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INTRODUÇÃO
1. ARTE DA INVEJA
A inveja mata (o invejoso)
"A alegria com o mal do outro homem"
Homem de Deus Também Inveja
"Eu te invejo"
2. A ARTE DO ÓDIO: PINTURA E LITERATURA
Arte, imaginação fiel - a guerra segundo Goya
Ódio contra judeus - Dois mil anos de perseguição
Ódio contra palestinos – o terrorismo de Estado
Ódio contra alemães – o genocídio alemão
Ódio contra islâmicos - em nome de Jesus
Ódio contra negros – diáspora africana, origem do Brasil
Ódio contra negros – Moçambique - o apartheid português
Ódio contra armênios - a herança do ódio tem fim
A guerra de Picasso - cubismo neoclássico e psicológico
3. A ARTE DO ÓDIO - PINTURA E ESCULTURA
A vida no Inferno segundo Bouguereau
"Ugolino e Seus Filhos" de J.B. Carpeaux
“Ugolino” de Rodin
4. A ARTE DO AMOR – POESIA E PINTURA
O arrebatamento da alma
Amores estranhos
O arrebatamento do corpo
A paixão
A separação, segundo Belmiro de Almeida
A separação, segundo Frida Kahlo
CONCLUSÃO
O AUTOR
BIBLIOGRAFIA
Ricaldes, João (1962 - )
As Melhores Histórias da Arte: inveja, ódio e amor. Mogi Mirim, Edição do Autor, 2016, 73 páginas.
ISBN: 978-85-919252-0-9
Para Laura, Pedro e Júlia.
PRÓLOGO
Para embarcar neste roteiro sentimental, você precisa apenas da bagagem de mão, sem precauções, nem
compromissos. Basta ter em mente suas próprias vivências no amor, no ódio e na inveja e compará-las
com aquelas que pintores, escultores e escritores nos deixaram plasmadas em óleo, bronze, desenhos,
poemas e romances. Acompanhe a leitura de imagens e excertos e terá diante de si a revelação de um
mundo de fantasias, paixões e perdas, além das dificuldades da vida em sociedade (inveja, sucesso,
fracasso, orgulho, ira). São temas das obras primas, não invenções. São testemunhos dos mesmos
problemas que vivenciamos, abordados através de uma espécie de leitura tridimensional. A dimensão
histórica, a dimensão estética e a dimensão psicológica fundem-se para seu deleite e autorreflexão. É
uma oportunidade para avaliarmos o mundo que temos construído até aqui. Assim, a obra que nós
observamos também nos observa.
João Ricaldes
INTRODUÇÃO
Você começa aqui uma jornada inusitada que se inicia pelo submundo dos sentimentos destrutivos da
inveja e do ódio para então alcançar o amor, sempre tão elevado espiritualmente e ao mesmo tempo tão
perigoso, já que obriga aquele que ama à tarefa de aceitar-se vulnerável.
Sobre o poder autodestrutivo da inveja, o místico pintor holandês Hieronymus Bosch (1450 –
1516) deixa uma mensagem codificada em tela enigmática: o invejoso prejudica a si mesmo, pois
abandona as próprias dádivas para desejar as dos outros, não enxerga o que tem e perde suas próprias
oportunidades só para se ocupar da vida dos semelhantes.
Um tema assim tão humano e prosaico comparece também no texto sagrado. Com uma acentuada
dose de voyeurismo, o pintor maneirista Giovanni Battista Naldini (1537-1591) retrata um momento
desconcertante na vida do herói David. Outrora tomado por coragens anônimas desprovidas de cautela e
de ambição – diante do gigante Golias - o já aclamado rei perde a pose, perde também o sentido do
dever e inveja seu general Urias, mas primeiro foi invejado pelo rei Saul, o governante que o precedeu
no trono do povo escolhido por Deus. Ao final, David foi invejado pelo próprio filho Absalão, também
atento ao mesmo trono.
Bom mesmo é livrar-se da inveja alheia. Para isto a humanidade criou vários estratagemas, que vão
desde os pequenos pênis de pedra com os quais a elite romana decorava suas casas, uma variante da figa
(a genitália feminina) até a carranca africana e a medusa grega, como retratam os pintores barrocos
Michelangelo Caravaggio (1571 – 1610) e Peter Paul Rubens (1577 – 1640). Haja seca-pimenteira!
Mas a inveja é sempre dos outros, nunca a nossa mesma. Só que não, não é? A partir do simpático
gato do pintor cearense Aldemir Martins (1922 – 1906) você descobrirá a inveja que nos habita a todos,
na infância, na adolescência, na vida adulta e na velhice. Não pense que é a inveja saudável. Você
também inveja sim.
Para a jornada na seara do ódio, terreno inóspito semeado com os piores horrores da humanidade,
recorremos a duas obras-primas da pintura espanhola: a série Desastres de la guerra de Francisco de
Goya y Lucientes (1746 – 1828) – testemunho da invasão napoleônica - e Guernica de Pablo Picasso
(1881 – 1973), testemunho da invasão nazista. Com a primeira, proveniente do romantismo, introduzimos
alguns elementos universalmente encontrados nos históricos genocídios que marcaram a humanidade.
Com a segunda, modelo cubista, abordamos o efeito transcendente que a violência cria sobre o
observador.
Entre os dois mestres espanhóis cuidaremos de seis casos de genocídios para então esmiuçar como
o ódio opera não apenas em tempos de guerra, mas também em tempos de paz, no trabalho, na família e
na escola. Prepare-se para o pior. Antecipadamente já pedimos desculpas se o show de horrores lhe
parecer desnecessário. É preciso falar da dor e do ódio para superá-los e nesta tarefa os romances
históricos terão muita valia. Sim, recorremos ao romance de ficção histórica para acentuar a gravidade
da realidade, ao mesmo tempo em que apreciamos alguns destaques da literatura contemporânea mundial.
Evitamos, assim, a fria letra das teses acadêmicas e o sensacionalismo dos documentários televisivos,
apressados, parciais, entremeados de comerciais. O leitor poderá saborear ainda diferentes estilos
literários e formas de associar imaginação e realidade.
Mas ainda tem mais ódio, desta vez não aquele que aprendemos nos livros de história, mas aquele
que experimentamos na própria carne. Será o momento de averiguar como o ódio opera no corpo e na
alma daquele que o tem e o cultua, com a ajuda de uma tela de William Bouguereau (1825 - 1905). Os
escultores Jean-Baptiste Carpeaux (1827 – 875) e Auguste Rodin (1840 – 1917), por sua vez, nos darão
uma visão tridimensional de como o ódio transfigura o corpo e a alma daquele que sofre a ira de outrem.
Ao deixar para trás os campos de guerra e adentrar nos bosques do amor, o leitor por certo terá a
sensação de que está diante de outro livro, outro autor e outro assunto, como se por imprudência do
revisor no uso da ferramenta copiar-colar, um elemento estranho fosse inserido em local inadequado e
impertinente.
O estranho aqui é ato deliberado, pois muito estranho mesmo é a constatação de que o mesmo ser
que odeia e inveja, também ama e idolatra. Você vai se deparar, por exemplo, com um oficial nazista que
leva a noiva em núpcias para assistir algumas execuções dentro do campo de concentração. Mas não
precisa ir muito longe não. Basta você mesmo averiguar em pessoas muito próximas esta contradição
ambulante, na família, numa briga de trânsito e até no facebook. Lembra até uma característica da
mentalidade medieval, já apontada por especialistas, chamada “sensação da dupla espionagem”. Se faço
algo de muito bom, foi obra de um anjo que me guiou. Se faço algo muito cruel, foi o ser lá do outro lado
(do ombro). Sou apenas um campo de ação de entidades externas em luta pela minha alma.
Feita esta reparação, vamos nos deliciar logo de uma vez no paraíso terrestre da paixão, do sexo e
do amor. Picasso comparece novamente, dessa vez com a colorida tela cubista chamada “O Sonho”, na
qual somos lançados de imediato nas sublimes instâncias do amor carnal. O mesmo corpo que abrigou a
ira, agora entrega-se deliciosamente ao arrebatamento dos sentidos, melhor compreendido pela poesia de
Chico Buarque, que nos ajuda ainda a ler a imagem picante de Picasso. Poetas lusitanos como Camões e
Fernando Pessoa contribuem para nossa jornada de exploração do arrebatamento da alma,junto com a
chilena Violeta Parra, ao passo que Pessoa retorna para tornar mais claro o que Freud explica sobre a
paixão, aquela entrega a outro ser, outro no sentido de ser um que criamos em nossa mente, nem sempre
igual ao que temos à nossa frente.
Para finalizar vamos estragar a festa e pensar na separação, da qual afinal, ninguém está livre. A
tela “Arrufos” (1877) do pintor mineiro Belmiro de Almeida (1858 - 1935) aponta para o medo de amar,
medo de levar um fora, o que Frida Kahlo (1907 - 1954) converte em desforra na obra surrealista
"Autorretrato con pelo corto" (1940) e Melanie Klein (1882-1960) transforma em lição de vida,
principalmente para aqueles que não “desencarnam” da relação já há muito rompida. Espero
sinceramente prolongar o amor e o prazer do leitor, mas para isto não se pode ter medo de encarar "a
vida que é vivida", nem permanecer na "vida que é pensada", muito menos ter medo de "sentir o fogo que
arde sem se ver", isto é, "medo de amar". Boa leitura!
1. Arte da inveja
A inveja mata (o invejoso)
A inveja, esta nossa velha conhecida de cada dia, também serviu de tema aos pintores e escultores de
períodos e contextos culturais diversos, como Caravaggio e Rubens.
"A alegria com o mal do outro homem"
A inveja, ao contrário dos demais pecados capitais, não tem objeto definido, nem outro objetivo que não
seja destruir todas as virtudes alheias.
Homem de Deus também inveja
O rei Saul invejava seu general Davi, por suas vitórias em todas as batalhas. Davi se tornou rei, mas
invejou seu general Urias, tomando-lhe a linda esposa. Depois mandou seus soldados abandoná-lo aos
inimigos. David sofreu o castigo de Deus. Foi traído por Absalão, seu filho preferido que, por inveja,
queria lhe tomar o trono.
"Eu te invejo"
Se você já chegou a proferir esta frase, isto é, se já confessou para si e para os outros a inveja que nutre
em seu coração, tranquilize-se, você é normal. Mas acredite, a inveja, como manifestação negativa, está
presente universalmente na infância, na adolescência, na velhice.
A inveja mata (o invejoso)
Imagem: “Medusa” Caravaggio
A inveja, esta nossa velha conhecida de cada dia, também serviu de tema aos pintores e escultores
de períodos e contextos culturais diversos. Inspirados no mito da Medusa, Caravaggio e Rubens nos
oferecem versões eloquentes sobre esta energia destruidora que corrói lentamente o convívio
humano, na escola, no trabalho e até mesmo na família.
Segunda a lenda grega, Medusa foi uma jovem deusa cuja beleza era tanta que deuses a desejaram e
deusas a invejaram. Poseidon, deus do Mar, apaixonou-se e a violentou. Incontrolavelmente enciumada,
Atena, deusa da guerra, castigou a jovem (e não o violentador!) transformando-a em uma mortal com
escamas no lugar da pele e serpentes no lugar dos lindos cabelos, além de dotá-la de uma maldição
adicional: quem ousasse olhar para Medusa seria transformado em pedra. Coube ao jovem guerreiro
Perseu dar um fim ao sofrimento de Medusa, arrancando-lhe a cabeça.
Entregue a Atena, a cabeça da Medusa foi inserida em seu escudo de guerra, o que foi copiado
pelos guerreiros gregos, um astuto expediente para distrair e derrotar os inimigos que no campo de
batalha olhassem para a cabeça despedaçada, ainda tomada de serpentes: não se converteriam em
estátuas de pedra, apenas em poças de sangue!
Outras culturas geraram mecanismos semelhantes para derrotar o inimigo, seja na guerra aberta,
seja nos combates sorrateiros que os maldosos travam com a arma da inveja, dentro de nossas casas. Na
luxuriante Roma Imperial era comum o uso de pequenos pênis de pedra, dispostos por toda a residência,
para atrair os olhares enciumados dos visitantes.
Hoje há quem prefira os espelhos no hall. Ainda na Roma Antiga, era conhecida uma inusitada
escultura de um falo avantajado, com cerca de oitenta centímetros de "altura", dotado de asas e pezinhos.
Alguns povos africanos, por sua vez, transmitiram aos brasileiros o amuleto protetor em forma de figa
(símbolo da genitália feminina) ou as conhecidíssimas carrancas dos navios.
Medusa, figa, carranca, espelho ou pintos de pedra, todos funcionam como verdadeiras armadilhas
para o olhar do outro. Numa espantosa manifestação de unidade psíquica, culturas variadas em tempos
diversos inventaram mecanismos sutis para paralisar o adversário, desarmar-lhe os humores destrutivos
e extrair-lhe a energia negativa que estava ávido por depositar em solo alheio. A carranca e a medusa são
derivativos da ideia de que o terror é capaz de imobilizar o mal. Já os genitais se servem da estratégia de
que o mal não tem como recusar o obsceno. Num caso ou no outro não há "seca-pimenteira" que resista.
http://www.humanarte.net/inveja1.html
"A alegria com o mal do outro homem" (Geofrey Chaucer, escritor inglês, século XIV)
Imagem: "Os sete pecados capitais" (1475) J. Bosch. Museo del Prado
A inveja, ao contrário dos demais pecados capitais, não tem objeto definido, nem outro objetivo que
não seja destruir todos as virtudes alheias. A gula é a falta de moderação no comer, assim como a
ira a falta de autocontrole emocional, a luxúria o excesso de sexo e a avareza, por sua vez, o de
apego aos bens materiais. Na preguiça falta trabalho e no orgulho, ou soberba, há excesso de si
mesmo. Só a inveja não tem endereço certo, pois quer o fim de tudo que é alheio, mesmo que de
nada possa se apossar.
"Só a inveja não traz vantagem alguma, pois ela destrói o objeto de admiração, o torna indesejável. A
única vantagem seria o prazer sádico, 'a alegria com o mal do outro homem”[1]
Hieronimus Bosch, misterioso e místico pintor holandês, realizou a obra "Os sete pecados
capitais" (1475) possivelmente para uma irmandade católica, em um contexto em que já era grande na
Europa o desgaste da Igreja diante de seus tantos pecados mundanos. A composição circular reserva sete
nichos para expressar os pecados de forma alegórica e narrativa, bem ao gosto dos provérbios nórdicos.
A cena dedicada à Inveja traz um sutil cruzamento de olhares invejosos. A começar no chão, onde os cães
simplesmente ignoram os ossos mais próximos para se fixar naquele que está na mão de seu dono. Este
por sua vez, junto a sua esposa, fixa os olhos na elegância do transeunte, ao passo que sua filha recebe um
pretendente mais adequado a sua idade, mas ignorado pelos pais.
A mensagem é clara: o invejoso prejudica a si mesmo, pois abandona as próprias dádivas para
desejar as dos outros, não enxerga o que tem, perde suas próprias oportunidades só para se ocupar da
vida dos semelhantes.
http://www.humanarte.net/inveja2.html
Homem de Deus Também Inveja
Imagem: “O banho de Betsabé” (1570) Giovanni Battista Naldini
O rei Saul invejava seu general Davi, por suas vitórias em todas as batalhas. Davi se tornou rei, mas
invejou seu general Urias, tomando-lhe a linda esposa. Depois mandou seus soldados abandoná-lo
aos inimigos. David sofreu o castigo de Deus. Foi traído por Absalão, seu filho preferido que, por
inveja, queria lhe tomar o trono.
Os sete pecados capitais não estão alistados na Bíblia. Não adianta procurar. Trata-se de uma
tradição da antiguidade, muito antes de Cristo e do judaísmo. Foram adotados pela Igreja na Idade
Média, período em que também foi inventado o Purgatório, não previsto nos textos sagrados. No entanto,
a inveja, mãe de todos os pecados, comparece em vários eventos sagrados. Irmão trai irmão, por inveja,
já no livro do Gênesis, que relata o caso de Abel e Caim. No livro de Samuel, os casos de inveja se
sucedem de forma espantosa:
"Tudo o que Saul lhe ordenava fazer, Davi fazia com tanta habilidade que Saul lhe deu um posto
elevado no exército. Isso agradou a todo o povo, bem como aos conselheiros de Saul.Quando os soldados voltavam para casa, depois que Davi matou o filisteu, as mulheres saíram
de todas as cidades de Israel ao encontro do rei Saul com cânticos e danças, com tamborins, com
músicas alegres e instrumentos de três cordas.
As mulheres dançavam e cantavam: "Saul matou milhares; Davi, dezenas de milhares".
Saul ficou muito irritado com esse refrão e, aborrecido, disse: "Atribuíram a Davi dezenas de
milhares, mas a mim apenas milhares. O que mais lhe falta senão o reino?" Daí em diante Saul olhava
com inveja para Davi" (1 Samuel: 18, 5-9)
O Segundo Livro de Samuel conta que o Rei Davi, já famoso e consagrado por suas ações heroicas,
apaixonou-se por Betsabé ao vê-la banhar-se do alto do terraço de seu palácio. Um caso clássico de
voyeurismo. Ele a chamou a seu quarto e a engravidou. Davi convocou o general Urias, marido de
Betsabé, sugerindo que fosse passar uma noite com a esposa, imaginando assim que poderia atribuir a
gravidez ao próprio marido. Urias recusou, pois estava em campanha. Os soldados, às vésperas de uma
guerra, deveriam se abster de sexo, como fazem hoje os jogadores de futebol ante de uma partida
importante. Davi então deu ordens para colocar Urias na frente da batalha e deixá-lo sem proteção. Urias
morreu em combate, a serviço de seu rei, o invejoso.
Giovanni Battista Naldini (1537-1591), pintor da escola maneirista de Florença, retrata o exato
momento em que o Rei David cai em pecado, espia a nudez da esposa de Urias e resolve montar uma
estratégia para possuí-la, ou melhor, roubá-la.
http://www.humanarte.net/inveja3.html
"Eu te invejo"
Imagem: “Gato azul” (1982) Aldemir Martins
Se você já chegou a proferir esta frase, isto é, se já confessou para si e para os outros a inveja que
nutre em seu coração, tranquilize-se. Você é normal. Há um derivativo saudável da inveja, aquela
que se manifesta como imitação, força inspiradora para também realizar o que o outro realizou.
Mas acreditem, sua manifestação negativa, porém, se faz presente universalmente na infância, na
adolescência e na velhice.
A inveja nos acompanha, a todos, desde tenra idade: a inveja de um irmão mais novo; a inveja do
pai ou da mãe ou, o que é mais comum, da relação entre os dois, o que induz a criança a interromper
sistematicamente a conversação dos pais. Há aquela ainda que se revela na pele de sua congênere, o
ciúme. Este tem objeto definido, pois quer a posse de algo ou de uma pessoa determinada, supostamente
na posse de outrem e não se importa em destruí-lo, na linha de pensamento e de ação do assassino
passional que diz "se não for minha, não será de ninguém". Já na adolescência, a inveja alimenta ainda
mais o turbilhão de sensações que toma o mundo interior do menino e da menina.
"O adolescente se refugia no ceticismo quanto aos valores, ao trabalho e às relações dos adultos
- o que talvez denuncie uma inveja das coisas que parecem difíceis de conseguir. O adolescente se
recusa a estudar, a conseguir um emprego, a ajudar em casa, achando insuportável não ter
imediatamente as pretensas realizações da vida adulta. Nessa faixa etária, as pessoas são
especialistas em causar inveja nos outros. As meninas e, cada vez mais, os meninos usam as roupas e a
aparência para transmitir inveja aos amigos, certos de que estão "numa boa". Estar "numa boa" é dar
a impressão de não estar angustiado, de não ser afetado pela ansiedade e pela agitação dos amigos e,
claro, deles mesmos. Assim, a inveja projetada é a inveja de um estado de espírito despreocupado, em
que o adolescente não se sente na turbulência inevitável da idade. A inveja do adolescente quase
sempre está acompanhada da insegurança"[2].
A paz de espírito do outro continua sendo motivo de inveja na idade adulta. Não apenas o
adolescente, mas todo mundo deseja um pouquinho da tranquilidade mental que se projeta no outro
(muitas vezes nada tranquilo, na verdade de sua dura vida psíquica). O gato, o bandido e o humorista
corporificam esta projeção psíquica.
Em seu célebre estudo sobre o narcisismo, Freud nos explica, ao descrever o amor feminino e o
masculino, que todos admiram a estabilidade psíquica destes três personagens. O gato é autossuficiente, a
própria imagem da autonomia, da liberdade, com direito a certa elegância, bem ao contrário do cão, o
seu companheiro doméstico que sempre se humilha e suplica por um carinho. O público também
manifesta um discreto apego a Bonnie & Cleide. Quem não torceu pelos bandidos do Assalto ao Banco
Central de Fortaleza (CE)? Parecem inabaláveis aos ataques das entidades mais poderosas do planeta. Já
o humorista, por sua vez, do tipo de Jô Soares, como os outros dois, também se mostra inabalável diante
de qualquer autoridade, pois tudo vira piada. Diz Freud:
"..os gatos, os grandes animais de rapina, o grande criminoso e o humorista conquistam o nosso
interesse, na representação literária, pela coerência narcísica com que mantem afastados de seu Eu
tudo o que possa diminuí-lo. É como se os invejássemos pela conservação de um estado psíquico bem-
aventurado, uma posição libidinal inatacável, que desde então nós mesmos abandonamos"[3].
A inveja não te abandonará nem mesmo na sua aposentadoria e na tranquilidade de sua "melhor
idade". Quando envelhecem, as pessoas têm dificuldade de esconder a inveja da juventude que tem todo
o futuro pela frente:
http://www.humanarte.net/inveja4.html
"A inveja, se for muito intensa, pode levar à crítica dos 'jovens de hoje', uma inveja disfarçada
de desaprovação"[4].
Pior que isso é a inveja dos mais velhos para com os mais jovens, quando ocorre dentro do lar, no
aconchego da vida familiar. Algumas vezes, podemos suspeitar dos esforços altruístas de certos pais
dedicados e atenciosos. Trata-se de uma derivação edipiana extremamente constrangedora, quando os
filhos se dão conta disso. O pai também teme o sucesso do filho:
“O caráter familiar dos deuses e humanos coloca desafios de aspectos edipianos. Quando estes
desafios estão no campo da criatividade o narcisismo de ambos é colocado em jogo. (...) Por outro
lado, os pais sabem que um dia eles [os filhos] vão crescer e que poderão ser superados, o que gera
um ressentimento inconsciente e um desejo de destruir o filho, ainda que conscientemente manifestem
o desejo de que os filhos tenham sucesso”[5]
Essa operação mental tão poderosa e destrutiva é de caráter milenar e tem como modelo de
funcionamento a passagem bíblica da Torre de Babel, amplamente reproduzida na história da arte. A
punição, de corte geográfico e linguístico, pode ser lida como uma resposta do Criador à ousadia da
criatura em utilizar as habilidades herdadas para atingir o espaço do Pai Celestial.
Tudo isto é muito constrangedor para a cultura cristã e judaica, mas amplamente conhecido na
cultura da antiguidade clássica, onde deuses e deusas não se envergonham de invejar e castigar os
mortais (como já pudemos demonstrar).
Curioso processo em que começamos a vida invejando o pai e terminamos por invejar o filho.
2. A arte do ódio: Pintura e Literatura
Arte, imaginação fiel
Inspirados pelas gravuras apavorantes de Goya (Desastres de La Guerra) e pela denúncia cubista de
Picasso (Guernica), vamos abordar o ódio nos atos de genocídios, reconstruídos a partir da imaginação
não da pintura, nem do desenho, mas da literatura contemporânea.
Ódio contra judeus
O Massacre de judeus em Josefow (Polônia), 1942.
Ódio contra palestinos
O Nakba de 1948: perseguição, expulsão, morte e humilhação dos palestinos da Galileia.
Ódio contra alemães
Nemmersdorf (Rússia), 1944. Mulheres alemãs massacradas, afogadas, estupradas e crucificadas pelos
soviéticos
Ódio contra islâmicos
Granada, 1492. Diáspora dos islâmicos da Espanha
Ódiocontra negros (Brasil)
Salvador, 1817. Captura, travessia, humilhação, estupro: cenas da escravidão no Brasil
Ódio contra negros (Moçambique)
Moçambique, 1972. Massacre de civis negros na floresta moçambicana.
Cubismo neoclássico e psicológico
Guernica, 1937: primeiro retrato de bombardeio aéreo contra civis
Arte, imaginação fiel - a guerra segundo Goya
Imagem: “Desastres da guerra” (1812) Goya
Na heroica batalha de Saragoça (verão de 1808) a população civil espanhola oferece resistência
inimaginável ao avanço das tropas napoleônicas, casa por casa, rua por rua, o que levou alguns
historiadores a compará-la com a resistência russa às tropas alemãs no inverno de 1943, em
Stalingrado. Após a batalha, o pintor Francisco Goya, já com mais de sessenta anos de idade, visitou
a cidade, na qual havia vivido, crescido e recebido suas primeiras encomendas, muito antes de se
tornar o pintor da Corte de Madri.
Como seu futuro conterrâneo ilustre Pablo Picasso faria quase cento e trinta anos depois, por
ocasião da destruição de Guernica na Guerra Civil Espanhola, Goya não viu a batalha, mas registrou as
cenas mais dramáticas de crueldade e irracionalidade que um conflito militar pode causar,
principalmente aos civis. Baseado em relatos que recolheu, colocou a imaginação a serviço da verdade,
criando o primeiro registro de guerra, através do desenho, do tipo “as imagens não mentem”, em um
conjunto de oitenta pequenas gravuras em metal (técnica da água-tinta) que só seria publicado
postumamente. A verdade a que se dedicaram ambos os mestres espanhóis, segundo seus próprios
códigos de linguagem, inéditos e individuais, refere-se à verdade da dor, da destruição, do
despedaçamento da vida e dos corpos, dos sonhos, da razão e da civilização.
Embora tenha, em grande número das gravuras, identificado o invasor francês nas peças do
uniforme militar, Goya não acentua o caráter nacional do conflito. Com poucos traços, rápidos e
expressivos, ausência quase total de paisagem e linhas econômicas e precisas que apenas esboçam as
cenas, o pintor espanhol não restringe sua denúncia a uma data e a um local. Vai além. A mensagem assim
construída é imediata e aprisiona o olhar do observador para o que há de mais irracional e inacreditável
no ser humano, não apenas nos humanos franceses do período.
Vejamos, por exemplo, a lâmina 34, que traz na parte inferior a significativa frase “Yo lo vi” (Eu
vi): um grupo de mulheres, crianças e velhos corre em disparada e já alcança os arredores da cidade que
vão deixando para trás, ao fundo e à esquerda da composição. Os invasores não aparecem no desenho,
mas se impõe como uma sombra ameaçadora que surge à direita, o que é denunciado pela criança em
primeiro plano, estarrecida e boquiaberta, logo socorrida pela corajosa mãe, a única que se desloca em
sentido contrário, na missão de resgatar o filho. À esquerda um padre foge com um saco de dinheiro.
Impressiona a economia de traços e o efeito dramático da composição, que revela ainda uma certa
inspiração neoclássica. A mãe e o homem à sua esquerda evidenciam linhas diagonais antagônicas, em
um imenso triângulo invertido dado pelas pernas esquerdas de ambos. A cena se fecha pelo triângulo ao
fundo formado pela colina, salientando o movimento de fuga do grupo que se enquadra entre os
triângulos.
Na lâmina 5, que traz a frase “Y son fieras”, Goya destaca a coragem das mulheres de Saragoça,
que se tornaram famosas pela participação na guerrilha (palavra que deriva deste episódio histórico de
resistência do mais fraco ao mais forte). Em primeiro plano, uma mãe segura a criança com o braço
esquerdo, às costas, enquanto usa a direita para cravar uma imensa estaca no soldado francês. Um pouco
adiante, outra combatente se defende com uma pesada pedra já alçada sobre a cabeça. Pedra contra
pólvora. Civis contra militares. Mães contra soldados. Mulheres contra homens. O desalento da situação
se expressa no rosto da mulher no canto esquerdo, um misto de dor, desfalecimento e derrota.
Após a derrota em campo de batalha, outra luta está à espera dos combatentes, desta vez contra o
sadismo dos vitoriosos. Corpos desmembrados são fincados em galhos (lâmina 39). Prisioneiros, ainda
http://www.humanarte.net/ira1.html
vivos, são castrados. Mulheres estupradas coletivamente. Há ainda uma cena de suprema bestialidade,
desta feita cometida pelos espanhóis. A lâmina que Goya chama de Populacho, traz um grupo inflamado
pelo ódio que assiste à execução sumária de um homem jogado ao chão, arrastado pelas cordas que o
prendem nos calcanhares. Não possui nenhuma identificação francesa, pois talvez se trata de um
colaborador, isto é um traidor, que então eram chamados de “afrancesados”. Enquanto a mulher à direita
se se empenha em um golpe enérgico com uma barra (de ferro, talvez), o homem da esquerda empunha a
“media-luna”, uma estaca muito conhecida nas touradas para cortar os tendões dos touros e assim deixá-
los indefesos. O corajoso camponês está prestes a introduzir esta imensa estaca no ânus do inimigo
imobilizado.
“Nenhum artista antes dele transmitiu a irracionalidade da multidão, especialmente de uma
multidão inflamada por uma visão comum – religiosa, política, não faz diferença – com um poder tão
desprovido de sentimento. Essas figuras possuem a ferocidade de criaturas tentando se fazer ouvir do
outro lado de um vidro fechado. Elas são as criaturas da surdez do próprio Goya”[6].
Embora surdo, Goya viveu o bastante para testemunhar as voltas que em sua época o mundo deu,
invertendo os papéis entre agressores e agredidos sem, entretanto, alterar o roteiro da agressão, isto é,
sempre com a desconcertante permanência da crueldade e do sadismo. Isso dá à sua obra um caráter
universal, profético até.
Os séculos seguintes apenas confirmariam a estranha vocação humana para a violência bestial,
principalmente aquela cometida em nome de uma coletividade, de um ideal nacional, racial, confessional
ou ideológico. Suas gravuras denunciam atrocidades atemporais, então cometidas napoleonicamente, já
escravocratamente praticadas, mais tarde globalizadas capitalistamente, aprimoradas nazistamente,
retomadas sovieticamente e prodigamente trocadas entre judeus e palestinos, armênios e turcos, hutus e
tutsis, sérvios e croatas.
Tomemos novamente o caso das mulheres em fuga com suas crianças. Ou das mulheres estupradas.
Podemos inserir legendas nas gravuras, ora como mulheres judias, ora como palestinas, armênias, negras,
moçambicanas, russas e mesmo alemãs, dependendo apenas da data.
Pois bem, se o leitor chegou até aqui, nesta introdução que já vai ficando longa para os moldes
deste capítulo, vamos esclarecer nossa proposta. Abordaremos o tema do ódio que guiou atos de
genocídios, reconstruídos a partir da imaginação da pintura, do desenho e, principalmente, da literatura
contemporânea. Sempre escorados em extensa documentação, os romances históricos que elencamos têm
em comum o dom de dar nome e identidade às pessoas que vivenciaram massacres e receberam na alma e
na carne os golpes dramáticos do ódio coletivo.
Vamos evocar os poderes sobrenaturais da arte para exorcizar a besta fera que teima em habitar a
humanidade. Vamos falar das desgraças que todos devemos evitar. Ao final, esperamos demonstrar, a
título de nobre advertência, rogando a todos muita prudência, como o ódio também se instala em tempos
de paz, no trabalho, na escola e até nas famílias.
Ódio contra judeus - Dois mil anos de perseguição
Na manhã de 12 de julho de 1942, o Batalhão 101 da Polícia Alemã, composto por aproximadamente
quinhentos policiais reservistas provenientes de Hamburgo, chegou na pequena vila de Josefow, no
sul da Polônia, para umaoperação de “limpeza étnica”. A missão era eliminar toda a população de
judeus da cidade.
Todas as casas foram invadidas e seus moradores – homens, mulheres, crianças e idosos - foram
conduzidos à praça do mercado, onde embarcaram em caminhões que os conduziram a uma floresta.
Antes da matança, os soldados receberam instruções técnicas do médico do pelotão: deveriam colocar os
judeus deitados de cabeça para baixo, encostar a baioneta na nuca e atirar. As instruções se faziam
necessárias, já que o pelotão de fuzilamento tinha uma composição peculiar: a idade média dos soldados
era de 39 anos, apenas 20% eram filiados ao Partido Nazista e nunca tinham realizado nada semelhante.
Eram todos evangélicos, pessoas de classe média baixa, trabalhadores braçais, motoristas de caminhão e
alguns tinham até especialização acadêmica, antes da chegada do nazismo ao poder em 1933. Foi
permitido a recusa, mas apenas 13 homens o fizeram. O restante levou a tarefa a cabo:
“Os soldados começaram a atirar, mas as mãos estavam tão trêmulas que muitos erraram,
apesar da distância incomumente curta. Tendiam a mirar os rifles no crânio da vítima, que explodia
quando era atingido por balas de alto calibre. Os homens recebiam sem parar respingos de matéria
encefálica. Com o passar do dia, muitos desmaiavam, vomitavam e geralmente ficavam fisicamente
incapazes de continuar, e um número cada vez maior pedia para deixar de participar do assassínio.
Outros se escondiam, ou levavam um tempo implausivelmente longo para revistar casas que sabiam
que estavam vazias, ou erravam deliberadamente quando atiravam nos judeus que fugiam”[7]
Entretanto, com o tempo – e doses extras de vodka - todos se acostumaram a matar. Em dez meses
de “trabalho” este batalhão, conduzido pelo Major Wilhelm Trapp (conhecido como o “Pappa Trapp”)
alcançou a cifra de 83 mil judeus assassinados naquela região polonesa. A citação acima se baseia na
pesquisa do historiador Christopher Browning publicada em 1992 sob o título Ordinary Men: Reserve
Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. Browning descreve uma tipologia da crueldade:
“Há o oficial da SS normalmente "rigoroso e inacessível", que fica preso ao leito com diarreia e
dores na barriga toda vez que é anunciada outra "ação com judeus". Há o oficial talentoso e confiante
que gosta de dirigir seu carro de pé, como um general. Ele levou a jovem esposa em lua-de-mel à
Polônia e a convida a acompanhá-lo em uma operação no gueto. Há o grupo de artistas de Berlim,
cujos membros imploram para se unir à ação contra os judeus e cometem alguns dos assassinatos. Há
o cuidado observado por alguns soldados quando recebem ordens de matar seus próprios "judeus da
cozinha". Eles evitam levantar qualquer suspeita e tomam o cuidado extremo de atirar em seus
criados repentinamente pelas costas e a curta distância, de modo que os serviçais não sofram nem
vivam o pavor a que os outros judeus são expostos”[8]
Atualmente há um memorial na cidade de Josefow, que ainda existe e abriga 2 mil e 500 habitantes.
Mas não há mais judeus lá.
Aos judeus todas as desgraças do mundo já foram atribuídas. Pestes, secas, misérias, guerras,
derrotas, dívidas e até crises econômicas já foram cobradas com sangue, tortura, humilhação e morte aos
judeus, grupo étnico-religioso que hoje congrega quase 14 milhões de seguidores e que foi perseguido
incansavelmente durante séculos.
A grande diáspora judaica ocorreu no ano 70, por ordem do Imperador romano Tito. Os judeus
foram o alvo preliminar dos cruzados de 1095, que decidiram primeiro matar os “assassinos de Jesus” (e
lhes roubar o dinheiro) para depois combater os islâmicos. Foram expulsos da Inglaterra em 1290 e da
Espanha em 1492. Em Lisboa, na Semana Santa do ano de 1506, centenas de judeus foram assassinados,
por ordem de freis dominicanos, que os responsabilizaram pela seca e pela peste que atingia Portugal. Na
Rússia, entre 1880 e 1920, dois milhões de judeus emigraram devido às ondas de perseguição e violência
(Clarice Linspector, com apenas 1 ano de idade, migrou neste período da Ucrânia para o Brasil). Durante
a Revolução Russa eram perseguidos tanto pelo Exército Vermelho, quanto pelo Branco, que os
consideravam parte de um complô judaico-bolchevique.
Mas de fato nada se compara ao Holocausto. Houve cálculo no ódio nazista. Cálculo para
organizar a matança, para inventar e aplicar novos métodos, para registrar os avanços e metas
conseguidos. Talvez por isso seja o genocídio mais bem documentado da história da (des) humanidade.
Além disso houve teoria no ódio nazista. Uma pretensa justificativa científica, inspirado numa
leitura grotesca do darwinismo, forjou uma base biológica para o extermínio, ao passo que os outros
exterminadores do passado não se deram ao trabalho de elucubrar, nem calcular, sobre o seu ódio
coletivo. Apenas se entregaram a ele.
“Qualquer animal só se ajunta com um congênere da mesma espécie: a cegonha com a cegonha,
o rato com a rata, o lobo com a loba, etc. Todo cruzamento de dois seres de valor desigual dá como
produto um meio-termo entre os valores dos pais. Tal ajuntamento está em contradição com a vontade
da natureza, que tende a elevar o nível dos seres. Este objetivo não pode ser atingido pela união de
indivíduos de valor diferente, mas só pela vitória completa e definitiva dos que representam o mais
alto valor. O papel do mais forte é o de dominar e não o de fundir-se com o mais fraco, sacrificando
assim a sua própria grandeza. Só o fraco de nascimento pode achar cruel esta lei, mas é por ser
apenas um homem fraco e limitado.” (Adolf Hitler, Minha luta.)[9]
Hoje, qualquer vestibulando sabe que a Genética não permite este raciocínio, mesmo se aplicado a
uma só espécie, o que o perverso autor acima procurou ocultar, ao iniciar o argumento com espécies
diferentes (que nunca vão se “ajuntar” mesmo) para, ao final, justificar a limpeza ética.
Ódio contra palestinos – o terrorismo de Estado
Já no ano de seu lançamento, em 1998, o romance de Elias Khoury intitulado “Porta do Sol”
(Record, 2008) provocou grande repercussão na Europa, EUA e Israel. Em 2002 foi eleito o livro do
ano pelo jornal Le Monde Diplomatique. O livro é um imenso resgate da memória das famílias
palestinas que sofreram a perseguição, a expulsão, a morte e a humilhação impostos pelas tropas
israelenses entre a Guerra da Galileia, em 1948, e o Massacre de Sabra e Chatila, em 1982. Mas o livro
não é uma denúncia de ódio e vingança, apesar da experiência do autor nas lutas dos povos de religião
islâmica.
Elias Koury nasceu no Líbano em 1948 e aos 19 anos se incorporou às tropas do Fatah, o braço
armado da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Nos anos 1970 defendeu a causa palestina
como pesquisador e jornalista, mas voltou ao combate na Guerra Civil Libanesa (1975 - 1990), quando
ficou gravemente ferido. Entre 1993 e 2009 foi editor do suplemento cultural do jornal libanês Al-Nahar.
É professor de Estudos Islâmicos e do Oriente Médio na Universidade de Nova York.
O título Porta do Sol se deve ao nome de uma caverna da Galileia, na qual se refugiou o
combatente Yunis, herói de guerra do povo palestino. A obra é construída através de uma série de
encontros em que o enfermeiro Khalil imagina um diálogo com Yunis, então em estado de coma. Nestes
diálogos, Khalil dá voz a inúmeros personagens que viveram em torno de Yunis, conferindo à obra um
atraente aspecto de oralidade, em que o leitor é inserido em rodas de conversas entre mães, idosos,
combatentes, órfãos e até mesmo personagens do lado israelense desta história de massacres
intermináveis.
Como afirma o escritor Milton Hatoumsobre Porta do Sol, “cada narrativa, cada voz se
entrelaça com outras, em tempos e lugares diferentes. O fim de uma história é o começo de outra e a
única saída neste labirinto de batalhas, tragédias e humilhações é o amor, o desejo de viver em
liberdade, com amor”.[10]
Apesar de procurar um tom de superação da dor e do ódio, e de buscar uma solução do amor, muito
bem apontado por Hatoum, as histórias de Porta do Sol surpreendem pela crueldade, principalmente para
o público mais acostumado ao massacre diário da mídia hegemônica e à ideia de que Israel apenas se
defende de terroristas desumanos, homens-bomba e fanáticos ávidos de sangue e vingança.
Não apenas a história de uma pessoa parece começar, quando a de outra parece terminar, mas
também a dos povos. Após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e a revelação do horror do
holocausto judeu, o mundo todo se compadece da dor do heroico povo hebreu, que desde tempos bíblicos
e romanos resistiu a perseguições e humilhações. Ou quase todo o mundo, pois os povos árabes
assistiram revoltados à divisão da Palestina - onde viviam por milhares de anos - pela ONU em 1947
para a criação do gigantesco assentamento da nação de Israel, que acolheria todos os judeus do mundo,
inclusive os sobreviventes do Holocausto.
Desde então, quatro grandes guerras se desenvolveram entre árabes e israelenses até os recentes
acordos de Paz, sempre com a vitória dos judeus, muito bem aparelhados, treinados e financiados pelos
EUA. Israel se converteu na potência militar da região, inclusive com sua própria bomba atômica, tomou
posse de sua parte e também da parte dos palestinos, como estratégia de defesa de seu jovem Estado,
cercado de islâmicos por todos os lados.
A ONU protesta reiteradamente e exige a devolução dos territórios palestinos, segundo o modelo
de divisão que ela mesma concebeu. Parte deles foram devolvidos, como Gaza, mas ainda hoje faltam
outras parcelas reclamadas pelos palestinos, como Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã, na fronteira
com a Síria. Falta, sobretudo, o reconhecimento do Estado da Palestina, o que os EUA negam
sistematicamente.
Portal do Sol se inicia pelo Nakba (catástrofe, em árabe), nome pelo qual ficou conhecido o
êxodo, associado a massacres, dos povoados palestinos da Galileia em 1948, período que Israel registra
com o nome de Guerra de Independência. Mais de 700 mil palestinos foram obrigados a abandonar casas
e plantações e se deslocaram, em sua maioria, para o sul do Líbano.
Khalil relembra, junto à cama do emudecido Yunis, vários casos de perda, seguida de tentativa de
retorno e nova expulsão, ou morte. Alguns se esconderam nas florestas e voltavam soturnamente para
roubar frutas e legumes de suas próprias hortas, sendo recebidos à bala. Uma senhora volta com seu filho
num velho Fusca e chega a localizar a casa, convertida agora em moradia de uma velha judia de Beirute.
Ambas conversam amigavelmente e até trocam gentilezas, lembranças e revelações. A senhora judia tenta
devolver à palestina a moringa de barro que ficava na cozinha, mas esta não aceitou e disse: “eu a dou
para você”[11]. Caíram na gargalhada.
O mais comum, infelizmente, foi o retorno que levava ao encontro com a morte. As tropas
israelenses procuravam por combatentes islâmicos no meio da população civil e, quase sempre, nunca
fazia diferença entre civil e militar. Na noite de 1º de maio de 1948, por exemplo, na vila de Ein-Azeitun
(Galileia), um grupo retornou para resgatar o dinheiro que havia escondido no quintal e o que se viu foi o
massacre de mulheres, crianças e idosos, reunidos no centro do vilarejo pela guarda especial israelense,
o Palmach.
Um senhor, chamado Yussif, levantou da multidão agachada e tentou solicitar um tratamento de
prisioneiro de guerra, conforme as leis internacionais: "Um oficial jovem aproximou-se de Yussif e lhe
deu uma tapa na cara, depois puxou seu revólver e deu-lhe um tiro na cabeça. Seu cérebro explodiu e
espalhou-se no chão”[12]
Há ainda o Massacre de Tarchiha, assim descrita pelo protagonista: “Escolheram sessenta
homens, amarraram suas mãos com cordas e fizeram-nos parar em fila. Sessenta homens com idades
diferentes pareciam uma parede comprida trespassada por uma única corda passando pelas mãos
amarradas atrás das costas. Atiraram. O barulho das metralhadoras ensurdecia. Os homens caíam, as
pessoas agrupadas na praça corriam para as plantações. Era a morte”[13]
Há também o Massacre da Lama, ocorrido em dezembro de 1948: "Nahila me contou sobre o
massacre dos velhos e como Abraham, o oficial israelense, entrara no vilarejo e ordenara que todos se
agrupassem ao redor do tanque. Caminhou por entre eles, como quem inspecionasse um batalhão.
Mesmo Hajj Mussa Drawich, o paralítico, foi trazido de sua casa, por ordem dele”[14].
Após a morte do paralítico, o oficial (cujo nome cobriria de vergonha o Patriarca) escolhe vinte
idosos a dedo e os coloca em um caminhão, dispersando a tiros os restantes, que se dispersaram
aterrorizados nos bosques e plantações mais próximos. Pouco mais tarde os vinte velhinhos foram
metralhados em um lamaçal, durante uma chuva torrencial, de tal forma que se misturavam a lama, o
sangue, os corpos mortos e os que ainda escorregavam.
A diáspora palestina de 1948 teve como destino o sul do Líbano, onde se formaram imensos
campos de refugiados, em meio aos quais a luta armada recrutava seus fiéis militantes. Estabeleceu-se um
círculo de ódio. A violência do Estado de Israel é imensamente desproporcional aos ataques das
guerrilhas palestinas, cujas fileiras são permanentemente alimentadas pelo crescente contingente de
humilhados do lado palestino, que sobrevive na mais dura miséria. Guerrilhas que Israel chama de
terrorismo, lembrando atos como o massacre da equipe esportiva de Israel nas Olimpíadas de Munique
de 1972 pelo comando Setembro Negro, uma dissidência radical da Fatah.
Para desmoralizar o inimigo, o Estado de Israel protagoniza em 16 de setembro de 1982, um dos
capítulos mais sórdidos e cruéis do século XX, o Massacre de Shabra e Chatila, dois daqueles
acampamentos de refugiados. Ariel Sharon, então Ministro da Defesa de Israel, responsável pela
“proteção” do sul do Líbano, invadido por Israel, permitiu a entrada noturna de uma milícia libanesa
antipalestina (a Falange Libanesa) que, sob as luzes poderosas do Exército Israelense, matou cerca de
3000 civis, entre homens, mulheres e crianças.
Nosso protagonista não reconta a história de Sabra e Chatila, pois romperia com a oralidade da
estrutura do romance, construída com o material da memória dos palestinos. Foi numa mesa de bar em
Jerusalém que conhece detalhes do lado israelense e falangista do Massacre, como por exemplo a
execução sumária de duas crianças palestinas com apenas um tiro: “Contou que o chefe Joseph
encontrou três crianças e pediu a um de seus acompanhantes para segurá-las. Disse que lhe pediu
para que as colocasse uma perto da outra sobre a mesa. "Peguei meu revólver, queria verificar o
alcance de um tiro da Magnum" Um dos meninos escorregou da mesa, a luz queimava os olhos, pedi
para o colega afastar o rosto, ele não entendeu o que eu quis dizer, deixou os dois meninos e saiu da
casa. Aproximei-me deles, queria amarrá-los e me afastar, mas não achei uma corda. Juntei os dois
coladinhos, coloquei a boca do revólver perto da cabeça de um deles e atirei. A bala atravessou as
duas cabeças; morreram imediatamente. Não vi o sangue, pois com aquela estranha luminosidade
israelense não era possível enxergar o sangue. Quando saí da casa, tropecei na terceira criança que
havia caído, voltei um pouco para trás, atirei emalgo pequeno que se movia, parou"[15].
Joseph (outro que renegou o nome) era um combatente da Falange Libanesa, aliada do Estado
Israelense. Em 16 de dezembro de 1982, a Assembleia-Geral das Nações Unidas condenou o massacre
declarando-o um ato de genocídio. E como a história de uma pessoa leva ao começo da história de
outras, nosso protagonista, Khalil, acaba conhecendo cruzamentos ideológicos improváveis, como a
história de Sara (esta sim, honrou a esposa de Abraão), a mãe judia dos guerreiros islâmicos da Fatah de
Gaza e Jamal, o líbio, que conhece seu tio, um coronel israelense.
Ódio contra alemães – o genocídio alemão
O mestre espanhol Francisco de Goya e Lucientes, inspirador deste capítulo, testemunhou a
inversão de papéis entre agressores e agredidos, por ocasião da invasão napoleônica em seu país,
entre 1807 e 1812. Viu a Inquisição exercer sua crueldade e em seguida ser extinta, para logo
retomar suas atividades e propriedades. Registrou em gravuras de metal a façanha dos
“libertadores” franceses que trucidaram a população civil, em nome da igualdade e da fraternidade.
Pois bem, a Europa também viria a testemunhar a mesma inversão de papéis.
Os grandes libertadores da Segunda Guerra foram, a bem da verdade, as tropas soviéticas, em que
pese a insistência ocidental no Dia D. Entre 1940 e 1945, a Alemanha colonizou toda a área que se
estendia entre sua fronteira oriental e a URSS: Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Grécia, Finlândia,
Romênia. Foi barrada já dentro do território russo, precisamente em Stalingrado, a primeira derrota da
poderosa Wehrmacth, a virada da Guerra, no ano de 1943. Foi o começo do fim para os alemães, pois o
Exército Vermelho não apenas derrotou 250 mil soldados nazistas, como saiu no encalço dos
sobreviventes por toda a Europa Oriental, liberando quase todos os países acima citados, até atingir o
território alemão e a capital Berlim, o ninho da cobra.
Até mesmo os campos de concentração poloneses, como Treblinka e a rede Auschwitz-Birkenau,
foram estourados pelos soviéticos. O emérito historiador britânico, Eric Hobsbawm, na obra “A Era dos
Extremos”, assim resume o papel histórico dos russos na Guerra: “o comunismo salvou o capitalismo do
nazismo”. Salvou a humanidade, podemos dizer.
Mas a História não é um roteiro de cinema feito de heróis e bandidos. Hoje sabemos, os soviéticos
transformaram num inferno a vida dos alemães que encontraram pelo caminho. Houve um massacre
generalizado da população civil alemã, milhões de mulheres e crianças que já habitavam as áreas
tomadas pela Alemanha Nazista na porção oriental da Europa.
“O tema foi tabu até a publicação de um livro alemão sobre o assunto em 1992, Befreier und
Befreite (Os libertadores tomam liberdades), uma coletânea de artigos organizada por Helke Sander e
Barbara Johr. Em um artigo, o estatístico Gerhard Reichling estima que 1,9 milhão de mulheres
alemãs foram estupradas durante os meses da invasão. O número exato de estupros é muito maior, uma
vez que era raro que uma mulher fosse estuprada apenas uma vez. Uma proporção maior dos 40 mil
relatos escritos de testemunhas oculares mantidos no Bundesarchiv-Ostdokumentation alemão (um
arquivo estatal para a documentação sobre o front oriental, instalado na prefeitura de Bayreuth)
descreve como grupos de mulheres foram mantidas em cativeiro em porões para serem usadas pelos
soldados como quisessem, a qualquer momento. Há vários relatos de testemunhas oculares que
descrevem o que aconteceu em Nemmersdorf, cidade do interior no leste da Prússia, onde mulheres
nuas eram crucificadas nas portas, os pregos martelados em suas mãos e pés. Crianças, soldados
feridos do exército alemão e homens idosos que nunca foram convocados foram baleados na nuca,
transportados para campos de concentração russos ou espancados até a morte”[16].
Muitos dos que tentavam voltar à pé para a Alemanha descobriram a façanha dos soviéticos e então
resolveram voltar de navio, utilizando a rota do Mar Báltico, a partir da cidade portuária de Gotenhafen,
no norte da Polônia. Mais uma tragédia os aguardava, talvez o maior acidente marítimo da história.
O gigante transatlântico alemão Wilhelm Gustloff (assim batizado em homenagem a um líder suíço
nazista) recebeu a missão de ajudar as multidões de alemães que fugiam do avanço soviético no Leste,
mas foi atingido por três torpedos do submarino soviético S-13, vindo a afundar no Mar Báltico em 30 de
janeiro de 1945. Tinha a bordo cerca de nove mil e seiscentos passageiros civis, a maioria mulheres que
fugiam do avanço do Exército Vermelho e do Massacre da aldeia de Nemmersdorf (que fora uma colônia
alemã em território soviético), em outubro de 1944.
O Wilhelm Gutloff ficou boa parte da guerra ancorado em Gotenhafen como navio-hospital. Tinha
capacidade para 1 880 passageiros no total. Afundou uma hora e dois minutos depois de atingido. Foram
resgatadas apenas 964 pessoas delas. Sabe-se que, das vítimas, cerca de 4 000 eram crianças e
adolescentes, além de muitos soldados feridos e refugiados de guerra. O número exato de mortos é difícil
de ser estabelecido, mas estima-se que morreram entre 8 500 e 9 600 pessoas, cinco vezes mais o número
de vítimas do Titanic.
Não havia nem método, nem teoria, nem ordem na matança soviética. Apenas a volúpia cega da
vingança. Certamente, a fúria ou a frieza não amenizam a crueldade. Ilya Ehrenburg, escritor stalinista,
escreveu em um panfleto distribuído aos soldados russos:
"Contem não os dias, nem os quilômetros percorridos. Contem apenas o número de alemães que
mataram. Matem alemães: este é o seu lema. Matem alemães - este é o apelo da terra da Rússia. Não
hesitem. Não parem. Matem."[17]
Estima-se que mais de 2 milhões de civis alemães foram assassinados ou morreram de inanição, de
frio ou por conta das terríveis dificuldades por que passaram em 1945 e nos cinco primeiros anos depois
que a paz foi declarada.
Ódio contra islâmicos - em nome de Jesus
Em suas atividades comerciais e militares, vários membros da família Hudail, dona de imensa
propriedade com cerca de dois mil camponeses nos arredores de Curtuba, deslocam-se
continuamente por outras centenárias cidades islâmicas, como Ixbilia, Toletude e Garnata. De que
país estamos falando? Espanha. Sim, aqueles são os nomes originais das cidades fundadas pelos
árabes no sul da Espanha, onde nada havia, a não ser florestas e montanhas. São elas
respectivamente Córdoba, Sevilha, Toledo e Granada. Este é o contexto histórico em que Tariq Ali
apresenta um rico cenário multicultural composto pelos costumes de cristãos, mouros e judeus.
Granada foi palco do último episódio da longa Guerra de Reconquista, pela qual os cristãos ibéricos
completam seu domínio político sobre a Espanha, derrubando o poderio dos mouros, que ali viviam
desde o século VIII.
Mas a vitória da rainha Isabel, em 1492, foi selada por um acordo de rendição que permitia sob o
comando do novo governo católico a preservação dos costumes e tradições da população islâmica. Nove
anos depois, no entanto, o cardeal Jimenez de Cisneros ordena a incineração pública de todos os livros
escritos em árabe. Da imensa fogueira só escaparam uns 300 manuscritos de medicina – a mais avançada
da época – devido aos desesperados pedidos de médicos e intelectuais cristãos.
“Sombras da Romãzeira” (Editora Record, 2006), primeiro livro da série intitulada Quinteto
Islâmico, de Tarik Ali, inicia-se justamente pela fogueira do fanatismo católico contra a sabedoria árabe.
Mas haveria mais: em 1502, os reis católicos desprezaram o acordo inicial e assinaram um decreto de
conversão que impedia a prática e os hábitos da religião muçulmana (culto e idioma incluídos), apagandoda história o longo período de convívio pacífico entre as três religiões derivadas das pregações de
Abraão. Nunca é demais relembrar que este profeta do Corão e patriarca do Antigo Testamento (sagrado
para cristãos e judeus) deu origem aos povos do deserto (árabes), quando expulsa Ismael e sua mãe Agar,
antes de Sara conceber Isaque.
Tariq Ali, reconhecido intelectual islâmico, explica por que escolheu um cenário histórico para seu
livro: "Muito já foi escrito sobre o tratamento doentio contra os judeus em diversos períodos da
civilização, mas a fé dos muçulmanos permanece escondida na história."[18]
Escritor e cineasta, Tariq Ali nasceu no Paquistão e fez seus estudos superiores na Universidade de
Oxford, na Inglaterra. Escreveu vários livros sobre história e política internacional, além de biografias,
entre eles, The Nehrus and the Gandhis, Can Pakistan Survive? e Streetfighting Years. Este volume do
Quinteto traz uma revelação surpreendente no último capítulo – que não será aqui desvendada para não
privar o leitor do prazer de sua própria descoberta. No entanto, lá vai uma pista. A biografia de uma
figura de triste lembrança para os povos pré-colombianos passa, na adolescência, por um episódio
sombrio e cruel da perseguição católica contra os mouros. Afinal, mouros e astecas têm mais em comum
do que se imagina. Confira.
Ódio contra negros – diáspora africana, origem do Brasil
Um em cada cinco escravos não sobrevivia à viagem. Mortos, famintos e doentes se amontoavam
nos porões fétidos e escuros. Os que desembarcavam não sobreviviam mais do que sete anos. Em
média, um engenho “gastava” duzentos escravos por ano, logo repostos pelos negreiros. Ao todo
foram pelo menos seis milhões trazidos para o Brasil, em trezentos anos de escravidão, o que fez de
nosso país a maior nação escravista do mundo. Hoje todos os brasileiros negros e mulatos são
descendentes dos sobreviventes da diáspora africana.
Em Um defeito de cor (Record, 2007), sem dúvida um dos melhores romances da literatura
brasileira contemporânea, a jovem escritora Ana Maria Gonçalves (1970 -) recorre à bibliografia mais
recente sobre a escravidão negra no século XIX para criar uma narrativa envolvente e de profunda carga
emocional. O leitor se renderá aos encantos da história da pequena Kehinde, nascida no Daomé (hoje
Benin) e arrastada ao Brasil como escrava quando ainda não tinha completado sete anos de idade.
Rebatizada Luísa Gama, Kehinde é na verdade uma espécie de personagem síntese de muitas trajetórias
pessoais, todas capazes de tocar profundamente o leitor. Kehinde encarna principalmente a trajetória de
Luíza Mahin, mãe do poeta e advogado abolicionista Luis Gama (1830-1882)
O livro segue um roteiro ao mesmo tempo geográfico e histórico. Inicia-se em 1817, ainda em
terras africanas, em meio a conflitos entre monarquias negras, nos quais a mãe e o irmão de Kehinde
foram mortos. Fugiu para a cidade de Uidá, no litoral de Benin, onde foi embarcada rumo ao Brasil,
juntamente com a irmã gêmea e a avó. A trágica travessia do Atlântico é marcada por todo tipo de
crueldade e violência, levando à morte a irmã e também a avó:
“Eu tentava imaginar outras coisas para esquecer a vontade de fazer xixi, até que a Taiwo
reclamou novamente e a Tanisha disse à minha avó que ela teria que fazer ali mesmo, deitada. A minha
avó então rasgou um pedaço da roupa e o deu à Taiwo, para que se enxugasse depois, tomando
cuidado para o xixi não escorrer e molhar a cabeça do homem que estava deitado aos seus pés. O
homem não reclamou e nem se mexeu, então eu disse que queria fazer também. Estava acostumada a
fazer xixi em qualquer lugar até mesmo no meio da rua, mas fechada naquele porão era muito difícil.
Principalmente por saber que, ao ouvir o barulho ou sentir o cheiro, alguém mais poderia ficar com
vontade e fazer também, aumentando o ranço daquele lugar. Tive nojo quando peguei o pano já
molhado com o xixi da Taiwo e quis desistir, mas não consegui segurar. Senti o xixi escorrendo por
entre as pernas e apertei o máximo que pude uma contra a outra, para que não escorresse muito longe
e não molhasse mais o meu vestido, que ainda estava úmido da água do mar. As pessoas enjoaram,
inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois não comíamos desde o dia da
partida, colocando boca afora apenas o cheiro azedo que foi tomando conta de tudo”[19]
Sozinha, Kehinde foi desembarcada na Ilha dos Frades, antes de ir à venda no mercado de
escravos de Salvador. Passa o que lhe resta da infância e a adolescência num dos grandes engenhos da
Ilha de Itaparica. Nas primeiras semanas aprende a falar o português e acompanha a sinhazinha nas aulas
de alfabetização. É uma espécie de boneca viva da filha do sinhô José Carlos Gama. Rebatizada, Keinde
passa a ser Luísa Gama e dorme na Senzala pequena, reservada aos escravos da cozinha e da Casa
Grande. Mas é lá que presencia a vingança da sinhá, Dona Felipa, que manda imobilizar a escrava
Verenciana, grávida de um filho do sinhô, para então arrancar-lhe os globos oculares, servidos mais tarde
ao marido em um pote de geleia.
Logo ela própria chama a atenção do sinhô e não consegue fugir ao destino das moças negras,
reservadas à tara dos senhores de engenho. Ocorre porém, que ela estava namorando o negro Lourenço,
em breves fugas ao matagal, com direito a maconha e cachaça. Lourenço trabalhava diretamente na
produção do açúcar, segundo uma rígida rotina. Ao se dar conta de que poderia perder a primazia sobre a
virgindade de sua escrava, o sinhô aplica um castigo monstruoso aos dois. Com a ajuda de alguns dos
seus capangas, o senhor José Carlos Gama estupra Kehinde e também o negro Lourenço, que em seguida
é castrado com ferro em brasa. Misteriosamente, o sinhô é atingido por uma doença desconhecida,
definha lentamente e morre. A sinhá vende o engenho e se muda para Salvador.
Lá Kehinde é alugada a uma família de ingleses, trabalha na rua como “escrava de ganho” e
adquire conhecimentos valiosos sobre culinária e comércio de alimentos. Aos vinte anos de idade
consegue comprar a alforria e monta uma padaria com seu novo namorado, Alberto, um português
acostumado ao jogo, com quem tem um filho. Junto com Alberto enfrenta a onda de revoltas antilusitanas
de 1831, a rebelião mata-marotos, as revoltas federalistas do período da abdicação de Dom Pedro I, bem
como o clima de caça aos negros fugitivos ocorrida neste mesmo contexto. Além disto, participa
secretamente da revolta dos negros muçulmanos de Salvador, os malês.
Então vem a tragédia central do romance: endividado, Alberto vende o próprio filho como escravo
e desaparece, o que de fato ocorreu na infância do líder abolicionista Luis Gama. Kehinde inicia uma
longa jornada em busca do filho. Vai ao Rio de Janeiro, onde se surpreende com a diferença dos negros
de lá. Vai a Santos, São Paulo e Campinas e finalmente volta a Salvador. Desiludida, decide refazer a
vida na África e consegue realizar a viagem de retorno. Kehinde chega a residir em um bairro de
“retornados” em Lagos, na Nigéria, hoje chamado Brazilian Quartier, um local formado por ex-escravos
que fizeram a viagem de volta à África. Kehinde tem dois filhos com o namorado inglês. Os dois filhos
africanos vão estudar na França. Mas jamais reencontra o primeiro filho, nascido no Brasil.
Ódio contra negros – Moçambique - o apartheid português
O médico José Branco não tinha a menor ideia do que estava fazendo, quando pegou o navio em
Lisboa, logo após seu casamento, em direção à então cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo.
Era um homem idealista e corajoso, mas dizia-se apolítico. Dedicou sua vidaa um projeto inédito:
criou o primeiro serviço médico aéreo em Moçambique, pelo qual atendia milhares de pessoas que
sofriam de doenças crônicas. Aos poucos foi se irritando com o racismo da administração
portuguesa, que não tolerava negros com diploma universitário e não permitia tratamento
igualitário entre pacientes negros e brancos. José Branco era mesmo branco, mas foi classificado
como perigoso pela polícia portuguesa, que chegou a transferi-lo para o norte da colônia, como
retaliação ao seu comportamento amistoso com os negros. O chefe da polícia havia lhe advertido:
"não podemos dar cultura em demasia aos negros".
O moçambicano José Rodrigues dos Santos, escritor, jornalista e o mais famoso apresentador da
TV estatal de Portugal, relata em "O Anjo Branco" (Editora Gradiva, Lisboa, 2011) a experiência
verídica do médico português que escolheu Moçambique como local de trabalho, nos anos 70, sem
qualquer informação ou preocupação sobre o cenário político daquele momento.
Desde final dos anos 60 as colônias portuguesas na África lutavam pela sua independência, sob a
liderança de guerrilhas de inspiração comunista: Amílcar Cabral em Guiné-Bissau; Agostinho Neto em
Angola; Eduardo Mondlane e Samora Machel em Moçambique. Na conjuntura pós Segunda Guerra todo o
continente africano fervilhava, devido aos conflitos pela destruição do longo e nefasto colonialismo
europeu. França perdeu a Argélia, Marrocos e Nigéria. Inglaterra perdeu Egito e África do Sul, mas ali
se instalou um regime abertamente racista que seria destruído pela guerrilha de Mandela. Havia um
elemento agravante no caso português, uma vez que a ditadura salazarista, de inspiração nazista,
sobreviveu à Guerra e ao próprio Salazar (1889-1970) até a data de 1974, quando caem quase ao mesmo
tempo o colonialismo e o fascismo de Portugal.
O romance não faz qualquer referência a este capítulo da Guerra Fria em solo africano, o que
possivelmente contribui para a cadência agradável da narrativa, mas talvez isso torne tudo ainda mais
assustador ao leitor, quando se depara com a frieza e a crueldade das tropas especiais portuguesas, os
chamados “comandos” da DSG, em suas andanças pelas aldeias à caça de “turras”, os guerrilheiros. A
experiência mais dolorosa de José Branco foi o Massacre de Wiriyanu, ocorrido de fato em 16 de
dezembro de 1972. Não esteve no local do massacre, mas recebeu no seu modesto hospital os poucos
sobreviventes e visitou a aldeia destruída pelos "comandos" portugueses. Mas o padre católico Adrian
Hastings (1929 – 2001) esteve e denunciou o massacre ao jornal britânico The Times em 1972, a fonte
assumida pelo autor de “O Anjo Branco".
A descrição do Massacre, sustentada na reportagem acima citada, fará o leitor se lembrar do filme
“Platoon”, na cena em que as tropas dos EUA vasculham uma aldeia de vietnamitas à procura dos
vietcongues. Também trará à lembrança muitas passagens já abordadas neste capítulo. As tropas
portuguesas abordam a aldeia de Wirijanu em 16 de dezembro de 1972 com 5 helicópteros: traçam um
perímetro, metralham os que tentam escapar e silenciam a multidão de nativos, agachados no centro das
palhoças:
"Tu aí, levanta-te!" Uma mulher com uma criança de nove meses ao colo ficou com a impressão de que
o dedo a identificava e ainda olhou em redor, na esperança de que fosse outra a interpelada, mas
como ninguém se acusou teve de se render à evidência.
"Eu, patrão?"
"lá, tu. Põe-te em pé!"
A mulher ajeitou o filho ao colo, acomodando-o na capulana azul e dourada, e levantou-se. Quando
olhou na direcção do homem da DGS viu que ele lhe apontava uma espingarda automática. Crack!. A
mulher tombou com um buraco a meio da testa. A criança desenvencilhou-se da capulana e sentou-se
ao lado do cadáver da mãe a chorar convulsivamente. O ranho escorria-lhe das narinas para o lábio
superior e para dentro da boca. A multidão mostrava-se atordoada e ninguém se atreveu a levantar-se
para ir buscar a criança. O choro desconsolado encheu a clareira."[20]
Antes de partir para cima do grupo de mulheres, o chefe dos comandos especiais - a tropa de elite
portuguesa - já havia interrogado e matado vários homens da aldeia, com requintes de sadismo (como
pisotear o corpo estendido no chão até a morte). Após a cena acima, a DGS resolve ganhar tempo e
agrupa centenas de aldeões dentro das palhoças, nas quais jogam granadas em seguida:
“Num movimento sincronizado, tiraram as cavilhas das granadas, abriram uma frecha nas portas e
lançaram os explosivos lá para dentro. Depois trancaram as portas e afastaram-se. As explosões
sucederam-se quase em simultâneo, irrompendo pelas cubatas como uma reacção em cadeia. Quando
o saracoteado de detonações terminou, fez-se silêncio na aldeia. As palhotas fumegavam e o ar
cheirava a pólvora. Os soldados abriram as portas destroçadas e viram os corpos mutilados e
espalhados pelo solo, o sangue escarrapachado contra a palha. Cada comando inspeccionou uma
palhota. Ao penetrar na sua, Angelino ouviu um gemido, identificou o sobrevivente e viu que era uma
mulher gravemente ferida. Sem hesitar, apontou-lhe a G3 à cabeça e premiu o gatilho. Ouviam-se tiros
ocasionais por toda a aldeia; um disparo numa palhota e outro noutra” [21]
Durante a Guerra Colonial morrem 10.000 moçambicanos e 3500 soldados portugueses, um dos
fatores da queda do regime fascista de Lisboa em 1974.
Ódio contra armênios - a herança do ódio tem fim
Com apenas 21 anos, Armonoush resolve viajar às escondidas para Istambul e investigar as raízes
de sua família que agora mora em San Francisco, Califórnia. O encontro inesperado das duas jovens
cristaliza um encontro de duas culturas. Asya Karanci é turca. Armonoush é armênia. Mas o que
realmente significa isto para duas pessoas que têm toda a vida pela frente e um passado remoto e
trágico? Somos portadores das injustiças cometidas pelos antepassados?
Ler "De volta a Istambul" (2007), de Elif Shafak, é ao mesmo tempo uma viagem ao histórico
conflito entre turcos e armênios, e um vislumbre de uma possível solução para todos os conflitos raciais
e religiosos que dilaceram o mundo por séculos. Longe de ser um relato panfletário, a autora oferece uma
reconstrução de paisagens fascinantes da cidade atual de Istambul, de sua agitada e caótica vida urbana e
de uma certa mescla de odores, temperos e sabores que fazem do romance uma leitura multissensorial,
antes mesmo de ser multiétnica.
Trata-se de um grande diálogo que se estabelece entre duas adolescentes aproximadas pelos
caprichos do destino. Na Turquia a jovem Asya Karanci mora com três tias e a mãe, tão rebelde e
desbocada quanto a filha. Há um tio que muito cedo migrou para os EUA e teve uma filha com uma
americana. Ela se chama Armonoush, o mesmo nome de sua avó, uma sobrevivente do genocídio armênio
de 1915.
Os armênios faziam parte do vasto mosaico cultural que existiu no secular Império Otomano, entre
os séculos XIII e XX. Istambul foi a capital deste império islâmico que começa a entrar em decadência
no final do século XIX e a viver a lenta desagregação de partes de seu território nos Bálcans em meados
do século XIX, perdendo a Grécia, Bulgária e Iugoslávia. O Império Otomano foi aliado da Alemanha na
Primeira Guerra Mundial e, uma vez derrotado, foi esfacelado pela Inglaterra e pela França, dando
origem à Turquia (que resistiu ao domínio da Entente), Líbano, Síria, Irã, Iraque e Jordânia. Mas aos
curdos e armênios não foi concedido este direito. A Armênia só se tornaria independente em 1991, após
o colapso da URSS.
Ao final da Primeira Guerra ocorre o massacre armênio perpetrado pelo governo da Turquia, já
independente do Império Otomano. Na noite de 24 de abrilde 1915 foram aprisionados em
Constantinopla mais de seiscentos intelectuais, políticos, escritores, religiosos e profissionais armênios,
que foram levados a força ao interior do país e selvagemente assassinados. Depois de privar o povo de
seus dirigentes, começou a deportação e o massacre dos armênios que habitavam os territórios asiáticos
do Império. Segundo documentos encontrados pelo exército britânico em Alepo, o massacre teria sido
planejado pelos dirigentes do governo turco, liderados pelo movimento Jovens Turcos. As cifras de
mortos variam entre centenas de milhares a um 1,5 milhão de vítimas, entre 1915 e 1922. Não foi o
Império Otomano o organizador do massacre, mas uma oposição turca ao Império, que chegou à
independência da Turquia em 1923. O líder dos Jovens Turcos foi Kemal Atatürk, primeiro presidente
da República turca. Hoje é proibido na Turquia fazer referência ao genocídio, ao passo que em alguns
países como a França e EUA já foram votadas medidas de condenação ao genocídio e de seu
reconhecimento pelos turcos.
Voltemos ao romance. No início, Armonoush parecia buscar uma espécie de acerto de contas, em
nome de sua avó e de todos os armênios, mas encontrou algo diferente, intrigante e desafiador. Depois da
longa viagem transoceânica, reuniu as mulheres turcas da família na sala e fez questão de lembrar a todos
a história do genocídio armênio:
“Intrigada, Armanoush olhou-as uma a uma. Estava aliviada ao ver que a família não recebera
tão mal a história como temia, mas também não sabia se a tinham realmente recebido. Na verdade,
elas não tinham se recusado a acreditar nem contra-argumentaram. Limitaram-se a ouvir atentamente
e todas pareciam lamentar. Mas qual seria o limite de sua comiseração? E o que exatamente ela
estava esperando? Armanoush sentiu-se levemente desconcertada ao imaginar se teria sido diferente
se estivesse conversando com um grupo de intelectuais. Lentamente, ocorreu-lhe que talvez esperasse
uma admissão de culpa, se não um pedido de desculpas. E mesmo assim as desculpas não vieram; não
porque não lamentassem por ela, pois aparentemente lamentavam, mas porque não tinham feito
nenhuma ligação entre si mesmas e os perpetradores dos crimes. Como armênia, Armanoush
encarnava os espíritos de gerações e gerações anteriores de seu povo, enquanto o turco comum não
tinha essa noção de continuidade em relação a seus ancestrais. Os armênios e os turcos viviam em
diferentes estruturas de tempo. Para os armênios, o tempo era um ciclo no qual o passado encarnava-
se no presente e o presente dava nascimento ao futuro. Para os turcos, o tempo era uma linha mista de
formações ancestrais, onde o passado terminava em algum ponto definido e o presente começava de
novo do zero, havendo apenas uma ruptura entre os dois”[22]
Imagine, o leitor, só por um momento, se pudéssemos aplicar o raciocínio a todos os conflitos
étnicos e religiosos. Se uma criança não tem a culpa do pai, muito menos do bisavô, o que faz o agressor
acreditar que ela tem sim a culpa e merece desde já pagar, e pagar caro? Poderão viver em harmonia,
amar e serem amados, os herdeiros de agressores e agredidos das tragédias de outrora? Por ora, vale
frisar a importante contribuição da autora ao ousar romper as amarras do ódio. Mas não foi assim que seu
livro foi recebido. Elif Shafak nasceu na França e viveu na Turquia. Hoje é professora de relações
internacionais na Universidade do Arizona. Ela foi julgada pelos turcos e enquadrada no artigo 301 do
código civil da Turquia, por denegrir a imagem do país. Também foi levada a julgamento pelos armênios,
que não suportaram as palavras de alguns personagens armênios do livro.
A guerra de Picasso - cubismo neoclássico e psicológico
Imagem: “Guernica” (1937) Picasso
Voltemos aos anos 30, época em que o mundo parecia já ter esquecido a tragédia da Primeira
Guerra para se lançar raivosamente na Segunda Guerra Mundial. A Espanha de Picasso era o palco
de uma espécie de partida preliminar do conflito que arrastaria todo o planeta a mais um vale de
lágrimas. Num mundo polarizado entre nazismo e comunismo (no Brasil representados pelos
fascistas de Plínio Salgado e pelo PCB de Prestes), o governo esquerdista espanhol, legitimamente
eleito, apoiado pela União Soviética, enfrentava uma guerra civil contra os falangistas, apoiados
pela Alemanha.
Em 26 de abril de 1937 a poderosa aviação alemã, a Legião Condor, bombardeava a pequena
cidade de Guernica, no norte do país, deixando um saldo de quase 2000 vítimas civis, entre homens,
mulheres, idosos e crianças. O mundo ficou perplexo com o relato de uma testemunha ocular publicado
dois dias depois simultaneamente no Times (Londres) e no New York Times (EUA). Picasso, pintor já
consagrado, estava trabalhando em Paris, justamente numa encomenda que o governo espanhol lhe fizera
em janeiro para a Exposição Internacional da capital francesa, que ocorreria em julho do mesmo ano.
Picasso só leu a matéria em 02 de maio e então mudou os planos e dedicou a encomenda oficial às
vítimas daquele massacre covarde, bem ao estilo dos nazistas.
Foram três meses de trabalho até a estreia de Guernica na “Exposição Internacional de Artes e
Técnicas Aplicadas à Vida Moderna” em julho de 1937. As grandes exposições internacionais, que
aglutinavam novidades tecnológicas e artísticas, já tinham quase um século de tradição no Ocidente e
prestavam-se a múltiplas funções, desde a promoção da imagem moderna do país anfitrião, até a
aglutinação ideológica e nacionalista de cada nação que sediava o evento através de grandes alterações
urbanísticas, como a inauguração da Torre Eiffel na Exposição de 1889, centenário da Revolução
Francesa.
Mas em 1937, o pavilhão da Espanha não era, nem de longe, o mais grandioso e esperado. A
Alemanha de Hitler e a URSS de Stálin compareceram com duas construções gigantescas, ironicamente
colocadas frente a frente na margem direita do Sena, como dois pugilistas que medem força antes da luta
(Veja ao lado, a foto de Heirich Hoffmann, o fotógrafo oficial de Hitler). O pavilhão alemão ostentava
uma fachada com pilastras dóricas monumentais encimadas por uma imensa águia com uma suástica nas
garras. O pavilhão soviético culminava com uma escultura gigantesca chamada “Operário e camponesa
de kolkoz”.
Ambas as criações manifestavam uma inspiração clássica, assim como o pavilhão da Itália de
Mussolini, que se tornaria linha auxiliar do nazismo na Segunda Guerra, prestes a explodir dois anos
mais tarde. O pavilhão espanhol era bem mais modesto, mas sua principal atração não estava na fachada,
mas em seu interior, onde Guernica se apresentava a este mundo pela primeira vez.
A tela ganhou vida própria com uma nítida identidade política, convertendo-se ao mesmo tempo em
militante e ícone antifascista. Antes da Guerra viajou pela Europa e EUA alertando para o perigo
nazifascista, até ser finalmente abrigada no Museu de Arte Moderna de Nova York. Após a Guerra
viajaria em protesto pelo mundo afora, passando por Estocolmo, Colônia e São Paulo. Picasso não
http://www.humanarte.net/ira2.html
permitiu que a tela fosse para a Espanha, enquanto não terminasse a ditadura de Francisco Franco, aliado
de Hitler na Guerra, que governou despoticamente seu país até 1975. A tela só desembarcaria na Espanha
em 1981 e nem poderíamos falar em retorno, pois, de fato, ela nunca estivera lá antes, dada a sua
condição de exilada e ativista política.
Em 1967, centenas de artistas assinaram uma petição pública dirigida a Picasso, exortando-o a
retirar o quadro dos EUA, em protesto contra a invasão e os massacres realizadosno Vietnã. Não era
uma nação digna de Guernica. A tela era então uma espécie de patrimônio da humanidade, muito além
do controle de seu próprio criador.
A fama de Guernica ultrapassa as pretensões e a vocação do cubismo, técnica que se ocupa antes
da forma do que do conteúdo, procurando experimentações visuais, jamais simbolismos políticos. Como
integrante do amplo leque de tendências da arte moderna, de fins do século XIX às primeiras décadas do
século seguinte, o cubismo compartilha a ideia modernista de distanciar-se da realidade figurativa,
realista, para se dedicar a combinações deliberadamente arbitrárias de cores, linhas, figuras, gerando um
novo equilíbrio na composição final.
Assim vemos em Guernica, concebida em preto, branco e cinza, a ausência de profundidade e o
delineamento esquemático da mãe que aos brados ainda tem nos braços o bebê inerte. Com economia de
traços, o autor instala neste canto da tela uma tensão entre as duas cabeças, uma que pende já desfalecida,
outra em direção oposta, como se quisesse, mas não conseguisse, separar-se da criança. A fragmentação
das figuras ocupa toda a composição: braços e pernas mutiladas tanto aludem à destruição dos corpos no
bombardeio, quanto à técnica cubista de desmembrar tudo em pequenas peças reagrupadas a partir de
pontos de vista diferentes, colocadas lado a lado, como podemos observar nos olhos do touro.
Naqueles três meses de trabalho, que mudariam a história da arte, Picasso vivenciou um processo
intenso de criação, ponteado por muitas indecisões, que foram documentadas com precisão por Carlo
Ginzburg. Na antepenúltima versão (de 11 de maio) ainda havia a figura de um homem no chão com o
punho esquerdo erguido, clássica saudação comunista, extirpada nas versões seguintes. Por fim, Picasso
se decidiu por uma ruptura com o próprio cubismo que professava, ao se servir do simbolismo extraído
da cultura popular das touradas, aproximando o agressor (o touro) e o agredido (o cavalo), mas sem
qualquer referência ideológica, nem comunista e muito menos nazista, o que resultou numa memorável
obra de denúncia da atrocidade sem nomear o algoz, apenas a agressão.
O desalento foi prontamente registrado pelo eminente historiador da arte Anthony Blunt: “O gesto é
bonito, e mesmo útil, na medida em que mostra a adesão de um eminente intelectual espanhol à causa
de seu governo. Mas a pintura é decepcionante (...) O povo espanhol ficará grato pelo apoio de
Picasso, mas não será consolado pela pintura”[23]
Como Ginzburg adverte, Blunt era então um jovem historiador da arte marxista e mudaria mais
tarde sua avaliação sobre a importância desta tela, talvez o primeiro registro de um bombardeio aéreo de
civis. O próprio pintor também mudou de opinião, o que, de resto, é próprio dos que vivem intensamente
o trabalho que realiza.
Em 1945 Picasso disse: "Sim o touro aqui representa brutalidade, o cavalo o povo. Sim aqui usei
simbolismo. Meu trabalho não é simbólico. Somente o mural Guernica é simbólico. Mas no caso do
mural isso é alegórico. Essa é a razão pela qual usei o cavalo, o touro e assim por diante. Não há
sentido deliberado de propaganda em minha pintura. Exceto Guernica, pois ali há um apelo
deliberado ao povo, uma noção deliberada de propaganda"[24]
Dois anos depois (em 1947, portanto) Picasso dava outra interpretação: "Mas este touro é um
touro e este cavalo é um cavalo". Este é um trecho de uma resposta mais longa que Ginzburg optou por
não incluir em seu livro, mas que é de domínio comum e que continua assim: “se você der um
significado a certas coisas da minha pintura, isto pode ser verdadeiro, mas não foi minha intenção dar
aquele significado. São ideias e significados que obtive instintivamente, inconscientemente. Faço a
pintura pela pintura. Pinto os objetos pelo que eles são”[25]
Claro que estas duas interpretações devem ser contextualizadas no debate acadêmico do período,
em que disputavam espaço e reconhecimento a arte figurativa, a arte abstrata e a arte moderna, com
direito a profissões de fé, manifestos e proclamações de fidelidade à arte pela arte e não ao engajamento
obrigatório do artista. No mesmo período o Brasil também vivia este debate em que se digladiavam
portinaristas e antiportinaristas.
O comentário do historiador Blunt, citado anteriormente, é significativo daqueles que hesitaram em
aceitar a arte moderna, ou até mesmo a recusaram por completo. Ginzburg demonstra, no entanto, que um
olhar mais atencioso revelará um misto de influências, sejam elas modernistas, sejam figurativas e até
mesmo clássicas. A composição em formato de friso grego, por exemplo, atenta para sua fonte clássica:
“a composição é claramente dividida ao meio e as metades são cortadas por diagonais que,
juntas, formam um evidente triângulo em forma de empena – começa na mão à esquerda, o pé à
direita, e culmina no alto da lâmpada no centro – um triângulo que sugere a composição de frontão de
um templo grego”[26]
O frontão é marca registrada dos templos da Grécia Clássica, como no Partenon. São formações
triangulares que constituem o teto das fachadas e em geral exibem esculturas que narram uma história,
uma batalha, em sentido horizontal. Picasso teria acoplado o frontão dentro do friso retangular, também
um recurso narrativo da arte greco-romana, para contar a história do bombardeio na pequena Guernica,
mas à moda cubista. O resultado final foi definido com bom humor pelo historiador Clement Greenberg:
“uma cena de batalha de um frontão grego que foi achatado por um rolo compressor a vapor
defeituoso”[27].
Na mescla de fontes iconográficas, além do rolo compressor cubista (isto é, da falta deliberada de
profundidade), Picasso recorre também a suas próprias criações anteriores, repaginando-as. Ginzburg
demonstra que a tela de 1922 “Estudo com cabeça de gesso” é uma antecipação de Guernica pois o
busto de gesso se tornou um guerreiro com elmo, a mão de gesso segurando um bastão ou cetro se
transformou numa mão segurando uma espada quebrada, o livro ou jornal foi projetado no corpo do
cavalo.
A tela extrapolou a conjuntura dos anos 30, mesmo com toda a temperatura altíssima causada pela
Guerra Civil Espanhola, para alcançar uma linguagem atemporal, contra não apenas o fascismo, mas
contra todas as formas de brutalidade, através de um recurso psicológico sutil e muito profundo. Trata-se
da sedução pela exposição da morte, da tragédia em geral, não apenas aquela ligada aos fatos
incandescentes do momento. Daí a opção difícil de não registrar qualquer símbolo fascista e a opção
mais difícil ainda de eliminar a última referência à esquerda comunista, extirpada, como dissemos, na
antepenúltima versão que o pintor experimentava naqueles derradeiros três meses.
Agora podemos perceber que a tela Guernica apropria-se do tema do terror e da tragédia de forma
muito semelhante do que encontramos antes nos Desastres da Guerra, de Francisco Goya. Os dois
mestres espanhóis captaram as sutilezas do poderoso sentimento do terror causado pelas respectivas
guerras que retrataram. Goya o faz na retórica do romantismo do século XIX, deliberadamente em busca
do irracional, ao passo que Picasso se serve da gramática cubista, o que mostrou muito apropriado para
abordar o despedaçamento da humanidade. Para tanto, ambos tiveram a capacidade de extrapolar o
próprio tempo e alcançar a dimensão universal da linguagem artística. Se desaparecem o agressor
francês, no caso de Goya, e o agressor alemão, no caso de Picasso, o efeito resultante é o aparecimento
da agressividade humana em si, estimulada pela sedução da agressão e do ódio coletivo a um objeto
definido e desumanizado.Ao encarar as tragédias de seu povo em seu respectivo tempo histórico, Goya e Picasso,
conscientemente ou não, alcançam de fato a grandeza de mestres não apenas da arte, mas principalmente
do espírito, pois conseguiram metabolizar suas experiências e convertê-las em lições para as gerações
posteriores, para quem tiver a capacidade de assimilar ensinamento tão difícil de assumir nos
conturbados dias de hoje, quase um século após Guernica, cada vez mais dilacerado por movimentos de
ódio de todo tipo.
A sedução da morte e o encantamento hipnótico do ódio coletivo, arrastando multidões e
devorando todos os preceitos da civilidade, são fatores comuns à ira do passado e do presente. Há algo
muito profundo, revelador e desconcertante em todas as histórias relatadas nesse capítulo. O ser humano
não parece humano. Judeus massacrados vão ao massacre, assim como islâmicos, alemães, russos e
tantos outros. Não em nome da justiça, mas em busca da vingança, coisa bem diferente. O alvo da
vingança é invariavelmente sempre o inocente. Um recurso comum, em todas as execuções coletivas, foi
o método de reunir em praça pública homens, mulheres, velhos e crianças para então passar todos no fio
da navalha, no chumbo contra a nuca, em matéria encefálica esparramada por granadas, fuzis, pistolas, na
selva africana, no frio polonês, nos porões e florestas, na cozinha e no quintal. O estupro também foi
recorrente.
Convidamos agora o leitor a experimentar a ira na própria carne. Calma, nada de violência, nem de
masoquismo. A ideia e deixar a posição relativamente cômoda de assistir a tantos massacres como se
eles desfilassem à nossa frente, como num filme ou num ato cívico em praça pública. Afinal, até agora
pudemos observar de longe a longa trama de agressores e agredidos em ação, alguns revezando-se no
papel de presa e predador. Agora, no próximo capítulo a ideia é visualizar com o corpo, isto é, sentir
empaticamente o efeito da ira e da crueldade sobre o corpo, os ossos e músculos, tanto na postura de
presa quanto a de predador. Para tanto, convocamos os poderes místicos da escultura
3. O ódio na arte - pintura e escultura
A vida no Inferno segundo Bouguereau
O domínio do ódio sobre o corpo do agressor
"Ugolino e Seus Filhos" de J.B. Carpeaux
O domínio do ódio sobre a alma do agredido
“Ugolino” de Rodin
O domínio do ódio sobre alma e corpo do agredido
A vida no Inferno segundo Bouguereau
Imagem: "Dante e Virgílio" (1850) W. Bouguereau
Se pudéssemos visualizar cada um dos agressores abordados no capítulo anterior, no exato momento
em que estão sob completo domínio do ódio, talvez emergisse este agressor, à nossa esquerda,
criado pelo pintor William Bouguereau (1825 - 1905).
A maldade de algumas pessoas e suas façanhas mirabolantes, tema bastante comum em nossos dias,
também foi assunto de grandes escritores e pintores, justamente por serem tão mundanos e universais,
além de incômodos. Dante Alighieri (1265 - 1321), o primeiro poeta italiano, foi perseguido em vida por
suas posturas críticas ao Papa e à nobreza italiana, então a mais rica do mundo ocidental. Dante foi
traído, injuriado e exilado. Não esperou a morte dos inimigos, fez muito mais. Imaginou a punição de
cada um deles lá no Inferno, não se esquecendo de agrupá-los em seções específicas para cada
modalidade de pecado cometido, descrevendo detalhes das torturas eternas que passaram, passam e
continuarão a passar por toda a eternidade na companhia de grandes personagens da história,
identificados pelos mesmos crimes de seus conterrâneos.
Não satisfeito em imaginá-los nas infinitas agruras, Dante foi visitá-los, um de cada vez, cada qual
em um dos nove círculos do Inferno. Na honrosa companhia do poeta romano Virgílio (70 a. C. - 19 d.C)
encontra Cleópatra e Helena sofrendo nos ventos sufocantes do primeiro círculo, o da luxúria, junto com
Francesca (de Ravenna) e seu cunhado Paolo (de Rimini), amantes assassinados que, a bem da verdade,
não mereciam arder ali.
É lá no oitavo círculo que os dois nobres escritores dão de cara com a maldade em pessoa,
justamente aquela pela qual se assume ser outra pessoa. Para acolher, ou melhor, castigar tanta gente, o
chamado círculo dos falsários teve que ser ampliado e subdivido em dez partes para abrigar tantos tipos
de falsificadores: de ouro, de dinheiro, de pessoas e de palavras (falso testemunho), da esperança
(adivinhos) e da fé (falsos profetas) e outros mais. Os imitadores de tudo são acometidos de pelo menos
duas penalidades irreversíveis e intermináveis: coçam-se o tempo todo (tempo aqui tomado no seu
sentido mais lato) devido às terríveis chagas que a lepra lhes causa e, além disso, são ferozmente
agredidos pelas outras almas penadas que habitam a vizinhança, já que agora não podem mais assumir
outra cara. É como se seus companheiros de infortúnios lhes dissessem, já partindo para cima: "ah, então
era você!".
Desta vez os contemporâneos encontrados são Copocchio de Siena (um contraventor, herético e
alquimista) e Gianni Schicchi, florentino como Dante. Membro de uma notória família, astuto e
inescrupuloso comerciante, Schicchi teve a audácia de se apresentar ao cartório de notas com os
documentos de outra pessoa, para assim assumir a herança do falecido, enquanto a verdadeira família
ainda chorava o cadáver. A história virou tema da ópera cômica de Giacomo Puccini (1858 - 1924),
chamada justamente Schicchi (1918).
Escrito em 1304, A Divina Comédia (dividida em Inferno, Purgatório e Céu) atravessou os séculos
iluminando algumas almas e amedrontando outras. A parte mais procurada pelos artistas posteriores foi
sem sombra de dúvida o Inferno. Virou um manancial inesgotável para pintores e até escultores, como
Rodin, que se inspirou no drama de Francesca para fazer "O Beijo" (1886). Fica ao leitor o desafio de
entender por que motivo, razão ou circunstância, a Igreja Católica deixou rolar solto o poema por tantos
séculos.
Contemporâneo de Rodin, o pintor francês William Bouguereau (1825 - 1905) também foi colher
seu material de criação no mesmo Inferno, justamente no círculo dos falsários, oferecendo ao público
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uma ambiciosa versão visual da luta entre Schicchi e Capocchio. Seguindo uma tradição que remonta ao
vocabulário medieval, os pecadores aparecem totalmente nus no Inferno, como fizera Giotto no Juízo
Final da Capela Strovegni (século XIV) e Michelangelo no Juízo Final da Capela Sistina (século XVI) e
assim mantido pela norma neoclássica (século XVIII - XIX). À esquerda, na penumbra, vemos Virgílio
(identificado pelo ramo de louros da Roma Antiga) e Dante (com colete e barrete florentinos
inconfundíveis). Ao fundo e à direita encontra-se um amontoado de almas penadas, sob a supervisão de
um diabo zombeteiro em forma de morcego.
Os versos do canto 29 e 30 possibilitam a identificação dos combatentes: Gianni Schicchi é o
agressor à esquerda e Cappochio o agredido à direita. Mas como no inferno não há inocentes, ambos se
servem de seu quinhão de dor. Na vida terrena abusaram da humanidade e até triunfaram, mas lá embaixo,
após a morte, o que têm para fazer é brigar, correr, coçar, morder, atacar e ser atacado, por todo o
sempre. Já repararam como os crápulas e deficientes de caráter em geral sobem rapidamente, tecem
alianças e, quando caem, brigam entre si e se lançam numa luta encarniçada?
O tal agressor morde a jugular do leproso, que ainda revida tentando lhe arrancar os cabelos com a
mão direita, enquanto todo o braço esquerdo é retorcido para trás. Com a mão direita, quase como uma
garra de predador, o falsário de pessoas rasga as costas do falsário de ouro, ao mesmo tempoem que
tenta dobrar-lhe toda a coluna dorsal com uma impiedosa joelhada. No canto inferior direito vemos um
perdedor da luta anterior, exaurido. Sim, na outra vida, tantos os condenados, quanto os salvos retomam
sua forma corporal, já sem os estigmas que ganharam cá na terra.
A tela foi um sucesso de público e crítica no salão de 1850. A descrição mais eloquente foi do
famoso crítico de arte Théophile Gautier: "Gianni Schicchi se lança sobre Capocchio, seu rival, com
fúria estranha. Forma-se entre os dois combatentes uma luta de músculos, nervos, tendões e dentes
que o Senhor Bouguereau apresenta de forma magnífica. Há nesta tela amargura e força - força, uma
qualidade rara"[28]
O desenho de Bouguereau é de estilo realista, o tema é mais próximo do gosto do romantismo e a
musculatura se inspira no neoclássico (com graves distorções anatômicas). O pintor parecia determinado
a ter sucesso no Salão de 1850, já que fora derrotado nos salões dos dois anos anteriores. Soube reunir
em uma só tela aquilo que teria mais chance de atingir o grande público, a crítica e o gosto da época. Foi
tão feliz que deu início a uma carreira grandiosa, alcançando o mercado nacional bem como a elite norte-
americana. O nu masculino que trabalha nesta tela não é o mais característico de sua obra, marcado por
um amplo espectro de poses femininas dóceis, afáveis e adequadas à demanda masculina pela pintura
erótica, sempre sob disfarces míticos (Vênus, Baco, Psiquê, Cupido) ou simbólicos (Caridade, Inocência,
Amor Fraterno).
Seu sucesso financeiro o escravizou nesta torrente de temas e telas repetitivas, convertendo-se,
juntamente com Alexandre Cabanel (1823- 1899) em protótipo do passado, da arte clássica, da
artificialidade fria e, portanto, em alvo principal da crítica dos impressionistas na década de 1870 e
1880. Abusou da mesma fatura de corpos voluptuosos, feitos de uma carnação farta, rosada e cintilante.
Numa entrevista de 1891, Bouguereau confessou a natureza comercial que seu trabalho assumiu durante a
sua carreira, mesmo quando o gosto já passava por grandes mutações: "O que você esperava? Você tem
que seguir o gosto do público e o público só compra o que gosta. Por isso que, com o tempo, eu mudei
minha maneira de pintar"[29]
Espero que o leitor não mande o pintor (nem este escritor) para o Inferno imputando-lhe apego ao
vil metal ou falta de coragem para tarefas para as quais ele não estava preparado. Provavelmente, o leitor
também não estará livre destas imputações e o espaço lá embaixo já está comprometido demais!
Fiquemos com o que ele nos deu.
Voltemos à tela, só mais um pouquinho. Os dois combatentes parecem totalmente alheios a tudo o
que lhes cerca, tal a voracidade com que se entregaram à peleja infernal, destacando-se dos demais
personagens pela iluminação especial que faz brotar luz de seus próprios corpos musculosos, o calor do
ódio talvez. Mas, ainda que a nudez se explique pelas regras iconográficas do passado, não precisava ser
tão explícita e tão bem construída. Nem Giotto, nem mesmo Michelangelo se preocuparam com isto, pelo
menos não na parede, só no teto da Sistina. É inegável que algo de sensual grita forte nesta cena, em que
nádegas, coxas, bíceps e tórax se oferecem aos observadores, sob a licença de um elevado tema literário.
A postura dos combatentes se traduz em luta de corpos de um outro tipo de combate, este feito de
agressão, dor, mas também de prazer, deleite e perversão. Perverso não seria o ato homossexual, mas o
seu acento sadomasoquista estridente. Talvez o pintor tenha mandado para o Inferno não só os pruridos
monetaristas, mas também a demanda masculina, exclusivamente heterossexual, do mercado pela arte
erótica.
A criação ousada de Bouguereau, ainda que hoje nos pareça algo artificial, pode nos auxiliar na
nossa estratégia de abordar o ódio, não mais como um evento coletivo que preside os grandes genocídios
da história, como fizemos no capítulo anterior, mas como manifestação psíquica que acomete o indivíduo,
domina seu corpo e coordena sua alma e sua ação. É uma senha para entender como se sentia aquele
soldado português, na tórrida floresta moçambicana, que pisoteou seu prisioneiro até a morte ou o
libertador soviético que pregou a alemã nua na porta da igreja, em forma de cruz, em algum lugar gélido
da Polônia.
Sim, há o momento em que a agressão se burocratiza e se realiza no cálculo e na mais perfeita
frieza, mas certamente, em algum momento de seu próprio histórico de ódio, o agressor experimentou a
possessão da ira sobre seus “músculos, nervos, tendões e dentes”, como o capitão israelense que
coordena a rajada de balas sobre velhinhos palestinos na lama e na chuva, como o senhor de engenho de
Itaparica que estuprou negra e negro, antes da derradeira cena de castração. Castração que também os
soldados da “liberdade, igualdade e fraternidade” praticaram sobre espanhóis já presos, amarrados e
atados a postes, como desenhou Goya. Tudo se dá como se o sentimento de raiva fosse uma explosão
interna que excede os limites da pele, dos olhos e dos poros, deformando o agressor, então convertido
inapelavelmente em monstro humano ou máquina de matar, sem controle, nem razão, nem sentido.
Há um verdadeiro êxtase da agressão, ápice da possessão, no qual o agressor parece até se
ausentar da cena que ele mesmo pratica para melhor sorver, assistindo de fora o ato macabro que um
outro pratica, um outro que nele habita e que o presenteia com o imenso, intenso e superior prazer sádico
de causar dor no outro. Interessante notar que o êxtase da agressão quase sempre vem acompanhado do
êxtase sexual, com ele se mistura e se torna apenas um, justo na reiterada prática do estupro, que como
vimos, comparece em todos os genocídios, o que também não passou despercebido a Goya, já que ao
assunto bestial dedicou uma lâmina na série Desastres de La Guerra.
"Ugolino e Seus Filhos" de J.B. Carpeaux
Imagem: "Ugolino e Seus Filhos" de J.B. Carpeaux
“Mordi-me as mãos de angústia delirante" (A Divina Comédia, Inferno, Canto 33, verso 58)
O que acontece com estas quatro figuras que se enroscam e se desesperam? Qual o motivo do
temor que faz o ancião comer os dedos junto com as unhas?
O escultor francês Jean-Baptiste Carpeaux (1827 - 1875) foi buscar no Inferno de Dante Alighieri (1265
- 1321) o desafio de moldar em bronze os sentimentos extremos do ser humano, acima da moral, da
razão, do controle emocional e da vontade. O tema já era comum na mão dos pintores, principalmente na
escola do romantismo, mas não dos escultores. O conjunto escultórico representa os momentos finais dos
prisioneiros da Torre da Fome, a saber, o Conde Ugolino, seus dois filhos e dois netos.
No Canto 33, os dois poetas viajantes do Inferno se deparam com a figura contorcida e angustiada
do Conde Ugolino que, segundo a narrativa dantesca teria sido aprisionado na Torre dos Gualandi. No
século XIII, todas as pequenas repúblicas italianas encontravam-se divididas entre dois partidos (os
papistas Guelfos contra os antipapistas gibelinos), embora vivessem em plena ascensão econômica (ou
talvez esta fosse a razão da disputa). Em Pisa, o Conde Ugolino della Gherardesca foi acusado pelo
arcebispo Ruggiero degli Ubaldini, de ter traído a sua cidade natal. Ugolino, filhos e netos foram presos
na Torre, onde todos morreram de fome.
Antes de morrer, Ugolino teria se alimentado da carne dos próprios filhos, daí ter sido
surpreendido pela dupla de poetas naquele horripilante círculo infernal, onde o conde então lhes relata a
dor, o arrependimento e a angústia do abominável ato. Carpeaux traduz a narrativa literária em linguagem
escultórica, de tal forma que a gesticulação dos personagens testemunha a terrível desgraça que então se
apoderava lentamentede seus corpos e mentes. Emprestando o retesamento muscular próprio das figuras
de Michelangelo, cuja obra conhecera em viagem de estudos de seis anos a Roma, Carpeaux, insere vida,
tensão e sofrimento na cena feita de bronze, aproximando-se também do conjunto helenístico chamado
Laooconte, que representa o sacerdote troiano e seus filhos sendo devorados por duas serpentes enviadas
por Netuno, deus que tomou o partido dos gregos contra Troia.
Mas estátuas não costumavam exalar sentimentos tão altissonantes, o que já havido sido denunciado
por Charles Baudelaire (1821 - 1867). Além de grande e polêmico escritor, Baudelaire foi um crítico de
arte que de certa forma pautou as mudanças do gosto em meados do século XIX. Antes de convocar os
pintores para retratar a vida moderna - o que auxiliou o público a diminuir as resistências a Manet e
Monet - Baudelaire cutucou os escultores num artigo cujo título, bem sugestivo, era "Porque a escultura
é tão entediante?" (1846).
A obra de Auguste Rodin (1840 - 1917) viria a alterar para sempre a modorrenta tradição de
monumentos classicamente frios e inexpressivos que se multiplicavam nas esquinas da cidade de Paris,
então recém reformada, mas isso só ocorreria na década de 1880. O escultor Jean-Baptiste Carpeaux,
treze anos mais velho que Rodin, mas morto prematuramente aos 48 anos de idade em 1875, antecedeu
Rodin na ruptura com as normas da Academia Francesa, onde se ensinava a trivialidade e a falta de
criatividade. A grande mudança foi anunciada no Salão de 1863, quando Carpeaux ganhou a medalha de
ouro com o conjunto Ugolino e Seus Filhos (1860 - 1863), tema retirado não da mitologia ou da Bíblia,
como rezava o credo estilístico, mas da literatura.
Hoje o local do suposto canibalismo se chama Torre della Fame (Torre da Fome), parte agregada
ao Palazzo dell'Orologio (Palácio do Relógio) em 1605, agora aberto aos turistas. Recentemente a
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família Gherardesca viu-se aliviada com uma pesquisa científica que comprovou que não houve
canibalismo na Torre, limpando a imagem de Ugolino e seus descendentes. Numa entrevista à revista
Newsweek, o paleantropólogo Francesco Mallegni, da Universidade de Pisa reabilita Ugolino,
setecentos anos depois: "O cientista descobriu que Ugolino tinha cerca de 80 anos e saúde
precaríssima. Mallegni está certo de que o conde não comeu nenhum tipo de carne em seus últimos
dias. Mesmo que quisesse, não teria tido forças suficientes para devorar seus companheiros de cela. É
improvável, também, que o ancião tenha sobrevivido por mais tempo que seus filhos e netos,
homenzarrões de 1,80 metro e idade entre 20 e 40 anos. A avaliação da arcada dentária do conde
trouxe a revelação mais surpreendente: o canibal não passava de um velhinho banguela, com um
punhado de dentes em petição de miséria"[30]
Enfim, era apenas literatura. Assim como também é apenas escultura. Daí talvez a força
arrebatadora da arte (visual, plástica ou escrita), pois se apresenta humilde como ficção, acessa os
sentimentos do leitor-observador e fertiliza a experiência humana ao depositar ali a matéria prima da
vida real: os sentimentos que movimentam a alma e clamam por uma explicação.
“Ugolino” de Rodin
Imagem: “Ugolino” (1881) Rodin
"Magro, esquálido, as costelas salientes sob a pele, a boca vazia e os lábios trêmulos, que parecem
desfalecer, uma baba de fera faminta, ele se arrasta como uma hiena que desenterra a carniça, sob
os corpos desmembrados dos filhos cujos braços e pernas inertes balançam para lá e para cá sobre o
abismo" (Octave Mirbeau)
À primeira vista, este Ugolino de gesso parece mais feio, disforme e inacabado do que o bronze de
Jean-Baptiste Carpeaux. Claro, o poder expressivo do bronze é bem superior ao do gesso, geralmente um
estágio anterior à versão metálica. No entanto, se retomarmos o tema e o drama deste personagem
dantesco e dedicarmos uma atenção refinada ao Ugolino de Rodin, então possivelmente algum ganho
obteremos, senão em deleite, talvez em compreensão dos limites da humanidade.
Vinte anos depois da chocante versão de Carpeaux, aparece ao público o Ugolino de Auguste
Rodin, que começava então a viver a sua fama e seu reconhecimento. A dívida para com Michelangelo e
Carpeaux se revela na musculatura túrgida e na dramaticidade. Mas há algo de diferente nesta nova
figuração escultórica da linguagem literária. Algo ainda mais dantesco. Não se via, naquela época,
estátua de "gatinhas" com o personagem principal assim se arrastando de quatro. Não seria muito digno,
mas parece bem fidedigno à tragédia de ser reduzido ao estado de bestialidade, dominado pela fome
cruel que converte o ser humano na fera que caminha entre os membros despedaçados da própria prole,
que ainda se recusa a comer. A última fração de humanidade o faz resistir, mas prenuncia a hiena à caça
da carcaça, boquiaberta, trêmula, passos hesitantes, rosto contorcido. O homem-hiena baba e cambaleia
sobre os descendentes sem destino, alguns dos quais ainda sinalizam restos de uma vida, últimos
espasmos do ser já quase convertido em nada.
A deformação se apresenta como a grande diferença entre Rodin e Carpeaux. A tragédia do
primeiro Ugolino, de 1860, é uma ópera grandiosa, envolvente e eloquente. O drama humano fica por
conta do contraste entre o desespero, feito de dedos ríspidos na boca e face contraída, diante da
musculatura hercúlea, cuja força apenas se exibe justamente para se mostrar insuficiente e derrotada. O
segundo Ugolino, de 1881, mais parece uma performance dilacerante e malcheirosa que invade as
cadeiras e camarotes do teatro. Não há mais nada de rigoroso na anatomia. Tudo apenas insinua ossos
despontando na pele seca que resulta numa sombra de corpo humano, sem traços definidos. O caráter de
obra inacabada, de esboço, auxilia a expressão do esvaziamento da vida e da humanidade. A deformação
se faz recurso expressionista, pois emerge como distorção da dignidade, como realidade externa
(contrações) em face da realidade interna (fome e desespero)
Há pelo menos quatro obras do Museu D´Orsay diretamente inspiradas no Inferno de Dante, três das
quais abordamos aqui. A pintura de Bouguereau, de fatura clássica e homoerótica, tematiza a bestialidade
que toma a forma de ira no oitavo círculo, reservado aos dez tipos de fraudulentos. Ugolino, por sua vez,
representante dos traidores, cuja fria residência eterna é o nono e último círculo, tematiza a bestialidade
disforme do fim de qualquer traço de humanidade, o apagar da vida sem morte ainda, pois quando esta
finalmente chegar vai se hospedar em lago congelado, contrassenso do Inferno medieval, tendo apenas o
rosto para fora do gelo e quando as lágrimas de sofrimento escorrerem pela face também congelam,
consumando o enterro glacial de todo o corpo corrompido pela alma nefasta.
Se os combatentes de Bouguereau nos serviram para abordar o efeito do ódio sobre quem o tem e o
cultua, os dois Ugolinos são aqui tomados como efeito do ódio sobre quem é odiado. Na versão de
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Carpeaux, Ugolino não preserva a dignidade da alma, mas mantem a do corpo, titânico mesmo nos
últimos suspiros desta vida. Arrependido, mas ainda humano. É preciso atentar para o fato de que a
escala de valores do inferno dantesco começa com a luxúria (primeiro círculo) e termina com a traição
dos benfeitores, lá no último círculo da danação eterna. Ugolino é seu mais nobre inquilino. Traiu o
partido político que o havia abrigado, a cidade e seu protetor que, tomado de indignação o trancafiou na
Torre da Fome, juntamente com duas geraçõesde seu sobrenome, para aniquilar corpos, almas, nomes e
memória. Indignação aqui é outro nome para o ódio, capaz de agir vagarosamente na mesma velocidade
do efeito da fome sobre o corpo e a mente do idoso, dos dois homens maduros e das duas crianças.
Rodin tomou o bandido e não o mocinho para mostrar a transição da humanidade para a
animalidade, segundo o programa da vingança, não da justiça. Deveríamos sim nos contentar com a
punição, ainda que cruel, pois Ugolino é o pior de todos os pecadores, detentor da pior de todas as
maldades, qual seja a de se voltar contra quem só lhe fez o bem a vida toda. Morte a Ugolino! Entretanto,
não é esta a mensagem de Rodin. Nem de longe. A cidade toda estava certa, pois Ugolino é o criminoso e
disto não há dúvida (pelo menos para o partido no poder). Mas por que não ficamos nem um pouco
felizes com a situação em que se encontra Ugolino?
Talvez porque também não saltitaríamos de prazer ao ver o mesmo castigo aplicado aos agressores
e criminosos de guerra. Você seria capaz de saborear e se regozijar com a cena hipotética de trancafiar
aqueles mesmos soldados portugueses, soviéticos e israelenses, citados anteriormente, em uma jaula sem
água, nem comida, convalescendo lenta e irreversivelmente, dias, semanas, até o último fôlego? Você
aceitaria apenas trocar de lugar com estas criaturas abomináveis? Afinal, seria a mesma torpeza aplicada
às vítimas destes criminosos de guerra: velhos, mulheres e crianças viram-se subitamente reduzidos à
condição mais degradante e humilhante, assistindo a execução de seus familiares, acuados, tomados pelo
medo, pelo pânico e pelo completo desamparo. Rodin, em mais um lance de gênio, toma o agressor para
evidenciar a condição humana, precondição para a vida civilizada: justiça sim, vingança não. Caso
contrário, agressores e agredidos se igualariam na bestialidade do ódio, apagando as fronteiras entre o
justo e o injusto, o humano e o demônio.
A primeira questão a se levantar é o que realmente motiva e move o grupo de agressores. A
resposta a esta questão é ainda mais desconcertante, pois descobriremos que em tempos de paz também
aparecem os mesmos mecanismos de ação coletiva, a mesma psicologia de massa. Aquilo que agrega
uma turba de vândalos também age na violência difusa do cotidiano.
Falta-nos apenas tentar compreender como é possível que o mesmo ser dominante nesse planeta
seja capaz de tanto ódio e, ao mesmo tempo, de tanto amor, como demonstraremos no próximo capítulo.
Convidamos o leitor a deixar momentaneamente tantos tons cinzas da morte e da crueldade para
recuperar os matizes alegres, brilhantes e multicoloridos, dos quais, afinal, a alma humana também está
impregnada. Convidamos ainda, na sequência, a compartilhar, investigando as próprias experiências,
nossas considerações finais, embora jamais conclusivas, sobre esta estranha disposição para o
contraditório, para o belo e o horror, para o bem e o mal, para o amor e a ira.
4. A arte do amor – poesia e pintura
O arrebatamento da alma
Existe o tipo peregrino, aquele que não para em nenhum relacionamento. Nada o compromete, proclama
sua vitória sobre o destino. Também existe aquele comprometido com uma rotina. Nada o tira do roteiro.
É o tipo prisioneiro. Há, porém, uma sublime advertência aos dois tipos...
O arrebatamento do corpo
O amor também é corpo. Não se contenta com a alma, nem procura algum sentido. Desfaz a
individualidade, mistura as personalidades, dilui a civilidade nos poros primatas dos amantes, lançando-
os nas alturas sublimes da humanidade.
A Paixão
O método do amor, contra as amarguras da vida, pode trazer ainda mais dependência, frustração e dor,
pois aquele que ama fica sujeito à perda.
A Separação, segundo Belmiro de Almeida
Perda, na verdade, desde o mais prosaico "dar um tempo", "desencanar", até a infidelidade e a
infalibilidade da morte.
A Separação, segundo Frida Kahlo
Frida faz aqui uma referência ao divórcio com seu marido infiel, o polêmico pintor Diego Rivera (1886 -
1957)
O arrebatamento da alma
Existe o tipo peregrino, aquele que não para em nenhum relacionamento. Nada o compromete,
proclama sua vitória sobre o destino. Também existe aquele comprometido com uma rotina. Nada o
tira do roteiro. É o tipo prisioneiro. Há, porém, uma sublime advertência aos dois tipos:
O turbilhão do amor, irresistível, indomável, tudo muda e tudo arrasta. Nas palavras da doce
poetisa chilena, Violeta Parra (1917-1967): "O amor é turbilhão, de pureza original...detém os
peregrinos, libera os prisioneiros...".
A passagem de um ponto ao outro foi registrada por Eros Ramazotti: no primeiro estágio (peregrino
ou prisioneiro) evita-se uma história importante, para dali há pouco, cansado da mesmice, clamar por
algo duradouro. Diz o músico e poeta italiano: "Ma ora voglio di più" (Mas agora quero algo mais..)
"Una storia importante, Quello che sei tu, Forse sei tu..."(..uma história importante, justamente o que
você é, talvez seja você).
O amor tem seus caprichos e uma vez lá pode-se esperar um arrebatamento da alma, "um luxo
radioso de sensações” (Primo Basílio, Eça de Queirós). Aos prisioneiros, peregrinos e pessoas
importantes (forse sei tu) dedicamos este capítulo especial sobre o Amor, começando agora pelo
arrebatamento da alma. Já dizia Platão, que os caminhos do amor são os caminhos do conhecimento,
conhecimento da alma, verdadeiro conhecimento...
Amores estranhos
"Carmen", de Bizet, é um clássico da ópera, um hino à força avassaladora do amor. Em sua passagem
mais célebre a cigana nos alerta (na poderosa voz da mezzo-soprano grega Agnes Baltsa) sobre a
impossibilidade de controlá-lo.
O amor é um pássaro rebelde
Que ninguém pode prender,
Não adianta chamá-lo (...)
Pois só vem quando quer
Julgas tê-lo apanhado, ele te escapa;
Julgas que te fugiu, ele te agarra.
Georges Bizet escandalizou o mundo da ópera com sua anti-heroína: Carmem é uma cigana
sedutora que pode arrasar os homens. Sensual, irresistível, é assassinada pelo amante. Numa das poucas
avaliações positivas da imprensa do século XIX, assim o Le National de Paris referiu-se à temática:
"Bizet quer pintar homens e mulheres de verdade, alucinados, atormentados pelas paixões, pela
loucura. Assim, a orquestra conta suas angústias, seus ciúmes, suas cóleras e a insensatez geral".
Amores que atormentam, estranhos amores. Na pungente e aguda voz de Laura Pausini: "io sapevo
che era una bugia" (sabia que era uma mentira), mas mesmo assim estes "strani amori mettono nei
guai" (estes estranhos amores nos colocam em problemas). Já passaram por isto? Nada a estranhar pois
"in realtà siamo noi" (na realidade somos nós).
Um dos efeitos mais estranhos do amor é o turbilhão de sensações que lança quem ama de volta aos
primeiros amores. Experiente nas ciências do mundo, encontra-se carente nas coisas do coração e, como
um adolescente de dezessete anos, o apaixonado viajante no túnel do tempo das emoções revive a
“pureza original” de humildade que se alia à única ambição de simplesmente desfrutar da presença da
pessoa amada:
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a dios
‘(Violeta Parra)
O arrebatamento do corpo
Imagem: "O Sonho" (1932) Pablo Picasso
O amor também é corpo. Não se contenta com a alma, nem procura algum sentido. Desfaz a
individualidade, mistura as personalidades, dilui a civilidade nos poros primatas dos amantes,
lançando-os nas alturas sublimes da humanidade. Nosso itinerário do amor tem agorao auxílio de
uma sugestiva tela de Picasso (O sonho) e duas letras do mestre Chico Buarque: O que será, na
versão conhecida como À flor da pele (1976) e Eu te amo (1980)
Não adianta disfarçar, prezado leitor, prezada leitora. Pois quando acontece, "salta aos olhos",
"sobe às faces" e "aperta o peito". Algo lá de dentro "desacata a gente" e já sem controle, nem recusa
(mas "nem é direito ninguém recusar"), você se despe das convenções, lança ao chão os tratados, rasga
os preceitos, ignora os bons modos e se "faz mendigo" a suplicar "o que não tem medida, nem nunca
terá, o que não tem remédio, nem nunca terá, o que não tem receita".
Todo o seu corpo, leitor e leitora, conspira contra a razão, rebela-se. "Todos os nervos estão a
rogar, todos os órgãos estão a clamar" e arrebatado por tremores, ardores e suores, você apenas
acompanha a dança medonha, que não tem vergonha, nem governo, nem juízo.
Você vai tentar retomar as rédeas, vai buscar num canto protegido da sua alma um remédio, uma
receita, recorrendo ao seu credo, mas nada: nem todos os dez mandamentos, nem todos os unguentos, toda
alquimia, todos os santos, todos os quebrantos. Nada.
Hora de ir embora. Mas com que pernas? "Já confundimos tanto as nossas pernas, diz com que
pernas eu devo seguir ". Hora de partir, mas se "nos amamos feito dois pagãos, teus seios ainda estão
nas minhas mãos, me explica com que cara eu vou sair". A memória cuidará do retorno. O universo está
em conluio para retomar "as travessuras das noites eternas". No guarda-roupa "meu paletó enlaça o teu
vestido".
A dama que sonha acordada na poltrona, tomada por pigmentos tão intensos quanto os seus
pensamentos, bem poderia ser a dona do vestido, enlaçada naquele paletó das noites eternas. O
arrebatamento do corpo, na versão de Pablo Picasso, mistura paixão e memória, que fornecem a matéria-
prima dos sonhos, estes entes viventes, autônomos, saltitantes, irreverentes e de hábitos noturnos em
nossas mentes como lapsos de racionalidade e clarões de sensualidade.
A técnica cubista faz empréstimo de cores fovistas para ensaiar uma cena surrealista. Nesta fase de
sua carreira, Picasso cria planos sem modelação e associa cores extravagantes a deformações espaciais,
como a distorção do ombro direito, feito almofada para a cabeça.
O que será que lhe dá? Entre sorridente e enigmática, Mona Lisa cubista, a nossa dama entrega-se a
devaneios inconfessáveis, mas plenamente carregados de indícios sugestivos, como as mãos atrevidas
que parecem causar um arrepio, verdadeiro motivo da contorção involuntária do pescoço que assim
ordena ao rosto colar-se ao ombro. O que será, que será?
"Há várias ambiguidades: a cor lavanda contraposta ao verde; o vermelho ao amarelo; parte da
poltrona é volumétrica, parte é achatada; a expressão muda, pois de perfil é de soberba, de frente é
sorridente, o que corresponde a um movimento psicológico interno. As expressões respondem a um
desejo onírico erótico, o que é reforçado pelo gesto, pela pose, tanto quanto pela mudança da
expressão facial; o perfil dividido da face é indisfarçavelmente fálico"[31]
http://www.humanarte.net/amor1.html
A paixão[32]
"Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito
nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor
sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do
sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa" Fernando Pessoa - O
Livro do Desassossego.
Freud nem sempre é leitura árdua. Não poucas vezes sua escrita é envolvente como uma poesia.
Tanto que se aproxima do mestre Fernando Pessoa. Na célebre obra O Mal-estar da Civilização, Freud
toma o leitor pela mão e o conduz aos meandros enigmáticos do sentido da vida. Nesta "narrativa
científica", se é que tais termos, isolados ou associados, aplicam-se ao seu estudo, lança um alerta
inicial, algo pessimista, pesaroso: "A vida tal qual nos coube é muito difícil para nós, traz demasiadas
dores, decepções, tarefas insolúveis”[33]. Mas como "é simplesmente o programa do princípio do
prazer que estabelece a finalidade da vida", vários caminhos se nos apresentam, disponíveis ao nosso
arbítrio (mas também aos caprichos do inconsciente) para enfrentar as frustrações e a dor, que derivam
de três fontes, a saber, o corpo, a natureza e a sociedade.
Alguns tentam os entorpecentes, já que toda dor é dor do corpo. Não tem efeito duradouro, dizem.
Outros enveredam pela recusa deste mundo cruel e se lançam pelas estradas e ruas como andarilhos,
enfurnam-se nas florestas, conventos e retiros espirituais como eremitas ou subvertem internamente o
mundo externo, recriando-o mentalmente, já sem as imperfeições mais intoleráveis. Este é o paranoico.
Mas a paranoia não nos é tão estranha assim, já que "cada um de nós, em algum ponto, age de modo
semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e
inscrevendo esse delírio na realidade".
Há ainda a "fuga para a doença neurótica". E se tudo isto falhar, há um recurso extremo, lá pela
faixa dos quarenta anos de idade ou mais: "o indivíduo que numa idade posterior fracassa nos esforços
pela felicidade, encontra ainda consolo no prazer obtido por meio da intoxicação crônica, ou faz a
desesperada tentativa de rebelião que é a psicose".
Antes, porém, do recurso à neurose e à psicose, o ser humano (seja lá aquilo que for de fato) tenta
algo bem arriscado, talvez o mais ineficaz: o amor. Freud não é nada otimista quanto ao método do amor:
"nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais
desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor" [34]
Aquele que recorre ao método do amor logo se dá conta de que se tornou demasiadamente
dependente do mundo, isto é, do objeto (a pessoa) de amor. Fica sujeito à perda, seja por morte, seja por
infidelidade. Uma solução se apresenta na figura do amor universal, do qual São Francisco é citado por
Freud como o exemplo mais sofisticado. Amar a todos protege aquele que ama da perda e da frustração:
"o que produzem em si mesmas desse modo, um estado de sentimento uniforme, terno, estável, já não
tem muita semelhança exterior com a vida amorosa genital, tempestuosamente agitada, de que no
entanto deriva. Nessa utilização do amor para o sentimento interior de felicidade, quem mais avançou
foi talvez São Francisco de Assis"[35]
O leitor certamente não tem vocação para santo, então vamos tentar outra coisa. Vamos escolher um
objeto (pessoa) de amor. Fortíssimas restrições são então imediatamente mobilizadas pela sociedade: "a
civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel
entre um homem e uma mulher, que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e
que está disposta a tolerá-la somente como fonte, até agora insubstituível, de multiplicação dos seres
humanos"[36].
Quase todos escolhem o amor narcísico, cuja definição aproxima o psicanalista e o poeta. Em outra
obra, chamada Introdução ao Narcisismo, Freud demonstra como as pessoas constroem ao longo da vida
uma imagem idealizada de si própria pela qual medem, guiam e corrigem o seu comportamento real,
algumas de forma mais aguda e crítica que outras. Aquela autoimagem idealizada chama de Ideal do Eu,
em oposição ao Eu real. Assim, todos nós somos levados automaticamente a apreciar tudo aquilo que se
parece com o ideal do Eu, tudo o que exala algo de perfeição e, principalmente de estabilidade psíquica
(tema já explorado aqui no capítulo "A arte da inveja").
Para Freud, este mecanismo opera no momento da escolha da pessoa amada, isto é, somos atraídos
poraquilo que nos falta, amamos o pedaço que completaria a imagem engrandecida de nós mesmos.
Assim, enquanto não temos a pessoa amada, sentimos mais intensamente esta falta, o Eu se esvazia, o que
faz do apaixonado uma pessoa esvaziada de narcisismo, enfraquecida na imagem interna, em uma
palavra, humilde:
"A dependência do objeto amado tem efeito rebaixador; o apaixonado é um humilde. Alguém que ama
perdeu, por assim dizer, uma parte de seu narcisismo e apenas sendo amado poderá reavê-lo"[37]
O poeta, que não é um fingidor, captou a mensagem de forma direta, diferente, clara e evidente. Diz
o poema que abre este capítulo: "Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos
de alguém". Perfeito, Pessoa freudiano!
Ao final e ao cabo, o fingidor de verdade é todo aquele que ama, finge que ama, ama
egoisticamente a si mesmo na figura paranoicamente modificada da pessoa amada. Na construção da
felicidade, ao compor um plano de vida para si mesma, a pessoa se cria, se faz em sua mente e diz
"Assim sou eu, este é meu jeito" e quando ficar evidente que este jeito não satisfaz, toma posse de
outrem, através do namoro, casamento ou seja lá o que for, para corrigir e completar a autoimagem
fortalecida:
"O ideal sexual pode se colocar num interessante vínculo auxiliar com o ideal do Eu. Onde a
satisfação narcísica depara com obstáculos reais, o ideal do Eu pode ser usado para satisfação
substitutiva. Então a pessoa ama, em conformidade com o tipo da escolha narcísica de objeto, aquilo
que já foi e que perdeu, ou o que possui os méritos que jamais teve. A fórmula paralela à de cima é:
aquilo que possui o mérito que falta ao Eu para torná-lo ideal é amado"[38]
Fernando Pessoa resume, explica e não complica:
Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante…
Eras o Universo…
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.
Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via…
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.
Fernando Pessoa - Amei-te por te amar
A separação
Imagem: "Arrufos" (1887) Belmiro de Almeida
“Ooh, it's so typical, love leads to isolation” (Separate Lives, Phill Colins)
Apesar de toda a elegância dos dois personagens e do luxo da decoração, há um aspecto prosaico, quase
grotesco na briga do casal acima. Possivelmente acabaram de chegar de uma festa ou algum evento
social, pois ela largou apressadamente o chapéu sobre a poltrona e, enquanto enterra o rosto entre os
braços, em atitude de pranto, ele se despe de uma das suas luvas, senta-se calmamente, pernas cruzadas,
segura o charuto em atitude contemplativa, indiferente ao sofrimento feminino. Ela ocupa a metade
esquerda da composição diagonal, amplamente marcada pela tapeçaria, estofado e cortina. Ele se situa na
metade oposta, diante de uma parede mais simplória quanto à decoração. O ponto de ligação entre os
dois campos é justamente a área de proximidade entre a cauda da saia e a sola do sapato dele. Não há
dúvida: ela acaba de tomar um pé-na-bunda. Assim a cena de Belmiro de Almeida (1858 - 1935) é
descrita pelo historiador da arte e professor da PUC-Rio, Rafael Cardoso:
"É a famosa cena daquilo que a sabedoria popular apelidou de pé na bunda, o que está reforçado
visualmente pela proximidade de seu pé erguido com o estofadíssimo traseiro de sua companheira.
Pode parecer exagero e maldade esta última afirmação, mas a composição não deixa muita dúvida"
[39]
Belmiro de Almeida teve um papel muito importante na história da arte brasileira, justamente com
esta tela, que foi tomada à época como exemplo de uma nova arte, voltada a um assunto moderno,
recusando os temas tradicionais das batalhas e da chamada Grande Arte. Belmiro e sua tela se
converteram em ícones de um movimento de jovens artistas em confronto com os velhos métodos da
Academia Imperial de Belas Artes, equivalente ao papel que mais tarde desempenharia, na história do
modernismo brasileiro, a obra de Anita Malfati e sua famosa exposição de 1917.
O Dicionário Houaiss traz esta definição para Arrufo: "mágoa ou zanga passageira entre pessoas
que se gostam, geralmente, entre namorados". Os arrufos da tela parecem definitivos, numa
demonstração do que canta Phill Colins (na citação que abre este capítulo). Se é mesmo verdade que o
amor conduz à solidão, tão típico assim, então vamos finalizar “A arte do amor” com o tema da
separação. Perda, na verdade, desde o mais prosaico "dar um tempo", "desencanar", até a infidelidade ou
a infalibilidade da morte. Afinal, desde tenra idade nos acostumamos à perda e às frustrações, o que nos
faz mais resistentes, fortes e, diria mesmo, verdadeiramente preparados para a vida feliz.
Existe a separação por envelhecimento da relação. Não pense que só se dá com os cinquentões. Há
muitos jovens, adolescentes inclusive, que desqualificam seu próprio amor na mesmice do ritual, do tipo
"casa, cinema, televisão", esquema apontado por Renato Russo. Chegam a ser cansativos e tediosos até
para o observador mais insensível. Alguns casais, cônjuges pela lei, deparam-se com o debilitamento
precoce da paixão, convertida velozmente em pálida imagem de um passado recente e radioso. Outros
cozinham os sentimentos no forno lento do tempo, que tudo muda, tudo transforma. Todos eles, cada qual
à sua maneira, envelheceram, perderam a cor, como a "Camisola do Dia", de Herivelto Martins (1912 -
1992), imortalizada na voz de Chico e Betânia, show e vinil de 1975:
"A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
http://www.humanarte.net/amor2.html
Que nunca mais foi desfeito
Pelas vigílias de amor"
Esta modalidade de separação não costuma ser traumática, o que não se constitui em regra geral
para as outras modalidades, como parece testemunhar a bela jovem da cena acima, cuja elegância não a
livrou de tomar um fora clássico. Fica a dúvida se a surpresa e o pranto da nossa protagonista logo darão
lugar ao ódio e à amargura ou, como seria mais comum, se tudo isso vai jogá-la em um turbilhão de
emoções que acabará por imobilizá-la numa tristeza obsessiva e masoquista, antigamente chamada de
"fossa". Afinal, amor e dor estão casados há muito tempo.
O abandono (ou traição) se parece com a perda por morte. Esta leva ao luto, aquele à melancolia.
Um provem da perda real (através da morte), outro da perda de uma relação. Em ambos os casos há um
forte sentimento de desinteresse pela vida e pelo mundo, mas a melancolia acrescenta ainda o
desinteresse por si mesmo:
"A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do
interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição
da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma
delirante expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se considerarmos
que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada"[40]
Freud acrescenta ainda ao quadro da melancolia a presença de um forte sentimento de
ambivalência, isto é, de amor e ódio, por "uma real ofensa ou decepção vinda da pessoa amada". Este
desenho das emoções do sofrimento de amor é ampliado em meados do século XX na obra de Melanie
Klein (1882-1960). Sem recusar as descobertas de Freud sobre a vida inconsciente, Klein muda o foco
das investigações da mente, deslocando-o das pulsões e da libido para as fantasias e imagens internas
que povoam o mundo da criança e do adulto. Procura demonstrar em suas pesquisas que as frustrações da
primeira infância criam condições de desenvolvimentoe amadurecimento emocional, principalmente se
forem sucedidas pelo esforço real de superação, reparação e gratidão. Se Freud descobriu a criança que
habita o adulto, Klein descortinou a criancinha de poucos meses de idade que permanece nas fases
posteriores da infância e da vida adulta.
Todo aquele que ama e sofre de amor tem muito a aprender com as ponderações de Melaine Klein,
pois ela oferece um panorama ainda mais sutil e revelador sobre as frustrações, abandono e luto,
argumentando sobre a necessidade de elaborar e superar a perda.
"Toda a análise kleiniana caminha no rumo de ampliar a capacidade de o indivíduo reparar
criativamente e agradecer. Ou seja, reparação e gratidão são, ao fim e ao cabo, os grandes curadores
das doenças da alma"[41]
Não adianta, portanto, reagir com fúria e amargura quando se perde a pessoa amada, à maneira do
amante encolerizado que brada "vou riscar o seu nome da minha agenda". Também não vale desmerecer a
própria dor e vangloriar-se de que agora está melhor, vai aproveitar a vida e coisas do tipo. Para curar é
preciso elaborar a dor, reconhecer a felicidade que desfrutou com a pessoa que agora te abandonou.
Também de nada valerá autoflagelar-se com a chibata da culpa, a obsessiva ideia de que se é merecedor
do castigo, na forma da perda. Outra saída enganosa é não sair jamais da relação, mesmo na solidão,
alimentando-a continuamente com a ideia de que o retorno está próximo (só se for de Jesus!). Este
método é apenas uma derivação do anterior, da imolação da alma de quem se presta a arrastar sua mísera
existência ao sabor masoquista da espera, da culpa e da estagnação do tempo.
"Curar as dores psíquicas não é anestesiar-se. Ao contrário, é ampliar as capacidades de suportá-las
e transformá-las em benefício de si e dos outros (...). Aos poucos perde-se a vergonha de sentir dor
psíquica, ao perceber que a dor só diminui e inspira, depois de ser acolhida, vivida, pensada e
atravessada (..) Ela deixa de ser vista e experimentada como castigo e passa a ser uma oportunidade
de estar mais vivo, em um contato muito mais vibrante com o mundo físico e social (...) tornando a
pessoa mais sensível e humana. Isso é o que chamamos de atravessar um luto, é perder para ganhar
em delicadeza, insight, novas formas de sentir prazer e fazer contatos"[42]
Enfim, se pudéssemos adentrar a cena e aconselhar nossa bela protagonista, não teríamos nenhuma
solução fácil para lhe propor, nenhuma panaceia, nem remédios de efeito imediato. Poderíamos apenas
oferecer um ombro amigo e auxiliá-la na longa jornada de elaboração, reparação, gratidão (sim!) e cura.
Até ela se levantar, dar a volta por cima e encontrar alguém melhor do que este almofadinha sentado aí.
A separação, segundo Frida Kahlo
Imagem: "Autorretrato con pelo corto" (1940) F. Kahlo
Frida Kahlo (1907 - 1954), um dos maiores destaques da pintura mexicana, elaborou diversos
autorretratos em sua carreira, associando elementos surrealistas e o imaginário místico do povo
mexicano. Este retrato, uma das mais belas obras-primas do Moma, é diferente. Se antes sempre se
pintava com cabelos longos e trajes coloridos típicos das camponesas de seu país, agora aparece
com cabelo cortado e vestuário masculino (terno e sapatos). Um terço da composição é dominado
por mechas do cabelo recém aparado, espalhadas cuidadosamente pelo chão, formando um mosaico
misterioso, semelhantes a raízes ou pequenos tentáculos que rondam a figura central sentada na
cadeira. Ainda tem uma mecha na mão esquerda e a tesoura na mão direita. O olhar fixo no
observador evidencia sua nova condição feminina. Frida faz aqui uma referência ao divórcio com
seu marido infiel, o polêmico pintor Diego Rivera (1886 - 1957)
Na parte superior do fundo abstrato há uma inscrição: "Mira que si te quise, fué por el pelo, Ahora
que estás pelona, ya no te quiero" ("Olha, quanto te amava, era pelo teu cabelo; agora que estás careca
não te amo mais"). A letra de uma canção mexicana muito popular dá conta de suas deliberadas
motivações autobiográficas. Diego era apaixonado pela longa cabeleira de Frida, mas tanto a frase
quanto a cena encerram certa ambivalência. Afinal, quem não ama mais a quem? E quem é que está
lamentando? Quem é o agredido? Ficar feia é uma reação racional para dar o troco no parceiro traidor?
As roupas são de Diego, provavelmente. Pelo menos não é o seu tamanho, já que ela visivelmente
"sobra" dentro do terno. O ódio da mulher abandonada a teria levado a satirizar o próprio marido,
transformando-o em mulher careca, atingindo justamente a virilidade do garanhão incorrigível. E então a
frase teria ela como autora e ele como receptor. Eu que não te quero mais, pois sua infidelidade o deixou
desprezível.
Mas o rosto é dela. Então vamos tentar outra explicação. Frida se despreza, num típico ataque de
autodesvalorização, de perda de autoestima proveniente da perda do objeto amado (seu homem). É uma
situação muito comum: a pessoa traída vai do ódio ao sofrimento melancólico, a "fossa", e o mundo
perde interesse, juntamente com o interesse em si mesmo. A pessoa não come, tem insônia e fica
antissocial.
Como vimos, Freud explora este estado de espírito autodestrutivo, como reação da perda real ou
imaginada. No luto (morte da pessoa amada) há também desinteresse pelo mundo, mas não perda da
autoestima. Na melancolia há um esvaziamento do Eu ao mesmo tempo em que a pessoa traída ainda se
identifica com a pessoa do traidor, ainda que inconscientemente. Ela não consegue e não encontra forças
para se desligar do sentimento amoroso, embora já esteja separada da pessoa amada. É quando
afirmamos: "ele (ela) não a (o) esqueceu ainda". Mas a pessoa luta e se detesta por não esquecer e então
dá vasão ao ódio que se instala sem seu coração, primeiro contra ele, depois contra si própria.
"Se o amor ao objeto - a que não se pode renunciar, quando se tem de renunciar ao objeto mesmo -
refugia-se na identificação narcísica, o ódio atua em relação a este objeto substitutivo, insultando-o,
rebaixando-o, fazendo-o sofrer e obtendo uma satisfação sádica desse sofrimento. O auto martírio
claramente prazeroso da melancolia significa, tal como o fenômeno correspondente da neurose
obsessiva, a satisfação de tendências sádicas e de ódio relativas a um objeto, que por essa via, se
voltaram contra a própria pessoa"[43]
http://blog.humanarte.net/2014/09/frida-do-moma.html
http://www.humanarte.net/amor3.html
O objeto é Diego, a quem ela renunciou (ela pediu o divórcio). Mas não pode renunciar ao amor ao
objeto (não "esqueceu"), nem pode se perdoar por esta incapacidade. Identificou-se com o objeto a tal
ponto que se tornou Diego (com terno, sapatos e cabelo curto) e então passou a atacar o objeto substituto
(ela mesma), ao lhe negar o amor com a frase da música popular. A ambivalência (amor e ódio) era muito
conhecia pelos amigos do polêmico casal. No ano seguinte eles voltaram. Sim, Diego e Frida se casaram
novamente em 1941.
Conclusão: ser diferente, para ser humano
"O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado. (...) Para ele o
próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à
agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo" (Freud. O Mal-estar na Civilização, 1930)
A intrigante coexistência de amor e ódio, algumas vezes na companhia da inveja, foi objeto de reflexão
da humanidade em vários períodos históricos. O bem e o mal, o certo e o errado, o virtuoso eo vicioso,
foram burilados e elaborados pelos gregos, pela filosofia cristã, pelos modernos e pelos
contemporâneos. Já citamos aqui, a esse respeito, a crença medieval na “dupla espionagem”, termo
utilizado pelo medievalista Jacques Le Goff[44] para abordar o misticismo cristão presente na sociedade
feudal, na qual o amor e o ódio apareciam sob a forma de anjos e demônios. Embora algumas
denominações religiosas ainda hoje se utilizem fielmente deste conceito, é preciso muita precaução, pois
há a possibilidade de se deslocar a responsabilidade dos atos para forças externas ao indivíduo,
correndo o risco de eximi-lo de culpa e, o mais importante, retirando-lhe a capacidade de intervenção
sobre forças que se querem irremediáveis.
De fato, o amor, assim como o ódio e a inveja, são personagens que parecem se movimentar
livremente no coração e na mente dos seres humanos, testando cotidianamente a condição verdadeira de
ser e de humano. Embora essencialmente de natureza positiva e construtiva, o amor pode servir aos
desígnios destrutivos do ódio e da inveja. Assim, as três entidades comportam-se como se fossem
dotados de vontade própria e disputam o controle do hospedeiro (eu e você), que vai ficando cada vez
mais refém das atitudes deles, espantados com suas façanhas e temerosos de seu poderio. O hospedeiro
reluta, mas acaba criando laços afetivos com seus moradores internos, inquilinos barulhentos que exibem
artimanhas de sedução, convencimento e conquista.
É uma espécie de trindade hipnótica, mas não é una, nem harmônica, muito menos indivisível. Pelo
contrário, é conflituosa e tende à destruição, isto é, cada um destes misteriosos personagens coloca em
ação um programa de eliminação dos outros residentes do vulnerável, passivo e imprestável hospedeiro.
Justificativas são suas armas. O ódio, mais do que os outros dois, é mestre em inventar mirabolantes
explicações para tomar conta do robótico hospedeiro, mais para zumbi do que para humano. Previamente
manipuladas e destiladas, religião e ideologias, assim como invencionices pseudocientíficas são
prontamente injetadas na corrente sanguínea do submisso “estar” humano, já que “ser” seria uma
condição permanente, o que não se enquadra no caso em questão. São moradores tão ambiciosos que
colocam a moradia toda em risco: de vida, de doença, de perda, isolamento, castigo, exílio, prisão e de
solidão.
Astutos, percebem o momento crítico de evitar o fim do hospedeiro, tecendo alianças entre si.
Claro, ódio e inveja são parceiros naturais e se alimentam um do outro. No entanto, parcerias menos
óbvias também se efetuam. Já vimos, por exemplo, como a inveja se alia ao amor, no tipo narcísico. Já
vimos até como o amor de pai e de mãe pode ocultar altíssimo nível de inveja, envenenando o corpo
familiar pelo desejo inconsciente de destruir o filho. A inveja no seio familiar - campo primordial do
amor - é tão significativa que consta em vários ensinamentos bíblicos, como pudemos apreciar.
Há ainda a modalidade edipiana da inveja, já que toda criança aprende pelo exemplo dos adultos,
copiando-lhes os códigos de comportamento, invejando pai e mãe, desejando os prazeres da vida adulta
na adolescência e tomando para si, mais tarde, pais substitutos (professores, artistas, políticos, parceiros,
amigos) como inspiração, um derivativo da inveja que, nessa posição, é culturalmente considerada
“inveja saudável”. Em todos os casos indicados, o amor segue de mãos dadas com a inveja, sem
constrangimento, tarefa do inconsciente.
Ao contrário do amor e do ódio, esse inquilino travesso – a inveja - procura passar despercebido a
seu senhorio alojado na parte de cima do edifício mental. Praticamente clandestino, humildemente se
retrai para assim agir mais livremente nos porões. Sua estratégia é tão mais exitosa quanto mais o
senhorio lá de cima negar sua existência, a ponto de garantir com orgulho e soberba que em sua morada
não consta nenhum espécime daquele reino.
O ódio e o amor, ao contrário, são habitantes escandalosos por natureza. Gritam, brigam e fazem
questão de anunciar estrondosamente sua presença e suas desavenças, pois vivem em conflito permanente
e colocam o senhorio em posição constrangedora e humilhante, comprometendo os alicerces do edifício.
Mas, curiosamente, também se dão as mãos.
Agora vamos esclarecer como o ódio se alia ao amor para operar a destruição do mundo. Ao final,
avistaremos um horizonte verdadeiro, uma forma de voltar a ser e não apenas estar humano. Para tanto, a
vontade tem que se impor, tomar conta da casa, expulsar os inquilinos indesejados e arejar o ambiente.
Limpeza que se faz necessária todos os dias, pois os meninos são teimosos e voltam dia e noite, na saúde
e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza.
A presença do ódio é evidente nos genocídios abordados em nosso breve estudo, omisso em
relação a muitos casos de imensa importância para a história do mundo, entre eles o extermínio de povos
indígenas do Brasil. Mas é suficiente, esperamos, para isolar o elemento ódio que procuramos
radiografar, esquadrinhar e entender. Uma vez livre de seus aspectos variáveis e externos, isto é, de suas
justificativas descabidas, o elemento ódio é localizado com a mesma estrutura de funcionamento em
tempos de paz e em ambientes cotidianos, triviais e aparentemente inofensivos.
O best-seller do escritor dinamarquês Christiam Jungersen "A Exceção" demonstra que a operação
mental que se coloca em movimento na cabeça de um carrasco nazista é a mesmíssima daquela que
movimenta o bullying e a fofoca nossa de cada dia. O livro cita um estudo de psicologia social que
disseca o comportamento dos soldados nazistas nas operações de limpeza étnica: não se trata de
simplesmente obedecer ordens superiores, mas de fatores como "responsabilidade para com os colegas",
camaradagem e, principalmente, o compartilhamento da crença comum de que o alvo não era da mesma
natureza do algoz, da crença de um "nós" construído em oposição ao "outro"
Na célebre obra "O mal-estar da civilização", Freud explora a articulação entre o bem e o mal, a
vida civilizada e a agressividade que nela se encontra:
“A civilização tem que recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem, para
manter em xeque suas manifestações, através de formações psíquicas reativas. Daí portanto o uso de
métodos que devem instigar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em
sua meta, daí as restrições a vida sexual e também o mandamento ideal de amor ao próximo como a si
mesmo, que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana
original. Com todas as suas lidas, esse empenho da civilização não alcançou muito até agora. Ela
espera prevenir os excessos mais grosseiros da violência, conferindo a si mesma o direito de praticar
a violência contra os infratores, mas a lei não tem como abarcar as expressões mais cautelosas e sutis
da agressividade humana (grifo nosso). Cada um de nós vive o momento em que deixa de lado, como
ilusões, as esperanças que na juventude depositava nos semelhantes e aprende o quanto a vida pode
lhe ser dificultada e atormentada por sua malevolência” [45]
Todos nós já vivenciamos, na família ou no trabalho, na escola ou no escritório, esta desgastante
situação em que somos o alvo destas “expressões mais cautelosas e sutis da agressividade humana”.
Inveja, intriga e armações de todo tipo podem “dificultar e atormentar” a nossa vida. E de fato, talvez o
leitor possa concordar, há uma sutil sincronia entre a unidade dos que estão dentro do grupo dominante e
a agressão, exclusão ou hostilidade para com aqueles que estão forade um tal grupo.
“Não é de menosprezar – continua Freud - a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de
permitir ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é possível
ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a
agressividade. Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas
em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses,
os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de "narcisismo das
pequenas diferenças", que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento. Percebe-se nele uma
cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão
entre os membros da comunidade”[46]
Alguém que já tenha observado como se formam e se digladiam as turminhas de uma mesma sala de
aula, as patotas de um clube recreativo, poderia acompanhar este raciocínio de Freud. Fica ainda mais
evidente a construção perseverante entre um “nós” em oposição a um “eles” nas rivalidades das torcidas
organizadas e na hostilidade entre as diversas confissões religiosas. A mesma operação psicológica está
presente, segundo Freud, nas históricas perseguições raciais e religiosas da humanidade.
"Podemos entender que a tentativa de instaurar na Rússia uma nova civilização comunista encontre
seu apoio psicológico na perseguição à burguesia. Só nos perguntamos, preocupados, o que farão os
sovietes após liquidarem a burguesia”[47]
Agora compreendemos porque Jesus insistiu em substituir toda a miríade de mandamentos e
prescrições morais dos fariseus pelo único mandamento do amor ao próximo. Ainda que pareça
improvável, isto é, completamente avesso à essência humana, como argumenta Freud, a diretiva de Cristo
parece mesmo um aviso, uma regra que, embora inatingível, existe para bloquear a tendência natural de
amar odiando, acolher desprezando, construir destruindo.
Enfim, para sermos de fato humanos, temos que perseverar, sem sucumbir nem se se entregar a esta
tendência natural ao ódio, desde o mais primitivo até o mais elaborado (religiosa ou ideologicamente),
seja na forma pura de sadismo, seja na forma disfarçada de amor. Para sermos humanos temos que ser
exceção.
Não nascemos humanos, mas temos a possibilidade de nos tornamos. Invertendo a máxima de
Rousseau, o homem nasce mau, mas a sociedade pode corrompe-lo ainda mais e transformá-lo num
monstro, se ele, o homem, não tomar as rédeas dessa carroça, feita da mistura de cavalo e cavaleiro,
racional e irracional.
O senhorio daquela pensão, no sofá da sua sala de estar, precisa ficar atento ao movimento sob o
assoalho e as maquinações que se armam automaticamente lá no porão. Precisa ouvir e perscrutar
atentamente cada manifestação dos inquilinos que, afinal, existem e querem subir ao andar superior. A
mínima distração será suficiente para tomarem conta da casa. O ódio, que antes parecia encarcerado e
aniquilado, escapa e passa a atuar alegremente nos grupos que se unem por laços afetivos fortíssimos,
laços de identificação, camaradagem e amor. O ódio é capaz de corromper o amor. No amor de Cristo
fizeram-se as Cruzadas e no amor à pátria as guerras mundiais. Na falta de uma guerra aberta, o ódio se
hospeda na desigualdade social e racial, mas também nas igrejas, templos e partidos políticos. Se isso
não for suficiente sempre achará lugar garantido nos agrupamentos informais de lazer, esporte, estudo e
trabalho.
Não nos tornamos mais fracos por conceder existência a personagens assim camaleônicos, pelo
contrário, nós nos tornamos mais resistentes e mais capazes de desfrutar da felicidade se jogarmos o jogo
diário de analisar, compreender e moldar essas forças subterrâneas em favor de uma vida
verdadeiramente plena, no convívio responsável em que os conflitos possam ser superados e o amor
possa beneficiar a quem ama e a quem é amado. Ser humano é um exercício que se repete a cada dia, mas
precisa ser praticado. Ser humano é um aprimoramento pessoal, único e intransferível, mas pode contar
com o suporte externo de um mestre, um analista, um pai e, prazerosamente, pode contar com o auxílio
luxuoso da arte e da literatura.
O Autor
João Ricaldes nasceu em 1962 na cidade de Aquidauana (MS). É professor de história da arte em
instituições privadas de ensino superior e ensino médio em várias regiões do Brasil. Graduado em
História (Unicamp), estudou história da arte na Escola do Masp. É coordenador do Projeto Humanarte
(www.humanarte.net), aprovado pelo Ministério da Cultura (Lei Rouanet) em 2005 e 2008. Atualmente
desenvolve cursos de aperfeiçoamento para educadores de escolas públicas, abordando técnicas de
leitura de imagem para estimular a expressão oral e escrita de crianças e adolescentes. Além da história
da arte, dedica-se ao estudo da psicanálise (Freud, Jung, Melanie Klein) e da literatura contemporânea.
Escreve regularmente no blog do Projeto Humanarte: http://blog.humanarte.net/.
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[1] BARROWS, Kate. Inveja, tradução Carlos Rosa, Rene Delumará, Ediouro, RJ, 2005 - Conceitos da Psicanálise, Volume 19 – página 6.
[2] BARROWS, Kate, op cit, página 39
[3] FREUD, Sigmund, Introdução ao Narcisismo, Companhia das Letras, 2010, página 34.
[4] BARROWS, Kate, página 40.
[5] ADAMS, Laurie S. “Art and Psychoanalysis”. Perseus Books, New York, 1994, pag 82, tradução livre.
[6] HUGHES, R. Goya, Cia das Letras, 2007, p 31
[7] Citado em JUNGERSEN, Christian, A Exceção. Chistian Jungersen. RJ, Intrínseca, 2008, página 302.
[8] Baseado em BROWING, Christopher. Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland, New York:
Harpercollins, 1992.
[9] Citado em ARNAUT, Luiz. A Segunda Grande Guerra: do Nazi-fascismo à Guerra Fria, S. Paulo, Atual, 1997, página 19
[10] KHOURY, Elias. Porta do Sol, Record, 2008, Prefácio.
[11] KHOURY, Elias. Porta do Sol, Record, 2008, página 109
[12] Id, Ibid, página 209
[13] Idi Ibid, página 215
[14] Id, ibid, página 221
[15] Id Ibid, página 270
[16] Citado em JUNGERSEN, Christian, A Exceção. RJ, Intrínseca, 2008, páginas 144.
[17] Id, Ibid, página 147
[18] ALI, Tarik. Sombras da Romãzeira. Editora Record, 2006.
[19] GONÇALVES, Ana Maria, Um defeito de cor, Record, 2007, páginas 45-46.
[20] SANTOS, José Rodrigues. O Anjo Branco". Editora Gradiva, Lisboa, 2011, páginas 601-619
[21] Id, Ibid, páginas 601-619
[22] SHAFAK, Elifk, De Volta a Istambul, Nova Fronteira, página 172
[23] Citado em Ginzburg, Carlo. Medo, reverência, terror, Companhia das Letras, 2014, página 105.
[24] Id, Ibid, página 140
[25]http://www.pbs.org/treasuresoftheworld/a_nav/guernica_nav/gnav_level_1/5meaning_guerfrm.html. “Guernica” in PBS's Treasures of
the World series. Tradução livre. Acessado em 20/03/2014.
[26] Ginzburg, Carlo. Op cit, página 127.
[27] Id, Ibid, página 27
[28] Citado em www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-commentees/peinture/commentaire_id/dante-et-virgile, tradução livre. Acesso
15/04/2015
[29] Citado por Jensen, Robert. Marketing Modernism in Fin-de-siècle Europe, 20-22. Princeton University Press, 1996, tradução livre
[30] http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT446107-1664,00.html. Acesso em 06/12/2015
[31] ADAMS, Laurie Schneider. Op cit, p 136, tradução livre
[32] Para apreciar uma leitura de imagens sobre a paixão na arte, leia também “As melhores histórias da arte: Deus, pecado de paixão”
(2015), de João Ricaldes
[33] FREUD, S. O Mal-estar na Civilização. Companhia das Letras, 2010, página 28
[34] Id, Ibid, página 39
[35] Id, Ibid, página 40
[36] Id, Ibid, página 42
[37] FREUD, S. Obras Completas, Volume 12, Introdução ao Narcismos...Companhia das Letras, 2010, página 46
[38] Id, Ibid, página 49
[39] CARDOSO, R. A Arte Brasileira em 25 Quadros 1790 - 1930 - R.J., Record, 2008, página 101.
[40] FREUD, S. "Luto e Melancolia" In Freud, Sigmund.Obras Completas, Volume 12, Introdução ao Narcisismo...Companhia das Letras,
2010, página 172
[41] Cintra, Elisa Maria de Ulhoa, "Pensar as feridas", In Pinto, Manuel da Costa (org), Livro de Ouro da Psicanálise, R.J.,Ediouro, 2007,
página 314
[42] Id, Ibid, página 315
[43] FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 12, Introdução ao Narcisismo...Companhia das Letras, 2010, página 184
[44] LE Goff, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Editorial Estampa. Lisboa, 1983,página 205.
[45] Freud, O mal-estar na civilização, Cia das Letras, 2010, página 78
[46] Id. Ibid, página 80
[47] Id Ibid, página 81
1. Arte da inveja
2. A arte do ódio: Pintura e Literatura
3. O ódio na arte - pintura e escultura
4. A arte do amor – poesia e pintura