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Título original: Krokodillevogteren by Katrine Engberg Copyright © Katrine Engberg 2016 Esta tradução de Krokodillevogteren é publicada por acordo celebrado com a Salomonsson Agency Tradução: Ana David Revisão: Ana Marta Ramos Capa: PAPER TALK Imagens de capa: © VitaeSchola / Ge�y Images Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação ENGBERG, Katrine A Inquilina ISBN 978-989-9027-12-1 CDU 821.113.4-31”20” Minotauro outubro de 2020 Direitos reservados para Portugal e países africanos de expressão portuguesa por MINOTAURO, uma chancela de Edições Almedina, S.A. LEAP CENTER – Espaço Amoreiras - Rua D. João V, n.º 24, 1.03 1250-091 Lisboa – Portugal e-mail: editoras@grupoalmedina.net Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial. Para Timm. De agora em diante. QUARTA-FEIRA, 8 DE AGOSTO PRÓLOGO O pó das cortinas pesadas subia num redemoinho à luz da manhã. Gregers Hermansen sentou-se na sua poltrona e ficou a observar as partículas de pó a dançarem pela sala de estar. Levava tanto tempo a despertar hoje em dia que quase não via razão para o fazer. Pôs as mãos nos apoios de braços polidos e lisos, inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos à luz cintilante até ouvir a máquina de café a crepitar na cozinha. Após uma breve contagem decrescente, levantou-se, encontrou os chinelos e caminhou em direção ao piso de linóleo da cozinha. Sempre o mesmo percurso: ao longo do armário de mogno, passando pela poltrona verde e pela maldita pega na parede que a assistente instalara no ano passado. «Eu não preciso disso», insistira ele. «Obrigado na mesma.» Serviu de muito. Na cozinha, colocou as borras de café usadas da máquina no caixote do lixo debaixo do lava-louça. Cheio outra vez. Atou o saco do lixo e, apoiando-se ao longo da mesa enquanto atravessava a cozinha, abriu a porta das traseiras com a mão livre. Pelo menos, ainda conseguia deitar fora o seu próprio lixo. Olhou de soslaio para a coleção de garrafas da sua vizinha, pousadas no patamar do andar de cima. Esther de Laurenti. Uma consumidora de bebidas alcoólicas dos diabos, organizadora de jantares barulhentos para os amigos artistas que duravam até altas horas da noite. Mas era a dona do prédio, por isso não valia de nada queixar-se. Os degraus rangeram por baixo dele enquanto se segurava com firmeza ao corrimão. Seria mais sensato mudar-se para um lugar seguro, um local com menos escadas, mas vivera toda a sua vida no centro de Copenhaga e preferia arriscar-se nestas escadas tortas do que apodrecer num lar de idosos nos subúrbios da cidade. No segundo andar, pousou o saco do lixo e encostou-se ao caixilho da porta das vizinhas de baixo. As duas estudantes universitárias que partilhavam esse apartamento eram uma fonte constante de irritação, mas secretamente também provocavam nele um desejo constrangedor. Os seus sorrisos despreocupados despertavam lembranças de noites de verão junto ao canal e beijos remotos. Quando a vida ainda não estava a terminar e tudo era ainda possível. Depois de recuperar um pouco, reparou que a porta das mulheres estava entreaberta, uma luz brilhante a sair pela abertura estreita. Elas eram jovens e descuidadas, mas certamente não eram tolas o suficiente para dormir com a porta das traseiras aberta! Eram seis e meia da manhã; podiam ter acabado de chegar a casa depois de uma noitada na cidade — mas ainda assim. — Olá...? — chamou. — Está aí alguém? Com a ponta do chinelo, empurrou com cautela a porta, que se abriu com facilidade. Recuou um pouco, de forma instintiva. Afinal de contas, não queria ser acusado de ser um velho intrometido. Era melhor simplesmente fechar a porta e levar o lixo para a rua, antes que o seu café ficasse frio e amargo lá em cima. Segurou o caixilho da porta com força e inclinou-se para agarrar a maçaneta, mas subestimou a distância. Por um instante horrível, que lhe pareceu uma eternidade — como o tempo que passa entre um cavalo nos atirar ao chão e cairmos mesmo —, percebeu que não era forte o suficiente para aguentar o seu próprio peso. Os seus chinelos deslizaram no parquê de madeira lisa, e Gregers perdeu o equilíbrio. Lutou com toda a força que já não tinha e caiu desamparado no apartamento das mulheres, aterrando com força no chão. Não caiu com um estrondo, mas mais com um baque — o som patético do corpo diminuído de um homem idoso em roupão de flanela. Tentou acalmar-se com uma respiração profunda. Partira a anca? O que as pessoas diriam? Pela primeira vez em muitos anos, sentiu vontade de chorar. Fechou os olhos e esperou que alguém o encontrasse. As escadas ficaram novamente em silêncio. Ouviu gritos ou passos, mas não apareceu ninguém. Passado alguns minutos, abriu os olhos e tentou orientar-se. Uma lâmpada incandescente nua pendia do teto, cegando-o, mas conseguia distinguir vagamente uma parede branca; uma prateleira de panelas e especiarias; contra a parede que dava para a porta, sapatos e botas alinhados, um dos quais estava certamente debaixo dele. Com cuidado, virou a cabeça de um lado para o outro para verificar se tinha partido alguma coisa. Não, parecia que estava tudo intacto. Cerrou os punhos. Sim, também estavam bem. Ugh, aquele maldito sapato! Tentou tirá-lo de baixo de si, mas o sapato não se mexeu. Olhou para baixo e tentou focar a visão. A sensação desconfortável no seu estômago cresceu, até se transformar numa paralisia sufocante que se espalhou por todo o seu corpo. Do sapato saía uma perna nua, meio escondida sob as suas ancas doridas. A perna terminava num corpo torcido. Parecia a perna de um manequim, mas Gregers sentiu a pele macia contra a mão e percebeu. Levantou a mão e viu o sangue: na pele, no chão, nas paredes. Sangue por toda a parte. O coração acelerou-se-lhe como um canário a tentar escapar da sua gaiola. Não conseguia mover-se, o pânico tomou conta do seu corpo impotente. Eu vou morrer, pensou. Queria gritar, mas a força para gritar por socorro abandonara-o há muitos anos. Então, começou a chorar. CAPÍTULO 1 O investigador da polícia de Copenhaga Jeppe Kørner salpicou o rosto com água e olhou-se ao espelho pendurado na parede de azulejos da casa de banho. Este espelho em particular era côncavo e alongava o seu rosto alto e magro, enquanto o outro sobre o lavatório do lado o esticava para o lado. Esquecia-se sempre de qual espelho fazia o quê até lavar as mãos. Hoje, era o côncavo, fazendo-o assemelhar-se à figura da pintura de Edvard Munch, O Grito. Ajustava-se-lhe perfeitamente. Parecia cansado e sabia que não era apenas por causa das lâmpadas economizadoras de energia usadas no quartel da polícia. O cabelo ridículo e oxigenado não ajudava. Nunca deveria ter deixado o seu amigo Johannes convencê-lo a fazer aquilo. A variedade é o tempero da vida, ah! Talvez devesse simplesmente rapá-lo todo. Então, pelo menos, pareceria novamente um polícia. Jeppe fez uma careta ao seu próprio reflexo. Ele era como qualquer outro tipo recém-divorciado dos livros. Um caso clássico. O próximo passo seria encontrar um bar para frequentar regularmente, comprar um carro desportivo e usar a dor no peito como um distintivo de honra. Talvez até conseguisse arranjar uma boa cicatriz, um golpe de faca para combinar com as cicatrizes interiores. Secou as mãos no papel áspero do dispensador e procurou o caixote do lixo. Amassou a toalha de papel e atirou-a — atingiu o chão com uma pancada frouxa e molhada. Perfeito, pensou, inclinando-se para lhe pegar da maneira mais ágil possível. Eu sou um daqueles tipos que falha o lançamento, mas é demasiado ligado ao cumprimento do dever para deixar tudo desarrumado. Abriu a porta da casa de banho e seguiu pelo corredor em direção ao seu gabinete, a autocomiseração a inundar o seu corpo. Com uma estrutura neoclássica de três lados, o quartel da polícia de Copenhaga emprestavaautoridade ao bairro, situado a poucos quarteirões do sempre florescente parque de diversões Tivoli Gardens. O exterior do edifício, frio e inacessível, era um farol presunçoso de poder e integridade no coração do liberalismo e do absurdo dos países nórdicos, um contrapeso muito necessário à pornografia gratuita e ao recorde de consumo de álcool. Por dentro, a famosa colunata circular do pátio interior, e o trabalho artesanal de estilo italiano do século XIX, suavizavam um pouco essa impressão. Belíssimos mosaicos e pavimento em pedra iluminavam os dias de trabalho da equipa da polícia, repousando sob os seus passos atormentados como um lembrete das vezes em que o local de trabalho tinha de refletir a autoridade da força policial. A Divisão de Homicídios fora deixada no seu estado sombrio original, com tetos abobadados e paredes vermelho-escuras iluminadas por apliques. Mobiliário moderno e prático colidia com a pintura descascada das paredes, dando uma impressão geral de degradado e de propositado em partes iguais. O gabinete que Jeppe partilhava com a colega Ane�e Werner não era uma exceção: cheio de móveis tristes de laminado e bétula sem qualquer ambição de criar um ambiente de trabalho alegre. Ane�e, por outro lado, proporcionava exatamente isso. Quando ele entrou, estava reclinada na cadeira, com os pés em cima da secretária, a rir de algo que via no telemóvel. — Kørner, vem ver isto! — exclamou ela. — É incrível. — Bom dia, Ane�e — disse Jeppe do vão da porta. — Pensei que tinhas aulas hoje. — Tu não me dás descanso, pois não? A aula de ADN é só na próxima quarta-feira. Anda cá ver isto. Este cão gordo está a tentar apanhar uma bola, mas rola por uma colina e cai na neve — Ane�e reiniciou o vídeo e acenou-lhe a chamá-lo, ainda a rir. Jeppe hesitou. Oito anos a dividir um gabinete e a trabalhar como parceiros tinham atenuado notavelmente poucas arestas. A despeito disso, ele e Ane�e costumavam acabar na mesma equipa quando a superintendente da polícia reunia grupos de investigação para os casos atuais. Aparentemente, os dois complementavam-se de uma maneira que eles próprios não conseguiam perceber. E depois também havia a forma como os seus apelidos rimavam em dinamarquês apenas o suficiente para confundir as pessoas; uma fonte inesgotável de irritação para Jeppe sempre que se tinham de apresentar a testemunhas ou familiares. Ele achava que Ane�e era um pouco como um buldózer; ela chamava-o de sensível e cobarde. Nos dias bons, queixavam-se um do outro de forma consciente, como um casal de velhos. Nos dias maus, só queria atirá-la ao mar. Hoje era um dia mau. — Não, obrigado, vou passar — disse. — Humor com animais nunca funcionou comigo. Jeppe sentou-se no seu lado da secretária dupla, ignorando os olhos da colega enquanto ligava o computador e tirava o telemóvel do bolso do casaco. A sua mãe ligara. Virou o telefone e pousou-o com o ecrã para baixo. Desde a morte do seu pai no ano passado, e o seu divórcio há seis meses, a sua mãe havia ficado estranhamente lamechas. Era difícil para ele explicar-lhe que aborrecê-lo com os seus cuidados não ajudava ninguém. Ane�e reprimiu uma nova gargalhada do outro lado da secretária e limpou os olhos às mangas. Jeppe suspirou de forma audível. Estava ansioso para ter o gabinete só para si hoje. Apenas um dia para chegar ao fundo das suas pilhas de papéis, sem ter constantemente a intensidade sonora de Ane�e nos seus ouvidos. Mais uma forte gargalhada sacudiu o ar e a secretária. Quando Jeppe estava prestes a protestar, a porta do gabinete abriu-se, e a superintendente apareceu à entrada, com o casaco ainda vestido. Era uma mulher mais velha, com um rosto amigável e um controlo prodigioso. Nesse momento, uma linha profunda de preocupação sobre os seus olhos castanhos pôs um fim imediato à gargalhada de Ane�e e fê-la tirar os pés da secretária. Apesar da hierarquia relativamente plana da polícia dinamarquesa — após a reforma da polícia, a maioria dos investigadores detinha o posto de detetive e todos eram, em princípio, iguais —, a autoridade discreta da superintendente era inquestionável. — Temos um corpo, uma jovem mulher — começou a superintendente. — A morada é Klosterstræde, número doze, indícios de crime. O oficial de investigações de serviço acabou de ligar. Acoisa parece feia. Jeppe pôs-se de pé. Já devia ter percebido que este seria um dia daqueles. — Laboratório forense? — perguntou. — Nyboe. Ele está a caminho. Bem como os técnicos da cena do crime. — Alguma testemunha? — perguntou Ane�e, também de pé. — Werner, pensei que hoje estivesse nas aulas o dia todo — disse a superintendente. Claramente ela não tinha reparado em Ane�e na sala. — Bem, ótimo. Então também pode ir. Kørner, estou a reunir uma equipa; você vai liderar a investigação. Jeppe assentiu com uma convicção que não sentia. Não liderava uma equipa desde que tinha regressado da sua baixa médica. O motivo oficial da baixa havia sido uma hérnia discal; o motivo não oficial, a derrocada do seu casamento. — O idoso que descobriu o corpo foi levado para o hospital, mas há outra moradora no edifício, uma Esther de Laurenti. Comecem por falar com ela para que os técnicos tenham oportunidade de investigar a cena do crime nesse meio tempo. — O nome dela é DeLorean? — perguntou Ane�e com um arroto subtil, expirando pelo canto da boca. — Como o carro? Jeppe foi até ao armário das armas no canto, pegou no seu Heckler & Koch e prendeu-o no coldre à cintura. — Sim, Werner, como o carro — suspirou a superintendente. — Exatamente assim. Esther de Laurenti alcançou o alarme e tentou impedir que o ruído infernal explodisse o seu crânio. A transição do sonho para a realidade foi confusa, e ela não conseguiu discernir o som da campainha da porta até esta tocar pela terceira vez. Os seus dois pugs, Epistéme e Dóxa, latiam histericamente, ansiosos por defender o seu território. Esther havia adormecido em cima do edredão e ainda tinha no rosto marcas profundas da almofada. Desde que se reformara do seu cargo como professora na Universidade de Copenhaga, há pouco mais de um ano, tinha deixado a sua personalidade do tipo B assumir o controlo e raramente se levantava antes das dez da manhã. O relógio de bronze antigo da sua mãe, com o pastor e a pastora no topo, mostrava oito horas e trinta e cinco minutos. Se fosse aquele maldito carteiro, ia atirar-lhe algo pesado. Os pastores de bronze, talvez. Enrolou o edredão ao redor do corpo e caminhou até à porta da frente, a cabeça a latejar. Teria bebido aquela garrafa inteira de vinho tinto ontem? Definitivamente, tinha bebido mais do que os dois copos a que se permitia quando estava a escrever. Esther olhou para a pilha do seu manuscrito impresso, sentindo-se dividida entre a eterna atração e repulsa do escritor pela sua obra. O seu corpo ansiava pela rotina matinal: alongamentos, exercícios respiratórios e papas de aveia com passas. Talvez um Tylenol em honra da ocasião. Abanou a cabeça para aclarar as ideias e olhou através do olho mágico da porta da frente. No patamar, estavam um homem e uma mulher que Esther não reconheceu, embora admita ter dificuldade em recordar as centenas de estudantes que passaram pelas suas salas de aula durante os trinta e nove anos no departamento. Mas tinha a certeza de que aqueles dois não eram ex-alunos seus de literatura comparada. Não pareciam estudantes universitários, decididamente. A mulher era alta, com ombros largos, vestia um blazer de poliéster ligeiramente pequeno, os lábios finos e rosa-cereja. Tinha um rabo de cavalo loiro e uma pele que parecia ter suportado muitos anos de banhos de sol. O homem era magro, com um cabelo amarelo-brilhante; até poderia ser encantador se não parecesse tão pálido e triste. Mórmons? Testemunhas de Jeová? Abriu a porta. Epistéme e Dóxa ladraram atrás dela, preparando- se para a guerra. — Espero que tenham uma razão muito boa para me acordarem a esta hora — anunciou Esther. Se ficaram ofendidos com o seu acolhimento, não o mostraram de forma alguma.— Esther de Laurenti? — perguntou o homem numa voz séria. — Somos da polícia de Copenhaga. O meu nome é Jeppe Kørner, e esta é a minha colega, a detetive Ane�e Werner. Receio que tenhamos más notícias para si. Más notícias. Esther sentiu o estômago às voltas. — Entrem — disse, com um nó na garganta, recuando para a sala para que os polícias pudessem entrar. Os seus cães sentiram a mudança de humor de imediato e correram atrás dela a ganir de deceção. — Por favor — disse-lhes, sentando-se no sofá Chesterfield e fazendo um sinal para que os detetives se lhe juntassem. — Obrigado — exclamou o homem. Caminhou num arco suspeito ao redor dos pequenos pugs para se sentar na beira da poltrona. A mulher permaneceu à porta, a olhar em volta com curiosidade. — Há uma hora, os proprietários do café no rés do chão do seu prédio encontraram o seu vizinho do andar de baixo, Gregers Hermansen, desmaiado no apartamento do segundo andar devido a um ataque cardíaco. O senhor Hermansen foi levado para o hospital e está agora a receber tratamento. Felizmente, foi encontrado a tempo e, tanto quanto sabemos, o seu estado está a estabilizar. — Oh, não! Isso estava destinado a acontecer — disse Esther, pegando na cafeteira com café de ontem que estava na mesa de centro e voltando a pousá-la. — Gregers está doente há muito tempo. O que estava ele a fazer no apartamento das raparigas? — Na verdade, isso era o que esperávamos que a senhora nos pudesse ajudar a esclarecer — disse o detetive, cruzando as mãos no colo, olhando-a de uma maneira neutra. Esther removeu o edredão e colocou-o sobre as pilhas de papéis e casacos de lã descartados no sofá. Estes detetives certamente sobreviveriam à visão de uma idosa em camisa de dormir. — Diga-me — começou Esther —, a polícia costuma andar a fazer perguntas de cada vez que um idoso sofre um ataque cardíaco? Os detetives trocaram um olhar difícil de interpretar. O homem empurrou cuidadosamente uma pilha de livros que estava em cima da poltrona e deslizou para trás para ficar mais confortável. — Ouviu alguma coisa fora de comum na noite passada, ou esta manhã bem cedo, senhora de Laurenti? Esther abanou a cabeça de forma impaciente. Primeiro, detestava ser chamada de senhora. Não tinha ouvido nada para além da faixa de música para meditação com os sons dos cantos das baleias, que era o seu atual auxiliar para dormir, quando o vinho tinto não ajudava. — A que horas foi para a cama na noite passada? — continuou o detetive. — Houve alguma atividade fora do vulgar no prédio nos últimos dias, alguma coisa de que se lembre? — o seu rosto mantinha-se calmo e insistente. — Você expulsou-me da cama ao raiar do dia! — respondeu Esther, cruzando os braços. — Estou de camisa de dormir e ainda não tomei café. Portanto, antes de responder às suas perguntas, quero saber de que se trata! — apertou os lábios. O detetive hesitou, mas depois assentiu. — No início desta manhã — começou —, o seu vizinho Gregers Hermansen encontrou o corpo de uma jovem mulher na cozinha do apartamento no segundo andar. Ainda estamos a identificar a vítima e a estabelecer a causa da morte, mas temos a certeza de que se trata de um homicídio. O senhor Hermansen está em choque e ainda não conseguiu comunicar connosco. Seria útil se a senhora pudesse contar-nos tudo o que sabe sobre os outros residentes deste prédio e o que aconteceu nos últimos dias. O choque irrompeu em Esther, dos tornozelos, coxas e pélvis ao peito, até sentir que não conseguia respirar. O couro cabeludo contraiu-se, e os cabelos curtos e tingidos de hena junto ao pescoço ficaram hirtos quando um arrepio prolongado percorreu as suas costas. — De quem se trata? — perguntou. — É uma das raparigas? Isso não pode ser verdade. Ninguém morre no meu prédio. Percebeu como devia estar a soar — infantil e fora de controlo. O chão cedeu sob ela, e agarrou-se ao apoio de braço para não cair. O detetive estendeu a mão e agarrou-lhe o braço. — Penso que um café pode ser uma boa ideia, não acha, senhora de Laurenti? CAPÍTULO 2 A fina asa da delicada chávena de porcelana desaparecia entre as pontas dos dedos de Jeppe Kørner. Esther de Laurenti vestiu um roupão e fez café, e ele e Ane�e estavam sentados nos sofás desocupados, à espera de que ela se lhes juntasse. A sala de estar era cheia de cores, bugigangas e tralha. Jeppe sentiu-se pouco à vontade no meio do caos feminino. Recordava-lhe o apartamento da sua mãe, onde o intelecto e o espírito eram abundantes, mas o conforto era praticamente ausente. As paredes estavam cobertas por prateleiras do chão ao teto, carregadas de livros de todas as formas e tamanhos. Lombadas de livros em couro desbotadas, brochuras e livros de mesa de café de cores vivas, com comida e flores nas capas. Figuras de madeira e bibelôs empoeirados de todo o mundo pontilhavam cada espaço disponível nas prateleiras e paredes, e papéis densamente escritos estavam empilhados em todas as superfícies horizontais. Os sons das primeiras equipas de reportagem no local chegavam da rua, enquanto se instalavam em frente da fachada ocre do edifício. A imprensa já não conseguia ouvir o rádio criptografado da polícia, por isso monitorizava as sirenes persistentes e as atualizações nas redes sociais. Nunca demorava muito tempo até alguém twi�ar, partilhar por mensagem ou identificar nas redes sociais uma resposta da polícia a uma chamada, e os jornalistas geralmente chegavam às cenas do crime apenas alguns minutos após a equipa de emergência. Os repórteres, alegres e bem descansados, já falavam sombriamente à frente das câmaras, que se moviam entre os seus rostos e a multidão de técnicos vestidos de branco presentes na cena do crime. Esther de Laurenti pigarreou timidamente. — O prédio é meu e eu moro no último andar. Alugo o rés do chão a comércio, o segundo e o terceiro andares são habitações. Gregers vive aqui desde que se divorciou, há vinte anos. O espaço comercial ao nível da rua muda de inquilino a cada dois anos — como pode ver, atualmente é um café administrado por dois simpáticos jovens... As suas palavras fluíam calmamente, mas os olhos arregalados revelavam uma pessoa angustiada. — Caroline Boutrup vive no primeiro andar há um ano e meio. Conheço os pais delas dos velhos tempos, antes de se terem mudado para oeste, para a Jutlândia. Tínhamos juntos uma espécie de clube de artes, naquela época. Falou com uma dicção clara, que contrastava com os palavrões que às vezes apimentavam a sua linguagem elegante. Parte atriz de teatro, parte marinheiro. — Julie Stender mudou-se para cá nesta primavera. As duas são grandes amigas, conhecem-se da escola. Raparigas simpáticas para ter a viver aqui — continuou Esther, os olhos fixos num vaso azul estriado. — Qual delas é? — Ainda não temos a identificação da vítima — respondeu Jeppe gentilmente. — Infelizmente, também é demasiado cedo para estabelecermos a causa da morte. Esther de Laurenti desviou o olhar. A sua pele pálida estava sem maquilhagem, e as muitas rugas ao redor dos olhos e do pescoço intensificaram-lhe o ar de derrota no rosto. Ane�e agachou-se para fazer festas na barriga dourada de um dos pugs. O cão roncou, contente. — Aconteceu alguma coisa invulgar no prédio nos últimos tempos? — perguntou Jeppe. — Novas pessoas de visita ao apartamento das raparigas, um alvoroço na rua, discussões? — Oh, imagine ouvir essa pergunta na vida real! — disse Esther, ainda a desviar o olhar. — Sinto-me como se estivesse dentro de um livro. O pug cansou-se das festas de Ane�e. As unhas dele faziam-se ouvir no chão de madeira, enquanto se dirigia para a cama. — Não andamos a entrar e a sair das casas uns dos outros a cada cinco minutos — explicou Esther, finalmente. — Julie e Caroline são umas jovens com vidas ocupadas. Geralmente, há música alta e atividades noturnas no apartamento delas, mas acho que o mesmo também poderia ser dito da minha casa. Pobre Gregers, pensar que ele tem de nos suportar. Ainda bem que é um pouco surdo. A voz de Esther baixou de tom e ela pareciaperdida em pensamentos. Jeppe deixou-a pensar em paz, enquanto praguejava mentalmente perante a percussão agitada de Ane�e no caixilho da porta. — Caroline tem um namorado, qual é o raio do nome dele... Daniel! Daniel Fussing, um jovem bonito e simpático, também se mudou para cá da área de Herning, na Jutlândia. Mas não o vejo há algum tempo. Suponho que Julie esteja... solteira — saboreou a palavra como se a sua superfície fosse áspera e parecesse estranha na sua boca. Jeppe apontou os nomes no seu bloco de notas. Um alarme de carro disparou na rua e Ane�e suspirou alto da porta. Havia uma boa razão pela qual preferia ser ele a fazer o interrogatório quando trabalhavam em equipa — Ane�e não era conhecida pelo seu tato. — Caroline tem estado a fazer canoagem com uma amiga na Suécia desde a semana passada — continuou Esther. — Acho que ainda não voltou para Copenhaga. Vi Julie pela última vez anteontem. Ela veio cá na segunda-feira à noite para pedir emprestada uma lâmpada. Parecia igual a si própria, sorridente e feliz. Ah, não, eu simplesmente não acredito que estamos a ter esta conversa! Jeppe assentiu. O choque normalmente induzia uma sensação de irrealidade. — A vítima não pode ser uma amiga delas? — perguntou ela, com uma nota desesperada na voz. Ele encolheu os ombros, desculpando-se. — Infelizmente, ainda não sabemos o suficiente. Tem os números de telefone das raparigas? — Estão num papel colado no frigorifico. Pode ir buscá-lo. — Obrigado, senhora de Laurenti, isso será útil — Jeppe levantou-se, dando sinal de que a visita havia terminado. Ane�e já estava a agarrar no pedaço de papel que estava preso ao frigorífico com um ímã em forma de pug. Jeppe ouviu algo a cair, seguido pelos grunhidos irritados de Ane�e, enquanto esta se inclinava para recuperar o ímã. Cristo, que obsessão tinha esta mulher com pugs? — Vamos precisar de falar consigo novamente — disse ele, contornando a mesa de café de vidro sobrecarregada, para evitar atirar com papéis e chávenas ao chão. — Podemos encontrar-nos ainda esta tarde? — Eu devia ir visitar Gregers no hospital, mas, além disso, não tenho planos. Eu sou uma escritora... bem, estou a tentar tornar-me numa, por isso trabalho em casa — Esther de Laurenti colocou a mão sobre um medalhão de ouro pendurado ao pescoço, como se isso lhe conferisse alguma proteção. — Vamos enviar um técnico de impressões digitais para procurar impressões digitais nas escadas da frente e das traseiras. Ele também recolherá as suas quando estiver aqui, se não se importar? Para eliminação. Ela assentiu do sofá, parecendo desolada. Quando Jeppe percebeu que ela não iria acompanhá-los à porta, voltou para o hall de entrada, onde Ane�e já estava à espera com uma mão na maçaneta da porta. Disseram adeus à pequena mulher sentada no sofá, Jeppe com uma pontada de desconforto. Esther de Laurenti parecia alguém que precisava de um abraço. — Oh, Senhor, salva-me das solteironas e das suas bugigangas! — reclamou Ane�e, quando estavam no patamar e fora do alcance auditivo. Havia algo em Esther de Laurenti que a incomodava. Talvez fosse a suspeita de que ela mesma acabaria a viver assim, sozinha com os seus cães e coisas a mais, se não fosse o Svend. Querido Svend, o seu maravilhoso marido há vinte anos, que parecia amá-la tal como ela era e nunca se cansava dela. — Era menos irritante para ti se ela não tivesse bugigangas, não era? — perguntou Jeppe, fechando a porta atrás deles. — Sim! Sem dúvida! O mínimo que uma pessoa pode fazer, quero dizer, quando decide morar sozinha e ser excêntrica, é limpar a porcaria da casa — Ane�e sorriu ironicamente para aliviar parte das palavras amargas. — É no primeiro andar, certo? Desceram as velhas escadas a ranger. Jeppe tirou um pacote de toalhitas antissépticas humedecidas do bolso e passou-o timidamente para ela. Uma das muitas peculiaridades irritantes dele era uma antipatia pelos cães, que Ane�e, sendo uma pessoa que adorava cães, tinha dificuldade em aceitar. A comunhão com os animais numa base diária significava tudo para ela, e fazia-o desde pequena. Nessa época, ia de bicicleta da sua casa de infância nos subúrbios, no sul de Copenhaga, até uma quinta próxima, onde era permitido fazer festas a vacas, gatos e coelhos em gaiolas. Ane�e via como uma grave falha de carácter alguém poder optar por não ter um animal de estimação. Ergueu as sobrancelhas para Jeppe e depois abanou a cabeça de forma resignada. Ele tentou dar-lhe as toalhitas novamente. — Tens ideia da quantidade de parasitas que podem ser encontrados no pelo de cão? — perguntou Jeppe. — Sem mencionar todas as bactérias, ácaros, e o facto de o melhor amigo do homem lamber a sua extremidade traseira várias vezes numa hora. — Tens noção de que o teu medo de bactérias roça o patológico, não? —perguntou Ane�e, parando abruptamente para encarar o colega. — Estamos a caminho da cena do crime — respondeu ele. — Pega pelo menos numa! Retirou uma toalhita e estendeu-lha. Ane�e pegou nela e desceu as escadas com um suspiro. — Tu és louco, Jeppe Kørner, sabes disso, certo? E chama-se rabo, mesmo nos cães. Ane�e limpou as mãos e enfiou a toalhita amassada no bolso, abanando a cabeça. Com os dedos livres de bactérias, levantou a fita da cena do crime e abriu a porta do apartamento do primeiro andar com um «Bem, senhoras? Em que pé estamos?». — Ei, Werner, trouxeste donuts? — perguntou alguém alegremente de dentro do apartamento. Ane�e calçou as capas de sapatos e as luvas de látex. A cena do crime era o seu domínio: um dos poucos lugares em que nunca se sentia desajeitada. Atirou um par de capas a Jeppe e entrou. Começava logo ao passar da porta. Manchas de sangue cobriam as paredes e o chão, marcados com setas brancas em pequenos adesivos pretos indicando a direção do respingo. Numa porta, um polícia estava a tirar fotos de grandes planos de uma pilha de roupas ensanguentadas. Ane�e inalou o cheiro quente de um massacre recente e tentou respirar pela boca. Por cima do seu olho direito, uma veia começou a latejar aceleradamente. Foi assim nos primeiros minutos; depois habituou-se. Um oficial canino passou por ela a caminho da saída, levando o seu pastor-alemão pelas escadas. Resistiu ao impulso de acariciar o cão, sabendo que a interrupção não seria bem-vinda. Aparentemente, a unidade canina tinha acabado o seu trabalho no apartamento e agora começaria a procurar no pátio e na rua por um odor humano que poderia potencialmente levá-los a um assassino. A porta da frente abria diretamente para o que parecia ser uma sala multiusos. Havia uma pesada mesa de jantar de madeira com cadeiras dobráveis ao redor, um sofá, um baú antigo que servia de mesa de café, e uma mesa de canto com um computador portátil aberto. Apesar da manhã quente de verão, as três janelas voltadas para a Klosterstræde estavam hermeticamente fechadas. O fedor de sangue era opressivo e denso. Um técnico de dactiloscopia — como os especialistas em impressões digitais insistiam em ser chamados — estava de joelhos na sua vestimenta branco-papel, a escovar os painéis suaves das paredes. — Alguma pista? — perguntou Ane�e, acenando com a cabeça em direção ao pincel. O técnico de dactiloscopia deslizou de joelhos ao longo da parede sem responder. Era um dos especialistas civis em impressões digitais; Ane�e não o conhecia muito bem. Normalmente, não enviavam civis para casos de homicídio, mas, como muitas pessoas estavam fora em férias de verão, as regras provavelmente eram diferentes nesta época do ano. — Bom, que tal isso, meu? —disse ela, erguendo a voz. — Encontrou alguma coisa? Ele finalmente olhou para cima, visivelmente irritado com a interrupção. — Impressões digitais em garrafas e copos, nalguns papéis e no teclado do computador portátil. Algumas boas ao redor do corpo. Mas este lugar não é limpo há muito tempo, por isso podem ser antigas. Curvou-se de novo sobre os painéis, pressionando cuidadosamente o que parecia um adesivo transparente contra a madeira e, em seguida, erguendo a impressãonum pequeno disco transparente. Trabalhava a um ritmo incrivelmente lento — era praticamente meditativo. Ane�e afastou-se e prosseguiu até à sala de estar. Agachado ao lado de um tapete de pano gasto, estava Clausen, o investigador da cena do crime por excelência, a pulverizar um líquido transparente sobre o tecido. Um punhado de marcas inconfundíveis de manchas de sangue quase roxas surgiu, e ele começou a recolher amostras com uma cotonete, que colocava meticulosamente num saco de papel castanho, próprio para o efeito. Clausen era um homem pequeno e ágil, quase com sessenta anos, que, durante praticamente dez anos, chefiara o Centro Nacional de Tecnologia Criminal, o NCTC. Atuou na equipa que investigou o gangue da Rua Blekinge, recolheu provas das valas comuns do Kosovo e ajudou na Tailândia após o tsunami. Apesar da sua aparência dececionante, Clausen ia no seu quarto casamento, com uma violinista divinamente bonita da Orquestra Real Dinamarquesa. E assim que alguém o via em ação, percebia como podia ele atrair uma mulher assim. Abordava a monstruosidade do seu trabalho, confrontando-o com um estado de espírito sempre positivo, o rosto normalmente iluminado numa rede de linhas de sorriso animadas. Hoje, no entanto, não estava a sorrir. — Olá, Werner, prazer em ver-te — disse Clausen. — Cuidado para não tocares em nada. O apartamento está cheio de sangue e estamos longe de terminar a recolha de provas. Pelo menos, neste caso não há dúvida de que o local da descoberta do corpo e a cena do crime são o mesmo — Clausen cortou um tufo do tapete com um x-ato e colocou as fibras ensanguentadas noutro saco de papel castanho. — Catalogar isto tudo vai ser obra quando voltarmos. Vai demorar vários dias. Já temos mais de sessenta amostras só de respingos de sangue. — Porra! — disse Ane�e, ouvindo o quão alto soava na atmosfera opressiva do apartamento. Aclarou a garganta e falou mais baixo. — Temos uma arma do crime? — Talvez — respondeu Clausen. — Ainda não temos a certeza da arma que a matou. Mas foi usada uma faca, e temos um bom palpite sobre qual foi. Ela foi esfaqueada com uma lâmina afiada e estreita, que parece corresponder muito bem a esta aqui — Clausen levantou- se e retirou cuidadosamente uma faca dobrável brilhante de um saco para mostrar a Ane�e. — Removeram-lhe a sujidade? — perguntou ela. — Parece muito limpa. — Sim, o criminoso limpou-a bem, talvez até a tenha lavado. Mas ainda tem sangue. Deixa-me mostrar-te — Clausen puxou uma pequena tira de papel de um saco esterilizado de dentro da sua bem organizada caixa de ferramentas e esfregou uma cotonete amarela sobre a lâmina da faca. A cotonete ficou imediatamente verde. — Está a reagir aos glóbulos vermelhos — explicou. — Então porque não é esta a nossa arma do crime? — perguntou Ane�e, inclinando-se para olhar a faca mais de perto. — Eu não disse que não era. Mas os patologistas estão a pedir- nos para também ficarmos atentos a um objeto pesado e contundente. No entanto, não encontramos nada parecido no apartamento. Pelo menos para já. — Falando em provas — disse ela —, dissemos à vizinha do andar de cima que ias enviar um tipo para tirar as impressões digitais dela mais tarde. — Boa. O Bovin pode fazer isso. — Ele é um civil, certo? — Ane�e olhou de soslaio para a figura ainda a rastejar pelos painéis. — Se tiveres alguma reclamação, liga para o Ministério das Finanças e solicita uma equipa melhor — replicou Clausen, tirando as luvas de látex para limpar o suor da testa com um lenço bordado. — Até lá, talvez devesses concentrar-te no teu próprio trabalho e deixar-nos fazer o nosso — endireitou as costas para que os seus olhos ficassem à altura do queixo de Ane�e. — Não quis ofender, Clausen — disse ela, levantando as mãos. Ele acenou com a cabeça piedosamente e voltou a ajoelhar-se para regressar às suas cotonetes. Ane�e caminhou um pouco mais para dentro do apartamento. Como estavam todos incrivelmente irritados hoje! Devia ser do calor. Nyboe, o patologista forense, montou o local de trabalho na cozinha. Jeppe acenou-lhe e em troca recebeu um rosto sisudo. A jovem morta estava estendida com a cabeça pressionada contra a parede, abandonada, como uma peça qualquer nos perdidos e achados, em cima de mais um tapete de pano multicolorido. Usava calças de ganga, um sutiã de renda branca e ténis. Os seus longos cabelos caíam em tentáculos pegajosos, como o desenho de um sol feito por uma criança em torno da sua cabeça. Momentaneamente sufocado, Jeppe encostou-se à parede, olhou para o chão e fingiu estar a pensar. Estacou por um momento e respirou até a náusea passar e a sua frequência cardíaca diminuir. Tentou não ouvir o ritmo do seu pulso acelerado, tentou não temer a ansiedade. Dez anos na Divisão de Homicídios haviam-no ensinado a lidar com corpos mutilados sem ficar nauseado, mas nunca se sentia totalmente relaxado numa cena de um crime. Talvez tenha que ver com a sensibilidade que emerge em nós com a idade. A consciência de que a morte é um facto fundamental da vida. Ou talvez fosse apenas o cocktail de comprimidos que tomara no carro a caminho dali, para aliviar a dor nas costas. Os médicos haviam descartado há muito tempo uma hérnia discal, insinuando claramente que a sua dor era psicossomática, mas o que sabiam eles? Afastou-se da parede e aproximou-se do corpo. No momento em que morremos, tornamo-nos o trabalho de alguém. De certa forma, uma cena do crime lembra uma produção teatral. Uma rede de acordos silenciosos que, juntos, formam um todo. No momento certo. Jeppe tinha uma afinidade vergonhosa e secreta com a dinâmica da cena do crime e os seus ritmos íntimos. Mas esta era diferente. Pior. Quem era ela, a jovem que fora esfaqueada e colocada num saco? Porque foi, especificamente, ela roubada de uma carreira, casamento, filhos? Pensou, incomodado, na família que iria ter de informar, assim que a identificassem. O medo que encheria os seus olhos quando ele se apresentasse, a esperança que surge logo depois — um tio, podemos com toda a certeza dispensar um tio. E então, quando se descobria que era alguém muito próximo deles: lágrimas, gritos — ou pior, a aceitação em silêncio. Nunca se habituara a essa parte do trabalho. Jeppe agachou-se ao lado do patologista forense. — Olá, Nyboe. O que temos aqui? Nyboe era um cavalheiro distinto e moderno. Como a maioria dos profissionais médicos, presumia que todos entendiam o que dizia, deixando o leigo na ignorância em apenas algumas frases. Era o médico-legista chefe e bastante respeitado, mas Jeppe não gostava especialmente dele. O sentimento parecia ser mútuo. — Isto está feio — respondeu Nyboe, desta vez de uma forma que não expressava altivez. — A vítima é uma mulher com os seus vinte e poucos anos. Foi submetida a violências graves e sofreu várias facadas profundas. Há lesões na cabeça por traumatismo, devido a uma pancada forte com um objeto pesado. A sua temperatura timpânica era de vinte e oito graus, e o rigor mortis estava bem adiantado quando cheguei, há apenas uma hora. A morte provavelmente ocorreu em algum momento entre as dez horas da noite passada e as quatro da manhã de hoje. Mas, como sabes, ainda não posso adiantar nada com exatidão. Não há sinais imediatos de agressão sexual. As lacerações nas mãos e nos braços sugerem que ela se defendeu, mas havia também... bem... cortes infligidos antes da morte. — Estás a dizer que ela foi golpeada antes de morrer? — respondeu Jeppe. Nyboe assentiu seriamente, e ambos caíram em silêncio. Obviamente, isso causaria um alvoroço nos meios de comunicação social e instilaria um estado geral de pânico, sem mencionar a reação dos parentes mais próximos. — O rosto dela está bastante desfigurado, mas felizmente tem uma tatuagem, o que facilitará a identificação. Bem, provavelmente devias dar uma olhadela aos entalhes. — Entalhes? — Jeppe olhou Nyboe nos olhos. — O agressor golpeou linhas no rosto da vítima. Não sou especialista em arte, mas parece-me uma espécie de recorte de papel — Nyboe suspirou,resignado. — Recorte de papel? O que queres dizer com isso? — disse Jeppe, franzindo a testa. — Parece que o nosso agressor talhou um pouco de gækkebrev. Nyboe segurou o queixo do cadáver e, cuidadosamente, inclinou o rosto ensanguentado em direção à luz forte da cozinha. O padrão cortado no rosto recordava os recortes de papel tradicionais que as crianças dinamarquesas fazem na Páscoa. As expectativas de Jeppe para o dia foram de mal a pior. CAPÍTULO 3 Esther abotoou o casaco vintage Halston à frente do espelho de corpo inteiro, alisando-o com cuidado. Vestia calças finas de lã e uma blusa de seda, sentia-se quase demasiado bem vestida, muito formal, mas precisava de uma roupa que a ajudasse a suportar o dia de hoje. A sua mente rodopiava, e uma dor de cabeça pesava-lhe atrás dos olhos. Julie ou Caroline? Não pode ser Julie, não deve ser ela. Mas também não podia ser Caroline. A pequena Caroline, que ela conhecia desde que nascera. Qual a probabilidade de a vítima ter sido outra pessoa? Talvez uma delas tivesse emprestado o apartamento a uma das amigas para passar a noite, e ela tivesse convidado alguma pessoa suspeita? Kristoffer tinha entrado e estava a fazer barulho na cozinha. Ela desejava que ele ficasse em silêncio. Ele era o seu professor de canto há quase quatro anos, mas com o tempo a relação deles evoluíra. Tinham muito em comum: o prazer da música, da arte e de todas as coisas bonitas da vida. Ele ensinou-lhe técnicas vocais, ela ensinou-o a cozinhar; iam juntos periodicamente a óperas e museus. Kristoffer até tinha uma chave do apartamento dela e servia-se do dinheiro da sua carteira quando fazia compras na mercearia. Ela tinha três vezes a idade dele, mas ainda assim ele tornara-se um amigo próximo. De certa forma, o filho que ela nunca teve, embora nenhum deles se sentisse à vontade em expressar isso dessa maneira. — Kristoffer, querido — chamou ela. — Estás a fazer café? Esther entrou na sala de estar e encontrou-o a servir o café à mesa. Sorriu-lhe, encantada, como sempre, pelo rosto bonito dele, que contava histórias de uma ancestralidade asiática distante. Os olhos eram castanhos, os cabelos negros como azeviche, e o corpo magro. Usava sempre roupas vários tamanhos acima: um capuz com a t-shirt para fora, calças de ganga com a virilha perto dos joelhos, um gorro e um casaco de cabedal. As roupas faziam-no parecer ainda mais jovem do que era na realidade, como um adolescente sem-abrigo. Kristoffer havia desistido de uma promissora carreira de cantor em troca de uns concertos ocasionais e de dar aulas. Ela não sabia exatamente a razão. Mas ele parecia contente com o seu atual emprego principal como ajudante no Teatro Real Dinamarquês, o que lhe permitia ficar acordado à noite a trabalhar na sua estranha música eletrónica e também se encaixava nas aulas com os seus poucos e selecionados estudantes de canto. Esther debruçou-se na poltrona cor de pêssego e colocou os pés no pufe a condizer. Ela entendia-o muito bem. Agora, que se reformara, também pretendia fazer apenas o que realmente queria pelo resto da sua vida. Cantar, escrever e cozinhar. Acabaram-se os exames ou as reuniões do corpo docente! Esther há muito tempo que esperava regressar finalmente ao amor da sua juventude — os livros de mistério, um género tão difamado nos círculos académicos. Se ela iria ser a Dorothy L. Sayers da sua geração, o tempo urgia. Olhou para a pilha de páginas manuscritas recém-impressas, que já deveria ter revisto, e suspirou. Definitivamente, isso não ia acontecer hoje. Kristoffer trouxe a sua chávena de café e sentou-se numa almofada de chão marroquina, de frente para ela. Epistéme e Dóxa vieram imediatamente para o seu colo. — O que é que aconteceu lá em baixo? — perguntou, com a inocência de outro mundo. O que lhe dificultava ainda mais a tarefa de responder. — Descobriram... um corpo no primeiro andar. Uma jovem... não sabem quem é. Mas parece sério. Um homicídio — sentiu a garganta apertada e tomou um gole de café. — E Gregers está no hospital por causa de um acidente vascular cerebral ou algo assim. O mundo inteiro parece estar a desmoronar hoje. Kristoffer acariciou a barriga de Dóxa sem olhar para cima. Outros teriam feito perguntas em pânico, esmagadas pelo choque, mas não Kristoffer. Após um minuto, perguntou apenas: — O que posso fazer? — Os cães precisam de ir à rua — Esther sentiu-se invadida por gratidão, tornando tudo um pouco mais fácil de suportar. — E podes arranjar-nos alguma comida para hoje à noite? — Está bem — assentiu ele, ainda a olhar para baixo. — Vou levar os cães a passear e fazer compras para o jantar. Talvez peixe. Verei o que há na peixaria boa da Frederiksborggade. — Obrigada, meu querido. Podes tirar dinheiro da carteira que está na entrada. Tu sabes onde está — Esther reclinou-se para trás na poltrona, fechou os olhos e tentou fazer alguns exercícios de respiração para relaxar. Podia ouvir Kristoffer, no corredor, a agitar as coleiras e as chaves. Ele abriu a porta e conduziu gentilmente os cães para a escada. Imediatamente, começaram a latir. — É aqui que vive a proprietária do prédio? — perguntou uma voz desconhecida. Esther sentou-se direita e espreitou para o corredor. Kristoffer estava rodeado pelos pugs, que latiam, enquanto encarava um homem vestido de branco. — Sim, isso mesmo — gritou ela. Levantou-se da poltrona funda, com alguma dificuldade, e caminhou em direção ao corredor da frente para cumprimentar o homem. Um dos técnicos da cena do crime que vira a entrar e a sair do prédio a manhã inteira estava parado à sua porta. Tinha aberto o seu fato branco protetor, e uma linha vermelha na testa revelou que devia ter retirado o capuz recentemente. — Estou aqui para recolher as suas impressões digitais — disse ele, passando por Kristoffer e entrando no pequeno hall. — Fantástico — disse Esther, estendendo a mão. — Eles disseram-me que viria alguém. Esther de Laurenti, olá. O homem colocou uma maleta de aparência pesada no chão, sem aceitar o aperto de mão oferecido. Tinha de ser um trabalho difícil, recolher provas numa cena do crime como esta. O estômago de Esther apertou-se ao pensar no que estava estendido no primeiro andar do seu prédio. — Como fazemos isto? — perguntou ela. — De que precisa? — De uma mesa e das suas mãos, só isso. Demora apenas um segundo — Esther arregaçou as mangas e abriu caminho até à sua secretária. Para sua surpresa, viu Kristoffer ainda à porta e parou para lhe fazer um sorriso caloroso. Ele parecia afetado. Claramente, estava tão chocado quanto ela. A vespa afasta-se, por fim, das migalhas cobertas de compota no pequeno prato e instala-se em cima de uma pilha de livros. Uma batida firme com o dispensador de fita adesiva, e o corpo do inseto esmagado é arremessado no seu voo final pela janela aberta. Ela respira a fragrância de verão da cidade e decide sair para o sol. Desce as escadas sinuosas, salta para a bicicleta e percorre o centro de Copenhaga. Pedala pelas ruas estreitas de sentido único, enquanto aprecia a forma como o vento faz os seus olhos lacrimejarem. Pede um café que não tem dinheiro para pagar e senta-se ao sol, no exterior. Na sua cidade natal não havia cafés. Com um aperto no peito, recorda as noites frias da sua juventude — vestia uma camiseta de ganga fina e movimentava-se, inquieta, entre postos de gasolina e campos de futebol. Os miúdos vagueavam no escuro, nenhum deles queria estar em casa. Como se a sua caminhada sem destino pudesse levá-los a qualquer lugar. Como se beber uma vodka polaca de velhas garrafas de Coca-Cola pudesse aniquilar o tédio. Quando se cansavam de andar, ficavam na paragem de autocarros a ver passar os autocarros. Ergue o rosto para o sol e desfruta da sua nova vida. Avida. Não repara no homem que a observa à distância. Não sabe que a vida que começou agora a apreciar está prestes a terminar. CAPÍTULO 4 De volta ao escritório, Jeppe e Ane�e sentaram-se à sua secretária de altura ajustável para elaborar um plano de combate. Jeppefoi buscar duas canecas de café à sala de convívio, o dele com natas, o de Ane�e simples com açúcar. Tinham ambos a mesma graduação, mas, quando trabalhavam em equipa, ele ia sempre buscar o café e ela conduzia o carro. Estas eram praticamente as únicas coisas que nunca estavam abertas a discussão — a solução de um velho casal dentro da sua estranha parceria. — Temos a certeza em relação à identificação? — começou Ane�e. Agora que estavam sentados um em frente ao outro, ele notou, para seu aborrecimento, quão enérgica ela parecia em comparação consigo. As suas pálpebras ostentavam uma nova camada de azul, e ela parecia alguém que fez sexo, comeu uma refeição substancial e dormiu oito horas de sono tranquilo nas últimas vinte e quatro horas. Isso fê-lo querer dar a volta à secretária e tirá-la da cadeira. A sua pergunta era retórica. Eles compararam o aspeto geral e a tatuagem do cadáver — duas estrelas e um texto em letra manuscrita no pulso direito — com as muitas fotos que encontraram no computador portátil na cena do crime. A vítima era Julie Stender, uma das duas jovens inquilinas de Esther de Laurenti do primeiro andar. Se tivessem tentado identificar o cadáver apenas com base no rosto desfigurado, provavelmente não teriam conseguido. — É claramente a Julie — disse Jeppe. — Vamos ver... a família dela mora... — folheou o seu bloco de notas. — Os pais dela moram numa pequena cidade chamada Sørvad, na Jutlândia, perto da cidade de Herning. Podes procurá-los? Ane�e digitou no seu computador e ligou para a Polícia da Jutlândia Central e Ocidental, para iniciar o processo. Não foi um telefonema que a polícia da Jutlândia tivesse prazer em atender. Jeppe virou uma página do seu bloco de notas. Quando era mais novo, costumava escrever tudo nos seus blocos de notas — ideias, pensamentos e planos para o futuro. Diários de viagem e cartas de amor. Agora só registava coisas de trabalho. Escreveu PADRÃO DE FACA em letras maiúsculas ornamentadas. AMIZADES MASCULINAS CAROLINE!, acrescentou. INQUILINOS DO PRÉDIO — Stender! — gritou Ane�e para o telefone. — S-T-E-N-D-E-R, percebeu? Christian e Ulla Stender. Vivem nos arredores de Sørvad, numa rua chamada Skovvej. Informe-os apenas; não os questione, percebeu? Estamos a sair de Copenhaga para fazer isso. Ligue-nos depois de ter estado lá. Desligou sem se despedir. — Pronto, podes riscar isto da tua lista, Jepsen! — disse, levantando-se abruptamente, de tal forma que as suas calças formaram dobras pouco elegantes sobre as suas largas coxas. — Devemos continuar com esse briefing? Temos muito trabalho para distribuir. Marchou para fora do gabinete sem esperar por uma resposta. Jepsen! Odiava que ela lhe chamasse aquilo. Fazia-o sentir-se como um adolescente inseguro a ser castigado pela sua irmã mais velha. Jeppe sentiu um aperto no coração, pensando em como seriam os próximos dias. Este caso pararia Copenhaga, assim que os meios de comunicação social dessem com ele. Conseguia imaginar as manchetes: «Jovem assassinada, abusada e agredida. Assassino ainda à solta.» Este era um daqueles casos que a polícia, normalmente, considera largamente exagerados, um caso do tipo uma-mulher-no-chão-da-floresta, querendo isto dizer improvável, que acontece sobretudo na ficção criminal. Casos como este, em que o agressor não está curvado sobre a vítima quando a polícia chegava, eram, de facto, extremamente raros. Mas existiam. E este era um deles. A sala do pessoal estava invulgarmente silenciosa quando Jeppe entrou. Normalmente ecoavam conversas de todos os lados, e havia um murmúrio animado, mas os casos realmente sérios afetavam sempre a boa disposição. Piadas sobre cabeças serradas que serviam de bolas de futebol faziam parte da linguagem normal do trabalho. Certos outros tópicos estavam totalmente fora dos limites, como qualquer coisa que tivesse que ver com crianças, ou casos em que o agressor se safava devido a negligência dos investigadores ou a detalhes técnicos. E casos como este. Criminosos e assassinos violentos normalmente não cortam as suas vítimas enquanto estas ainda estão vivas. Era muito cedo para adivinhar se estavam a lidar com um ex-amante sádico ou algo ainda pior, mas, mesmo assim, um silêncio opressivo pairava sobre a equipa. A superintendente estava sentada ao lado do detetive Thomas Larsen, os braços cruzados sobre o peito fardado. Provavelmente estava vestida para a conferência de imprensa, prestes a começar. Embora não tenham falado sobre isso, Jeppe sabia que ela iria tentar manter longe do público o padrão do entalhe no rosto da vítima durante o máximo tempo possível. Quaisquer pormenores que sugerissem um criminoso seriamente perturbado seriam mantidos em segredo por enquanto. Quanto tempo isso lhes daria? Um dia, no máximo dois, mas isso era melhor do que nada. Os olhos de Jeppe cruzaram-se com os da superintendente, e sentiu-se quase de imediato tranquilo e nervoso com a sua presença. Após dez anos a trabalharem em conjunto, conheciam-se muito bem. Ela entendia as suas forças, mas também as suas fraquezas. Ambos sabiam que ela estava a arriscar-se confiando-lhe agora um caso desta magnitude. Ele olhou para a sua equipa. Torben Falck era um dos detetives mais antigos, tinha ficado gordo e complacente com os anos. Cuidava zelosamente do seu impressionante bigode grisalho, usava suspensórios de cores vivas e adorava contar piadas sem graça. Se a Divisão de Homicídios fosse uma equipa de beisebol, Falck seria um defesa exterior indispensável. Talvez não fosse o mais rápido, mas era um investigador sólido e completo. Sara Saidani, que estava sentada ao lado de Falck, era um enigma na Divisão de Homicídios. A superintendente trouxera-a da esquadra de Helsingør há um ano, por causa da sua experiência em programação e da sua capacidade geral de atuar online — competências que a tornaram muito mais útil em Copenhaga do que noutros lugares. Mas Saidani ainda não havia encontrado o seu lugar entre os novos colegas. Ela tinha um certo charme, com os seus caracóis escuros e nariz aquilino, mas parecia distante, dizia apenas o que era necessário, e nunca com um sorriso. O cabelo dela estava normalmente preso num rabo de cavalo desleixado, o rosto sem maquilhagem. Era mãe solteira de duas filhas e, como não tinha um homem na sua vida, Ane�e insistia em que Saidani devia ser lésbica. Isso não era considerado importante para Jeppe. Saidani e Falck eram bons nos seus trabalhos e recetivos; encaixavam bem o suficiente. O único com quem ele tinha um problema era Thomas Larsen. Era um jovem detetive, famoso por parecer um modelo de um anúncio a calças de ganga. Tinha um diploma universitário da Copenhagen Business School, e era investigador na sede há apenas seis meses. Ainda assim, parecia pronto para avançar a uma velocidade interestelar. Havia algo de indecoroso na ambição de Larsen, uma crença provocadora na sua própria infalibilidade, que Jeppe tinha dificuldade em suportar. Ele tentara diligentemente colar a alcunha de Bu�erfinger, como o chocolate recheado de manteiga de amendoim, a Larsen, mas os seus colegas, que não eram maliciosos, não tinham mordido o isco. E, infelizmente, a manteiga de amendoim parecia ser o sabor preferido da superintendente. Ane�e pigarreou de forma encorajadora do seu lugar habitual junto à parede. Os olhos dos detetives atingiram Jeppe como holofotes num auditório escuro, e ele sentiu uma pontada de medo do palco. Agora cabia-lhe fazer justiça a uma jovem brutalmente assassinada. — Certo — começou, da frente da sala do pessoal. — Já todos sabem que o corpo encontrado na Klosterstræde, número doze, foi identificado como sendo de Julie Stender. Estamos no processo de localizar os seus parentes mais próximos. Até novo aviso, iremos reunir-nos aqui diariamente, logo após o final de cada turno de serviço, às oito horas da manhã e às quatro da tarde, além de outras vezes, conforme necessário. Cada um deverá manter os outros informados acerca dos desenvolvimentos. Vamos reunir toda a papelada e fotosno meu gabinete e de Ane�e. Vou pedir a um dos assistentes para nos preparar um quadro informativo. No vídeo informativo, solicitaremos apoio das outras esquadras para fazer um interrogatório de porta a porta e ao longo da Klosterstræde, para que possamos recolher quaisquer declarações de testemunhas enquanto estiverem frescas na mente das pessoas. Jeppe levantou a voz acima dos sons de barulhos de papel e toques nos teclados. — Falck — continuou —, regressa ao hospital e fala com Gregers Hermansen, se ele conseguir falar. Depois, faz uma visita aos proprietários do café na Klosterstræde, número doze. São dois jovens, a secretária tem os seus nomes. Foram eles que encontraram Gregers Hermansen deitado em cima do corpo de Stender hoje de manhã, e também estão atualmente no hospital sob observação, devido a choque. Tanto quanto eu sei, estão bem. Falck saudou à maneira dos escoteiros, com dois dedos na aba de um chapéu imaginário. — Larsen começará a investigar os antecedentes familiares de Julie Stender, amigos, colegas, parceiros românticos e antigos colegas de turma. Como sempre, Saidani tratará do Facebook e de coisas relacionadas com computadores, telefones e redes sociais. Saidani ergueu os olhos do computador portátil e assentiu, agitando os caracóis escuros do seu rabo de cavalo. Larsen manteve- se sentado em silêncio, os braços cruzados sobre o peito. — Werner e eu iremos notificar os pais da vítima, e depois faremos outra visita a Esther de Laurenti. A autópsia terá lugar amanhã de manhã. Nós também vamos tratar disso — disse ele, olhando para a parceira. — Temos polícias em Copenhaga e no sul da Suécia à procura de Caroline Boutrup e da sua amiga — Jeppe passou discretamente o peso de uma perna para a outra para aliviar a região lombar. — E precisamos de alguém para verificar as câmaras de vigilância no local. Os bancos, lojas 7-Eleven, em frente à farmácia, e assim por diante. Quem está disponível? Falck fez outra saudação à maneira dos escoteiros. O toque do telemóvel de Ane�e quebrou o ambiente intenso na sala do pessoal; ela atendeu sem sair da sala. Jeppe e a equipa esperaram enquanto ela berrava as suas respostas tensas. Meio minuto depois, desligou e olhou para eles com ansiedade. — Era da polícia da Jutlândia Central e Ocidental. Foram a casa da família, em Sørvad, mas não estava ninguém lá. Adivinha onde o vizinho diz que estão? Provavelmente não fazia sentido adivinhar. — Copenhaga! — gritou, pegando no casaco enquanto se dirigia para a porta. — Mas que raio fazem eles em Copenhaga agora! Vão ficar no Hotel Phoenix. Vamos lá, Jeppe! Vou ligar para a receção para saber se estão no quarto. Caso contrário, tenho o número de telefone do pai. Ela já estava fora da sala antes que Jeppe conseguisse dizer uma palavra. * * * Bredgade, a mais chique das avenidas de Copenhaga, estava a zumbir com o trânsito lento do meio-dia. Ane�e estacionou o carro na esquina e caminharam à chuva miudinha até ao hotel. Um grupo de turistas japoneses havia-se armado de guarda-chuvas e, estranhamente, as mulheres usavam luvas brancas, voltando aos felizes dias do Electric Boogie dos anos 1980. É claro que os turistas japoneses poderiam estar a caminho de uma batalha de dança, mas ela duvidava disso. Jeppe abriu a porta de vidro com acabamento dourado do Hotel Phoenix, e entraram. O átrio do hotel parecia um merengue virado do avesso, lustres de cristal com gotas de diamante, e pesadas cortinas de brocado a emoldurar as janelas. Ane�e detestava este tipo de decoração decadente e olhou para uma fonte no meio do chão de mármore branco com desagrado. Sentiu-se tensa e reticente, e um pouco distraída. Svend e ela haviam decidido há muito tempo não terem filhos, mesmo que todos ao seu redor se reproduzissem como se não houvesse amanhã. Eles referiam-se aos seus três border collies como os seus meninos, e não sentiam que estavam a perder alguma coisa nas suas vidas. Mas, ainda assim, sabia que não havia dor maior na vida do que a perda de um filho, e aqui estava ela a caminho de infligir a alguém exatamente essa dor. O pessoal do hotel, a pedido dela, pediu ao Sr. e à Sra. Stender para permanecerem no seu quarto sem maiores explicações. Ane�e e Jeppe subiram ao segundo andar, encontraram o quarto 202 e bateram à porta. Um segundo depois, uma mulher pequena e elegante, com cabelos grisalhos curtos, abriu a porta. Acenou-lhes com a cabeça, gravemente. As rugas de preocupação na sua testa pareciam uma marca de casta hindu sobre os óculos de madrepérola. Recuou para dentro do quarto de hotel para que Jeppe e Ane�e pudessem entrar. Christian Stender estava sentado numa poltrona de seda, segurando a cabeça nas mãos. Desabotoara os botões de cima da camisa, de modo que eram visíveis um tufo de pelos grisalhos no peito e a parte de cima de uma barriga considerável. Um par de sapatos de couro bem gastos, a precisar de serem engraxados, estava ao lado da sua cadeira, dando sinal de um proprietário que valorizava o conforto em vez do estilo. Levantou a cabeça e, ao ver as suas visitas, olhou para baixo novamente. O rosto dele estava coberto de gotas de suor, os olhos pequenos e avermelhados. Este homem ou estava petrificado ou a sofrer de uma gastrite grave. — Christian começou a sentir-se mal quando a rececionista ligou para dizer que a polícia queria conversar connosco — explicou a Sr.ª Stender, torcendo as mãos num gesto caricatural de preocupação. — Ele está convencido de que algo aconteceu à Julie. A minha... hum, enteada. Ela não tem atendido o telefone. Eu tentei tranquilizá-lo, mas ele não quer ouvir. Isto é sobre o roubo da empresa, certo? Não é sobre Julie? Ane�e e Jeppe trocaram um olhar, nenhum deles particularmente ansioso por confirmar o pior. Ela assentiu para ele, grata pela divisão de trabalho, depois deslizou para a parede de onde podia observar o rosto de ambos os pais. — Infelizmente — disse Jeppe —, não estamos aqui para falar sobre um roubo — clareou a garganta, a voz inesperadamente nervosa. — Eu lamento muito. Temos más notícias. Viemos por causa de Julie. Christian Stender ergueu os olhos da poltrona com as pupilas pequenas como as de um viciado em heroína. Tudo nele congelou em antecipação. Ane�e tentou analisar a sua expressão em busca de sinais ocultos, mas viu apenas o terror de um pai confrontado com o seu pior medo. Jeppe continuou de forma hesitante. — Lamento muito ter de informar que... Não se adiantou mais antes de Christian Stender começar a berrar como um louco. Ele colapsou, caiu da poltrona de seda e acabou meio ajoelhado, enquanto gritava. O seu rosto estava angustiado; os cabelos como um véu fino sobre o seu couro cabeludo brilhante. Parecia um cantor de ópera a desempenhar a sua grande cena de tormento e desespero. Ane�e observou esses fatores, tão calmamente como se estivesse a assistir a um teatro amador. O medidor de empatia não se mexeu. Que diabo havia de errado com ela? Ou com ele? — Encontrámos o corpo de uma jovem no apartamento de Julie e de Caroline — continuou Jeppe, hesitante, entre os gritos do pai. — Lamento informar que é o corpo de Julie. Ainda precisamos de concluir... algumas investigações antes de a identificação ser oficial, mas não achamos que haja alguma dúvida. Procurou os olhos de Ane�e, e assentiram um para o outro. Ainda não é necessário mencionar a autópsia ou a verificação dentária. — Lamento imenso... — começou Jeppe, mas não conseguiu concluir. Christian Stender estava encolhido no chão. A sua esposa estava atrás de uma cadeira, a olhar para ele, enquanto agarrava a borda do estofo. — Podemos ter um momento a sós? — perguntou lentamente Ulla Stender, com uma autoridade inesperada. — Sei que provavelmente precisaremos de ir à esquadra ou o que for, mas poderiam dar-nos um momento para nos recompormos? Sozinhos? — Vamos esperar no átrio — disse Ane�e enquanto Jeppe caminhou até à porta. — Levem o tempo de que precisarem. Saíram juntos para o corredor, ansiosos por fugir do quarto abafado e se afastarem da emoçãointensa deles. Nenhuma das suas condolências parecia adequada, por isso não disseram mais nada. Ane�e fechou a porta atrás deles. A última coisa que viu antes de a porta se fechar foi a mulher a aproximar-se do marido, os braços estendidos. CAPÍTULO 5 — Quer que carregue num botão? Para que andar? A mulher calva com um suporte para soro mostrou um sorriso amigável, o dedo a pairar no ar diante dos muitos botões do elevador. — Catorze — disse Esther, devolvendo o sorriso. — Muito obrigada. As portas fecharam-se. Ela perscrutou o cérebro por algo para dizer — talvez apenas um comentário sobre o tempo —, mas então apercebeu-se de que não sabia quando a mulher tinha estado no exterior pela última vez. Por isso, ficou calada, cuspindo discretamente sobre a ponta dos dedos, tentando esfregar os últimos vestígios da tinta para impressões digitais com um lenço enrolado que retirou do bolso. O técnico da cena do crime tinha explicado como a Dinamarca era um dos poucos países do mundo que ainda usava tinta, em vez do moderno sistema de digitalização que o resto do planeta havia adotado há muito tempo. Mesmo países como a República Centro-Africana estavam à frente da Dinamarca, explicou ele, enquanto passava os dedos sobre o bloco de tinta e o papel. Um tipo estranho. Ela esfregou as mãos com uma escova de unhas logo depois, mas a tinta não saiu. À primeira vista, a enfermaria dos cuidados intensivos cardíacos do Hospital Nacional da Dinamarca não parecia o lugar mais animador para se estar, mesmo que o sofrimento omnipresente estivesse um pouco camuflado com uma variedade heterogénea de pósteres nas paredes. As pessoas usam sempre as cores mais alegres em lugares onde se perde toda a esperança. Havia até um anúncio pendurado ao lado do elevador a propósito de um concerto dado pelo ex-chefe de polícia, prometendo oito peças do cancioneiro folclórico dinamarquês com acompanhamento ao piano. Será que o humor dos pacientes melhora de facto com o entretenimento compassivo que nenhuma pessoa saudável toleraria durante cinco minutos?, pensou Esther ao entrar na enfermaria 3-14-2. Encontrou o quarto do paciente certo e parou junto à porta aberta. A primeira das duas camas lá dentro estava vazia, mas Gregers Hermansen estava deitado na outra, com o rosto voltado para a janela. — Olá, Gregers — disse Esther, após bater à porta de forma hesitante. Sem se virar, os ombros dele começaram a tremer por causa do choro. Como uma criança que tem suportado a dor até a sua mãe chegar por fim para cuidar do seu cotovelo esfolado, e as lágrimas terem uma audiência. Esther permaneceu à porta, a lutar contra o impulso de fugir do quarto sombrio e triste do hospital. Reuniu forças e caminhou para junto dele. — Sou só eu — disse ela. Gregers deixou as lágrimas fluírem livremente. Ela pegou na mão dele e ficou ali em silêncio, até ele se acalmar. Coitado do meu amigo, pensou, cheia de pena deste homem que conhecia há vinte anos, mas que, na verdade, mal conhecia. Nunca tinham sido realmente amigos, apesar de viverem sob o mesmo teto há tanto tempo. Naquele momento, isso parecia um desperdício. Esther puxou uma cadeira, desabotoou o casaco e depois segurou a mão de Gregers novamente. Queria dizer-lhe algo reconfortante, mas tudo lhe parecia errado. Então, em vez disso, sentou-se simplesmente e ficou a ouvi-lo chorar, sentindo-se inadequada e desorientada. Precisava de férias e de um copo de vinho tinto. Precisava de acalmar a sua mente. De não pensar mil pensamentos, todos eles redundando em atalhos. De não se lembrar de quando — aparentemente, há mil anos — fora ela quem chorara deitada numa cama de hospital. Nessa altura, não tinha tido ninguém que lhe segurasse a mão. Apercebeu-se de que estava a apertar a frágil palma da mão dele com muita força e afrouxou o aperto, dando-lhe palmadinhas na mão de forma desajeitada. As lágrimas dele diminuíram lentamente. — Quem... — começou ele, vacilante, na voz de um homem que morava sozinho. Esther inclinou-se para mais perto e concentrou-se em ouvi-lo. — Quem. É. Ela? — disse ele. Estava tão rouco que, a princípio, não entendeu o que estava a perguntar-lhe. Clareou a garganta com impaciência e apontou para o jarro de água de plástico. Esther derramou um pouco num copo usado e deixou-o beber, encheu-o novamente e esperou até que ele estivesse pronto. — Eu caí por cima de um... corpo — gaguejou. — Havia sangue nas paredes. A polícia não me disse nada — Gregers parecia encovado, decrépito; de repente, ela percebeu que via nele um velho e se via a si mesma como... qualquer coisa de diferente. — Não sei quem era, Gregers — disse ela. — A polícia ainda não está pronta para divulgar nada. — Ela estava morta? Quando eu... a encontrei. Estava morta? Claro, pensou ela. É disso que ele tem medo! Está angustiado de que pudesse tê-la salvado. Será que a polícia não teve nenhuma consideração por ele? — Gregers, escute — disse Esther com autoridade. — Ela estava morta há muito tempo quando chegou lá. Não havia nada que pudesse fazer, ouviu? — na verdade, não sabia quando a rapariga tinha morrido e não sabia de nenhum detalhe específico. Mas não viu razão para não o tranquilizar como pudesse. Sem aviso, sentiu um aperto no estômago, rápido como uma tonelada de tijolos a cair. A névoa da ressaca que andava a sentir durante todo o dia subiu repentinamente quando o foco foi desviado de si mesma. Um crime no meu prédio, pensou. Oh, que coisa horrível! Demasiado horrível para banir a ideia da minha cabeça. A garganta apertava. Isto aconteceu mesmo? E porquê? — Porquê? — perguntou Gregers com olhos suplicantes, sem saber que os seus pensamentos ecoavam os dela. Esther sentiu uma pontada aguda de culpa, mas ignorou-a. Deve ser uma coincidência. Uma coincidência macabra e remota. O pai dela liga-lhe todos os dias. Às vezes, responde, hoje deixa o telefone tocar; simplesmente não consegue encará-lo. Sente falta da mãe, cuja doença e morte a deixaram num estado de saudade permanente. Saudade de ser vista e amada pelo que realmente é, saudade de ouvir de novo as palavras tranquilizadoras da sua mãe. Tu serás sempre a minha Criança Estrela, dizia a mãe dela, e eu irei sempre ajudar-te a suportar os fardos da vida. Agora ela suporta os fardos sozinha. O pai dela não a pode ajudar com isso. Ele acha que ela ainda é a sua menina inocente. Arruma a toalha e os livros no cesto da bicicleta e atravessa a ponte Knippelsbro. As ruas estão desertas no calor do meio-dia. Prende a bicicleta a uma estrutura no troço da estrada plana que leva ao aeroporto, Amager Strandvej, põe o cadeado e caminha até à praia, com o cesto a roçar as coxas nuas. Tira uma selfie na ponte de madeira e posta a foto no Instagram. A praia está cheia de corpos seminus em posições meio derretidas. Ela encontra um canto para pousar as suas coisas e despe-se lentamente, ciente de todos os olhos atentos ao seu striptease. Prolonga o momento, até ficar de biquíni e óculos de sol. Estica-se e olha de esguelha para todas as pessoas através das lentes escuras. Um careca fica imóvel, deixando o gelado derreter sobre os dedos enquanto a devora com os olhos. Velho tarado. Olha em direção ao horizonte, distante e inatingível, e inclina-se para o cesto com as pernas esticadas para pegar no protetor solar. Aplica-o lentamente no corpo todo perante os muitos olhares colados nela. Mas há um par de olhos que ela não vê. Um par de olhos escondidos atrás de uns óculos de sol, observando o corpo dela como se lhes pertencesse. Como se a pele dela fosse uma tela. Se ela ao menos reconsiderasse o que está a fazer, ainda teria tempo para o impedir. Só que não o faz. CAPÍTULO 6 A sala de interrogatório tipo bunker número seis não era propriamente uma suíte júnior, mas, mesmo assim, Jeppe sentia-se mais confortável nesse ambiente oficial do que na sala sombria do Hotel Phoenix. Os detetives haviam chegado à sede com os Stenders há meia hora, e agora Christian Stender estava a segurar a mão da sua esposa, balançando inconscientementena cadeira e cantando baixinho para si mesmo. Ane�e estava encostada à parede, no seu estilo habitual de Philip Marlowe, movendo-se apenas para se afastar e deixar passar um agente que trouxe chá doce em dois copos de plástico branco. Jeppe acenou com a cabeça para o casal, para mostrar que tinham de prosseguir com o assunto horrível. — Eu entendo que isto deve ser um choque terrível para vocês — começou, estabelecendo contacto visual com Ulla Stender, que piscou os olhos para ele algumas vezes. — Infelizmente, precisamos de informá-los sobre algumas questões e também fazer algumas perguntas, mesmo que seja difícil. Ela assentiu, hesitante. — Fizemos o que consideramos ser uma identificação cem por cento positiva, portanto não é necessário que identifiquem pessoalmente o... corpo. Podem vê-la uma última vez. No entanto, eu desaconselho. Ela não está parecida com o que era, com a forma como a conhecem. Ulla Stender encolheu-se perante estas palavras desconfortáveis; Christian Stender ficou paralisado. — Depois, preciso de vos perguntar sobre a autópsia — continuou Jeppe. — Veem alguma objeção? Ulla lançou um olhar para o marido e depois abanou a cabeça. Pedir era essencialmente uma formalidade — o corpo seria autopsiado, mesmo que dissessem que não. — Obrigado — disse Jeppe. — Também precisamos de vos perguntar se conhecem o paradeiro da colega de quarto de Julie, Caroline Boutrup. Dada a natureza do caso, é urgente localizá-la. O pai, desolado, fechou os olhos e continuou o seu diálogo interno. A conversar com o divino, supunha Jeppe. A esposa dele respondeu. — Julie não nos conta muita coisa, mas sei pelos pais de Caroline que ela ia andar de canoa com uma amiga esta semana. Na Suécia, algures. Jeppe empurrou um bloco de notas sobre a mesa até ela. — Escreva por favor o nome de alguma amiga, colega de turma ou outro contacto que Julie tenha aqui em Copenhaga e em Sørvad. Precisamos de falar com todas as pessoas que ela conhecia. Ulla Stender pensou por um momento e escreveu alguns nomes. — Também precisamos de vos perguntar onde estavam ontem à noite. É pura rotina. Perguntamos isto a toda a gente, sempre que têm algo que ver com um caso. — Ontem à noite, durante a noite? — perguntou Ulla Stender, tirando os olhos por um instante do bloco de notas antes de continuar a escrever. — Bem, nós estávamos a dormir no hotel. Chegámos terça-feira — foi mesmo só ontem? — e encontrámo-nos com Julie para tomar um café à tarde, num café perto do hotel. Christian tinha reuniões importantes agendadas para hoje e amanhã, mas foram canceladas, é claro. — Não saíram do quarto para ir buscar uma bebida ou algo assim? — Não, tínhamos acordado cedo e estávamos exaustos, então demos uma pequena caminhada no bairro de Nyhavn e depois voltámos para o hotel. Pedimos o serviço de quarto para jantar em frente à TV. Acho que já estávamos na cama às onze da noite. — Como é que vos pareceu que estava Julie quando a viram? — Bem, parecia igual a si própria. Feliz e contente. Contou-nos sobre o curso de licenciatura que estava prestes a iniciar. Ficou agarrada ao telefone a maior parte da hora que passámos juntos, você sabe como é hoje em dia. — Eu entendo o quão difícil deve ser falar disto agora, mas precisamos de saber o máximo possível de coisas sobre a Julie. Podem falar-nos um pouco sobre ela? — Jeppe perguntou gentilmente. — Como era ela? O que gostava de fazer? Esse tipo de coisa. Ulla Stender olhou para o marido, cujos olhos ainda estavam cerrados. — Bem, a Julie é uma menina doce — disse, timidamente. — Normal, sabe, feliz... jovem. Gostava de ir a espetáculos, adorava teatro — a Sr.ª Stender procurou as palavras que queria, mas não conseguiu partilhar muito mais. — Conseguem pensar em alguém que pudesse querer magoá-la? Ela abanou a cabeça, ofendida. — E alguém que pudesse querer magoar algum de vocês? Magoar-vos através de Julie? Ela abanou a cabeça novamente. Jeppe olhou para a mesa para lhe dar um momento para assoar o nariz. — Christian teve alguns atritos com parceiros e clientes, mas nunca nada que não pudesse ser resolvido com um jogo de golfe. E não acredito que alguém tenha pensado em prejudicar Julie por algo assim. Quero dizer, isso é uma loucura! — Há quanto tempo conhece Julie? — perguntou Ane�e, aproveitando uma pausa de onde estava encostada à parede. — Quando é que você e Christian casaram? As sobrancelhas de Jeppe lançaram um sinal para Ane�e de que não deveria interromper, mas ela não reparou. — Em março de 2004 — respondeu Ulla Stender, os olhos errantes inquietos. — Julie cantou para nós. Fly on the Wings of Love. Tinha apenas nove anos! Toda a gente ficou tremendamente impressionada. Christian Stender choramingou e cobriu os olhos com as mãos. A sua esposa continuou, vacilante. — Julie era apenas uma criança quando fui contratada pela empresa de Christian, e conheço a família há todos esses anos. Depois de a mãe de Julie... falecer — tinha um cancro —, eu e ele aproximámo-nos. E, bem, depois acabámos por casar. Espero que por esta altura Julie me veja como sua mãe. Ou me visse... — Ulla Stender estava com gotas de suor no lábio superior e brincava com o colar. — Quando é que a mãe de Julie morreu? — perguntou Ane�e, ainda não preparada para dispensar Ulla Stender. — Irene morreu em 2003 — respondeu Ulla —, mas já estava doente há muito tempo. Christian estava completamente desgastado por estar no hospital. Foi uma época terrível. Especialmente para Irene, pensou Jeppe. Claramente, Ulla Stender estava habituada a ter de defender o seu casamento. Terá havido alguma intriga na pequena cidade de Sørvad quando Stender se casou com a sua secretária, apenas cinco minutos depois de a sua esposa ter sido enterrada? Ulla Stender parecia uma criança pequena que quer rastejar para debaixo da mesa para se livrar da atenção indesejada. — Há quanto tempo mora Julie em Copenhaga? — Jeppe mudou de assunto e lançou um olhar de aviso para Ane�e. — Seis meses — respondeu Ulla. — Mudou-se para cá em março para se instalar no apartamento e arranjar um emprego em part-time antes do início das aulas, no outono. — Ela foi... violada? — a voz crua de Christian Stender cortou a sala como um garfo num prato. Violação, a pior coisa que um pai poderia imaginar para a sua filha. — Não havia sinais imediatos de agressão sexual — Jeppe ficou sentado imóvel e observou o casal enquanto falava. — Mas o agressor usou uma faca. O pai exalou pesadamente e baixou a cabeça outra vez. — E receio que a tenha cortado... — disse Jeppe, ignorando o olhar penetrante no rosto de Ane�e. — Não sabemos porquê, ou exatamente como, mas alguns dos atos de violência ocorreram antes da morte — continuou. — Lamento muito ter de vos contar isto. Se têm alguma ideia do que isso possa significar, é importante que a partilhem connosco. Ulla Stender colocou as mãos sobre a boca e abanou a cabeça, em choque. — Temos uma equipa no Hospital Nacional que está à vossa disposição para oferecer apoio psicológico, se quiserem... Eu tenho o número aqui. Christian Stender ergueu a cabeça, os olhos bem abertos. O seu rosto ficou da mesma cor pálida da parede atrás dele. E depois vomitou. Tiveram de interromper o interrogatório e colocá-lo num sofá com um balde à frente, mas quando perdeu a consciência, entre dois vómitos, colocaram-no numa posição de recuperação no chão e chamaram uma ambulância. A sua esposa estava a respirar de forma ofegante, como se tivesse acabado de subir uma escada íngreme. Antes que as portas da ambulância se fechassem, Jeppe conseguiu avisá-la de que a polícia precisaria de falar com eles novamente. — Mas qual é o teu problema? — protestou Ane�e, quando a ambulância se afastou da berma do passeio. — O que queres dizer? — Por que razão contaste a estas pobres pessoas que o criminoso cortou a filha deles quando ela ainda estava viva? Isso é totalmente inapropriado. Não costumas ser tão insensível. — Precisamos de saber se isso significa alguma coisa — protestou Jeppe. — Sim, mas pelo
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