seu
livro	 foi	 recebido.	 Elif	 Shafak	 nasceu	 na	 França	 e	 viveu	 na	 Turquia.	 Hoje	 é	 professora	 de	 relações
internacionais	na	Universidade	do	Arizona.		Ela	foi	julgada	pelos	turcos	e	enquadrada	no	artigo	301	do
código	civil	da	Turquia,	por	denegrir	a	imagem	do	país.	Também	foi	levada	a	julgamento	pelos	armênios,
que	não	suportaram	as	palavras	de	alguns	personagens	armênios	do	livro.
A	guerra	de	Picasso	-	cubismo	neoclássico	e	psicológico
	
Imagem:	“Guernica”	(1937)	Picasso
	
Voltemos	 aos	 anos	 30,	 época	 em	 que	 o	 mundo	 parecia	 já	 ter	 esquecido	 a	 tragédia	 da	 Primeira
Guerra	para	se	lançar	raivosamente	na	Segunda	Guerra	Mundial.	A	Espanha	de	Picasso	era	o	palco
de	uma	espécie	de	partida	preliminar	do	conflito	que	arrastaria	todo	o	planeta	a	mais	um	vale	de
lágrimas.	 Num	 mundo	 polarizado	 entre	 nazismo	 e	 comunismo	 (no	 Brasil	 representados	 pelos
fascistas	de	Plínio	Salgado	e	pelo	PCB	de	Prestes),	o	governo	esquerdista	espanhol,	legitimamente
eleito,	 apoiado	 pela	União	 Soviética,	 enfrentava	 uma	 guerra	 civil	 contra	 os	 falangistas,	 apoiados
pela	Alemanha.
	
Em	 26	 de	 abril	 de	 1937	 a	 poderosa	 aviação	 alemã,	 a	 Legião	 Condor,	 bombardeava	 a	 pequena
cidade	de	Guernica,	 no	 norte	 do	 país,	 deixando	 um	 saldo	 de	 quase	 2000	 vítimas	 civis,	 entre	 homens,
mulheres,	idosos	e	crianças.	O	mundo	ficou	perplexo	com	o	relato	de	uma	testemunha	ocular	publicado
dois	dias	depois	 simultaneamente	no	Times	 (Londres)	e	no	New	York	Times	 (EUA).	Picasso,	 pintor	 já
consagrado,	estava	trabalhando	em	Paris,	justamente	numa	encomenda	que	o	governo	espanhol	lhe	fizera
em	 janeiro	para	 a	Exposição	 Internacional	da	 capital	 francesa,	que	ocorreria	 em	 julho	do	mesmo	ano.
Picasso	 só	 leu	 a	matéria	 em	 02	 de	maio	 e	 então	mudou	 os	 planos	 e	 dedicou	 a	 encomenda	 oficial	 às
vítimas	daquele	massacre	covarde,	bem	ao	estilo	dos	nazistas.
	
Foram	 três	meses	de	 trabalho	 até	 a	 estreia	de	Guernica	 na	 “Exposição	 Internacional	 de	Artes	 e
Técnicas	 Aplicadas	 à	 Vida	 Moderna”	 em	 julho	 de	 1937.	 As	 grandes	 exposições	 internacionais,	 que
aglutinavam	novidades	 tecnológicas	 e	 artísticas,	 já	 tinham	quase	 um	 século	 de	 tradição	no	Ocidente	 e
prestavam-se	 a	 múltiplas	 funções,	 desde	 a	 promoção	 da	 imagem	 moderna	 do	 país	 anfitrião,	 até	 a
aglutinação	ideológica	e	nacionalista	de	cada	nação	que	sediava	o	evento	através	de	grandes	alterações
urbanísticas,	 como	 a	 inauguração	 da	 Torre	 Eiffel	 na	 Exposição	 de	 1889,	 centenário	 da	 Revolução
Francesa.
	
Mas	 em	 1937,	 o	 pavilhão	 da	 Espanha	 não	 era,	 nem	 de	 longe,	 o	mais	 grandioso	 e	 esperado.	 A
Alemanha	de	Hitler	e	a	URSS	de	Stálin	compareceram	com	duas	construções	gigantescas,	ironicamente
colocadas	frente	a	frente	na	margem	direita	do	Sena,	como	dois	pugilistas	que	medem	força	antes	da	luta
(Veja	ao	lado,	a	foto	de	Heirich	Hoffmann,	o	fotógrafo	oficial	de	Hitler).	O	pavilhão	alemão	ostentava
uma	fachada	com	pilastras	dóricas	monumentais	encimadas	por	uma	imensa	águia	com	uma	suástica	nas
garras.	O	pavilhão	soviético	culminava	com	uma	escultura	gigantesca	chamada	“Operário	e	camponesa
de	kolkoz”.
	
Ambas	 as	 criações	 manifestavam	 uma	 inspiração	 clássica,	 assim	 como	 o	 pavilhão	 da	 Itália	 de
Mussolini,	 que	 se	 tornaria	 linha	 auxiliar	 do	 nazismo	na	Segunda	Guerra,	 prestes	 a	 explodir	 dois	 anos
mais	tarde.	O	pavilhão	espanhol	era	bem	mais	modesto,	mas	sua	principal	atração	não	estava	na	fachada,
mas	em	seu	interior,	onde	Guernica	se	apresentava	a	este	mundo	pela	primeira	vez.
	
A	tela	ganhou	vida	própria	com	uma	nítida	identidade	política,	convertendo-se	ao	mesmo	tempo	em
militante	 e	 ícone	 antifascista.	 Antes	 da	 Guerra	 viajou	 pela	 Europa	 e	 EUA	 alertando	 para	 o	 perigo
nazifascista,	 até	 ser	 finalmente	 abrigada	 no	 Museu	 de	 Arte	 Moderna	 de	 Nova	 York.	 Após	 a	 Guerra
viajaria	 em	 protesto	 pelo	 mundo	 afora,	 passando	 por	 Estocolmo,	 Colônia	 e	 São	 Paulo.	 Picasso	 não
http://www.humanarte.net/ira2.html
permitiu	que	a	tela	fosse	para	a	Espanha,	enquanto	não	terminasse	a	ditadura	de	Francisco	Franco,	aliado
de	Hitler	na	Guerra,	que	governou	despoticamente	seu	país	até	1975.	A	tela	só	desembarcaria	na	Espanha
em	 1981	 e	 nem	 poderíamos	 falar	 em	 retorno,	 pois,	 de	 fato,	 ela	 nunca	 estivera	 lá	 antes,	 dada	 a	 sua
condição	de	exilada	e	ativista	política.
	
Em	 1967,	 centenas	 de	 artistas	 assinaram	 uma	 petição	 pública	 dirigida	 a	 Picasso,	 exortando-o	 a
retirar	o	quadro	dos	EUA,	em	protesto	contra	a	 invasão	e	os	massacres	 realizadosno	Vietnã.	Não	era
uma	nação	digna	de	Guernica.		A	tela	era	então	uma	espécie	de	patrimônio	da	humanidade,	muito	além
do	controle	de	seu	próprio	criador.
	
A	fama	de	Guernica	ultrapassa	as	pretensões	e	a	vocação	do	cubismo,	técnica	que	se	ocupa	antes
da	forma	do	que	do	conteúdo,	procurando	experimentações	visuais,	jamais	simbolismos	políticos.	Como
integrante	do	amplo	leque	de	tendências	da	arte	moderna,	de	fins	do	século	XIX	às	primeiras	décadas	do
século	 seguinte,	 o	 cubismo	 compartilha	 a	 ideia	 modernista	 de	 distanciar-se	 da	 realidade	 figurativa,
realista,	para	se	dedicar	a	combinações	deliberadamente	arbitrárias	de	cores,	linhas,	figuras,	gerando	um
novo	equilíbrio	na	composição	final.
	
Assim	vemos	em	Guernica,	concebida	em	preto,	branco	e	cinza,	a	ausência	de	profundidade	e	o
delineamento	esquemático	da	mãe	que	aos	brados	ainda	tem	nos	braços	o	bebê	inerte.		Com	economia	de
traços,	o	autor	instala	neste	canto	da	tela	uma	tensão	entre	as	duas	cabeças,	uma	que	pende	já	desfalecida,
outra	em	direção	oposta,	como	se	quisesse,	mas	não	conseguisse,	separar-se	da	criança.	A	fragmentação
das	figuras	ocupa	toda	a	composição:	braços	e	pernas	mutiladas	tanto	aludem	à	destruição	dos	corpos	no
bombardeio,	 quanto	 à	 técnica	 cubista	de	desmembrar	 tudo	 em	pequenas	peças	 reagrupadas	 a	partir	 de
pontos	de	vista	diferentes,	colocadas	lado	a	lado,	como	podemos	observar	nos	olhos	do	touro.
	
Naqueles	três	meses	de	trabalho,	que	mudariam	a	história	da	arte,	Picasso	vivenciou	um	processo
intenso	 de	 criação,	 ponteado	 por	muitas	 indecisões,	 que	 foram	documentadas	 com	precisão	 por	Carlo
Ginzburg.	Na	antepenúltima	versão	(de	11	de	maio)	ainda	havia	a	 figura	de	um	homem	no	chão	com	o
punho	esquerdo	erguido,	clássica	saudação	comunista,	extirpada	nas	versões	seguintes.	Por	fim,	Picasso
se	decidiu	por	uma	ruptura	com	o	próprio	cubismo	que	professava,	ao	se	servir	do	simbolismo	extraído
da	 cultura	 popular	 das	 touradas,	 aproximando	 o	 agressor	 (o	 touro)	 e	 o	 agredido	 (o	 cavalo),	mas	 sem
qualquer	 referência	 ideológica,	nem	comunista	 e	muito	menos	nazista,	o	que	 resultou	numa	memorável
obra	de	denúncia	da	atrocidade	sem	nomear	o	algoz,	apenas	a	agressão.
	
O	desalento	foi	prontamente	registrado	pelo	eminente	historiador	da	arte	Anthony	Blunt:	“O	gesto	é
bonito,	e	mesmo	útil,	na	medida	em	que	mostra	a	adesão	de	um	eminente	intelectual	espanhol	à	causa
de	 seu	 governo.	 Mas	 a	 pintura	 é	 decepcionante	 (...)	 O	 povo	 espanhol	 ficará	 grato	 pelo	 apoio	 de
Picasso,	mas	não	será	consolado	pela	pintura”[23]
	
Como	Ginzburg	 adverte,	Blunt	 era	 então	 um	 jovem	 historiador	 da	 arte	marxista	 e	mudaria	mais
tarde	sua	avaliação	sobre	a	importância	desta	tela,	talvez	o	primeiro	registro	de	um	bombardeio	aéreo	de
civis.	O	próprio	pintor	também	mudou	de	opinião,	o	que,	de	resto,	é	próprio	dos	que	vivem	intensamente
o	trabalho	que	realiza.
	
Em	1945	Picasso	disse:	"Sim	o	touro	aqui	representa	brutalidade,	o	cavalo	o	povo.	Sim	aqui	usei
simbolismo.	Meu	trabalho	não	é	simbólico.	Somente	o	mural	Guernica	é	simbólico.	Mas	no	caso	do
mural	 isso	é	alegórico.	Essa	é	a	razão	pela	qual	usei	o	cavalo,	o	 touro	e	assim	por	diante.	Não	há
sentido	 deliberado	 de	 propaganda	 em	 minha	 pintura.	 Exceto	 Guernica,	 pois	 ali	 há	 um	 apelo
deliberado	ao	povo,	uma	noção	deliberada	de	propaganda"[24]
	
Dois	 anos	 depois	 (em	 1947,	 portanto)	 Picasso	 dava	 outra	 interpretação:	 "Mas	 este	 touro	 é	 um
touro	e	este	cavalo	é	um	cavalo".	Este	é	um	trecho	de	uma	resposta	mais	longa	que	Ginzburg	optou	por
não	 incluir	 em	 seu	 livro,	 mas	 que	 é	 de	 domínio	 comum	 e	 que	 continua	 assim:	 “se	 você	 der	 um
significado	a	certas	coisas	da	minha	pintura,	isto	pode	ser	verdadeiro,	mas	não	foi	minha	intenção	dar
aquele	 significado.	 São	 ideias	 e	 significados	 que	 obtive	 instintivamente,	 inconscientemente.	Faço	 a
pintura	pela	pintura.	Pinto	os	objetos	pelo	que	eles	são”[25]
	
Claro	que	estas	duas	interpretações	devem	ser	contextualizadas	no	debate	acadêmico	do	período,
em	 que	 disputavam	 espaço	 e	 reconhecimento	 a	 arte	 figurativa,	 a	 arte	 abstrata	 e	 a	 arte	moderna,	 com
direito	a	profissões	de	fé,	manifestos	e	proclamações	de	fidelidade	à	arte	pela	arte	e	não	ao	engajamento
obrigatório	 do	 artista.	 No	mesmo	 período	 o	 Brasil	 também	 vivia	 este	 debate	 em	 que	 se	 digladiavam
portinaristas	e	antiportinaristas.
	
O	comentário	do	historiador	Blunt,	citado	anteriormente,	é	significativo	daqueles	que	hesitaram	em
aceitar	a	arte	moderna,	ou	até	mesmo	a	recusaram	por	completo.	Ginzburg	demonstra,	no	entanto,	que	um
olhar	mais	atencioso	 revelará	um	misto	de	 influências,	 sejam	elas	modernistas,	 sejam	figurativas	e	até
mesmo	clássicas.	A	composição	em	formato	de	friso	grego,	por	exemplo,	atenta	para	sua	fonte	clássica:
	
“a	 composição	 é	 claramente	 dividida	 ao	meio	 e	 as	metades	 são	 cortadas	 por	 diagonais	 que,
juntas,	 formam	 um	 evidente	 triângulo	 em	 forma	 de	 empena	 –	 começa	 na	 mão	 à	 esquerda,	 o	 pé	 à
direita,	e	culmina	no	alto	da	lâmpada	no	centro	–	um	triângulo	que	sugere	a	composição	de	frontão	de
um	templo	grego”[26]
	
O	frontão	é	marca	registrada	dos	 templos	da	Grécia	Clássica,	como	no	Partenon.	São	formações
triangulares	que	constituem	o	 teto	das	 fachadas	e	em	geral	exibem	esculturas	que	narram	uma	história,
uma	batalha,	em	sentido	horizontal.	Picasso	teria	acoplado	o	frontão	dentro	do	friso	retangular,	também
um	recurso	narrativo	da	arte	greco-romana,	para	contar	a	história	do	bombardeio	na	pequena	Guernica,
mas	à	moda	cubista.	O	resultado	final	foi	definido	com	bom	humor	pelo	historiador	Clement	Greenberg:
“uma	 cena	 de	 batalha	 de	 um	 frontão	 grego	 que	 foi	 achatado	 por	 um	 rolo	 compressor	 a	 vapor
defeituoso”[27].
	
Na	mescla	de	fontes	iconográficas,	além	do	rolo	compressor	cubista	(isto	é,	da	falta	deliberada	de
profundidade),	 Picasso	 recorre	 também	 a	 suas	 próprias	 criações	 anteriores,	 repaginando-as.	Ginzburg
demonstra	 que	 a	 tela	 de	1922	“Estudo	 com	cabeça	de	gesso”	 é	 uma	antecipação	de	Guernica	 pois	 o
busto	 de	 gesso	 se	 tornou	 um	 guerreiro	 com	 elmo,	 a	 mão	 de	 gesso	 segurando	 um	 bastão	 ou	 cetro	 se
transformou	 numa	mão	 segurando	 uma	 espada	 quebrada,	 o	 livro	 ou	 jornal	 foi	 projetado	 no	 corpo	 do
cavalo.
	
A	tela	extrapolou	a	conjuntura	dos	anos	30,	mesmo	com	toda	a	temperatura	altíssima	causada	pela
Guerra	 Civil	 Espanhola,	 para	 alcançar	 uma	 linguagem	 atemporal,	 contra	 não	 apenas	 o	 fascismo,	mas
contra	todas	as	formas	de	brutalidade,	através	de	um	recurso	psicológico	sutil	e	muito	profundo.	Trata-se
da	 sedução	 pela	 exposição	 da	 morte,	 da	 tragédia	 em	 geral,	 não	 apenas	 aquela	 ligada	 aos	 fatos
incandescentes	 do	momento.	Daí	 a	 opção	 difícil	 de	 não	 registrar	 qualquer	 símbolo	 fascista	 e	 a	 opção
mais	difícil	 ainda	de	eliminar	a	última	 referência	à	esquerda	comunista,	 extirpada,	 como	dissemos,	na
antepenúltima	versão	que	o	pintor	experimentava	naqueles	derradeiros	três	meses.
	
Agora	podemos	perceber	que	a	tela	Guernica	apropria-se	do	tema	do	terror	e	da	tragédia	de	forma
muito	 semelhante	 do	 que	 encontramos	 antes	 nos	Desastres	 da	 Guerra,	 de	 Francisco	 Goya.	 Os	 dois
mestres	 espanhóis	 captaram	 as	 sutilezas	 do	 poderoso	 sentimento	 do	 terror	 causado	 pelas	 respectivas
guerras	que	retrataram.	Goya	o	faz	na	retórica	do	romantismo	do	século	XIX,	deliberadamente	em	busca
do	irracional,	ao	passo	que	Picasso	se	serve	da	gramática	cubista,	o	que	mostrou	muito	apropriado	para
abordar	 o	 despedaçamento	 da	 humanidade.	 Para	 tanto,	 ambos	 tiveram	 a	 capacidade	 de	 extrapolar	 o
próprio	 tempo	 e	 alcançar	 a	 dimensão	 universal	 da	 linguagem	 artística.	 Se	 desaparecem	 o	 agressor
francês,	no	caso	de	Goya,	e	o	agressor	alemão,	no	caso	de	Picasso,	o	efeito	resultante	é	o	aparecimento
da	 agressividade	 humana	 em	 si,	 estimulada	 pela	 sedução	 da	 agressão	 e	 do	 ódio	 coletivo	 a	 um	objeto
definido	e	desumanizado.Ao	 encarar	 as	 tragédias	 de	 seu	 povo	 em	 seu	 respectivo	 tempo	 histórico,	 Goya	 e	 Picasso,
conscientemente	ou	não,	alcançam	de	fato	a	grandeza	de	mestres	não	apenas	da	arte,	mas	principalmente
do	espírito,	pois	conseguiram	metabolizar	suas	experiências	e	convertê-las	em	lições	para	as	gerações
posteriores,	 para	 quem	 tiver	 a	 capacidade	 de	 assimilar	 ensinamento	 tão	 difícil	 de	 assumir	 nos
conturbados	dias	de	hoje,	quase	um	século	após	Guernica,	cada	vez	mais	dilacerado	por	movimentos	de
ódio	de	todo	tipo.
A	 sedução	 da	 morte	 e	 o	 encantamento	 hipnótico	 do	 ódio	 coletivo,	 arrastando	 multidões	 e
devorando	todos	os	preceitos	da	civilidade,	são	fatores	comuns	à	ira	do	passado	e	do	presente.	Há	algo
muito	profundo,	revelador	e	desconcertante	em	todas	as	histórias	relatadas	nesse	capítulo.	O	ser	humano
não	 parece	 humano.	 Judeus	 massacrados	 vão	 ao	 massacre,	 assim	 como	 islâmicos,	 alemães,	 russos	 e
tantos	 outros.	 Não	 em	 nome	 da	 justiça,	 mas	 em	 busca	 da	 vingança,	 coisa	 bem	 diferente.	 O	 alvo	 da
vingança	é	invariavelmente	sempre	o	inocente.	Um	recurso	comum,	em	todas	as	execuções	coletivas,	foi
o	método	de	reunir	em	praça	pública	homens,	mulheres,	velhos	e	crianças	para	então	passar	todos	no	fio
da	navalha,	no	chumbo	contra	a	nuca,	em	matéria	encefálica	esparramada	por	granadas,	fuzis,	pistolas,	na
selva	 africana,	 no	 frio	polonês,	 nos	porões	 e	 florestas,	 na	 cozinha	 e	no	quintal.	O	 estupro	 também	 foi
recorrente.
Convidamos	agora	o	leitor	a	experimentar	a	ira	na	própria	carne.	Calma,	nada	de	violência,	nem	de
masoquismo.	A	 ideia	e	deixar	a	posição	 relativamente	cômoda	de	assistir	 a	 tantos	massacres	como	se
eles	desfilassem	à	nossa	frente,	como	num	filme	ou	num	ato	cívico	em	praça	pública.	Afinal,	até	agora
pudemos	observar	de	 longe	a	 longa	 trama	de	agressores	e	agredidos	em	ação,	 alguns	 revezando-se	no
papel	de	presa	e	predador.	Agora,	no	próximo	capítulo	a	 ideia	é	visualizar	com	o	corpo,	 isto	é,	sentir
empaticamente	o	efeito	da	 ira	e	da	crueldade	sobre	o	corpo,	os	ossos	e	músculos,	 tanto	na	postura	de
presa	quanto	a	de	predador.	Para	tanto,	convocamos	os	poderes	místicos	da	escultura
3.	O	ódio	na	arte	-	pintura	e	escultura
	
A	vida	no	Inferno	segundo	Bouguereau
O	domínio	do	ódio	sobre	o	corpo	do	agressor
	
"Ugolino	e	Seus	Filhos"	de	J.B.	Carpeaux
O	domínio	do	ódio	sobre	a	alma	do	agredido
	
“Ugolino”	de	Rodin
O	domínio	do	ódio	sobre	alma	e	corpo	do	agredido
A	vida	no	Inferno	segundo	Bouguereau
	
Imagem:	"Dante	e	Virgílio"	(1850)	W.	Bouguereau
	
Se	pudéssemos	visualizar	cada	um	dos	agressores	abordados	no	capítulo	anterior,	no	exato	momento
em	 que	 estão	 sob	 completo	 domínio	 do	 ódio,	 talvez	 emergisse	 este	 agressor,	 à	 nossa	 esquerda,
criado	pelo	pintor	William	Bouguereau	(1825	-	1905).
A	maldade	de	algumas	pessoas	e	suas	façanhas	mirabolantes,	tema	bastante	comum	em	nossos	dias,
também	 foi	 assunto	de	grandes	 escritores	 e	 pintores,	 justamente	por	 serem	 tão	mundanos	 e	 universais,
além	de	incômodos.	Dante	Alighieri	(1265	-	1321),	o	primeiro	poeta	italiano,	foi	perseguido	em	vida	por
suas	 posturas	 críticas	 ao	 Papa	 e	 à	 nobreza	 italiana,	 então	 a	mais	 rica	 do	mundo	 ocidental.	 Dante	 foi
traído,	 injuriado	e	 exilado.	Não	esperou	a	morte	dos	 inimigos,	 fez	muito	mais.	 Imaginou	a	punição	de
cada	 um	 deles	 lá	 no	 Inferno,	 não	 se	 esquecendo	 de	 agrupá-los	 em	 seções	 específicas	 para	 cada
modalidade	 de	 pecado	 cometido,	 descrevendo	 detalhes	 das	 torturas	 eternas	 que	 passaram,	 passam	 e
continuarão	 a	 passar	 por	 toda	 a	 eternidade	 na	 companhia	 de	 grandes	 personagens	 da	 história,
identificados	pelos	mesmos	crimes	de	seus	conterrâneos.
Não	satisfeito	em	imaginá-los	nas	infinitas	agruras,	Dante	foi	visitá-los,	um	de	cada	vez,	cada	qual
em	um	dos	nove	círculos	do	Inferno.	Na	honrosa	companhia	do	poeta	romano	Virgílio	(70	a.	C.	-	19	d.C)
encontra	Cleópatra	e	Helena	sofrendo	nos	ventos	sufocantes	do	primeiro	círculo,	o	da	luxúria,	junto	com
Francesca	(de	Ravenna)	e	seu	cunhado	Paolo	(de	Rimini),	amantes	assassinados	que,	a	bem	da	verdade,
não	mereciam	arder	ali.
É	 lá	 no	 oitavo	 círculo	 que	 os	 dois	 nobres	 escritores	 dão	 de	 cara	 com	 a	 maldade	 em	 pessoa,
justamente	aquela	pela	qual	se	assume	ser	outra	pessoa.	Para	acolher,	ou	melhor,	castigar	tanta	gente,	o
chamado	círculo	dos	falsários	teve	que	ser	ampliado	e	subdivido	em	dez	partes	para	abrigar	tantos	tipos
de	 falsificadores:	 de	 ouro,	 de	 dinheiro,	 de	 pessoas	 e	 de	 palavras	 (falso	 testemunho),	 da	 esperança
(adivinhos)	e	da	fé	(falsos	profetas)	e	outros	mais.	Os	imitadores	de	tudo	são	acometidos	de	pelo	menos
duas	 penalidades	 irreversíveis	 e	 intermináveis:	 coçam-se	 o	 tempo	 todo	 (tempo	 aqui	 tomado	 no	 seu
sentido	 mais	 lato)	 devido	 às	 terríveis	 chagas	 que	 a	 lepra	 lhes	 causa	 e,	 além	 disso,	 são	 ferozmente
agredidos	pelas	outras	almas	penadas	que	habitam	a	vizinhança,	 já	que	agora	não	podem	mais	assumir
outra	cara.	É	como	se	seus	companheiros	de	infortúnios	lhes	dissessem,	já	partindo	para	cima:	"ah,	então
era	você!".
Desta	 vez	 os	 contemporâneos	 encontrados	 são	Copocchio	 de	 Siena	 (um	 contraventor,	 herético	 e
alquimista)	 e	 	 Gianni	 Schicchi,	 florentino	 como	 Dante.	 Membro	 de	 uma	 notória	 família,	 astuto	 e
inescrupuloso	 comerciante,	 Schicchi	 teve	 a	 audácia	 de	 se	 apresentar	 ao	 cartório	 de	 notas	 com	 os
documentos	de	outra	pessoa,	para	 assim	assumir	 a	herança	do	 falecido,	 enquanto	a	verdadeira	 família
ainda	 chorava	 o	 cadáver.	A	 história	 virou	 tema	 da	 ópera	 cômica	 de	Giacomo	Puccini	 (1858	 -	 1924),
chamada	justamente	Schicchi	(1918).
Escrito	em	1304,	A	Divina	Comédia	(dividida	em	Inferno,	Purgatório	e	Céu)	atravessou	os	séculos
iluminando	algumas	almas	e	amedrontando	outras.	A	parte	mais	procurada	pelos	artistas	posteriores	foi
sem	sombra	de	dúvida	o	 Inferno.	Virou	um	manancial	 inesgotável	para	pintores	e	até	escultores,	como
Rodin,	que	se	inspirou	no	drama	de	Francesca	para	fazer	"O	Beijo"	(1886).	Fica	ao	leitor	o	desafio	de
entender	por	que	motivo,	razão	ou	circunstância,	a	Igreja	Católica	deixou	rolar	solto	o	poema	por	tantos
séculos.
Contemporâneo	de	Rodin,	o	pintor	francês	William	Bouguereau	(1825	-	1905)	 também	foi	colher
seu	material	 de	 criação	no	mesmo	 Inferno,	 justamente	no	 círculo	dos	 falsários,	 oferecendo	 ao	público
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uma	ambiciosa	versão	visual	da	luta	entre	Schicchi	e	Capocchio.	Seguindo	uma	tradição	que	remonta	ao
vocabulário	medieval,	 os	 pecadores	 aparecem	 totalmente	 nus	 no	 Inferno,	 como	 fizera	Giotto	 no	 Juízo
Final	da	Capela	Strovegni	(século	XIV)	e	Michelangelo	no	Juízo	Final	da	Capela	Sistina	(século	XVI)	e
assim	mantido	pela	norma	neoclássica	(século	XVIII	-	XIX).	À	esquerda,	na	penumbra,	vemos	Virgílio
(identificado	 pelo	 ramo	 de	 louros	 da	 Roma	 Antiga)	 e	 Dante	 (com	 colete	 e	 barrete	 florentinos
inconfundíveis).	Ao	fundo	e	à	direita	encontra-se	um	amontoado	de	almas	penadas,	sob	a	supervisão	de
um	diabo	zombeteiro	em	forma	de	morcego.
Os	 versos	 do	 canto	 29	 e	 30	 possibilitam	 a	 identificação	 dos	 combatentes:	 Gianni	 Schicchi	 é	 o
agressor	à	esquerda	e	Cappochio	o	agredido	à	direita.	Mas	como	no	inferno	não	há	inocentes,	ambos	se
servem	de	seu	quinhão	de	dor.	Na	vida	terrena	abusaram	da	humanidade	e	até	triunfaram,	mas	lá	embaixo,
após	 a	 morte,	 o	 que	 têm	 para	 fazer	 é	 brigar,	 correr,	 coçar,	 morder,	 atacar	 e	 ser	 atacado,	 por	 todo	 o
sempre.	 Já	 repararam	 como	 os	 crápulas	 e	 deficientes	 de	 caráter	 em	 geral	 sobem	 rapidamente,	 tecem
alianças	e,	quando	caem,	brigam	entre	si	e	se	lançam	numa	luta	encarniçada?
O	tal	agressor	morde	a	jugular	do	leproso,	que	ainda	revida	tentando	lhe	arrancar	os	cabelos	com	a
mão	direita,	enquanto	todo	o	braço	esquerdo	é	retorcido	para	trás.	Com	a	mão	direita,	quase	como	uma
garra	de	predador,	o	 falsário	de	pessoas	rasga	as	costas	do	falsário	de	ouro,	ao	mesmo	tempoem	que
tenta	dobrar-lhe	toda	a	coluna	dorsal	com	uma	impiedosa	joelhada.	No	canto	inferior	direito	vemos	um
perdedor	da	luta	anterior,	exaurido.	Sim,	na	outra	vida,	tantos	os	condenados,	quanto	os	salvos	retomam
sua	forma	corporal,	já	sem	os	estigmas	que	ganharam	cá	na	terra.
A	 tela	 foi	um	sucesso	de	público	e	crítica	no	 salão	de	1850.	A	descrição	mais	eloquente	 foi	do
famoso	crítico	de	arte	Théophile	Gautier:	"Gianni	Schicchi	se	 lança	sobre	Capocchio,	seu	rival,	com
fúria	estranha.	Forma-se	entre	os	dois	combatentes	uma	 luta	de	músculos,	nervos,	 tendões	e	dentes
que	o	Senhor	Bouguereau	apresenta	de	forma	magnífica.	Há	nesta	tela	amargura	e	força	-	força,	uma
qualidade	rara"[28]
O	desenho	de	Bouguereau	é	de	estilo	realista,	o	tema	é	mais	próximo	do	gosto	do	romantismo	e	a
musculatura	se	inspira	no	neoclássico	(com	graves	distorções	anatômicas).	O	pintor	parecia	determinado
a	ter	sucesso	no	Salão	de	1850,	já	que	fora	derrotado	nos	salões	dos	dois	anos	anteriores.	Soube	reunir
em	uma	só	tela	aquilo	que	teria	mais	chance	de	atingir	o	grande	público,	a	crítica	e	o	gosto	da	época.	Foi
tão	feliz	que	deu	início	a	uma	carreira	grandiosa,	alcançando	o	mercado	nacional	bem	como	a	elite	norte-
americana.	O	nu	masculino	que	trabalha	nesta	tela	não	é	o	mais	característico	de	sua	obra,	marcado	por
um	amplo	 espectro	de	poses	 femininas	dóceis,	 afáveis	 e	 adequadas	 à	demanda	masculina	pela	pintura
erótica,	sempre	sob	disfarces	míticos	(Vênus,	Baco,	Psiquê,	Cupido)	ou	simbólicos	(Caridade,	Inocência,
Amor	Fraterno).
Seu	 sucesso	 financeiro	 o	 escravizou	 nesta	 torrente	 de	 temas	 e	 telas	 repetitivas,	 convertendo-se,
juntamente	 com	 Alexandre	 Cabanel	 (1823-	 1899)	 em	 protótipo	 do	 passado,	 da	 arte	 clássica,	 da
artificialidade	 fria	 e,	 portanto,	 em	 alvo	 principal	 da	 crítica	 dos	 impressionistas	 na	 década	 de	 1870	 e
1880.	Abusou	da	mesma	fatura	de	corpos	voluptuosos,	feitos	de	uma	carnação	farta,	rosada	e	cintilante.
Numa	entrevista	de	1891,	Bouguereau	confessou	a	natureza	comercial	que	seu	trabalho	assumiu	durante	a
sua	carreira,	mesmo	quando	o	gosto	já	passava	por	grandes	mutações:	"O	que	você	esperava?	Você	tem
que	seguir	o	gosto	do	público	e	o	público	só	compra	o	que	gosta.	Por	isso	que,	com	o	tempo,	eu	mudei
minha	maneira	de	pintar"[29]
Espero	que	o	leitor	não	mande	o	pintor	(nem	este	escritor)	para	o	Inferno	imputando-lhe	apego	ao
vil	metal	ou	falta	de	coragem	para	tarefas	para	as	quais	ele	não	estava	preparado.	Provavelmente,	o	leitor
também	 não	 estará	 livre	 destas	 imputações	 e	 o	 espaço	 lá	 embaixo	 já	 está	 comprometido	 demais!
Fiquemos	com	o	que	ele	nos	deu.
Voltemos	à	tela,	só	mais	um	pouquinho.	Os	dois	combatentes	parecem	totalmente	alheios	a	tudo	o
que	 lhes	 cerca,	 tal	 a	 voracidade	 com	 que	 se	 entregaram	 à	 peleja	 infernal,	 destacando-se	 dos	 demais
personagens	pela	iluminação	especial	que	faz	brotar	luz	de	seus	próprios	corpos	musculosos,	o	calor	do
ódio	talvez.	Mas,	ainda	que	a	nudez	se	explique	pelas	regras	iconográficas	do	passado,	não	precisava	ser
tão	explícita	e	tão	bem	construída.	Nem	Giotto,	nem	mesmo	Michelangelo	se	preocuparam	com	isto,	pelo
menos	não	na	parede,	só	no	teto	da	Sistina.	É	inegável	que	algo	de	sensual	grita	forte	nesta	cena,	em	que
nádegas,	coxas,	bíceps	e	tórax	se	oferecem	aos	observadores,	sob	a	licença	de	um	elevado	tema	literário.
A	 postura	 dos	 combatentes	 se	 traduz	 em	 luta	 de	 corpos	 de	 um	 outro	 tipo	 de	 combate,	 este	 feito	 de
agressão,	dor,	mas	também	de	prazer,	deleite	e	perversão.	Perverso	não	seria	o	ato	homossexual,	mas	o
seu	acento	sadomasoquista	estridente.	Talvez	o	pintor	tenha	mandado	para	o	Inferno	não	só	os	pruridos
monetaristas,	 mas	 também	 a	 demanda	masculina,	 exclusivamente	 heterossexual,	 do	mercado	 pela	 arte
erótica.
A	criação	ousada	de	Bouguereau,	ainda	que	hoje	nos	pareça	algo	artificial,	pode	nos	auxiliar	na
nossa	estratégia	de	abordar	o	ódio,	não	mais	como	um	evento	coletivo	que	preside	os	grandes	genocídios
da	história,	como	fizemos	no	capítulo	anterior,	mas	como	manifestação	psíquica	que	acomete	o	indivíduo,
domina	 seu	 corpo	 e	 coordena	 sua	 alma	 e	 sua	 ação.	É	uma	 senha	para	 entender	 como	 se	 sentia	 aquele
soldado	 português,	 na	 tórrida	 floresta	 moçambicana,	 que	 pisoteou	 seu	 prisioneiro	 até	 a	 morte	 ou	 o
libertador	soviético	que	pregou	a	alemã	nua	na	porta	da	igreja,	em	forma	de	cruz,	em	algum	lugar	gélido
da	Polônia.
Sim,	 há	 o	momento	 em	que	 a	 agressão	 se	 burocratiza	 e	 se	 realiza	 no	 cálculo	 e	 na	mais	 perfeita
frieza,	mas	certamente,	em	algum	momento	de	seu	próprio	histórico	de	ódio,	o	agressor	experimentou	a
possessão	 da	 ira	 sobre	 seus	 “músculos,	 nervos,	 tendões	 e	 dentes”,	 como	 o	 capitão	 israelense	 que
coordena	a	rajada	de	balas	sobre	velhinhos	palestinos	na	lama	e	na	chuva,	como	o	senhor	de	engenho	de
Itaparica	que	estuprou	negra	e	negro,	antes	da	derradeira	cena	de	castração.	Castração	que	 também	os
soldados	 da	 “liberdade,	 igualdade	 e	 fraternidade”	 praticaram	 sobre	 espanhóis	 já	 presos,	 amarrados	 e
atados	a	postes,	 como	desenhou	Goya.	Tudo	 se	dá	como	se	o	 sentimento	de	 raiva	 fosse	uma	explosão
interna	que	excede	os	limites	da	pele,	dos	olhos	e	dos	poros,	deformando	o	agressor,	então	convertido
inapelavelmente	em	monstro	humano	ou	máquina	de	matar,	sem	controle,	nem	razão,	nem	sentido.
Há	 um	 verdadeiro	 êxtase	 da	 agressão,	 ápice	 da	 possessão,	 no	 qual	 o	 agressor	 parece	 até	 se
ausentar	da	 cena	que	 ele	mesmo	pratica	para	melhor	 sorver,	 assistindo	de	 fora	o	 ato	macabro	que	um
outro	pratica,	um	outro	que	nele	habita	e	que	o	presenteia	com	o	imenso,	intenso	e	superior	prazer	sádico
de	causar	dor	no	outro.	Interessante	notar	que	o	êxtase	da	agressão	quase	sempre	vem	acompanhado	do
êxtase	sexual,	com	ele	se	mistura	e	se	torna	apenas	um,	justo	na	reiterada	prática	do	estupro,	que	como
vimos,	 comparece	em	 todos	os	genocídios,	o	que	 também	não	passou	despercebido	a	Goya,	 já	que	ao
assunto	bestial	dedicou	uma	lâmina	na	série	Desastres	de	La	Guerra.
	
"Ugolino	e	Seus	Filhos"	de	J.B.	Carpeaux
	
Imagem:	"Ugolino	e	Seus	Filhos"	de	J.B.	Carpeaux
“Mordi-me	as	mãos	de	angústia	delirante"	(A	Divina	Comédia,	Inferno,	Canto	33,	verso	58)
	
O	 que	 acontece	 com	 estas	 quatro	 figuras	 que	 se	 enroscam	 e	 se	 desesperam?	Qual	 o	motivo	 do
temor	que	faz	o	ancião	comer	os	dedos	junto	com	as	unhas?
O	escultor	francês	Jean-Baptiste	Carpeaux	(1827	-	1875)	foi	buscar	no	Inferno	de	Dante	Alighieri	(1265
-	 1321)	 o	 desafio	 de	moldar	 em	 bronze	 os	 sentimentos	 extremos	 do	 ser	 humano,	 acima	 da	moral,	 da
razão,	do	controle	emocional	e	da	vontade.	O	tema	já	era	comum	na	mão	dos	pintores,	principalmente	na
escola	do	romantismo,	mas	não	dos	escultores.	O	conjunto	escultórico	representa	os	momentos	finais	dos
prisioneiros	da	Torre	da	Fome,	a	saber,	o	Conde	Ugolino,	seus	dois	filhos	e	dois	netos.
No	Canto	33,	os	dois	poetas	viajantes	do	Inferno	se	deparam	com	a	figura	contorcida	e	angustiada
do	Conde	Ugolino	que,	segundo	a	narrativa	dantesca	teria	sido	aprisionado	na	Torre	dos	Gualandi.	No
século	 XIII,	 todas	 as	 pequenas	 repúblicas	 italianas	 encontravam-se	 divididas	 entre	 dois	 partidos	 (os
papistas	Guelfos	contra	os	antipapistas	gibelinos),	embora	vivessem	em	plena	ascensão	econômica	(ou
talvez	 esta	 fosse	 a	 razão	 da	 disputa).	 Em	Pisa,	 o	Conde	Ugolino	 della	Gherardesca	 foi	 acusado	 pelo
arcebispo	Ruggiero	degli	Ubaldini,	de	ter	traído	a	sua	cidade	natal.	Ugolino,	filhos	e	netos	foram	presos
na	Torre,	onde	todos	morreram	de	fome.
Antes	 de	 morrer,	 Ugolino	 teria	 se	 alimentado	 da	 carne	 dos	 próprios	 filhos,	 daí	 ter	 sido
surpreendido	pela	dupla	de	poetas	naquele	horripilante	círculo	infernal,	onde	o	conde	então	lhes	relata	a
dor,	o	arrependimento	e	a	angústia	do	abominável	ato.	Carpeaux	traduz	a	narrativa	literária	em	linguagem
escultórica,	de	tal	forma	que	a	gesticulação	dos	personagens	testemunha	a	terrível	desgraça	que	então	se
apoderava	lentamentede	seus	corpos	e	mentes.	Emprestando	o	retesamento	muscular	próprio	das	figuras
de	Michelangelo,	cuja	obra	conhecera	em	viagem	de	estudos	de	seis	anos	a	Roma,	Carpeaux,	insere	vida,
tensão	e	 sofrimento	na	 cena	 feita	de	bronze,	 aproximando-se	 também	do	conjunto	helenístico	 chamado
Laooconte,	que	representa	o	sacerdote	troiano	e	seus	filhos	sendo	devorados	por	duas	serpentes	enviadas
por	Netuno,	deus	que	tomou	o	partido	dos	gregos	contra	Troia.
Mas	estátuas	não	costumavam	exalar	sentimentos	tão	altissonantes,	o	que	já	havido	sido	denunciado
por	Charles	Baudelaire	(1821	-	1867).	Além	de	grande	e	polêmico	escritor,	Baudelaire	foi	um	crítico	de
arte	que	de	certa	forma	pautou	as	mudanças	do	gosto	em	meados	do	século	XIX.	Antes	de	convocar	os
pintores	 para	 retratar	 a	 vida	moderna	 -	 o	 que	 auxiliou	o	público	 a	 diminuir	 as	 resistências	 a	Manet	 e
Monet	-	Baudelaire	cutucou	os	escultores	num	artigo	cujo	título,	bem	sugestivo,	era	"Porque	a	escultura
é	tão	entediante?"	(1846).
A	 obra	 de	 Auguste	 Rodin	 (1840	 -	 1917)	 viria	 a	 alterar	 para	 sempre	 a	 modorrenta	 tradição	 de
monumentos	classicamente	frios	e	inexpressivos	que	se	multiplicavam	nas	esquinas	da	cidade	de	Paris,
então	 recém	 reformada,	mas	 isso	 só	ocorreria	na	década	de	1880.	O	escultor	 Jean-Baptiste	Carpeaux,
treze	anos	mais	velho	que	Rodin,	mas	morto	prematuramente	aos	48	anos	de	idade	em	1875,	antecedeu
Rodin	 na	 ruptura	 com	 as	 normas	 da	Academia	 Francesa,	 onde	 se	 ensinava	 a	 trivialidade	 e	 a	 falta	 de
criatividade.	A	grande	mudança	foi	anunciada	no	Salão	de	1863,	quando	Carpeaux	ganhou	a	medalha	de
ouro	com	o	conjunto	Ugolino	e	Seus	Filhos	(1860	-	1863),	tema	retirado	não	da	mitologia	ou	da	Bíblia,
como	rezava	o	credo	estilístico,	mas	da	literatura.
Hoje	o	local	do	suposto	canibalismo	se	chama	Torre	della	Fame	(Torre	da	Fome),	parte	agregada
ao	 Palazzo	 dell'Orologio	 (Palácio	 do	 Relógio)	 em	 1605,	 agora	 aberto	 aos	 turistas.	 Recentemente	 a
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família	 Gherardesca	 viu-se	 aliviada	 com	 uma	 pesquisa	 científica	 que	 comprovou	 que	 não	 houve
canibalismo	na	Torre,	 limpando	 a	 imagem	de	Ugolino	 e	 seus	 descendentes.	Numa	 entrevista	 à	 revista
Newsweek,	 o	 paleantropólogo	 Francesco	 Mallegni,	 da	 Universidade	 de	 Pisa	 reabilita	 Ugolino,
setecentos	 anos	 depois:	 "O	 cientista	 descobriu	 que	 Ugolino	 tinha	 cerca	 de	 80	 anos	 e	 saúde
precaríssima.	Mallegni	está	certo	de	que	o	conde	não	comeu	nenhum	tipo	de	carne	em	seus	últimos
dias.	Mesmo	que	quisesse,	não	teria	tido	forças	suficientes	para	devorar	seus	companheiros	de	cela.	É
improvável,	 também,	 que	 o	 ancião	 tenha	 sobrevivido	 por	 mais	 tempo	 que	 seus	 filhos	 e	 netos,
homenzarrões	 de	 1,80	metro	 e	 idade	 entre	 20	 e	 40	 anos.	A	 avaliação	 da	 arcada	 dentária	 do	 conde
trouxe	 a	 revelação	 mais	 surpreendente:	 o	 canibal	 não	 passava	 de	 um	 velhinho	 banguela,	 com	 um
punhado	de	dentes	em	petição	de	miséria"[30]	
Enfim,	 era	 apenas	 literatura.	 Assim	 como	 também	 é	 apenas	 escultura.	 Daí	 talvez	 a	 força
arrebatadora	 da	 arte	 (visual,	 plástica	 ou	 escrita),	 pois	 se	 apresenta	 humilde	 como	 ficção,	 acessa	 os
sentimentos	 do	 leitor-observador	 e	 fertiliza	 a	 experiência	 humana	 ao	 depositar	 ali	 a	matéria	 prima	da
vida	real:	os	sentimentos	que	movimentam	a	alma	e	clamam	por	uma	explicação.
“Ugolino”	de	Rodin
	
Imagem:	“Ugolino”	(1881)	Rodin
	
"Magro,	esquálido,	as	costelas	salientes	sob	a	pele,	a	boca	vazia	e	os	lábios	trêmulos,	que	parecem
desfalecer,	uma	baba	de	fera	faminta,	ele	se	arrasta	como	uma	hiena	que	desenterra	a	carniça,	sob
os	corpos	desmembrados	dos	filhos	cujos	braços	e	pernas	inertes	balançam	para	lá	e	para	cá	sobre	o
abismo"	(Octave	Mirbeau)
À	primeira	vista,	este	Ugolino	de	gesso	parece	mais	feio,	disforme	e	inacabado	do	que	o	bronze	de
Jean-Baptiste	Carpeaux.	Claro,	o	poder	expressivo	do	bronze	é	bem	superior	ao	do	gesso,	geralmente	um
estágio	 anterior	 à	 versão	 metálica.	 No	 entanto,	 se	 retomarmos	 o	 tema	 e	 o	 drama	 deste	 personagem
dantesco	 e	 dedicarmos	 uma	 atenção	 refinada	 ao	 Ugolino	 de	 Rodin,	 então	 possivelmente	 algum	 ganho
obteremos,	senão	em	deleite,	talvez	em	compreensão	dos	limites	da	humanidade.
Vinte	 anos	 depois	 da	 chocante	 versão	 de	 Carpeaux,	 aparece	 ao	 público	 o	 Ugolino	 de	 Auguste
Rodin,	que	começava	então	a	viver	a	sua	fama	e	seu	reconhecimento.	A	dívida	para	com	Michelangelo	e
Carpeaux	 se	 revela	 na	 musculatura	 túrgida	 e	 na	 dramaticidade.	 Mas	 há	 algo	 de	 diferente	 nesta	 nova
figuração	 escultórica	 da	 linguagem	 literária.	 Algo	 ainda	 mais	 dantesco.	 Não	 se	 via,	 naquela	 época,
estátua	de	"gatinhas"	com	o	personagem	principal	assim	se	arrastando	de	quatro.	Não	seria	muito	digno,
mas	 parece	 bem	 fidedigno	 à	 tragédia	 de	 ser	 reduzido	 ao	 estado	 de	 bestialidade,	 dominado	 pela	 fome
cruel	que	converte	o	ser	humano	na	fera	que	caminha	entre	os	membros	despedaçados	da	própria	prole,
que	ainda	se	recusa	a	comer.	A	última	fração	de	humanidade	o	faz	resistir,	mas	prenuncia	a	hiena	à	caça
da	carcaça,	boquiaberta,	trêmula,	passos	hesitantes,	rosto	contorcido.	O	homem-hiena	baba	e	cambaleia
sobre	 os	 descendentes	 sem	 destino,	 alguns	 dos	 quais	 ainda	 sinalizam	 restos	 de	 uma	 vida,	 últimos
espasmos	do	ser	já	quase	convertido	em	nada.
A	 deformação	 se	 apresenta	 como	 a	 grande	 diferença	 entre	 Rodin	 e	 Carpeaux.	 A	 tragédia	 do
primeiro	Ugolino,	de	1860,	 é	uma	ópera	grandiosa,	 envolvente	 e	 eloquente.	O	drama	humano	 fica	por
conta	 do	 contraste	 entre	 o	 desespero,	 feito	 de	 dedos	 ríspidos	 na	 boca	 e	 face	 contraída,	 diante	 da
musculatura	hercúlea,	cuja	força	apenas	se	exibe	justamente	para	se	mostrar	insuficiente	e	derrotada.	O
segundo	 Ugolino,	 de	 1881,	 mais	 parece	 uma	 performance	 dilacerante	 e	 malcheirosa	 que	 invade	 as
cadeiras	e	camarotes	do	 teatro.	Não	há	mais	nada	de	rigoroso	na	anatomia.	Tudo	apenas	 insinua	ossos
despontando	na	pele	seca	que	resulta	numa	sombra	de	corpo	humano,	sem	traços	definidos.	O	caráter	de
obra	inacabada,	de	esboço,	auxilia	a	expressão	do	esvaziamento	da	vida	e	da	humanidade.	A	deformação
se	 faz	 recurso	 expressionista,	 pois	 emerge	 como	 distorção	 da	 dignidade,	 como	 realidade	 externa
(contrações)	em	face	da	realidade	interna	(fome	e	desespero)
Há	 pelo	menos	 quatro	 obras	 do	Museu	D´Orsay	 diretamente	 inspiradas	 no	 Inferno	 de	Dante,	 três	 das
quais	abordamos	aqui.	A	pintura	de	Bouguereau,	de	fatura	clássica	e	homoerótica,	tematiza	a	bestialidade
que	toma	a	forma	de	ira	no	oitavo	círculo,	reservado	aos	dez	tipos	de	fraudulentos.	Ugolino,	por	sua	vez,
representante	dos	traidores,	cuja	fria	residência	eterna	é	o	nono	e	último	círculo,	tematiza	a	bestialidade
disforme	do	fim	de	qualquer	traço	de	humanidade,	o	apagar	da	vida	sem	morte	ainda,	pois	quando	esta
finalmente	chegar	vai	se	hospedar	em	lago	congelado,	contrassenso	do	Inferno	medieval,	tendo	apenas	o
rosto	 para	 fora	 do	 gelo	 e	 quando	 as	 lágrimas	 de	 sofrimento	 escorrerem	 pela	 face	 também	 congelam,
consumando	o	enterro	glacial	de	todo	o	corpo	corrompido	pela	alma	nefasta.
Se	os	combatentes	de	Bouguereau	nos	serviram	para	abordar	o	efeito	do	ódio	sobre	quem	o	tem	e	o
cultua,	 os	 dois	 Ugolinos	 são	 aqui	 tomados	 como	 efeito	 do	 ódio	 sobre	 quem	 é	 odiado.	 Na	 versão	 de
http://www.humanarte.net/ira5.html
Carpeaux,	 Ugolino	 não	 preserva	 a	 dignidade	 da	 alma,	 mas	 mantem	 a	 do	 corpo,	 titânico	 mesmo	 nos
últimos	 suspiros	 desta	 vida.	 Arrependido,	mas	 ainda	 humano.	 É	 preciso	 atentar	 para	 o	 fato	 de	 que	 a
escala	de	valores	do	inferno	dantesco	começa	com	a	luxúria	(primeiro	círculo)	e	termina	com	a	traição
dos	 benfeitores,	 lá	 no	 último	 círculo	 da	 danação	 eterna.	 Ugolino	 é	 seu	mais	 nobre	 inquilino.	 Traiu	 o
partido	político	que	o	havia	abrigado,	a	cidade	e	seu	protetor	que,	tomado	de	indignação	o	trancafiou	na
Torre	da	Fome,	juntamente	com	duas	geraçõesde	seu	sobrenome,	para	aniquilar	corpos,	almas,	nomes	e
memória.	Indignação	aqui	é	outro	nome	para	o	ódio,	capaz	de	agir	vagarosamente	na	mesma	velocidade
do	efeito	da	fome	sobre	o	corpo	e	a	mente	do	idoso,	dos	dois	homens	maduros	e	das	duas	crianças.
Rodin	 tomou	 o	 bandido	 e	 não	 o	 mocinho	 para	 mostrar	 a	 transição	 da	 humanidade	 para	 a
animalidade,	 segundo	 o	 programa	 da	 vingança,	 não	 da	 justiça.	 Deveríamos	 sim	 nos	 contentar	 com	 a
punição,	 ainda	 que	 cruel,	 pois	Ugolino	 é	 o	 pior	 de	 todos	 os	 pecadores,	 detentor	 da	 pior	 de	 todas	 as
maldades,	qual	seja	a	de	se	voltar	contra	quem	só	lhe	fez	o	bem	a	vida	toda.	Morte	a	Ugolino!	Entretanto,
não	é	esta	a	mensagem	de	Rodin.	Nem	de	longe.	A	cidade	toda	estava	certa,	pois	Ugolino	é	o	criminoso	e
disto	 não	 há	 dúvida	 (pelo	menos	 para	 o	 partido	 no	 poder).	Mas	 por	 que	 não	 ficamos	 nem	 um	 pouco
felizes	com	a	situação	em	que	se	encontra	Ugolino?
Talvez	porque	também	não	saltitaríamos	de	prazer	ao	ver	o	mesmo	castigo	aplicado	aos	agressores
e	criminosos	de	guerra.	Você	seria	capaz	de	saborear	e	se	regozijar	com	a	cena	hipotética	de	trancafiar
aqueles	mesmos	soldados	portugueses,	soviéticos	e	israelenses,	citados	anteriormente,	em	uma	jaula	sem
água,	 nem	 comida,	 convalescendo	 lenta	 e	 irreversivelmente,	 dias,	 semanas,	 até	 o	 último	 fôlego?	Você
aceitaria	apenas	trocar	de	lugar	com	estas	criaturas	abomináveis?	Afinal,	seria	a	mesma	torpeza	aplicada
às	 vítimas	destes	 criminosos	 de	 guerra:	 velhos,	mulheres	 e	 crianças	 viram-se	 subitamente	 reduzidos	 à
condição	mais	degradante	e	humilhante,	assistindo	a	execução	de	seus	familiares,	acuados,	tomados	pelo
medo,	pelo	pânico	e	pelo	completo	desamparo.	Rodin,	em	mais	um	lance	de	gênio,	toma	o	agressor	para
evidenciar	 a	 condição	 humana,	 precondição	 para	 a	 vida	 civilizada:	 justiça	 sim,	 vingança	 não.	 Caso
contrário,	agressores	e	agredidos	se	igualariam	na	bestialidade	do	ódio,	apagando	as	fronteiras	entre	o
justo	e	o	injusto,	o	humano	e	o	demônio.
	
A	 primeira	 questão	 a	 se	 levantar	 é	 o	 que	 realmente	motiva	 e	 move	 o	 grupo	 de	 agressores.	 	 A
resposta	a	esta	questão	é	ainda	mais	desconcertante,	pois	descobriremos	que	em	tempos	de	paz	também
aparecem	os	mesmos	mecanismos	de	 ação	 coletiva,	 a	mesma	psicologia	 de	massa.	Aquilo	que	 agrega
uma	turba	de	vândalos	também	age	na	violência	difusa	do	cotidiano.
Falta-nos	 apenas	 tentar	 compreender	 como	é	possível	que	o	mesmo	 ser	dominante	nesse	planeta
seja	capaz	de	tanto	ódio	e,	ao	mesmo	tempo,	de	tanto	amor,	como	demonstraremos	no	próximo	capítulo.
Convidamos	 o	 leitor	 a	 deixar	 momentaneamente	 tantos	 tons	 cinzas	 da	 morte	 e	 da	 crueldade	 para
recuperar	os	matizes	alegres,	brilhantes	e	multicoloridos,	dos	quais,	afinal,	a	alma	humana	também	está
impregnada.	 Convidamos	 ainda,	 na	 sequência,	 a	 compartilhar,	 investigando	 as	 próprias	 experiências,
nossas	 considerações	 finais,	 embora	 jamais	 conclusivas,	 sobre	 esta	 estranha	 disposição	 para	 o
contraditório,	para	o	belo	e	o	horror,	para	o	bem	e	o	mal,	para	o	amor	e	a	ira.
	
	
4.	A	arte	do	amor	–	poesia	e	pintura																			
	
O	arrebatamento	da	alma
Existe	o	tipo	peregrino,	aquele	que	não	para	em	nenhum	relacionamento.	Nada	o	compromete,	proclama
sua	vitória	sobre	o	destino.	Também	existe	aquele	comprometido	com	uma	rotina.	Nada	o	tira	do	roteiro.
É	o	tipo	prisioneiro.	Há,	porém,	uma	sublime	advertência	aos	dois	tipos...
	
O	arrebatamento	do	corpo
O	 amor	 também	 é	 corpo.	 Não	 se	 contenta	 com	 a	 alma,	 nem	 procura	 algum	 sentido.	 Desfaz	 a
individualidade,	mistura	as	personalidades,	dilui	a	civilidade	nos	poros	primatas	dos	amantes,	lançando-
os	nas	alturas	sublimes	da	humanidade.
	
A	Paixão
O	método	do	amor,	contra	as	amarguras	da	vida,	pode	trazer	ainda	mais	dependência,	frustração	e	dor,
pois	aquele	que	ama	fica	sujeito	à	perda.
A	Separação,	segundo	Belmiro	de	Almeida
Perda,	 na	 verdade,	 desde	 o	 mais	 prosaico	 "dar	 um	 tempo",	 "desencanar",	 até	 a	 infidelidade	 e	 a
infalibilidade	da	morte.
	
A	Separação,	segundo	Frida	Kahlo
Frida	faz	aqui	uma	referência	ao	divórcio	com	seu	marido	infiel,	o	polêmico	pintor	Diego	Rivera	(1886	-
1957)
O	arrebatamento	da	alma
	
Existe	 o	 tipo	 peregrino,	 aquele	 que	 não	 para	 em	 nenhum	 relacionamento.	 Nada	 o	 compromete,
proclama	sua	vitória	sobre	o	destino.	Também	existe	aquele	comprometido	com	uma	rotina.	Nada	o
tira	do	roteiro.	É	o	tipo	prisioneiro.	Há,	porém,	uma	sublime	advertência	aos	dois	tipos:
O	 turbilhão	 do	 amor,	 irresistível,	 indomável,	 tudo	 muda	 e	 tudo	 arrasta.	 Nas	 palavras	 da	 doce
poetisa	 chilena,	 Violeta	 Parra	 (1917-1967):	 "O	 amor	 é	 turbilhão,	 de	 pureza	 original...detém	 os
peregrinos,	libera	os	prisioneiros...".
A	passagem	de	um	ponto	ao	outro	foi	registrada	por	Eros	Ramazotti:	no	primeiro	estágio	(peregrino
ou	prisioneiro)	 evita-se	uma	história	 importante,	para	dali	há	pouco,	 cansado	da	mesmice,	 clamar	por
algo	duradouro.	Diz	o	músico	e	poeta	 italiano:	"Ma	ora	voglio	di	più"	 (Mas	agora	quero	algo	mais..)
"Una	storia	importante,	Quello	che	sei	 tu,	Forse	sei	 tu..."(..uma	história	 importante,	 justamente	o	que
você	é,	talvez	seja	você).
O	 amor	 tem	 seus	 caprichos	 e	 uma	 vez	 lá	 pode-se	 esperar	 um	 arrebatamento	 da	 alma,	 "um	 luxo
radioso	 de	 sensações”	 (Primo	 Basílio,	 Eça	 de	 Queirós).	 Aos	 prisioneiros,	 peregrinos	 e	 pessoas
importantes	 (forse	 sei	 tu)	 dedicamos	 este	 capítulo	 especial	 sobre	 o	 Amor,	 começando	 agora	 pelo
arrebatamento	 da	 alma.	 Já	 dizia	 Platão,	 que	 os	 caminhos	 do	 amor	 são	 os	 caminhos	 do	 conhecimento,
conhecimento	da	alma,	verdadeiro	conhecimento...
Amores	estranhos
	
"Carmen",	de	Bizet,	é	um	clássico	da	ópera,	um	hino	à	força	avassaladora	do	amor.	Em	sua	passagem
mais	 célebre	 a	 cigana	 nos	 alerta	 (na	 poderosa	 voz	 da	 mezzo-soprano	 grega	 Agnes	 Baltsa)	 sobre	 a
impossibilidade	de	controlá-lo.
O	amor	é	um	pássaro	rebelde
Que	ninguém	pode	prender,
Não	adianta	chamá-lo	(...)
Pois	só	vem	quando	quer
Julgas	tê-lo	apanhado,	ele	te	escapa;
Julgas	que	te	fugiu,	ele	te	agarra.
Georges	 Bizet	 escandalizou	 o	 mundo	 da	 ópera	 com	 sua	 anti-heroína:	 Carmem	 é	 uma	 cigana
sedutora	que	pode	arrasar	os	homens.	Sensual,	irresistível,	é	assassinada	pelo	amante.	Numa	das	poucas
avaliações	positivas	 da	 imprensa	do	 século	XIX,	 assim	o	 Le	National	 de	 Paris	 referiu-se	 à	 temática:
"Bizet	 quer	 pintar	 homens	 e	 mulheres	 de	 verdade,	 alucinados,	 atormentados	 pelas	 paixões,	 pela
loucura.	Assim,	a	orquestra	conta	suas	angústias,	seus	ciúmes,	suas	cóleras	e	a	insensatez	geral".
Amores	que	atormentam,	estranhos	amores.	Na	pungente	e	aguda	voz	de	Laura	Pausini:	"io	sapevo
che	 era	 una	 bugia"	 (sabia	 que	 era	 uma	mentira),	mas	mesmo	 assim	 estes	 "strani	 amori	mettono	 nei
guai"	(estes	estranhos	amores	nos	colocam	em	problemas).	Já	passaram	por	isto?	Nada	a	estranhar	pois
"in	realtà	siamo	noi"	(na	realidade	somos	nós).
Um	dos	efeitos	mais	estranhos	do	amor	é	o	turbilhão	de	sensações	que	lança	quem	ama	de	volta	aos
primeiros	amores.	Experiente	nas	ciências	do	mundo,	encontra-se	carente	nas	coisas	do	coração	e,	como
um	 adolescente	 de	 dezessete	 anos,	 o	 apaixonado	 viajante	 no	 túnel	 do	 tempo	 das	 emoções	 revive	 a
“pureza	original”	de	humildade	que	se	alia	à	única	ambição	de	simplesmente	desfrutar	da	presença	da
pessoa	amada:
Volver	a	los	diecisiete	después	de	vivir	un	siglo
Es	como	descifrar	signos	sin	ser	sabio	competente
Volver	a	ser	de	repente	tan	frágil	como	un	segundo
Volver	a	sentir	profundo	como	un	niño	frente	a	dios
‘(Violeta	Parra)
O	arrebatamento	do	corpo
	
Imagem:	"O	Sonho"	(1932)	Pablo	Picasso
	
O	 amor	 também	 é	 corpo.	 Não	 se	 contenta	 com	 a	 alma,	 nem	 procura	 algum	 sentido.	 Desfaz	 a
individualidade,	 mistura	 as	 personalidades,	 dilui	 a	 civilidade	 nos	 poros	 primatas	 dos	 amantes,
lançando-os	nas	alturas	sublimes	da	humanidade.	Nosso	 itinerário	do	amor	tem	agorao	auxílio	de
uma	sugestiva	 tela	de	Picasso	 (O	sonho)	 e	duas	 letras	do	mestre	Chico	Buarque:	O	que	 será,	 na
versão	conhecida	como	À	flor	da	pele	(1976)	e	Eu	te	amo	(1980)
Não	 adianta	 disfarçar,	 prezado	 leitor,	 prezada	 leitora.	 Pois	 quando	 acontece,	 "salta	 aos	 olhos",
"sobe	às	faces"	e	"aperta	o	peito".	Algo	lá	de	dentro	"desacata	a	gente"	e	já	sem	controle,	nem	recusa
(mas	"nem	é	direito	ninguém	recusar"),	você	se	despe	das	convenções,	lança	ao	chão	os	tratados,	rasga
os	preceitos,	ignora	os	bons	modos	e	se	"faz	mendigo"	a	suplicar	"o	que	não	tem	medida,	nem	nunca
terá,	o	que	não	tem	remédio,	nem	nunca	terá,	o	que	não	tem	receita".
Todo	o	 seu	corpo,	 leitor	e	 leitora,	 conspira	contra	a	 razão,	 rebela-se.	"Todos	os	 nervos	 estão	a
rogar,	 todos	 os	 órgãos	 estão	 a	 clamar"	 e	 arrebatado	 por	 tremores,	 ardores	 e	 suores,	 você	 apenas
acompanha	a	dança	medonha,	que	não	tem	vergonha,	nem	governo,	nem	juízo.
Você	vai	 tentar	 retomar	as	rédeas,	vai	buscar	num	canto	protegido	da	sua	alma	um	remédio,	uma
receita,	recorrendo	ao	seu	credo,	mas	nada:	nem	todos	os	dez	mandamentos,	nem	todos	os	unguentos,	toda
alquimia,	todos	os	santos,	todos	os	quebrantos.	Nada.
Hora	de	ir	embora.	Mas	com	que	pernas?	"Já	confundimos	tanto	as	nossas	pernas,	diz	com	que
pernas	eu	devo	seguir	".	Hora	de	partir,	mas	se	"nos	amamos	feito	dois	pagãos,	teus	seios	ainda	estão
nas	minhas	mãos,	me	explica	com	que	cara	eu	vou	sair".	A	memória	cuidará	do	retorno.	O	universo	está
em	conluio	para	retomar	"as	travessuras	das	noites	eternas".	No	guarda-roupa	"meu	paletó	enlaça	o	teu
vestido".
A	 dama	 que	 sonha	 acordada	 na	 poltrona,	 tomada	 por	 pigmentos	 tão	 intensos	 quanto	 os	 seus
pensamentos,	 bem	 poderia	 ser	 a	 dona	 do	 vestido,	 enlaçada	 naquele	 paletó	 das	 noites	 eternas.	 O
arrebatamento	do	corpo,	na	versão	de	Pablo	Picasso,	mistura	paixão	e	memória,	que	fornecem	a	matéria-
prima	 dos	 sonhos,	 estes	 entes	 viventes,	 autônomos,	 saltitantes,	 irreverentes	 e	 de	 hábitos	 noturnos	 em
nossas	mentes	como	lapsos	de	racionalidade	e	clarões	de	sensualidade.
A	técnica	cubista	faz	empréstimo	de	cores	fovistas	para	ensaiar	uma	cena	surrealista.	Nesta	fase	de
sua	carreira,	Picasso	cria	planos	sem	modelação	e	associa	cores	extravagantes	a	deformações	espaciais,
como	a	distorção	do	ombro	direito,	feito	almofada	para	a	cabeça.
O	que	será	que	lhe	dá?	Entre	sorridente	e	enigmática,	Mona	Lisa	cubista,	a	nossa	dama	entrega-se	a
devaneios	 inconfessáveis,	mas	 plenamente	 carregados	 de	 indícios	 sugestivos,	 como	 as	mãos	 atrevidas
que	 parecem	 causar	 um	 arrepio,	 verdadeiro	 motivo	 da	 contorção	 involuntária	 do	 pescoço	 que	 assim
ordena	ao	rosto	colar-se	ao	ombro.	O	que	será,	que	será?
"Há	 várias	 ambiguidades:	 a	 cor	 lavanda	 contraposta	 ao	 verde;	 o	 vermelho	 ao	 amarelo;	 parte	 da
poltrona	é	volumétrica,	parte	é	achatada;	a	expressão	muda,	pois	de	perfil	é	de	soberba,	de	frente	é
sorridente,	 o	 que	 corresponde	 a	 um	movimento	 psicológico	 interno.	 As	 expressões	 respondem	a	 um
desejo	 onírico	 erótico,	 o	 que	 é	 reforçado	 pelo	 gesto,	 pela	 pose,	 tanto	 quanto	 pela	 mudança	 da
expressão	facial;	o	perfil	dividido	da	face	é	indisfarçavelmente	fálico"[31]
http://www.humanarte.net/amor1.html
A	paixão[32]
	
"Nunca	amamos	ninguém.	Amamos,	tão-somente,	a	ideia	que	fazemos	de	alguém.	É	a	um	conceito
nosso	-	em	suma,	é	a	nós	mesmos	-	que	amamos.	Isso	é	verdade	em	toda	a	escala	do	amor.	No	amor
sexual	buscamos	um	prazer	nosso	dado	por	intermédio	de	um	corpo	estranho.	No	amor	diferente	do
sexual,	buscamos	um	prazer	nosso	dado	por	 intermédio	de	uma	ideia	nossa"	Fernando	Pessoa	-	O
Livro	do	Desassossego.
Freud	nem	sempre	é	 leitura	árdua.	Não	poucas	vezes	sua	escrita	é	envolvente	como	uma	poesia.
Tanto	que	se	aproxima	do	mestre	Fernando	Pessoa.	Na	célebre	obra	O	Mal-estar	da	Civilização,	Freud
toma	 o	 leitor	 pela	 mão	 e	 o	 conduz	 aos	 meandros	 enigmáticos	 do	 sentido	 da	 vida.	 Nesta	 "narrativa
científica",	 se	 é	 que	 tais	 termos,	 isolados	 ou	 associados,	 aplicam-se	 ao	 seu	 estudo,	 lança	 um	 alerta
inicial,	algo	pessimista,	pesaroso:	"A	vida	tal	qual	nos	coube	é	muito	difícil	para	nós,	traz	demasiadas
dores,	 decepções,	 tarefas	 insolúveis”[33].	 Mas	 como	 "é	 simplesmente	 o	 programa	 do	 princípio	 do
prazer	que	estabelece	a	finalidade	da	vida",	vários	caminhos	se	nos	apresentam,	disponíveis	ao	nosso
arbítrio	(mas	também	aos	caprichos	do	inconsciente)	para	enfrentar	as	frustrações	e	a	dor,	que	derivam
de	três	fontes,	a	saber,	o	corpo,	a	natureza	e	a	sociedade.
Alguns	tentam	os	entorpecentes,	já	que	toda	dor	é	dor	do	corpo.	Não	tem	efeito	duradouro,	dizem.
Outros	 enveredam	pela	 recusa	 deste	mundo	 cruel	 e	 se	 lançam	 pelas	 estradas	 e	 ruas	 como	 andarilhos,
enfurnam-se	 nas	 florestas,	 conventos	 e	 retiros	 espirituais	 como	 eremitas	 ou	 subvertem	 internamente	 o
mundo	externo,	recriando-o	mentalmente,	já	sem	as	imperfeições	mais	intoleráveis.	Este	é	o	paranoico.
Mas	a	paranoia	não	nos	é	 tão	estranha	assim,	 já	que	"cada	um	de	nós,	em	algum	ponto,	age	de	modo
semelhante	ao	paranoico,	corrigindo	algum	traço	 inaceitável	do	mundo	de	acordo	com	seu	desejo	e
inscrevendo	esse	delírio	na	realidade".
Há	ainda	a	"fuga	para	a	doença	neurótica".	E	se	 tudo	 isto	 falhar,	há	um	recurso	extremo,	 lá	pela
faixa	dos	quarenta	anos	de	idade	ou	mais:	"o	indivíduo	que	numa	idade	posterior	fracassa	nos	esforços
pela	 felicidade,	encontra	ainda	consolo	no	prazer	obtido	por	meio	da	 intoxicação	crônica,	ou	 faz	a
desesperada	tentativa	de	rebelião	que	é	a	psicose".
Antes,	porém,	do	recurso	à	neurose	e	à	psicose,	o	ser	humano	(seja	lá	aquilo	que	for	de	fato)	tenta
algo	bem	arriscado,	talvez	o	mais	ineficaz:	o	amor.	Freud	não	é	nada	otimista	quanto	ao	método	do	amor:
"nunca	 estamos	 mais	 desprotegidos	 ante	 o	 sofrimento	 do	 que	 quando	 amamos,	 nunca	 mais
desamparadamente	infelizes	do	que	quando	perdemos	o	objeto	amado	ou	seu	amor"	[34]
Aquele	 que	 recorre	 ao	 método	 do	 amor	 logo	 se	 dá	 conta	 de	 que	 se	 tornou	 demasiadamente
dependente	do	mundo,	isto	é,	do	objeto	(a	pessoa)	de	amor.	Fica	sujeito	à	perda,	seja	por	morte,	seja	por
infidelidade.	Uma	solução	se	apresenta	na	figura	do	amor	universal,	do	qual	São	Francisco	é	citado	por
Freud	como	o	exemplo	mais	sofisticado.	Amar	a	todos	protege	aquele	que	ama	da	perda	e	da	frustração:
"o	que	produzem	em	si	mesmas	desse	modo,	um	estado	de	sentimento	uniforme,	terno,	estável,	já	não
tem	muita	 semelhança	 exterior	 com	 a	 vida	 amorosa	 genital,	 tempestuosamente	 agitada,	 de	 que	 no
entanto	deriva.	Nessa	utilização	do	amor	para	o	sentimento	interior	de	felicidade,	quem	mais	avançou
foi	talvez	São	Francisco	de	Assis"[35]
O	leitor	certamente	não	tem	vocação	para	santo,	então	vamos	tentar	outra	coisa.	Vamos	escolher	um
objeto	(pessoa)	de	amor.	Fortíssimas	restrições	são	então	imediatamente	mobilizadas	pela	sociedade:	"a
civilização	atual	dá	a	entender	que	só	quer	permitir	relações	sexuais	baseadas	na	união	indissolúvel
entre	um	homem	e	uma	mulher,	que	não	lhe	agrada	a	sexualidade	como	fonte	de	prazer	autônoma	e
que	está	disposta	a	tolerá-la	somente	como	fonte,	até	agora	insubstituível,	de	multiplicação	dos	seres
humanos"[36].
Quase	todos	escolhem	o	amor	narcísico,	cuja	definição	aproxima	o	psicanalista	e	o	poeta.	Em	outra
obra,	chamada	Introdução	ao	Narcisismo,	Freud	demonstra	como	as	pessoas	constroem	ao	longo	da	vida
uma	 imagem	 idealizada	 de	 si	 própria	 pela	 qual	medem,	 guiam	 e	 corrigem	 o	 seu	 comportamento	 real,
algumas	de	forma	mais	aguda	e	crítica	que	outras.	Aquela	autoimagem	idealizada	chama	de	Ideal	do	Eu,
em	oposição	ao	Eu	real.	Assim,	todos	nós	somos	levados	automaticamente	a	apreciar	tudo	aquilo	que	se
parece	com	o	ideal	do	Eu,	tudo	o	que	exala	algo	de	perfeição	e,	principalmente	de	estabilidade	psíquica
(tema	já	explorado	aqui	no	capítulo	"A	arte	da	inveja").
Para	Freud,	este	mecanismo	opera	no	momento	da	escolha	da	pessoa	amada,	isto	é,	somos	atraídos
poraquilo	 que	 nos	 falta,	 amamos	 o	 pedaço	 que	 completaria	 a	 imagem	 engrandecida	 de	 nós	mesmos.
Assim,	enquanto	não	temos	a	pessoa	amada,	sentimos	mais	intensamente	esta	falta,	o	Eu	se	esvazia,	o	que
faz	 do	 apaixonado	 uma	 pessoa	 esvaziada	 de	 narcisismo,	 enfraquecida	 na	 imagem	 interna,	 em	 uma
palavra,	humilde:
"A	dependência	do	objeto	amado	tem	efeito	rebaixador;	o	apaixonado	é	um	humilde.	Alguém	que	ama
perdeu,	por	assim	dizer,	uma	parte	de	seu	narcisismo	e	apenas	sendo	amado	poderá	reavê-lo"[37]
O	poeta,	que	não	é	um	fingidor,	captou	a	mensagem	de	forma	direta,	diferente,	clara	e	evidente.	Diz
o	poema	que	abre	este	capítulo:	"Nunca	amamos	ninguém.	Amamos,	tão-somente,	a	ideia	que	fazemos
de	alguém".	Perfeito,	Pessoa	freudiano!
Ao	 final	 e	 ao	 cabo,	 o	 fingidor	 de	 verdade	 é	 todo	 aquele	 que	 ama,	 finge	 que	 ama,	 ama
egoisticamente	 a	 si	 mesmo	 na	 figura	 paranoicamente	modificada	 da	 pessoa	 amada.	 Na	 construção	 da
felicidade,	 ao	 compor	 um	 plano	 de	 vida	 para	 si	mesma,	 a	 pessoa	 se	 cria,	 se	 faz	 em	 sua	mente	 e	 diz
"Assim	 sou	 eu,	 este	 é	 meu	 jeito"	 e	 quando	 ficar	 evidente	 que	 este	 jeito	 não	 satisfaz,	 toma	 posse	 de
outrem,	 através	 do	 namoro,	 casamento	 ou	 seja	 lá	 o	 que	 for,	 para	 corrigir	 e	 completar	 a	 autoimagem
fortalecida:
"O	 ideal	 sexual	 pode	 se	 colocar	 num	 interessante	 vínculo	 auxiliar	 com	 o	 ideal	 do	 Eu.	 Onde	 a
satisfação	 narcísica	 depara	 com	 obstáculos	 reais,	 o	 ideal	 do	 Eu	 pode	 ser	 usado	 para	 satisfação
substitutiva.	Então	a	pessoa	ama,	em	conformidade	com	o	tipo	da	escolha	narcísica	de	objeto,	aquilo
que	já	foi	e	que	perdeu,	ou	o	que	possui	os	méritos	que	jamais	teve.	A	fórmula	paralela	à	de	cima	é:
aquilo	que	possui	o	mérito	que	falta	ao	Eu	para	torná-lo	ideal	é	amado"[38]
Fernando	Pessoa	resume,	explica	e	não	complica:
Quando	te	tinha	diante
Do	meu	olhar	submerso
Não	eras	minha	amante…
Eras	o	Universo…
Agora	que	te	não	tenho,
És	só	do	teu	tamanho.
	
Estavas-me	longe	na	alma,
Por	isso	eu	não	te	via…
Presença	em	mim	tão	calma,
Que	eu	a	não	sentia.
Só	quando	meu	ser	te	perdeu
Vi	que	não	eras	eu.
Fernando	Pessoa	-		Amei-te	por	te	amar
A	separação
	
Imagem:	"Arrufos"	(1887)	Belmiro	de	Almeida
“Ooh,	it's	so	typical,	love	leads	to	isolation”		(Separate	Lives,	Phill	Colins)
	
Apesar	de	toda	a	elegância	dos	dois	personagens	e	do	luxo	da	decoração,	há	um	aspecto	prosaico,	quase
grotesco	 na	 briga	 do	 casal	 acima.	 Possivelmente	 acabaram	 de	 chegar	 de	 uma	 festa	 ou	 algum	 evento
social,	 pois	 ela	 largou	 apressadamente	o	 chapéu	 sobre	 a	 poltrona	 e,	 enquanto	 enterra	 o	 rosto	 entre	 os
braços,	em	atitude	de	pranto,	ele	se	despe	de	uma	das	suas	luvas,	senta-se	calmamente,	pernas	cruzadas,
segura	 o	 charuto	 em	 atitude	 contemplativa,	 indiferente	 ao	 sofrimento	 feminino.	 Ela	 ocupa	 a	 metade
esquerda	da	composição	diagonal,	amplamente	marcada	pela	tapeçaria,	estofado	e	cortina.	Ele	se	situa	na
metade	oposta,	diante	de	uma	parede	mais	 simplória	quanto	à	decoração.	O	ponto	de	 ligação	entre	os
dois	campos	é	justamente	a	área	de	proximidade	entre	a	cauda	da	saia	e	a	sola	do	sapato	dele.	Não	há
dúvida:	 ela	 acaba	 de	 tomar	 um	 pé-na-bunda.	 Assim	 a	 cena	 de	 Belmiro	 de	 Almeida	 (1858	 -	 1935)	 é
descrita	pelo	historiador	da	arte	e	professor	da	PUC-Rio,	Rafael	Cardoso:
"É	a	 famosa	 cena	daquilo	 que	a	 sabedoria	 popular	 apelidou	de	pé	 na	bunda,	 o	 que	 está	 reforçado
visualmente	 pela	 proximidade	 de	 seu	 pé	 erguido	 com	o	 estofadíssimo	 traseiro	 de	 sua	 companheira.
Pode	parecer	exagero	e	maldade	esta	última	afirmação,	mas	a	composição	não	deixa	muita	dúvida"
[39]
Belmiro	de	Almeida	teve	um	papel	muito	importante	na	história	da	arte	brasileira,	justamente	com
esta	 tela,	 que	 foi	 tomada	 à	 época	 como	 exemplo	 de	 uma	 nova	 arte,	 voltada	 a	 um	 assunto	 moderno,
recusando	 os	 temas	 tradicionais	 das	 batalhas	 e	 da	 chamada	 Grande	 Arte.	 Belmiro	 e	 sua	 tela	 se
converteram	 em	 ícones	 de	 um	movimento	 de	 jovens	 artistas	 em	 confronto	 com	 os	 velhos	métodos	 da
Academia	Imperial	de	Belas	Artes,	equivalente	ao	papel	que	mais	 tarde	desempenharia,	na	história	do
modernismo	brasileiro,	a	obra	de	Anita	Malfati	e	sua	famosa	exposição	de	1917.
O	Dicionário	Houaiss	traz	esta	definição	para	Arrufo:	"mágoa	ou	zanga	passageira	entre	pessoas
que	 se	 gostam,	 geralmente,	 entre	 namorados".	 Os	 arrufos	 da	 tela	 parecem	 definitivos,	 numa
demonstração	do	que	canta	Phill	Colins	(na	citação	que	abre	este	capítulo).	Se	é	mesmo	verdade	que	o
amor	 conduz	 à	 solidão,	 tão	 típico	 assim,	 então	 vamos	 finalizar	 “A	 arte	 do	 amor”	 com	 o	 tema	 da
separação.	Perda,	na	verdade,	desde	o	mais	prosaico	"dar	um	tempo",	"desencanar",	até	a	infidelidade	ou
a	infalibilidade	da	morte.	Afinal,	desde	tenra	idade	nos	acostumamos	à	perda	e	às	frustrações,	o	que	nos
faz	mais	resistentes,	fortes	e,	diria	mesmo,	verdadeiramente	preparados	para	a	vida	feliz.
Existe	a	separação	por	envelhecimento	da	relação.	Não	pense	que	só	se	dá	com	os	cinquentões.	Há
muitos	jovens,	adolescentes	inclusive,	que	desqualificam	seu	próprio	amor	na	mesmice	do	ritual,	do	tipo
"casa,	cinema,	televisão",	esquema	apontado	por	Renato	Russo.	Chegam	a	ser	cansativos	e	tediosos	até
para	 o	 observador	mais	 insensível.	Alguns	 casais,	 cônjuges	 pela	 lei,	 deparam-se	 com	o	debilitamento
precoce	da	paixão,	convertida	velozmente	em	pálida	 imagem	de	um	passado	recente	e	 radioso.	Outros
cozinham	os	sentimentos	no	forno	lento	do	tempo,	que	tudo	muda,	tudo	transforma.	Todos	eles,	cada	qual
à	sua	maneira,	envelheceram,	perderam	a	cor,	como	a	"Camisola	do	Dia",	de	Herivelto	Martins	(1912	-
1992),	imortalizada	na	voz	de	Chico	e	Betânia,	show	e	vinil	de	1975:
"A	camisola	que	um	dia
Guardou	a	minha	alegria
Desbotou,	perdeu	a	cor
Abandonada	no	leito
http://www.humanarte.net/amor2.html
Que	nunca	mais	foi	desfeito
Pelas	vigílias	de	amor"
Esta	modalidade	de	separação	não	costuma	ser	 traumática,	o	que	não	se	constitui	em	regra	geral
para	as	outras	modalidades,	como	parece	testemunhar	a	bela	jovem	da	cena	acima,	cuja	elegância	não	a
livrou	de	tomar	um	fora	clássico.	Fica	a	dúvida	se	a	surpresa	e	o	pranto	da	nossa	protagonista	logo	darão
lugar	 ao	 ódio	 e	 à	 amargura	 ou,	 como	 seria	mais	 comum,	 se	 tudo	 isso	 vai	 jogá-la	 em	um	 turbilhão	 de
emoções	 que	 acabará	 por	 imobilizá-la	 numa	 tristeza	 obsessiva	 e	masoquista,	 antigamente	 chamada	 de
"fossa".	Afinal,	amor	e	dor	estão	casados	há	muito	tempo.
O	abandono	(ou	traição)	se	parece	com	a	perda	por	morte.	Esta	leva	ao	luto,	aquele	à	melancolia.
Um	provem	da	perda	real	(através	da	morte),	outro	da	perda	de	uma	relação.	Em	ambos	os	casos	há	um
forte	 sentimento	 de	 desinteresse	 pela	 vida	 e	 pelo	 mundo,	 mas	 a	 melancolia	 acrescenta	 ainda	 o
desinteresse	por	si	mesmo:
"A	melancolia	 se	 caracteriza,	 em	 termos	 psíquicos,	 por	 um	 abatimento	 doloroso,	 uma	 cessação	 do
interesse	pelo	mundo	exterior,	perda	da	capacidade	de	amar,	inibição	de	toda	atividade	e	diminuição
da	 autoestima,	 que	 se	 expressa	 em	 recriminações	 e	 ofensas	 à	 própria	 pessoa	 e	 pode	 chegar	 a	 uma
delirante	expectativa	de	punição.	Esse	quadro	se	torna	mais	compreensível	para	nós	se	considerarmos
que	o	luto	exibe	os	mesmos	traços,	com	exceção	de	um:	nele	a	autoestima	não	é	afetada"[40]
Freud	 acrescenta	 ainda	 ao	 quadro	 da	 melancolia	 a	 presença	 de	 um	 forte	 sentimento	 de
ambivalência,	isto	é,	de	amor	e	ódio,	por	"uma	real	ofensa	ou	decepção	vinda	da	pessoa	amada".	Este
desenho	das	emoções	do	sofrimento	de	amor	é	ampliado	em	meados	do	século	XX	na	obra	de	Melanie
Klein	(1882-1960).	Sem	recusar	as	descobertas	de	Freud	sobre	a	vida	inconsciente,	Klein	muda	o	foco
das	 investigações	da	mente,	deslocando-o	das	pulsões	e	da	 libido	para	as	 fantasias	e	 imagens	 internas
que	povoam	o	mundo	da	criança	e	do	adulto.	Procura	demonstrar	em	suas	pesquisas	que	as	frustrações	da
primeira	infância	criam	condições	de	desenvolvimentoe	amadurecimento	emocional,	principalmente	se
forem	sucedidas	pelo	esforço	real	de	superação,	reparação	e	gratidão.	Se	Freud	descobriu	a	criança	que
habita	 o	 adulto,	 Klein	 descortinou	 a	 criancinha	 de	 poucos	 meses	 de	 idade	 que	 permanece	 nas	 fases
posteriores	da	infância	e	da	vida	adulta.
Todo	aquele	que	ama	e	sofre	de	amor	tem	muito	a	aprender	com	as	ponderações	de	Melaine	Klein,
pois	 ela	 oferece	 um	 panorama	 ainda	 mais	 sutil	 e	 revelador	 sobre	 as	 frustrações,	 abandono	 e	 luto,
argumentando	sobre	a	necessidade	de	elaborar	e	superar	a	perda.
"Toda	 a	 análise	 kleiniana	 caminha	 no	 rumo	 de	 ampliar	 a	 capacidade	 de	 o	 indivíduo	 reparar
criativamente	e	agradecer.	Ou	seja,	reparação	e	gratidão	são,	ao	fim	e	ao	cabo,	os	grandes	curadores
das	doenças	da	alma"[41]
Não	adianta,	portanto,	reagir	com	fúria	e	amargura	quando	se	perde	a	pessoa	amada,	à	maneira	do
amante	encolerizado	que	brada	"vou	riscar	o	seu	nome	da	minha	agenda".	Também	não	vale	desmerecer	a
própria	dor	e	vangloriar-se	de	que	agora	está	melhor,	vai	aproveitar	a	vida	e	coisas	do	tipo.	Para	curar	é
preciso	 elaborar	 a	 dor,	 reconhecer	 a	 felicidade	 que	 desfrutou	 com	 a	 pessoa	 que	 agora	 te	 abandonou.
Também	de	nada	valerá	autoflagelar-se	com	a	chibata	da	culpa,	a	obsessiva	ideia	de	que	se	é	merecedor
do	castigo,	na	 forma	da	perda.	Outra	 saída	enganosa	é	não	 sair	 jamais	da	 relação,	mesmo	na	 solidão,
alimentando-a	 continuamente	 com	 a	 ideia	 de	 que	 o	 retorno	 está	 próximo	 (só	 se	 for	 de	 Jesus!).	 Este
método	é	apenas	uma	derivação	do	anterior,	da	imolação	da	alma	de	quem	se	presta	a	arrastar	sua	mísera
existência	ao	sabor	masoquista	da	espera,	da	culpa	e	da	estagnação	do	tempo.
"Curar	as	dores	psíquicas	não	é	anestesiar-se.	Ao	contrário,	é	ampliar	as	capacidades	de	suportá-las
e	 transformá-las	em	benefício	de	si	e	dos	outros	 (...).	Aos	poucos	perde-se	a	vergonha	de	sentir	dor
psíquica,	 ao	 perceber	 que	 a	 dor	 só	 diminui	 e	 inspira,	 depois	 de	 ser	 acolhida,	 vivida,	 pensada	 e
atravessada	(..)	Ela	deixa	de	ser	vista	e	experimentada	como	castigo	e	passa	a	ser	uma	oportunidade
de	estar	mais	vivo,	em	um	contato	muito	mais	vibrante	com	o	mundo	 físico	e	social	 (...)	 tornando	a
pessoa	mais	sensível	e	humana.	Isso	é	o	que	chamamos	de	atravessar	um	luto,	é	perder	para	ganhar
em	delicadeza,	insight,	novas	formas	de	sentir	prazer	e	fazer	contatos"[42]
Enfim,	se	pudéssemos	adentrar	a	cena	e	aconselhar	nossa	bela	protagonista,	não	teríamos	nenhuma
solução	fácil	para	lhe	propor,	nenhuma	panaceia,	nem	remédios	de	efeito	imediato.	Poderíamos	apenas
oferecer	um	ombro	amigo	e	auxiliá-la	na	longa	jornada	de	elaboração,	reparação,	gratidão	(sim!)	e	cura.
Até	ela	se	levantar,	dar	a	volta	por	cima	e	encontrar	alguém	melhor	do	que	este	almofadinha	sentado	aí.
A	separação,	segundo	Frida	Kahlo
	
Imagem:	"Autorretrato	con	pelo	corto"	(1940)	F.	Kahlo
	
Frida	 Kahlo	 (1907	 -	 1954),	 um	 dos	 maiores	 destaques	 da	 pintura	 mexicana,	 elaborou	 diversos
autorretratos	 em	 sua	 carreira,	 associando	 elementos	 surrealistas	 e	 o	 imaginário	místico	 do	 povo
mexicano.	Este	retrato,	uma	das	mais	belas	obras-primas	do	Moma,	é	diferente.	Se	antes	sempre	se
pintava	 com	cabelos	 longos	 e	 trajes	 coloridos	 típicos	das	 camponesas	de	 seu	país,	 agora	 aparece
com	cabelo	cortado	e	vestuário	masculino	(terno	e	sapatos).	Um	terço	da	composição	é	dominado
por	mechas	do	cabelo	recém	aparado,	espalhadas	cuidadosamente	pelo	chão,	formando	um	mosaico
misterioso,	 semelhantes	 a	 raízes	 ou	pequenos	 tentáculos	 que	 rondam	a	 figura	 central	 sentada	na
cadeira.	 Ainda	 tem	 uma	 mecha	 na	 mão	 esquerda	 e	 a	 tesoura	 na	 mão	 direita.	 O	 olhar	 fixo	 no
observador	evidencia	 sua	nova	condição	 feminina.	Frida	 faz	aqui	uma	referência	ao	divórcio	 com
seu	marido	infiel,	o	polêmico	pintor	Diego	Rivera	(1886	-	1957)
Na	parte	superior	do	fundo	abstrato	há	uma	inscrição:	"Mira	que	si	te	quise,	fué	por	el	pelo,	Ahora
que	estás	pelona,	ya	no	te	quiero"	("Olha,	quanto	te	amava,	era	pelo	teu	cabelo;	agora	que	estás	careca
não	 te	 amo	 mais").	 A	 letra	 de	 uma	 canção	 mexicana	 muito	 popular	 dá	 conta	 de	 suas	 deliberadas
motivações	 autobiográficas.	 Diego	 era	 apaixonado	 pela	 longa	 cabeleira	 de	 Frida,	 mas	 tanto	 a	 frase
quanto	 a	 cena	 encerram	 certa	 ambivalência.	 Afinal,	 quem	 não	 ama	mais	 a	 quem?	 E	 quem	 é	 que	 está
lamentando?	Quem	é	o	agredido?	Ficar	feia	é	uma	reação	racional	para	dar	o	troco	no	parceiro	traidor?
As	roupas	são	de	Diego,	provavelmente.	Pelo	menos	não	é	o	seu	tamanho,	já	que	ela	visivelmente
"sobra"	 dentro	 do	 terno.	 O	 ódio	 da	 mulher	 abandonada	 a	 teria	 levado	 a	 satirizar	 o	 próprio	 marido,
transformando-o	em	mulher	careca,	atingindo	justamente	a	virilidade	do	garanhão	incorrigível.	E	então	a
frase	teria	ela	como	autora	e	ele	como	receptor.	Eu	que	não	te	quero	mais,	pois	sua	infidelidade	o	deixou
desprezível.	
	
Mas	o	rosto	é	dela.	Então	vamos	tentar	outra	explicação.	Frida	se	despreza,	num	típico	ataque	de
autodesvalorização,	de	perda	de	autoestima	proveniente	da	perda	do	objeto	amado	(seu	homem).	É	uma
situação	muito	 comum:	 a	 pessoa	 traída	 vai	 do	 ódio	 ao	 sofrimento	melancólico,	 a	 "fossa",	 e	 o	mundo
perde	 interesse,	 juntamente	 com	 o	 interesse	 em	 si	 mesmo.	 A	 pessoa	 não	 come,	 tem	 insônia	 e	 fica
antissocial.
	
Como	vimos,	Freud	explora	este	estado	de	espírito	autodestrutivo,	como	reação	da	perda	real	ou
imaginada.	 No	 luto	 (morte	 da	 pessoa	 amada)	 há	 também	 desinteresse	 pelo	mundo,	mas	 não	 perda	 da
autoestima.	Na	melancolia	há	um	esvaziamento	do	Eu	ao	mesmo	tempo	em	que	a	pessoa	traída	ainda	se
identifica	com	a	pessoa	do	traidor,	ainda	que	inconscientemente.	Ela	não	consegue	e	não	encontra	forças
para	 se	 desligar	 do	 sentimento	 amoroso,	 embora	 já	 esteja	 separada	 da	 pessoa	 amada.	 É	 quando
afirmamos:	"ele	(ela)	não	a	(o)	esqueceu	ainda".	Mas	a	pessoa	luta	e	se	detesta	por	não	esquecer	e	então
dá	vasão	ao	ódio	que	se	instala	sem	seu	coração,	primeiro	contra	ele,	depois	contra	si	própria.
	
"Se	o	amor	ao	objeto	-	a	que	não	se	pode	renunciar,	quando	se	tem	de	renunciar	ao	objeto	mesmo	-
refugia-se	na	identificação	narcísica,	o	ódio	atua	em	relação	a	este	objeto	substitutivo,	insultando-o,
rebaixando-o,	 fazendo-o	 sofrer	 e	 obtendo	 uma	 satisfação	 sádica	 desse	 sofrimento.	 O	 auto	martírio
claramente	 prazeroso	 da	 melancolia	 significa,	 tal	 como	 o	 fenômeno	 correspondente	 da	 neurose
obsessiva,	 a	 satisfação	de	 tendências	 sádicas	 e	 de	 ódio	 relativas	 a	 um	objeto,	 que	 por	 essa	 via,	 se
voltaram	contra	a	própria	pessoa"[43]
	
http://blog.humanarte.net/2014/09/frida-do-moma.html
http://www.humanarte.net/amor3.html
O	objeto	é	Diego,	a	quem	ela	renunciou	(ela	pediu	o	divórcio).	Mas	não	pode	renunciar	ao	amor	ao
objeto	(não	"esqueceu"),	nem	pode	se	perdoar	por	esta	 incapacidade.	Identificou-se	com	o	objeto	a	 tal
ponto	que	se	tornou	Diego	(com	terno,	sapatos	e	cabelo	curto)	e	então	passou	a	atacar	o	objeto	substituto
(ela	mesma),	ao	lhe	negar	o	amor	com	a	frase	da	música	popular.	A	ambivalência	(amor	e	ódio)	era	muito
conhecia	pelos	amigos	do	polêmico	casal.	No	ano	seguinte	eles	voltaram.	Sim,	Diego	e	Frida	se	casaram
novamente	em	1941.
Conclusão:	ser	diferente,	para	ser	humano
	
"O	ser	humano	não	é	uma	criatura	branda,	ávida	de	amor,	que	no	máximo	pode	se	defender,	quando	atacado.	(...)	Para	ele	o
próximo	não	constitui	apenas	um	possível	colaborador	e	objeto	sexual,	mas	também	uma	tentação	para	satisfazer	a	tendência	à
agressão,	para	explorar	seu	trabalho	sem	recompensá-lo,	para	dele	se	utilizar	sexualmente	contra	a	sua	vontade,	para	usurpar	seu
patrimônio,	para	humilhá-lo,	para	infligir-lhe	dor,	para	torturá-lo	e	matá-lo"	(Freud.	O	Mal-estar	na	Civilização,	1930)
	
A	intrigante	coexistência	de	amor	e	ódio,	algumas	vezes	na	companhia	da	inveja,	foi	objeto	de	reflexão
da	humanidade	em	vários	períodos	históricos.	O	bem	e	o	mal,	o	certo	e	o	errado,	o	virtuoso	eo	vicioso,
foram	 burilados	 e	 elaborados	 pelos	 gregos,	 pela	 filosofia	 cristã,	 pelos	 modernos	 e	 pelos
contemporâneos.	 Já	 citamos	 aqui,	 a	 esse	 respeito,	 a	 crença	 medieval	 na	 “dupla	 espionagem”,	 termo
utilizado	pelo	medievalista	Jacques	Le	Goff[44]	para	abordar	o	misticismo	cristão	presente	na	sociedade
feudal,	 na	 qual	 o	 amor	 e	 o	 ódio	 apareciam	 sob	 a	 forma	 de	 anjos	 e	 demônios.	 Embora	 algumas
denominações	religiosas	ainda	hoje	se	utilizem	fielmente	deste	conceito,	é	preciso	muita	precaução,	pois
há	 a	 possibilidade	 de	 se	 deslocar	 a	 responsabilidade	 dos	 atos	 para	 forças	 externas	 ao	 indivíduo,
correndo	o	risco	de	eximi-lo	de	culpa	e,	o	mais	 importante,	 retirando-lhe	a	capacidade	de	 intervenção
sobre	forças	que	se	querem	irremediáveis.
De	 fato,	 o	 amor,	 assim	 como	 o	 ódio	 e	 a	 inveja,	 são	 personagens	 que	 parecem	 se	 movimentar
livremente	no	coração	e	na	mente	dos	seres	humanos,	testando	cotidianamente	a	condição	verdadeira	de
ser	 e	 de	 humano.	 Embora	 essencialmente	 de	 natureza	 positiva	 e	 construtiva,	 o	 amor	 pode	 servir	 aos
desígnios	 destrutivos	 do	 ódio	 e	 da	 inveja.	 Assim,	 as	 três	 entidades	 comportam-se	 como	 se	 fossem
dotados	de	vontade	própria	e	disputam	o	controle	do	hospedeiro	(eu	e	você),	que	vai	ficando	cada	vez
mais	refém	das	atitudes	deles,	espantados	com	suas	façanhas	e	temerosos	de	seu	poderio.	O	hospedeiro
reluta,	mas	acaba	criando	laços	afetivos	com	seus	moradores	internos,	inquilinos	barulhentos	que	exibem
artimanhas	de	sedução,	convencimento	e	conquista.
É	uma	espécie	de	trindade	hipnótica,	mas	não	é	una,	nem	harmônica,	muito	menos	indivisível.	Pelo
contrário,	é	conflituosa	e	tende	à	destruição,	isto	é,	cada	um	destes	misteriosos	personagens	coloca	em
ação	um	programa	de	eliminação	dos	outros	residentes	do	vulnerável,	passivo	e	imprestável	hospedeiro.
Justificativas	 são	 suas	 armas.	O	 ódio,	mais	 do	 que	 os	 outros	 dois,	 é	mestre	 em	 inventar	mirabolantes
explicações	para	tomar	conta	do	robótico	hospedeiro,	mais	para	zumbi	do	que	para	humano.	Previamente
manipuladas	 e	 destiladas,	 religião	 e	 ideologias,	 assim	 como	 invencionices	 pseudocientíficas	 são
prontamente	 injetadas	 na	 corrente	 sanguínea	 do	 submisso	 “estar”	 humano,	 já	 que	 “ser”	 seria	 uma
condição	 permanente,	 o	 que	 não	 se	 enquadra	 no	 caso	 em	questão.	 São	moradores	 tão	 ambiciosos	 que
colocam	a	moradia	toda	em	risco:	de	vida,	de	doença,	de	perda,	isolamento,	castigo,	exílio,	prisão	e	de
solidão.
Astutos,	 percebem	 o	momento	 crítico	 de	 evitar	 o	 fim	 do	 hospedeiro,	 tecendo	 alianças	 entre	 si.
Claro,	 ódio	 e	 inveja	 são	 parceiros	 naturais	 e	 se	 alimentam	um	do	 outro.	No	 entanto,	 parcerias	menos
óbvias	também	se	efetuam.	Já	vimos,	por	exemplo,	como	a	inveja	se	alia	ao	amor,	no	tipo	narcísico.	Já
vimos	até	como	o	amor	de	pai	 e	de	mãe	pode	ocultar	 altíssimo	nível	de	 inveja,	 envenenando	o	corpo
familiar	pelo	desejo	inconsciente	de	destruir	o	filho.	A	inveja	no	seio	familiar	-	 	campo	primordial	do
amor	-	é	tão	significativa	que	consta	em	vários	ensinamentos	bíblicos,	como	pudemos	apreciar.
Há	ainda	a	modalidade	edipiana	da	inveja,	já	que	toda	criança	aprende	pelo	exemplo	dos	adultos,
copiando-lhes	os	códigos	de	comportamento,	invejando	pai	e	mãe,	desejando	os	prazeres	da	vida	adulta
na	adolescência	e	tomando	para	si,	mais	tarde,	pais	substitutos	(professores,	artistas,	políticos,	parceiros,
amigos)	 como	 inspiração,	 um	 derivativo	 da	 inveja	 que,	 nessa	 posição,	 é	 culturalmente	 considerada
“inveja	 saudável”.	 Em	 todos	 os	 casos	 indicados,	 o	 amor	 segue	 de	 mãos	 dadas	 com	 a	 inveja,	 sem
constrangimento,	tarefa	do	inconsciente.
Ao	contrário	do	amor	e	do	ódio,	esse	inquilino	travesso	–	a	inveja	-	procura	passar	despercebido	a
seu	 senhorio	 alojado	 na	 parte	 de	 cima	 do	 edifício	mental.	 Praticamente	 clandestino,	 humildemente	 se
retrai	 para	 assim	 agir	 mais	 livremente	 nos	 porões.	 Sua	 estratégia	 é	 tão	 mais	 exitosa	 quanto	 mais	 o
senhorio	lá	de	cima	negar	sua	existência,	a	ponto	de	garantir	com	orgulho	e	soberba	que	em	sua	morada
não	consta	nenhum	espécime	daquele	reino.
O	ódio	e	o	amor,	ao	contrário,	são	habitantes	escandalosos	por	natureza.	Gritam,	brigam	e	fazem
questão	de	anunciar	estrondosamente	sua	presença	e	suas	desavenças,	pois	vivem	em	conflito	permanente
e	colocam	o	senhorio	em	posição	constrangedora	e	humilhante,	comprometendo	os	alicerces	do	edifício.
Mas,	curiosamente,	também	se	dão	as	mãos.
Agora	vamos	esclarecer	como	o	ódio	se	alia	ao	amor	para	operar	a	destruição	do	mundo.	Ao	final,
avistaremos	um	horizonte	verdadeiro,	uma	forma	de	voltar	a	ser	e	não	apenas	estar	humano.	Para	tanto,	a
vontade	tem	que	se	impor,	tomar	conta	da	casa,	expulsar	os	inquilinos	indesejados	e	arejar	o	ambiente.
Limpeza	que	se	faz	necessária	todos	os	dias,	pois	os	meninos	são	teimosos	e	voltam	dia	e	noite,	na	saúde
e	na	doença,	na	alegria	e	na	tristeza,	na	riqueza	e	na	pobreza.
A	 presença	 do	 ódio	 é	 evidente	 nos	 genocídios	 abordados	 em	 nosso	 breve	 estudo,	 omisso	 em
relação	a	muitos	casos	de	imensa	importância	para	a	história	do	mundo,	entre	eles	o	extermínio	de	povos
indígenas	 do	 Brasil.	 Mas	 é	 suficiente,	 esperamos,	 para	 isolar	 o	 elemento	 ódio	 que	 procuramos
radiografar,	esquadrinhar	e	entender.	Uma	vez	livre	de	seus	aspectos	variáveis	e	externos,	isto	é,	de	suas
justificativas	 descabidas,	 o	 elemento	 ódio	 é	 localizado	 com	 a	 mesma	 estrutura	 de	 funcionamento	 em
tempos	de	paz	e	em	ambientes	cotidianos,	triviais	e	aparentemente	inofensivos.
O	best-seller	do	escritor	dinamarquês	Christiam	Jungersen	"A	Exceção"	demonstra	que	a	operação
mental	 que	 se	 coloca	 em	movimento	 na	 cabeça	 de	 um	 carrasco	 nazista	 é	 a	 mesmíssima	 daquela	 que
movimenta	 o	 bullying	 e	 a	 fofoca	 nossa	 de	 cada	 dia.	O	 livro	 cita	 um	 estudo	 de	 psicologia	 social	 que
disseca	 o	 comportamento	 dos	 soldados	 nazistas	 nas	 operações	 de	 limpeza	 étnica:	 	 não	 se	 trata	 de
simplesmente	obedecer	ordens	superiores,	mas	de	fatores	como	"responsabilidade	para	com	os	colegas",
camaradagem	e,	principalmente,	o	compartilhamento	da	crença	comum	de	que	o	alvo	não	era	da	mesma
natureza	do	algoz,	da	crença	de	um	"nós"	construído	em	oposição	ao	"outro"
Na	célebre	obra	"O	mal-estar	da	civilização",	Freud	explora	a	articulação	entre	o	bem	e	o	mal,	a
vida	civilizada	e	a	agressividade	que	nela	se	encontra:
“A	 civilização	 tem	 que	 recorrer	 a	 tudo	 para	 pôr	 limites	 aos	 instintos	 agressivos	 do	 homem,	 para
manter	em	xeque	suas	manifestações,	através	de	formações	psíquicas	reativas.	Daí	portanto	o	uso	de
métodos	que	devem	instigar	as	pessoas	a	estabelecer	identificações	e	relações	amorosas	inibidas	em
sua	meta,	daí	as	restrições	a	vida	sexual	e	também	o	mandamento	ideal	de	amor	ao	próximo	como	a	si
mesmo,	 que	 verdadeiramente	 se	 justifica	 pelo	 fato	 de	 nada	 ser	 mais	 contrário	 à	 natureza	 humana
original.	Com	 todas	 as	 suas	 lidas,	 esse	 empenho	da	 civilização	 não	alcançou	muito	 até	 agora.	Ela
espera	prevenir	os	excessos	mais	grosseiros	da	violência,	conferindo	a	si	mesma	o	direito	de	praticar
a	violência	contra	os	infratores,	mas	a	lei	não	tem	como	abarcar	as	expressões	mais	cautelosas	e	sutis
da	agressividade	humana	(grifo	nosso).	Cada	um	de	nós	vive	o	momento	em	que	deixa	de	 lado,	como
ilusões,	as	esperanças	que	na	juventude	depositava	nos	semelhantes	e	aprende	o	quanto	a	vida	pode
lhe	ser	dificultada	e	atormentada	por	sua	malevolência”	[45]
Todos	nós	já	vivenciamos,	na	família	ou	no	trabalho,	na	escola	ou	no	escritório,	esta	desgastante
situação	em	que	somos	o	alvo	destas	“expressões	mais	cautelosas	e	sutis	da	agressividade	humana”.
Inveja,	intriga	e	armações	de	todo	tipo	podem	“dificultar	e	atormentar”	a	nossa	vida.	E	de	fato,	talvez	o
leitor	possa	concordar,	há	uma	sutil	sincronia	entre	a	unidade	dos	que	estão	dentro	do	grupo	dominante	e
a	agressão,	exclusão	ou	hostilidade	para	com	aqueles	que	estão	forade	um	tal	grupo.
“Não	 é	 de	menosprezar	 –	 continua	 Freud	 -	a	 vantagem	 que	 tem	 um	 grupamento	 cultural	menor,	 de
permitir	ao	instinto	um	escape,	através	da	hostilização	dos	que	não	pertencem	a	ele.	Sempre	é	possível
ligar	 um	 grande	 número	 de	 pessoas	 pelo	 amor,	 desde	 que	 restem	 outras	 para	 que	 se	 exteriorize	 a
agressividade.	Certa	vez	discuti	o	fenômeno	de	justamente	comunidades	vizinhas,	e	também	próximas
em	outros	aspectos,	andarem	às	turras	e	zombarem	uma	da	outra,	como	os	espanhóis	e	os	portugueses,
os	alemães	do	norte	e	os	do	sul,	os	ingleses	e	os	escoceses	etc.	Dei	a	isso	o	nome	de	"narcisismo	das
pequenas	diferenças",	que	não	chega	a	contribuir	muito	para	seu	esclarecimento.	Percebe-se	nele	uma
cômoda	 e	 relativamente	 inócua	 satisfação	 da	 agressividade,	 através	 da	 qual	 é	 facilitada	 a	 coesão
entre	os	membros	da	comunidade”[46]
Alguém	que	já	tenha	observado	como	se	formam	e	se	digladiam	as	turminhas	de	uma	mesma	sala	de
aula,	as	patotas	de	um	clube	recreativo,	poderia	acompanhar	este	raciocínio	de	Freud.	Fica	ainda	mais
evidente	a	construção	perseverante	entre	um	“nós”	em	oposição	a	um	“eles”	nas	rivalidades	das	torcidas
organizadas	e	na	hostilidade	entre	as	diversas	confissões	religiosas.	A	mesma	operação	psicológica	está
presente,	segundo	Freud,	nas	históricas	perseguições	raciais	e	religiosas	da	humanidade.
"Podemos	entender	que	a	tentativa	de	instaurar	na	Rússia	uma	nova	civilização	comunista	encontre
seu	apoio	psicológico	na	perseguição	à	burguesia.	Só	nos	perguntamos,	preocupados,	o	que	farão	os
sovietes	após	liquidarem	a	burguesia”[47]
Agora	 compreendemos	 porque	 Jesus	 insistiu	 em	 substituir	 toda	 a	 miríade	 de	 mandamentos	 e
prescrições	 morais	 dos	 fariseus	 pelo	 único	 mandamento	 do	 amor	 ao	 próximo.	 Ainda	 que	 pareça
improvável,	isto	é,	completamente	avesso	à	essência	humana,	como	argumenta	Freud,	a	diretiva	de	Cristo
parece	mesmo	um	aviso,	uma	regra	que,	embora	inatingível,	existe	para	bloquear	a	tendência	natural	de
amar	odiando,	acolher	desprezando,	construir	destruindo.
Enfim,	para	sermos	de	fato	humanos,	temos	que	perseverar,	sem	sucumbir	nem	se	se	entregar	a	esta
tendência	natural	ao	ódio,	desde	o	mais	primitivo	até	o	mais	elaborado	(religiosa	ou	ideologicamente),
seja	na	forma	pura	de	sadismo,	seja	na	forma	disfarçada	de	amor.	Para	sermos	humanos	temos	que	ser
exceção.
Não	 nascemos	 humanos,	 mas	 temos	 a	 possibilidade	 de	 nos	 tornamos.	 Invertendo	 a	 máxima	 de
Rousseau,	 o	 homem	 nasce	 mau,	 mas	 a	 sociedade	 pode	 corrompe-lo	 ainda	 mais	 e	 transformá-lo	 num
monstro,	 se	 ele,	 o	 homem,	não	 tomar	 as	 rédeas	dessa	 carroça,	 feita	 da	mistura	de	 cavalo	 e	 cavaleiro,
racional	e	irracional.
O	senhorio	daquela	pensão,	no	sofá	da	sua	sala	de	estar,	precisa	ficar	atento	ao	movimento	sob	o
assoalho	 e	 as	 maquinações	 que	 se	 armam	 automaticamente	 lá	 no	 porão.	 Precisa	 ouvir	 e	 perscrutar
atentamente	cada	manifestação	dos	 inquilinos	que,	afinal,	existem	e	querem	subir	ao	andar	 superior.	A
mínima	distração	será	suficiente	para	 tomarem	conta	da	casa.	O	ódio,	que	antes	parecia	encarcerado	e
aniquilado,	escapa	e	passa	a	atuar	alegremente	nos	grupos	que	se	unem	por	 laços	afetivos	 fortíssimos,
laços	de	identificação,	camaradagem	e	amor.	O	ódio	é	capaz	de	corromper	o	amor.	No	amor	de	Cristo
fizeram-se	as	Cruzadas	e	no	amor	à	pátria	as	guerras	mundiais.	Na	falta	de	uma	guerra	aberta,	o	ódio	se
hospeda	na	desigualdade	social	e	racial,	mas	também	nas	igrejas,	 templos	e	partidos	políticos.	Se	isso
não	for	suficiente	sempre	achará	lugar	garantido	nos	agrupamentos	informais	de	lazer,	esporte,	estudo	e
trabalho.
Não	 nos	 tornamos	mais	 fracos	 por	 conceder	 existência	 a	 personagens	 assim	 camaleônicos,	 pelo
contrário,	nós	nos	tornamos	mais	resistentes	e	mais	capazes	de	desfrutar	da	felicidade	se	jogarmos	o	jogo
diário	 de	 analisar,	 compreender	 e	 moldar	 essas	 forças	 subterrâneas	 em	 favor	 de	 uma	 vida
verdadeiramente	 plena,	 no	 convívio	 responsável	 em	 que	 os	 conflitos	 possam	 ser	 superados	 e	 o	 amor
possa	beneficiar	a	quem	ama	e	a	quem	é	amado.	Ser	humano	é	um	exercício	que	se	repete	a	cada	dia,	mas
precisa	ser	praticado.	Ser	humano	é	um	aprimoramento	pessoal,	único	e	intransferível,	mas	pode	contar
com	o	suporte	externo	de	um	mestre,	um	analista,	um	pai	e,	prazerosamente,	pode	contar	com	o	auxílio
luxuoso	da	arte	e	da	literatura.
O	Autor
	
João	Ricaldes	nasceu	em	1962	na	cidade	de	Aquidauana	(MS).	É	professor	de	história	da	arte	em
instituições	 privadas	 de	 ensino	 superior	 e	 ensino	 médio	 em	 várias	 regiões	 do	 Brasil.	 Graduado	 em
História	(Unicamp),	estudou	história	da	arte	na	Escola	do	Masp.	É	coordenador	do	Projeto	Humanarte
(www.humanarte.net),	aprovado	pelo	Ministério	da	Cultura	(Lei	Rouanet)	em	2005	e	2008.	Atualmente
desenvolve	 cursos	 de	 aperfeiçoamento	 para	 educadores	 de	 escolas	 públicas,	 abordando	 técnicas	 de
leitura	de	imagem	para	estimular	a	expressão	oral	e	escrita	de	crianças	e	adolescentes.	Além	da	história
da	arte,	dedica-se	ao	estudo	da	psicanálise	(Freud,	Jung,	Melanie	Klein)	e	da	literatura	contemporânea.
Escreve	regularmente	no	blog	do	Projeto	Humanarte:	http://blog.humanarte.net/.
http://blog.humanarte.net/
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[1]	BARROWS,	Kate.	Inveja,	tradução	Carlos	Rosa,	Rene	Delumará,	Ediouro,	RJ,	2005	-	Conceitos	da	Psicanálise,	Volume	19	–	página	6.
[2]	BARROWS,	Kate,	op	cit,	página	39
[3]	FREUD,	Sigmund,	Introdução	ao	Narcisismo,	Companhia	das	Letras,	2010,	página	34.
[4]	BARROWS,	Kate,	página	40.
[5]		ADAMS,	Laurie	S.	“Art	and	Psychoanalysis”.	Perseus	Books,	New	York,	1994,	pag	82,	tradução	livre.
[6]	HUGHES,	R.	Goya,	Cia	das	Letras,	2007,	p	31
[7]	Citado	em	JUNGERSEN,	Christian,	A	Exceção.	Chistian	Jungersen.	RJ,	Intrínseca,	2008,	página	302.
[8]	Baseado	em	BROWING,	Christopher.	Ordinary	Men:	Reserve	Police	Battalion	101	and	the	Final	Solution	in	Poland,	New	York:
Harpercollins,	1992.
[9]	Citado	em	ARNAUT,	Luiz.	A	Segunda	Grande	Guerra:	do	Nazi-fascismo	à	Guerra	Fria,	S.	Paulo,	Atual,	1997,	página	19
[10]	KHOURY,	Elias.	Porta	do	Sol,	Record,	2008,	Prefácio.
[11]	KHOURY,	Elias.	Porta	do	Sol,	Record,	2008,	página	109
[12]	Id,	Ibid,	página	209
[13]	Idi	Ibid,	página	215
[14]	Id,	ibid,	página	221
[15]	Id	Ibid,	página	270
[16]	Citado	em	JUNGERSEN,	Christian,	A	Exceção.	RJ,	Intrínseca,	2008,	páginas	144.
[17]	Id,	Ibid,	página	147
[18]	ALI,	Tarik.	Sombras	da	Romãzeira.	Editora	Record,	2006.
[19]	GONÇALVES,	Ana	Maria,	Um	defeito	de	cor,	Record,	2007,	páginas	45-46.
[20]	SANTOS,	José	Rodrigues.	O	Anjo	Branco".	Editora	Gradiva,	Lisboa,	2011,	páginas	601-619
[21]	Id,	Ibid,	páginas	601-619
[22]	SHAFAK,	Elifk,	De	Volta	a	Istambul,	Nova	Fronteira,	página	172
[23]	Citado	em	Ginzburg,	Carlo.	Medo,	reverência,	terror,	Companhia	das	Letras,	2014,	página	105.
[24]	Id,	Ibid,	página	140
[25]http://www.pbs.org/treasuresoftheworld/a_nav/guernica_nav/gnav_level_1/5meaning_guerfrm.html.	 “Guernica”	 in	 PBS's	 Treasures	 of
the	World	series.	Tradução	livre.	Acessado	em	20/03/2014.
[26]	Ginzburg,	Carlo.	Op	cit,	página	127.
[27]	Id,	Ibid,	página	27
[28]	Citado	em	www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-commentees/peinture/commentaire_id/dante-et-virgile,	tradução	livre.	Acesso
15/04/2015
[29]	Citado	por		Jensen,	Robert.	Marketing	Modernism	in	Fin-de-siècle	Europe,	20-22.	Princeton	University	Press,	1996,	tradução	livre
[30]	http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT446107-1664,00.html.	Acesso	em	06/12/2015
[31]	ADAMS,		Laurie	Schneider.	Op	cit,	p	136,	tradução	livre
[32]	Para	apreciar	uma	leitura	de	imagens	sobre	a	paixão	na	arte,	leia	também	“As	melhores	histórias	da	arte:	Deus,	pecado	de	paixão”
(2015),	de	João	Ricaldes
[33]	FREUD,	S.	O	Mal-estar	na	Civilização.	Companhia	das	Letras,	2010,	página	28
[34]	Id,	Ibid,	página	39
[35]	Id,	Ibid,	página	40
[36]	Id,	Ibid,	página	42
[37]	FREUD,	S.	Obras	Completas,	Volume	12,	Introdução	ao	Narcismos...Companhia	das	Letras,	2010,	página	46
[38]	Id,	Ibid,	página	49
[39]	CARDOSO,	R.	A	Arte	Brasileira	em	25	Quadros	1790	-	1930	-	R.J.,	Record,	2008,	página	101.
[40]	FREUD,	S.	"Luto	e	Melancolia"	In	Freud,	Sigmund.Obras	Completas,	Volume	12,	Introdução	ao	Narcisismo...Companhia	das	Letras,
2010,	página	172
[41]	Cintra,	Elisa	Maria	de	Ulhoa,	"Pensar	as	feridas",	In	Pinto,	Manuel	da	Costa	(org),	Livro	de	Ouro	da	Psicanálise,	R.J.,Ediouro,	2007,
página	314
[42]	Id,	Ibid,	página	315
[43]	FREUD,	Sigmund.	Obras	Completas,	Volume	12,	Introdução	ao	Narcisismo...Companhia	das	Letras,	2010,	página	184
[44]	LE	Goff,	Jacques.	A	civilização	do	Ocidente	medieval.	Editorial	Estampa.	Lisboa,	1983,página	205.
[45]	Freud,	O	mal-estar	na	civilização,	Cia	das	Letras,	2010,	página	78
[46]	Id.	Ibid,	página	80
[47]	Id	Ibid,	página	81
	1. Arte da inveja
	2. A arte do ódio: Pintura e Literatura
	3. O ódio na arte - pintura e escultura
	4. A arte do amor – poesia e pintura

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