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A inquilina - Katrine Engberg (2)

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Título original:
Krokodillevogteren by Katrine Engberg
Copyright © Katrine Engberg 2016
Esta tradução de Krokodillevogteren é publicada por acordo
celebrado com a Salomonsson Agency
Tradução: Ana David
Revisão:
Ana Marta Ramos
Capa:
PAPER TALK
Imagens de capa:
© VitaeSchola / Ge�y Images
Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação
ENGBERG, Katrine
A Inquilina
ISBN 978-989-9027-12-1
CDU 821.113.4-31”20”
Minotauro
outubro de 2020
Direitos reservados para Portugal e países africanos de expressão
portuguesa por
MINOTAURO, uma chancela de Edições Almedina, S.A. LEAP
CENTER – Espaço Amoreiras - Rua D. João V, n.º 24, 1.03 1250-091
Lisboa – Portugal e-mail: editoras@grupoalmedina.net
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no
todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo
fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer
transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível de
procedimento judicial.
Para Timm. De agora em diante.
QUARTA-FEIRA,
8 DE AGOSTO
PRÓLOGO
O pó das cortinas pesadas subia num redemoinho à luz da
manhã. Gregers Hermansen sentou-se na sua poltrona e ficou a
observar as partículas de pó a dançarem pela sala de estar. Levava
tanto tempo a despertar hoje em dia que quase não via razão para o
fazer. Pôs as mãos nos apoios de braços polidos e lisos, inclinou a
cabeça para trás e fechou os olhos à luz cintilante até ouvir a
máquina de café a crepitar na cozinha.
Após uma breve contagem decrescente, levantou-se, encontrou
os chinelos e caminhou em direção ao piso de linóleo da cozinha.
Sempre o mesmo percurso: ao longo do armário de mogno,
passando pela poltrona verde e pela maldita pega na parede que a
assistente instalara no ano passado.
«Eu não preciso disso», insistira ele. «Obrigado na mesma.»
Serviu de muito.
Na cozinha, colocou as borras de café usadas da máquina no
caixote do lixo debaixo do lava-louça. Cheio outra vez. Atou o saco do
lixo e, apoiando-se ao longo da mesa enquanto atravessava a
cozinha, abriu a porta das traseiras com a mão livre. Pelo menos,
ainda conseguia deitar fora o seu próprio lixo. Olhou de soslaio para
a coleção de garrafas da sua vizinha, pousadas no patamar do andar
de cima. Esther de Laurenti. Uma consumidora de bebidas alcoólicas
dos diabos, organizadora de jantares barulhentos para os amigos
artistas que duravam até altas horas da noite. Mas era a dona do
prédio, por isso não valia de nada queixar-se.
Os degraus rangeram por baixo dele enquanto se segurava com
firmeza ao corrimão. Seria mais sensato mudar-se para um lugar
seguro, um local com menos escadas, mas vivera toda a sua vida no
centro de Copenhaga e preferia arriscar-se nestas escadas tortas do
que apodrecer num lar de idosos nos subúrbios da cidade. No
segundo andar, pousou o saco do lixo e encostou-se ao caixilho da
porta das vizinhas de baixo. As duas estudantes universitárias que
partilhavam esse apartamento eram uma fonte constante de
irritação, mas secretamente também provocavam nele um desejo
constrangedor. Os seus sorrisos despreocupados despertavam
lembranças de noites de verão junto ao canal e beijos remotos.
Quando a vida ainda não estava a terminar e tudo era ainda
possível.
Depois de recuperar um pouco, reparou que a porta das
mulheres estava entreaberta, uma luz brilhante a sair pela abertura
estreita. Elas eram jovens e descuidadas, mas certamente não eram
tolas o suficiente para dormir com a porta das traseiras aberta! Eram
seis e meia da manhã; podiam ter acabado de chegar a casa depois
de uma noitada na cidade — mas ainda assim.
— Olá...? — chamou. — Está aí alguém?
Com a ponta do chinelo, empurrou com cautela a porta, que se
abriu com facilidade. Recuou um pouco, de forma instintiva. Afinal
de contas, não queria ser acusado de ser um velho intrometido. Era
melhor simplesmente fechar a porta e levar o lixo para a rua, antes
que o seu café ficasse frio e amargo lá em cima.
Segurou o caixilho da porta com força e inclinou-se para agarrar
a maçaneta, mas subestimou a distância. Por um instante horrível,
que lhe pareceu uma eternidade — como o tempo que passa entre
um cavalo nos atirar ao chão e cairmos mesmo —, percebeu que não
era forte o suficiente para aguentar o seu próprio peso. Os seus
chinelos deslizaram no parquê de madeira lisa, e Gregers perdeu o
equilíbrio. Lutou com toda a força que já não tinha e caiu
desamparado no apartamento das mulheres, aterrando com força no
chão. Não caiu com um estrondo, mas mais com um baque — o som
patético do corpo diminuído de um homem idoso em roupão de
flanela.
Tentou acalmar-se com uma respiração profunda. Partira a anca?
O que as pessoas diriam? Pela primeira vez em muitos anos, sentiu
vontade de chorar. Fechou os olhos e esperou que alguém o
encontrasse.
As escadas ficaram novamente em silêncio. Ouviu gritos ou
passos, mas não apareceu ninguém. Passado alguns minutos, abriu
os olhos e tentou orientar-se. Uma lâmpada incandescente nua
pendia do teto, cegando-o, mas conseguia distinguir vagamente uma
parede branca; uma prateleira de panelas e especiarias; contra a
parede que dava para a porta, sapatos e botas alinhados, um dos
quais estava certamente debaixo dele. Com cuidado, virou a cabeça
de um lado para o outro para verificar se tinha partido alguma coisa.
Não, parecia que estava tudo intacto. Cerrou os punhos. Sim,
também estavam bem. Ugh, aquele maldito sapato! Tentou tirá-lo de
baixo de si, mas o sapato não se mexeu.
Olhou para baixo e tentou focar a visão. A sensação
desconfortável no seu estômago cresceu, até se transformar numa
paralisia sufocante que se espalhou por todo o seu corpo. Do sapato
saía uma perna nua, meio escondida sob as suas ancas doridas. A
perna terminava num corpo torcido. Parecia a perna de um
manequim, mas Gregers sentiu a pele macia contra a mão e
percebeu. Levantou a mão e viu o sangue: na pele, no chão, nas
paredes. Sangue por toda a parte.
O coração acelerou-se-lhe como um canário a tentar escapar da
sua gaiola. Não conseguia mover-se, o pânico tomou conta do seu
corpo impotente. Eu vou morrer, pensou. Queria gritar, mas a força
para gritar por socorro abandonara-o há muitos anos.
Então, começou a chorar.
CAPÍTULO 1
O investigador da polícia de Copenhaga Jeppe Kørner salpicou o
rosto com água e olhou-se ao espelho pendurado na parede de
azulejos da casa de banho. Este espelho em particular era côncavo e
alongava o seu rosto alto e magro, enquanto o outro sobre o
lavatório do lado o esticava para o lado. Esquecia-se sempre de qual
espelho fazia o quê até lavar as mãos. Hoje, era o côncavo, fazendo-o
assemelhar-se à figura da pintura de Edvard Munch, O Grito.
Ajustava-se-lhe perfeitamente.
Parecia cansado e sabia que não era apenas por causa das
lâmpadas economizadoras de energia usadas no quartel da polícia.
O cabelo ridículo e oxigenado não ajudava. Nunca deveria ter
deixado o seu amigo Johannes convencê-lo a fazer aquilo. A variedade
é o tempero da vida, ah! Talvez devesse simplesmente rapá-lo todo.
Então, pelo menos, pareceria novamente um polícia. Jeppe fez uma
careta ao seu próprio reflexo. Ele era como qualquer outro tipo
recém-divorciado dos livros. Um caso clássico. O próximo passo
seria encontrar um bar para frequentar regularmente, comprar um
carro desportivo e usar a dor no peito como um distintivo de honra.
Talvez até conseguisse arranjar uma boa cicatriz, um golpe de faca
para combinar com as cicatrizes interiores.
Secou as mãos no papel áspero do dispensador e procurou o
caixote do lixo. Amassou a toalha de papel e atirou-a — atingiu o
chão com uma pancada frouxa e molhada. Perfeito, pensou,
inclinando-se para lhe pegar da maneira mais ágil possível. Eu sou
um daqueles tipos que falha o lançamento, mas é demasiado ligado ao
cumprimento do dever para deixar tudo desarrumado. Abriu a porta da
casa de banho e seguiu pelo corredor em direção ao seu gabinete, a
autocomiseração a inundar o seu corpo.
Com uma estrutura neoclássica de três lados, o quartel da polícia
de Copenhaga emprestavaautoridade ao bairro, situado a poucos
quarteirões do sempre florescente parque de diversões Tivoli
Gardens. O exterior do edifício, frio e inacessível, era um farol
presunçoso de poder e integridade no coração do liberalismo e do
absurdo dos países nórdicos, um contrapeso muito necessário à
pornografia gratuita e ao recorde de consumo de álcool. Por dentro,
a famosa colunata circular do pátio interior, e o trabalho artesanal de
estilo italiano do século XIX, suavizavam um pouco essa impressão.
Belíssimos mosaicos e pavimento em pedra iluminavam os dias de
trabalho da equipa da polícia, repousando sob os seus passos
atormentados como um lembrete das vezes em que o local de
trabalho tinha de refletir a autoridade da força policial. A Divisão de
Homicídios fora deixada no seu estado sombrio original, com tetos
abobadados e paredes vermelho-escuras iluminadas por apliques.
Mobiliário moderno e prático colidia com a pintura descascada das
paredes, dando uma impressão geral de degradado e de propositado
em partes iguais.
O gabinete que Jeppe partilhava com a colega Ane�e Werner não
era uma exceção: cheio de móveis tristes de laminado e bétula sem
qualquer ambição de criar um ambiente de trabalho alegre. Ane�e,
por outro lado, proporcionava exatamente isso. Quando ele entrou,
estava reclinada na cadeira, com os pés em cima da secretária, a rir
de algo que via no telemóvel.
— Kørner, vem ver isto! — exclamou ela. — É incrível.
— Bom dia, Ane�e — disse Jeppe do vão da porta. — Pensei que
tinhas aulas hoje.
— Tu não me dás descanso, pois não? A aula de ADN é só na
próxima quarta-feira. Anda cá ver isto. Este cão gordo está a tentar
apanhar uma bola, mas rola por uma colina e cai na neve — Ane�e
reiniciou o vídeo e acenou-lhe a chamá-lo, ainda a rir.
Jeppe hesitou. Oito anos a dividir um gabinete e a trabalhar como
parceiros tinham atenuado notavelmente poucas arestas. A despeito
disso, ele e Ane�e costumavam acabar na mesma equipa quando a
superintendente da polícia reunia grupos de investigação para os
casos atuais. Aparentemente, os dois complementavam-se de uma
maneira que eles próprios não conseguiam perceber. E depois
também havia a forma como os seus apelidos rimavam em
dinamarquês apenas o suficiente para confundir as pessoas; uma
fonte inesgotável de irritação para Jeppe sempre que se tinham de
apresentar a testemunhas ou familiares.
Ele achava que Ane�e era um pouco como um buldózer; ela
chamava-o de sensível e cobarde. Nos dias bons, queixavam-se um
do outro de forma consciente, como um casal de velhos. Nos dias
maus, só queria atirá-la ao mar.
Hoje era um dia mau.
— Não, obrigado, vou passar — disse. — Humor com animais
nunca funcionou comigo.
Jeppe sentou-se no seu lado da secretária dupla, ignorando os
olhos da colega enquanto ligava o computador e tirava o telemóvel
do bolso do casaco. A sua mãe ligara. Virou o telefone e pousou-o
com o ecrã para baixo. Desde a morte do seu pai no ano passado, e o
seu divórcio há seis meses, a sua mãe havia ficado estranhamente
lamechas. Era difícil para ele explicar-lhe que aborrecê-lo com os
seus cuidados não ajudava ninguém.
Ane�e reprimiu uma nova gargalhada do outro lado da
secretária e limpou os olhos às mangas. Jeppe suspirou de forma
audível. Estava ansioso para ter o gabinete só para si hoje. Apenas
um dia para chegar ao fundo das suas pilhas de papéis, sem ter
constantemente a intensidade sonora de Ane�e nos seus ouvidos.
Mais uma forte gargalhada sacudiu o ar e a secretária. Quando
Jeppe estava prestes a protestar, a porta do gabinete abriu-se, e a
superintendente apareceu à entrada, com o casaco ainda vestido. Era
uma mulher mais velha, com um rosto amigável e um controlo
prodigioso. Nesse momento, uma linha profunda de preocupação
sobre os seus olhos castanhos pôs um fim imediato à gargalhada de
Ane�e e fê-la tirar os pés da secretária. Apesar da hierarquia
relativamente plana da polícia dinamarquesa — após a reforma da
polícia, a maioria dos investigadores detinha o posto de detetive e
todos eram, em princípio, iguais —, a autoridade discreta da
superintendente era inquestionável.
— Temos um corpo, uma jovem mulher — começou a
superintendente. — A morada é Klosterstræde, número doze,
indícios de crime. O oficial de investigações de serviço acabou de
ligar. Acoisa parece feia.
Jeppe pôs-se de pé. Já devia ter percebido que este seria um dia
daqueles.
— Laboratório forense? — perguntou.
— Nyboe. Ele está a caminho. Bem como os técnicos da cena do
crime.
— Alguma testemunha? — perguntou Ane�e, também de pé.
— Werner, pensei que hoje estivesse nas aulas o dia todo — disse
a superintendente. Claramente ela não tinha reparado em Ane�e na
sala. — Bem, ótimo. Então também pode ir. Kørner, estou a reunir
uma equipa; você vai liderar a investigação.
Jeppe assentiu com uma convicção que não sentia. Não liderava
uma equipa desde que tinha regressado da sua baixa médica. O
motivo oficial da baixa havia sido uma hérnia discal; o motivo não
oficial, a derrocada do seu casamento.
— O idoso que descobriu o corpo foi levado para o hospital, mas
há outra moradora no edifício, uma Esther de Laurenti. Comecem
por falar com ela para que os técnicos tenham oportunidade de
investigar a cena do crime nesse meio tempo.
— O nome dela é DeLorean? — perguntou Ane�e com um arroto
subtil, expirando pelo canto da boca. — Como o carro?
Jeppe foi até ao armário das armas no canto, pegou no seu Heckler
& Koch e prendeu-o no coldre à cintura.
— Sim, Werner, como o carro — suspirou a superintendente. —
Exatamente assim.
Esther de Laurenti alcançou o alarme e tentou impedir que o
ruído infernal explodisse o seu crânio. A transição do sonho para a
realidade foi confusa, e ela não conseguiu discernir o som da
campainha da porta até esta tocar pela terceira vez. Os seus dois
pugs, Epistéme e Dóxa, latiam histericamente, ansiosos por defender o
seu território. Esther havia adormecido em cima do edredão e ainda
tinha no rosto marcas profundas da almofada. Desde que se
reformara do seu cargo como professora na Universidade de
Copenhaga, há pouco mais de um ano, tinha deixado a sua
personalidade do tipo B assumir o controlo e raramente se levantava
antes das dez da manhã. O relógio de bronze antigo da sua mãe,
com o pastor e a pastora no topo, mostrava oito horas e trinta e cinco
minutos. Se fosse aquele maldito carteiro, ia atirar-lhe algo pesado.
Os pastores de bronze, talvez.
Enrolou o edredão ao redor do corpo e caminhou até à porta da
frente, a cabeça a latejar. Teria bebido aquela garrafa inteira de vinho
tinto ontem? Definitivamente, tinha bebido mais do que os dois
copos a que se permitia quando estava a escrever. Esther olhou para
a pilha do seu manuscrito impresso, sentindo-se dividida entre a
eterna atração e repulsa do escritor pela sua obra. O seu corpo
ansiava pela rotina matinal: alongamentos, exercícios respiratórios e
papas de aveia com passas. Talvez um Tylenol em honra da ocasião.
Abanou a cabeça para aclarar as ideias e olhou através do olho
mágico da porta da frente.
No patamar, estavam um homem e uma mulher que Esther não
reconheceu, embora admita ter dificuldade em recordar as centenas
de estudantes que passaram pelas suas salas de aula durante os
trinta e nove anos no departamento. Mas tinha a certeza de que
aqueles dois não eram ex-alunos seus de literatura comparada. Não
pareciam estudantes universitários, decididamente. A mulher era
alta, com ombros largos, vestia um blazer de poliéster ligeiramente
pequeno, os lábios finos e rosa-cereja. Tinha um rabo de cavalo loiro
e uma pele que parecia ter suportado muitos anos de banhos de sol.
O homem era magro, com um cabelo amarelo-brilhante; até poderia
ser encantador se não parecesse tão pálido e triste. Mórmons?
Testemunhas de Jeová?
Abriu a porta. Epistéme e Dóxa ladraram atrás dela, preparando-
se para a guerra.
— Espero que tenham uma razão muito boa para me acordarem
a esta hora — anunciou Esther.
Se ficaram ofendidos com o seu acolhimento, não o mostraram de
forma alguma.— Esther de Laurenti? — perguntou o homem numa voz séria. —
Somos da polícia de Copenhaga. O meu nome é Jeppe Kørner, e esta
é a minha colega, a detetive Ane�e Werner. Receio que tenhamos
más notícias para si.
Más notícias. Esther sentiu o estômago às voltas.
— Entrem — disse, com um nó na garganta, recuando para a sala
para que os polícias pudessem entrar. Os seus cães sentiram a
mudança de humor de imediato e correram atrás dela a ganir de
deceção.
— Por favor — disse-lhes, sentando-se no sofá Chesterfield e
fazendo um sinal para que os detetives se lhe juntassem.
— Obrigado — exclamou o homem. Caminhou num arco
suspeito ao redor dos pequenos pugs para se sentar na beira da
poltrona. A mulher permaneceu à porta, a olhar em volta com
curiosidade.
— Há uma hora, os proprietários do café no rés do chão do seu
prédio encontraram o seu vizinho do andar de baixo, Gregers
Hermansen, desmaiado no apartamento do segundo andar devido a
um ataque cardíaco. O senhor Hermansen foi levado para o hospital
e está agora a receber tratamento. Felizmente, foi encontrado a
tempo e, tanto quanto sabemos, o seu estado está a estabilizar.
— Oh, não! Isso estava destinado a acontecer — disse Esther,
pegando na cafeteira com café de ontem que estava na mesa de
centro e voltando a pousá-la. — Gregers está doente há muito
tempo. O que estava ele a fazer no apartamento das raparigas?
— Na verdade, isso era o que esperávamos que a senhora nos
pudesse ajudar a esclarecer — disse o detetive, cruzando as mãos no
colo, olhando-a de uma maneira neutra.
Esther removeu o edredão e colocou-o sobre as pilhas de papéis e
casacos de lã descartados no sofá. Estes detetives certamente
sobreviveriam à visão de uma idosa em camisa de dormir.
— Diga-me — começou Esther —, a polícia costuma andar a
fazer perguntas de cada vez que um idoso sofre um ataque cardíaco?
Os detetives trocaram um olhar difícil de interpretar. O homem
empurrou cuidadosamente uma pilha de livros que estava em cima
da poltrona e deslizou para trás para ficar mais confortável.
— Ouviu alguma coisa fora de comum na noite passada, ou esta
manhã bem cedo, senhora de Laurenti?
Esther abanou a cabeça de forma impaciente. Primeiro, detestava
ser chamada de senhora. Não tinha ouvido nada para além da faixa
de música para meditação com os sons dos cantos das baleias, que
era o seu atual auxiliar para dormir, quando o vinho tinto não
ajudava.
— A que horas foi para a cama na noite passada? — continuou o
detetive. — Houve alguma atividade fora do vulgar no prédio nos
últimos dias, alguma coisa de que se lembre? — o seu rosto
mantinha-se calmo e insistente.
— Você expulsou-me da cama ao raiar do dia! — respondeu
Esther, cruzando os braços. — Estou de camisa de dormir e ainda
não tomei café. Portanto, antes de responder às suas perguntas,
quero saber de que se trata! — apertou os lábios.
O detetive hesitou, mas depois assentiu.
— No início desta manhã — começou —, o seu vizinho Gregers
Hermansen encontrou o corpo de uma jovem mulher na cozinha do
apartamento no segundo andar. Ainda estamos a identificar a vítima
e a estabelecer a causa da morte, mas temos a certeza de que se trata
de um homicídio. O senhor Hermansen está em choque e ainda não
conseguiu comunicar connosco. Seria útil se a senhora pudesse
contar-nos tudo o que sabe sobre os outros residentes deste prédio e
o que aconteceu nos últimos dias.
O choque irrompeu em Esther, dos tornozelos, coxas e pélvis ao
peito, até sentir que não conseguia respirar. O couro cabeludo
contraiu-se, e os cabelos curtos e tingidos de hena junto ao pescoço
ficaram hirtos quando um arrepio prolongado percorreu as suas
costas.
— De quem se trata? — perguntou. — É uma das raparigas? Isso
não pode ser verdade. Ninguém morre no meu prédio.
Percebeu como devia estar a soar — infantil e fora de controlo. O
chão cedeu sob ela, e agarrou-se ao apoio de braço para não cair.
O detetive estendeu a mão e agarrou-lhe o braço.
— Penso que um café pode ser uma boa ideia, não acha, senhora
de Laurenti?
CAPÍTULO 2
A fina asa da delicada chávena de porcelana desaparecia entre as
pontas dos dedos de Jeppe Kørner. Esther de Laurenti vestiu um
roupão e fez café, e ele e Ane�e estavam sentados nos sofás
desocupados, à espera de que ela se lhes juntasse. A sala de estar era
cheia de cores, bugigangas e tralha. Jeppe sentiu-se pouco à vontade
no meio do caos feminino. Recordava-lhe o apartamento da sua mãe,
onde o intelecto e o espírito eram abundantes, mas o conforto era
praticamente ausente. As paredes estavam cobertas por prateleiras
do chão ao teto, carregadas de livros de todas as formas e tamanhos.
Lombadas de livros em couro desbotadas, brochuras e livros de
mesa de café de cores vivas, com comida e flores nas capas. Figuras
de madeira e bibelôs empoeirados de todo o mundo pontilhavam
cada espaço disponível nas prateleiras e paredes, e papéis
densamente escritos estavam empilhados em todas as superfícies
horizontais.
Os sons das primeiras equipas de reportagem no local chegavam
da rua, enquanto se instalavam em frente da fachada ocre do
edifício. A imprensa já não conseguia ouvir o rádio criptografado da
polícia, por isso monitorizava as sirenes persistentes e as
atualizações nas redes sociais. Nunca demorava muito tempo até
alguém twi�ar, partilhar por mensagem ou identificar nas redes
sociais uma resposta da polícia a uma chamada, e os jornalistas
geralmente chegavam às cenas do crime apenas alguns minutos após
a equipa de emergência. Os repórteres, alegres e bem descansados, já
falavam sombriamente à frente das câmaras, que se moviam entre os
seus rostos e a multidão de técnicos vestidos de branco presentes na
cena do crime.
Esther de Laurenti pigarreou timidamente.
— O prédio é meu e eu moro no último andar. Alugo o rés do
chão a comércio, o segundo e o terceiro andares são habitações.
Gregers vive aqui desde que se divorciou, há vinte anos. O espaço
comercial ao nível da rua muda de inquilino a cada dois anos —
como pode ver, atualmente é um café administrado por dois
simpáticos jovens...
As suas palavras fluíam calmamente, mas os olhos arregalados
revelavam uma pessoa angustiada.
— Caroline Boutrup vive no primeiro andar há um ano e meio.
Conheço os pais delas dos velhos tempos, antes de se terem mudado
para oeste, para a Jutlândia. Tínhamos juntos uma espécie de clube
de artes, naquela época.
Falou com uma dicção clara, que contrastava com os palavrões
que às vezes apimentavam a sua linguagem elegante. Parte atriz de
teatro, parte marinheiro.
— Julie Stender mudou-se para cá nesta primavera. As duas são
grandes amigas, conhecem-se da escola. Raparigas simpáticas para
ter a viver aqui — continuou Esther, os olhos fixos num vaso azul
estriado. — Qual delas é?
— Ainda não temos a identificação da vítima — respondeu Jeppe
gentilmente. — Infelizmente, também é demasiado cedo para
estabelecermos a causa da morte.
Esther de Laurenti desviou o olhar. A sua pele pálida estava sem
maquilhagem, e as muitas rugas ao redor dos olhos e do pescoço
intensificaram-lhe o ar de derrota no rosto. Ane�e agachou-se para
fazer festas na barriga dourada de um dos pugs. O cão roncou,
contente.
— Aconteceu alguma coisa invulgar no prédio nos últimos
tempos? — perguntou Jeppe. — Novas pessoas de visita ao
apartamento das raparigas, um alvoroço na rua, discussões?
— Oh, imagine ouvir essa pergunta na vida real! — disse Esther,
ainda a desviar o olhar. — Sinto-me como se estivesse dentro de um
livro.
O pug cansou-se das festas de Ane�e. As unhas dele faziam-se
ouvir no chão de madeira, enquanto se dirigia para a cama.
— Não andamos a entrar e a sair das casas uns dos outros a cada
cinco minutos — explicou Esther, finalmente. — Julie e Caroline são
umas jovens com vidas ocupadas. Geralmente, há música alta e
atividades noturnas no apartamento delas, mas acho que o mesmo
também poderia ser dito da minha casa. Pobre Gregers, pensar que
ele tem de nos suportar. Ainda bem que é um pouco surdo.
A voz de Esther baixou de tom e ela pareciaperdida em
pensamentos. Jeppe deixou-a pensar em paz, enquanto praguejava
mentalmente perante a percussão agitada de Ane�e no caixilho da
porta.
— Caroline tem um namorado, qual é o raio do nome dele...
Daniel! Daniel Fussing, um jovem bonito e simpático, também se
mudou para cá da área de Herning, na Jutlândia. Mas não o vejo há
algum tempo. Suponho que Julie esteja... solteira — saboreou a
palavra como se a sua superfície fosse áspera e parecesse estranha na
sua boca.
Jeppe apontou os nomes no seu bloco de notas. Um alarme de
carro disparou na rua e Ane�e suspirou alto da porta. Havia uma
boa razão pela qual preferia ser ele a fazer o interrogatório quando
trabalhavam em equipa — Ane�e não era conhecida pelo seu tato.
— Caroline tem estado a fazer canoagem com uma amiga na
Suécia desde a semana passada — continuou Esther. — Acho que
ainda não voltou para Copenhaga. Vi Julie pela última vez
anteontem. Ela veio cá na segunda-feira à noite para pedir
emprestada uma lâmpada. Parecia igual a si própria, sorridente e
feliz. Ah, não, eu simplesmente não acredito que estamos a ter esta
conversa!
Jeppe assentiu. O choque normalmente induzia uma sensação de
irrealidade.
— A vítima não pode ser uma amiga delas? — perguntou ela,
com uma nota desesperada na voz.
Ele encolheu os ombros, desculpando-se.
— Infelizmente, ainda não sabemos o suficiente. Tem os números
de telefone das raparigas?
— Estão num papel colado no frigorifico. Pode ir buscá-lo.
— Obrigado, senhora de Laurenti, isso será útil — Jeppe
levantou-se, dando sinal de que a visita havia terminado. Ane�e já
estava a agarrar no pedaço de papel que estava preso ao frigorífico
com um ímã em forma de pug. Jeppe ouviu algo a cair, seguido pelos
grunhidos irritados de Ane�e, enquanto esta se inclinava para
recuperar o ímã. Cristo, que obsessão tinha esta mulher com pugs?
— Vamos precisar de falar consigo novamente — disse ele,
contornando a mesa de café de vidro sobrecarregada, para evitar
atirar com papéis e chávenas ao chão. — Podemos encontrar-nos
ainda esta tarde?
— Eu devia ir visitar Gregers no hospital, mas, além disso, não
tenho planos. Eu sou uma escritora... bem, estou a tentar tornar-me
numa, por isso trabalho em casa — Esther de Laurenti colocou a mão
sobre um medalhão de ouro pendurado ao pescoço, como se isso lhe
conferisse alguma proteção.
— Vamos enviar um técnico de impressões digitais para procurar
impressões digitais nas escadas da frente e das traseiras. Ele também
recolherá as suas quando estiver aqui, se não se importar? Para
eliminação.
Ela assentiu do sofá, parecendo desolada.
Quando Jeppe percebeu que ela não iria acompanhá-los à porta,
voltou para o hall de entrada, onde Ane�e já estava à espera com
uma mão na maçaneta da porta. Disseram adeus à pequena mulher
sentada no sofá, Jeppe com uma pontada de desconforto. Esther de
Laurenti parecia alguém que precisava de um abraço.
— Oh, Senhor, salva-me das solteironas e das suas bugigangas!
— reclamou Ane�e, quando estavam no patamar e fora do alcance
auditivo. Havia algo em Esther de Laurenti que a incomodava.
Talvez fosse a suspeita de que ela mesma acabaria a viver assim,
sozinha com os seus cães e coisas a mais, se não fosse o Svend.
Querido Svend, o seu maravilhoso marido há vinte anos, que parecia
amá-la tal como ela era e nunca se cansava dela.
— Era menos irritante para ti se ela não tivesse bugigangas, não
era? — perguntou Jeppe, fechando a porta atrás deles.
— Sim! Sem dúvida! O mínimo que uma pessoa pode fazer,
quero dizer, quando decide morar sozinha e ser excêntrica, é limpar
a porcaria da casa — Ane�e sorriu ironicamente para aliviar parte
das palavras amargas. — É no primeiro andar, certo?
Desceram as velhas escadas a ranger. Jeppe tirou um pacote de
toalhitas antissépticas humedecidas do bolso e passou-o
timidamente para ela. Uma das muitas peculiaridades irritantes dele
era uma antipatia pelos cães, que Ane�e, sendo uma pessoa que
adorava cães, tinha dificuldade em aceitar. A comunhão com os
animais numa base diária significava tudo para ela, e fazia-o desde
pequena. Nessa época, ia de bicicleta da sua casa de infância nos
subúrbios, no sul de Copenhaga, até uma quinta próxima, onde era
permitido fazer festas a vacas, gatos e coelhos em gaiolas. Ane�e via
como uma grave falha de carácter alguém poder optar por não ter
um animal de estimação.
Ergueu as sobrancelhas para Jeppe e depois abanou a cabeça de
forma resignada. Ele tentou dar-lhe as toalhitas novamente.
— Tens ideia da quantidade de parasitas que podem ser
encontrados no pelo de cão? — perguntou Jeppe. — Sem mencionar
todas as bactérias, ácaros, e o facto de o melhor amigo do homem
lamber a sua extremidade traseira várias vezes numa hora.
— Tens noção de que o teu medo de bactérias roça o patológico,
não? —perguntou Ane�e, parando abruptamente para encarar o
colega.
— Estamos a caminho da cena do crime — respondeu ele. —
Pega pelo menos numa!
Retirou uma toalhita e estendeu-lha. Ane�e pegou nela e desceu
as escadas com um suspiro.
— Tu és louco, Jeppe Kørner, sabes disso, certo? E chama-se rabo,
mesmo nos cães.
Ane�e limpou as mãos e enfiou a toalhita amassada no bolso,
abanando a cabeça. Com os dedos livres de bactérias, levantou a fita
da cena do crime e abriu a porta do apartamento do primeiro andar
com um «Bem, senhoras? Em que pé estamos?».
— Ei, Werner, trouxeste donuts? — perguntou alguém
alegremente de dentro do apartamento.
Ane�e calçou as capas de sapatos e as luvas de látex. A cena do
crime era o seu domínio: um dos poucos lugares em que nunca se
sentia desajeitada. Atirou um par de capas a Jeppe e entrou.
Começava logo ao passar da porta. Manchas de sangue cobriam
as paredes e o chão, marcados com setas brancas em pequenos
adesivos pretos indicando a direção do respingo. Numa porta, um
polícia estava a tirar fotos de grandes planos de uma pilha de roupas
ensanguentadas. Ane�e inalou o cheiro quente de um massacre
recente e tentou respirar pela boca. Por cima do seu olho direito,
uma veia começou a latejar aceleradamente. Foi assim nos primeiros
minutos; depois habituou-se.
Um oficial canino passou por ela a caminho da saída, levando o
seu pastor-alemão pelas escadas. Resistiu ao impulso de acariciar o
cão, sabendo que a interrupção não seria bem-vinda.
Aparentemente, a unidade canina tinha acabado o seu trabalho no
apartamento e agora começaria a procurar no pátio e na rua por um
odor humano que poderia potencialmente levá-los a um assassino.
A porta da frente abria diretamente para o que parecia ser uma
sala multiusos. Havia uma pesada mesa de jantar de madeira com
cadeiras dobráveis ao redor, um sofá, um baú antigo que servia de
mesa de café, e uma mesa de canto com um computador portátil
aberto. Apesar da manhã quente de verão, as três janelas voltadas
para a Klosterstræde estavam hermeticamente fechadas. O fedor de
sangue era opressivo e denso.
Um técnico de dactiloscopia — como os especialistas em
impressões digitais insistiam em ser chamados — estava de joelhos
na sua vestimenta branco-papel, a escovar os painéis suaves das
paredes.
— Alguma pista? — perguntou Ane�e, acenando com a cabeça
em direção ao pincel.
O técnico de dactiloscopia deslizou de joelhos ao longo da parede
sem responder. Era um dos especialistas civis em impressões
digitais; Ane�e não o conhecia muito bem. Normalmente, não
enviavam civis para casos de homicídio, mas, como muitas pessoas
estavam fora em férias de verão, as regras provavelmente eram
diferentes nesta época do ano.
— Bom, que tal isso, meu? —disse ela, erguendo a voz. —
Encontrou alguma coisa?
Ele finalmente olhou para cima, visivelmente irritado com a
interrupção.
— Impressões digitais em garrafas e copos, nalguns papéis e no
teclado do computador portátil. Algumas boas ao redor do corpo.
Mas este lugar não é limpo há muito tempo, por isso podem ser
antigas.
Curvou-se de novo sobre os painéis, pressionando
cuidadosamente o que parecia um adesivo transparente contra a
madeira e, em seguida, erguendo a impressãonum pequeno disco
transparente. Trabalhava a um ritmo incrivelmente lento — era
praticamente meditativo.
Ane�e afastou-se e prosseguiu até à sala de estar. Agachado ao
lado de um tapete de pano gasto, estava Clausen, o investigador da
cena do crime por excelência, a pulverizar um líquido transparente
sobre o tecido. Um punhado de marcas inconfundíveis de manchas
de sangue quase roxas surgiu, e ele começou a recolher amostras
com uma cotonete, que colocava meticulosamente num saco de
papel castanho, próprio para o efeito.
Clausen era um homem pequeno e ágil, quase com sessenta anos,
que, durante praticamente dez anos, chefiara o Centro Nacional de
Tecnologia Criminal, o NCTC. Atuou na equipa que investigou o
gangue da Rua Blekinge, recolheu provas das valas comuns do
Kosovo e ajudou na Tailândia após o tsunami. Apesar da sua
aparência dececionante, Clausen ia no seu quarto casamento, com
uma violinista divinamente bonita da Orquestra Real Dinamarquesa. E
assim que alguém o via em ação, percebia como podia ele atrair uma
mulher assim. Abordava a monstruosidade do seu trabalho,
confrontando-o com um estado de espírito sempre positivo, o rosto
normalmente iluminado numa rede de linhas de sorriso animadas.
Hoje, no entanto, não estava a sorrir.
— Olá, Werner, prazer em ver-te — disse Clausen. — Cuidado
para não tocares em nada. O apartamento está cheio de sangue e
estamos longe de terminar a recolha de provas. Pelo menos, neste
caso não há dúvida de que o local da descoberta do corpo e a cena
do crime são o mesmo — Clausen cortou um tufo do tapete com um
x-ato e colocou as fibras ensanguentadas noutro saco de papel
castanho. — Catalogar isto tudo vai ser obra quando voltarmos. Vai
demorar vários dias. Já temos mais de sessenta amostras só de
respingos de sangue.
— Porra! — disse Ane�e, ouvindo o quão alto soava na atmosfera
opressiva do apartamento. Aclarou a garganta e falou mais baixo. —
Temos uma arma do crime?
— Talvez — respondeu Clausen. — Ainda não temos a certeza da
arma que a matou. Mas foi usada uma faca, e temos um bom palpite
sobre qual foi. Ela foi esfaqueada com uma lâmina afiada e estreita,
que parece corresponder muito bem a esta aqui — Clausen levantou-
se e retirou cuidadosamente uma faca dobrável brilhante de um saco
para mostrar a Ane�e.
— Removeram-lhe a sujidade? — perguntou ela. — Parece muito
limpa.
— Sim, o criminoso limpou-a bem, talvez até a tenha lavado. Mas
ainda tem sangue. Deixa-me mostrar-te — Clausen puxou uma
pequena tira de papel de um saco esterilizado de dentro da sua bem
organizada caixa de ferramentas e esfregou uma cotonete amarela
sobre a lâmina da faca. A cotonete ficou imediatamente verde. —
Está a reagir aos glóbulos vermelhos — explicou.
— Então porque não é esta a nossa arma do crime? — perguntou
Ane�e, inclinando-se para olhar a faca mais de perto.
— Eu não disse que não era. Mas os patologistas estão a pedir-
nos para também ficarmos atentos a um objeto pesado e
contundente. No entanto, não encontramos nada parecido no
apartamento. Pelo menos para já.
— Falando em provas — disse ela —, dissemos à vizinha do
andar de cima que ias enviar um tipo para tirar as impressões
digitais dela mais tarde.
— Boa. O Bovin pode fazer isso.
— Ele é um civil, certo? — Ane�e olhou de soslaio para a figura
ainda a rastejar pelos painéis.
— Se tiveres alguma reclamação, liga para o Ministério das
Finanças e solicita uma equipa melhor — replicou Clausen, tirando
as luvas de látex para limpar o suor da testa com um lenço bordado.
— Até lá, talvez devesses concentrar-te no teu próprio trabalho e
deixar-nos fazer o nosso — endireitou as costas para que os seus
olhos ficassem à altura do queixo de Ane�e.
— Não quis ofender, Clausen — disse ela, levantando as mãos.
Ele acenou com a cabeça piedosamente e voltou a ajoelhar-se
para regressar às suas cotonetes. Ane�e caminhou um pouco mais
para dentro do apartamento. Como estavam todos incrivelmente
irritados hoje! Devia ser do calor.
Nyboe, o patologista forense, montou o local de trabalho na
cozinha. Jeppe acenou-lhe e em troca recebeu um rosto sisudo. A
jovem morta estava estendida com a cabeça pressionada contra a
parede, abandonada, como uma peça qualquer nos perdidos e
achados, em cima de mais um tapete de pano multicolorido. Usava
calças de ganga, um sutiã de renda branca e ténis. Os seus longos
cabelos caíam em tentáculos pegajosos, como o desenho de um sol
feito por uma criança em torno da sua cabeça.
Momentaneamente sufocado, Jeppe encostou-se à parede, olhou
para o chão e fingiu estar a pensar. Estacou por um momento e
respirou até a náusea passar e a sua frequência cardíaca diminuir.
Tentou não ouvir o ritmo do seu pulso acelerado, tentou não temer a
ansiedade.
Dez anos na Divisão de Homicídios haviam-no ensinado a lidar
com corpos mutilados sem ficar nauseado, mas nunca se sentia
totalmente relaxado numa cena de um crime. Talvez tenha que ver
com a sensibilidade que emerge em nós com a idade. A consciência
de que a morte é um facto fundamental da vida. Ou talvez fosse
apenas o cocktail de comprimidos que tomara no carro a caminho
dali, para aliviar a dor nas costas. Os médicos haviam descartado há
muito tempo uma hérnia discal, insinuando claramente que a sua
dor era psicossomática, mas o que sabiam eles?
Afastou-se da parede e aproximou-se do corpo. No momento em
que morremos, tornamo-nos o trabalho de alguém. De certa forma,
uma cena do crime lembra uma produção teatral. Uma rede de
acordos silenciosos que, juntos, formam um todo. No momento
certo. Jeppe tinha uma afinidade vergonhosa e secreta com a
dinâmica da cena do crime e os seus ritmos íntimos. Mas esta era
diferente. Pior. Quem era ela, a jovem que fora esfaqueada e
colocada num saco? Porque foi, especificamente, ela roubada de uma
carreira, casamento, filhos?
Pensou, incomodado, na família que iria ter de informar, assim
que a identificassem. O medo que encheria os seus olhos quando ele
se apresentasse, a esperança que surge logo depois — um tio,
podemos com toda a certeza dispensar um tio. E então, quando se
descobria que era alguém muito próximo deles: lágrimas, gritos —
ou pior, a aceitação em silêncio. Nunca se habituara a essa parte do
trabalho.
Jeppe agachou-se ao lado do patologista forense.
— Olá, Nyboe. O que temos aqui?
Nyboe era um cavalheiro distinto e moderno. Como a maioria
dos profissionais médicos, presumia que todos entendiam o que
dizia, deixando o leigo na ignorância em apenas algumas frases. Era
o médico-legista chefe e bastante respeitado, mas Jeppe não gostava
especialmente dele. O sentimento parecia ser mútuo.
— Isto está feio — respondeu Nyboe, desta vez de uma forma
que não expressava altivez. — A vítima é uma mulher com os seus
vinte e poucos anos. Foi submetida a violências graves e sofreu
várias facadas profundas. Há lesões na cabeça por traumatismo,
devido a uma pancada forte com um objeto pesado. A sua
temperatura timpânica era de vinte e oito graus, e o rigor mortis
estava bem adiantado quando cheguei, há apenas uma hora. A
morte provavelmente ocorreu em algum momento entre as dez
horas da noite passada e as quatro da manhã de hoje. Mas, como
sabes, ainda não posso adiantar nada com exatidão. Não há sinais
imediatos de agressão sexual. As lacerações nas mãos e nos braços
sugerem que ela se defendeu, mas havia também... bem... cortes
infligidos antes da morte.
— Estás a dizer que ela foi golpeada antes de morrer? —
respondeu Jeppe.
Nyboe assentiu seriamente, e ambos caíram em silêncio.
Obviamente, isso causaria um alvoroço nos meios de comunicação
social e instilaria um estado geral de pânico, sem mencionar a reação
dos parentes mais próximos.
— O rosto dela está bastante desfigurado, mas felizmente tem
uma tatuagem, o que facilitará a identificação. Bem, provavelmente
devias dar uma olhadela aos entalhes.
— Entalhes? — Jeppe olhou Nyboe nos olhos.
— O agressor golpeou linhas no rosto da vítima. Não sou
especialista em arte, mas parece-me uma espécie de recorte de papel
— Nyboe suspirou,resignado.
— Recorte de papel? O que queres dizer com isso? — disse Jeppe,
franzindo a testa.
— Parece que o nosso agressor talhou um pouco de gækkebrev.
Nyboe segurou o queixo do cadáver e, cuidadosamente, inclinou
o rosto ensanguentado em direção à luz forte da cozinha. O padrão
cortado no rosto recordava os recortes de papel tradicionais que as
crianças dinamarquesas fazem na Páscoa.
As expectativas de Jeppe para o dia foram de mal a pior.
CAPÍTULO 3
Esther abotoou o casaco vintage Halston à frente do espelho de
corpo inteiro, alisando-o com cuidado. Vestia calças finas de lã e uma
blusa de seda, sentia-se quase demasiado bem vestida, muito formal,
mas precisava de uma roupa que a ajudasse a suportar o dia de hoje.
A sua mente rodopiava, e uma dor de cabeça pesava-lhe atrás
dos olhos. Julie ou Caroline? Não pode ser Julie, não deve ser ela.
Mas também não podia ser Caroline. A pequena Caroline, que ela
conhecia desde que nascera. Qual a probabilidade de a vítima ter
sido outra pessoa? Talvez uma delas tivesse emprestado o
apartamento a uma das amigas para passar a noite, e ela tivesse
convidado alguma pessoa suspeita?
Kristoffer tinha entrado e estava a fazer barulho na cozinha. Ela
desejava que ele ficasse em silêncio. Ele era o seu professor de canto
há quase quatro anos, mas com o tempo a relação deles evoluíra.
Tinham muito em comum: o prazer da música, da arte e de todas as
coisas bonitas da vida. Ele ensinou-lhe técnicas vocais, ela ensinou-o
a cozinhar; iam juntos periodicamente a óperas e museus. Kristoffer
até tinha uma chave do apartamento dela e servia-se do dinheiro da
sua carteira quando fazia compras na mercearia. Ela tinha três vezes
a idade dele, mas ainda assim ele tornara-se um amigo próximo. De
certa forma, o filho que ela nunca teve, embora nenhum deles se
sentisse à vontade em expressar isso dessa maneira.
— Kristoffer, querido — chamou ela. — Estás a fazer café?
Esther entrou na sala de estar e encontrou-o a servir o café à
mesa. Sorriu-lhe, encantada, como sempre, pelo rosto bonito dele,
que contava histórias de uma ancestralidade asiática distante. Os
olhos eram castanhos, os cabelos negros como azeviche, e o corpo
magro. Usava sempre roupas vários tamanhos acima: um capuz com
a t-shirt para fora, calças de ganga com a virilha perto dos joelhos,
um gorro e um casaco de cabedal. As roupas faziam-no parecer
ainda mais jovem do que era na realidade, como um adolescente
sem-abrigo.
Kristoffer havia desistido de uma promissora carreira de cantor
em troca de uns concertos ocasionais e de dar aulas. Ela não sabia
exatamente a razão. Mas ele parecia contente com o seu atual
emprego principal como ajudante no Teatro Real Dinamarquês, o
que lhe permitia ficar acordado à noite a trabalhar na sua estranha
música eletrónica e também se encaixava nas aulas com os seus
poucos e selecionados estudantes de canto.
Esther debruçou-se na poltrona cor de pêssego e colocou os pés
no pufe a condizer. Ela entendia-o muito bem. Agora, que se
reformara, também pretendia fazer apenas o que realmente queria
pelo resto da sua vida. Cantar, escrever e cozinhar. Acabaram-se os
exames ou as reuniões do corpo docente! Esther há muito tempo que
esperava regressar finalmente ao amor da sua juventude — os livros
de mistério, um género tão difamado nos círculos académicos. Se ela
iria ser a Dorothy L. Sayers da sua geração, o tempo urgia. Olhou
para a pilha de páginas manuscritas recém-impressas, que já deveria
ter revisto, e suspirou. Definitivamente, isso não ia acontecer hoje.
Kristoffer trouxe a sua chávena de café e sentou-se numa
almofada de chão marroquina, de frente para ela. Epistéme e Dóxa
vieram imediatamente para o seu colo.
— O que é que aconteceu lá em baixo? — perguntou, com a
inocência de outro mundo. O que lhe dificultava ainda mais a tarefa
de responder.
— Descobriram... um corpo no primeiro andar. Uma jovem... não
sabem quem é. Mas parece sério. Um homicídio — sentiu a garganta
apertada e tomou um gole de café. — E Gregers está no hospital por
causa de um acidente vascular cerebral ou algo assim. O mundo
inteiro parece estar a desmoronar hoje.
Kristoffer acariciou a barriga de Dóxa sem olhar para cima.
Outros teriam feito perguntas em pânico, esmagadas pelo choque,
mas não Kristoffer. Após um minuto, perguntou apenas: 
— O que posso fazer?
— Os cães precisam de ir à rua — Esther sentiu-se invadida por
gratidão, tornando tudo um pouco mais fácil de suportar. — E podes
arranjar-nos alguma comida para hoje à noite?
— Está bem — assentiu ele, ainda a olhar para baixo. — Vou
levar os cães a passear e fazer compras para o jantar. Talvez peixe.
Verei o que há na peixaria boa da Frederiksborggade.
— Obrigada, meu querido. Podes tirar dinheiro da carteira que
está na entrada. Tu sabes onde está — Esther reclinou-se para trás na
poltrona, fechou os olhos e tentou fazer alguns exercícios de
respiração para relaxar.
Podia ouvir Kristoffer, no corredor, a agitar as coleiras e as
chaves. Ele abriu a porta e conduziu gentilmente os cães para a
escada. Imediatamente, começaram a latir.
— É aqui que vive a proprietária do prédio? — perguntou uma
voz desconhecida.
Esther sentou-se direita e espreitou para o corredor. Kristoffer
estava rodeado pelos pugs, que latiam, enquanto encarava um
homem vestido de branco.
— Sim, isso mesmo — gritou ela.
Levantou-se da poltrona funda, com alguma dificuldade, e
caminhou em direção ao corredor da frente para cumprimentar o
homem. Um dos técnicos da cena do crime que vira a entrar e a sair
do prédio a manhã inteira estava parado à sua porta. Tinha aberto o
seu fato branco protetor, e uma linha vermelha na testa revelou que
devia ter retirado o capuz recentemente.
— Estou aqui para recolher as suas impressões digitais — disse
ele, passando por Kristoffer e entrando no pequeno hall.
— Fantástico — disse Esther, estendendo a mão. — Eles
disseram-me que viria alguém. Esther de Laurenti, olá.
O homem colocou uma maleta de aparência pesada no chão, sem
aceitar o aperto de mão oferecido. Tinha de ser um trabalho difícil,
recolher provas numa cena do crime como esta. O estômago de
Esther apertou-se ao pensar no que estava estendido no primeiro
andar do seu prédio.
— Como fazemos isto? — perguntou ela. — De que precisa?
— De uma mesa e das suas mãos, só isso. Demora apenas um
segundo — Esther arregaçou as mangas e abriu caminho até à sua
secretária. Para sua surpresa, viu Kristoffer ainda à porta e parou
para lhe fazer um sorriso caloroso. Ele parecia afetado. Claramente,
estava tão chocado quanto ela.
A vespa afasta-se, por fim, das migalhas cobertas de compota no
pequeno prato e instala-se em cima de uma pilha de livros. Uma
batida firme com o dispensador de fita adesiva, e o corpo do inseto
esmagado é arremessado no seu voo final pela janela aberta.
Ela respira a fragrância de verão da cidade e decide sair para o
sol. Desce as escadas sinuosas, salta para a bicicleta e percorre o
centro de Copenhaga. Pedala pelas ruas estreitas de sentido único,
enquanto aprecia a forma como o vento faz os seus olhos
lacrimejarem. Pede um café que não tem dinheiro para pagar e
senta-se ao sol, no exterior.
Na sua cidade natal não havia cafés. Com um aperto no peito,
recorda as noites frias da sua juventude — vestia uma camiseta de
ganga fina e movimentava-se, inquieta, entre postos de gasolina e
campos de futebol. Os miúdos vagueavam no escuro, nenhum deles
queria estar em casa. Como se a sua caminhada sem destino pudesse
levá-los a qualquer lugar. Como se beber uma vodka polaca de velhas
garrafas de Coca-Cola pudesse aniquilar o tédio. Quando se
cansavam de andar, ficavam na paragem de autocarros a ver passar
os autocarros. 
Ergue o rosto para o sol e desfruta da sua nova vida. Avida. Não
repara no homem que a observa à distância. Não sabe que a vida que
começou agora a apreciar está prestes a terminar.
CAPÍTULO 4
De volta ao escritório, Jeppe e Ane�e sentaram-se à sua secretária
de altura ajustável para elaborar um plano de combate. Jeppefoi
buscar duas canecas de café à sala de convívio, o dele com natas, o
de Ane�e simples com açúcar. Tinham ambos a mesma graduação,
mas, quando trabalhavam em equipa, ele ia sempre buscar o café e
ela conduzia o carro. Estas eram praticamente as únicas coisas que
nunca estavam abertas a discussão — a solução de um velho casal
dentro da sua estranha parceria.
— Temos a certeza em relação à identificação? — começou
Ane�e.
Agora que estavam sentados um em frente ao outro, ele notou,
para seu aborrecimento, quão enérgica ela parecia em comparação
consigo. As suas pálpebras ostentavam uma nova camada de azul, e
ela parecia alguém que fez sexo, comeu uma refeição substancial e
dormiu oito horas de sono tranquilo nas últimas vinte e quatro
horas. Isso fê-lo querer dar a volta à secretária e tirá-la da cadeira.
A sua pergunta era retórica. Eles compararam o aspeto geral e a
tatuagem do cadáver — duas estrelas e um texto em letra manuscrita
no pulso direito — com as muitas fotos que encontraram no
computador portátil na cena do crime. A vítima era Julie Stender,
uma das duas jovens inquilinas de Esther de Laurenti do primeiro
andar. Se tivessem tentado identificar o cadáver apenas com base no
rosto desfigurado, provavelmente não teriam conseguido.
— É claramente a Julie — disse Jeppe. — Vamos ver... a família
dela mora... — folheou o seu bloco de notas. — Os pais dela moram
numa pequena cidade chamada Sørvad, na Jutlândia, perto da
cidade de Herning. Podes procurá-los?
Ane�e digitou no seu computador e ligou para a Polícia da
Jutlândia Central e Ocidental, para iniciar o processo. Não foi um
telefonema que a polícia da Jutlândia tivesse prazer em atender.
Jeppe virou uma página do seu bloco de notas. Quando era mais
novo, costumava escrever tudo nos seus blocos de notas — ideias,
pensamentos e planos para o futuro. Diários de viagem e cartas de
amor. Agora só registava coisas de trabalho.
Escreveu PADRÃO DE FACA em letras maiúsculas
ornamentadas.
AMIZADES MASCULINAS
CAROLINE!, acrescentou.
INQUILINOS DO PRÉDIO
— Stender! — gritou Ane�e para o telefone. — S-T-E-N-D-E-R,
percebeu? Christian e Ulla Stender. Vivem nos arredores de Sørvad,
numa rua chamada Skovvej. Informe-os apenas; não os questione,
percebeu? Estamos a sair de Copenhaga para fazer isso. Ligue-nos
depois de ter estado lá.
Desligou sem se despedir.
— Pronto, podes riscar isto da tua lista, Jepsen! — disse,
levantando-se abruptamente, de tal forma que as suas calças
formaram dobras pouco elegantes sobre as suas largas coxas. —
Devemos continuar com esse briefing? Temos muito trabalho para
distribuir.
Marchou para fora do gabinete sem esperar por uma resposta.
Jepsen! Odiava que ela lhe chamasse aquilo. Fazia-o sentir-se como
um adolescente inseguro a ser castigado pela sua irmã mais velha.
Jeppe sentiu um aperto no coração, pensando em como seriam os
próximos dias. Este caso pararia Copenhaga, assim que os meios de
comunicação social dessem com ele.
Conseguia imaginar as manchetes: «Jovem assassinada, abusada
e agredida. Assassino ainda à solta.» Este era um daqueles casos que
a polícia, normalmente, considera largamente exagerados, um caso
do tipo uma-mulher-no-chão-da-floresta, querendo isto dizer
improvável, que acontece sobretudo na ficção criminal. Casos como
este, em que o agressor não está curvado sobre a vítima quando a
polícia chegava, eram, de facto, extremamente raros. Mas existiam. E
este era um deles.
A sala do pessoal estava invulgarmente silenciosa quando Jeppe
entrou. Normalmente ecoavam conversas de todos os lados, e havia
um murmúrio animado, mas os casos realmente sérios afetavam
sempre a boa disposição. Piadas sobre cabeças serradas que serviam
de bolas de futebol faziam parte da linguagem normal do trabalho.
Certos outros tópicos estavam totalmente fora dos limites, como
qualquer coisa que tivesse que ver com crianças, ou casos em que o
agressor se safava devido a negligência dos investigadores ou a
detalhes técnicos. E casos como este. Criminosos e assassinos
violentos normalmente não cortam as suas vítimas enquanto estas
ainda estão vivas. Era muito cedo para adivinhar se estavam a lidar
com um ex-amante sádico ou algo ainda pior, mas, mesmo assim,
um silêncio opressivo pairava sobre a equipa.
A superintendente estava sentada ao lado do detetive Thomas
Larsen, os braços cruzados sobre o peito fardado. Provavelmente
estava vestida para a conferência de imprensa, prestes a começar.
Embora não tenham falado sobre isso, Jeppe sabia que ela iria tentar
manter longe do público o padrão do entalhe no rosto da vítima
durante o máximo tempo possível. Quaisquer pormenores que
sugerissem um criminoso seriamente perturbado seriam mantidos
em segredo por enquanto.
Quanto tempo isso lhes daria?
Um dia, no máximo dois, mas isso era melhor do que nada. Os
olhos de Jeppe cruzaram-se com os da superintendente, e sentiu-se
quase de imediato tranquilo e nervoso com a sua presença. Após dez
anos a trabalharem em conjunto, conheciam-se muito bem. Ela
entendia as suas forças, mas também as suas fraquezas. Ambos
sabiam que ela estava a arriscar-se confiando-lhe agora um caso
desta magnitude.
Ele olhou para a sua equipa.
Torben Falck era um dos detetives mais antigos, tinha ficado
gordo e complacente com os anos. Cuidava zelosamente do seu
impressionante bigode grisalho, usava suspensórios de cores vivas e
adorava contar piadas sem graça. Se a Divisão de Homicídios fosse
uma equipa de beisebol, Falck seria um defesa exterior
indispensável. Talvez não fosse o mais rápido, mas era um
investigador sólido e completo.
Sara Saidani, que estava sentada ao lado de Falck, era um enigma
na Divisão de Homicídios. A superintendente trouxera-a da
esquadra de Helsingør há um ano, por causa da sua experiência em
programação e da sua capacidade geral de atuar online —
competências que a tornaram muito mais útil em Copenhaga do que
noutros lugares. Mas Saidani ainda não havia encontrado o seu
lugar entre os novos colegas. Ela tinha um certo charme, com os seus
caracóis escuros e nariz aquilino, mas parecia distante, dizia apenas
o que era necessário, e nunca com um sorriso. O cabelo dela estava
normalmente preso num rabo de cavalo desleixado, o rosto sem
maquilhagem. Era mãe solteira de duas filhas e, como não tinha um
homem na sua vida, Ane�e insistia em que Saidani devia ser lésbica.
Isso não era considerado importante para Jeppe. Saidani e Falck
eram bons nos seus trabalhos e recetivos; encaixavam bem o
suficiente. O único com quem ele tinha um problema era Thomas
Larsen. Era um jovem detetive, famoso por parecer um modelo de
um anúncio a calças de ganga. Tinha um diploma universitário da
Copenhagen Business School, e era investigador na sede há apenas
seis meses. Ainda assim, parecia pronto para avançar a uma
velocidade interestelar. Havia algo de indecoroso na ambição de
Larsen, uma crença provocadora na sua própria infalibilidade, que
Jeppe tinha dificuldade em suportar. Ele tentara diligentemente
colar a alcunha de Bu�erfinger, como o chocolate recheado de
manteiga de amendoim, a Larsen, mas os seus colegas, que não eram
maliciosos, não tinham mordido o isco. E, infelizmente, a manteiga
de amendoim parecia ser o sabor preferido da superintendente.
Ane�e pigarreou de forma encorajadora do seu lugar habitual
junto à parede.
Os olhos dos detetives atingiram Jeppe como holofotes num
auditório escuro, e ele sentiu uma pontada de medo do palco. Agora
cabia-lhe fazer justiça a uma jovem brutalmente assassinada.
— Certo — começou, da frente da sala do pessoal. — Já todos
sabem que o corpo encontrado na Klosterstræde, número doze, foi
identificado como sendo de Julie Stender. Estamos no processo de
localizar os seus parentes mais próximos. Até novo aviso, iremos
reunir-nos aqui diariamente, logo após o final de cada turno de
serviço, às oito horas da manhã e às quatro da tarde, além de outras
vezes, conforme necessário. Cada um deverá manter os outros
informados acerca dos desenvolvimentos. Vamos reunir toda a
papelada e fotosno meu gabinete e de Ane�e. Vou pedir a um dos
assistentes para nos preparar um quadro informativo. No vídeo
informativo, solicitaremos apoio das outras esquadras para fazer um
interrogatório de porta a porta e ao longo da Klosterstræde, para que
possamos recolher quaisquer declarações de testemunhas enquanto
estiverem frescas na mente das pessoas.
Jeppe levantou a voz acima dos sons de barulhos de papel e
toques nos teclados.
— Falck — continuou —, regressa ao hospital e fala com Gregers
Hermansen, se ele conseguir falar. Depois, faz uma visita aos
proprietários do café na Klosterstræde, número doze. São dois
jovens, a secretária tem os seus nomes. Foram eles que encontraram
Gregers Hermansen deitado em cima do corpo de Stender hoje de
manhã, e também estão atualmente no hospital sob observação,
devido a choque. Tanto quanto eu sei, estão bem.
Falck saudou à maneira dos escoteiros, com dois dedos na aba de
um chapéu imaginário.
— Larsen começará a investigar os antecedentes familiares de
Julie Stender, amigos, colegas, parceiros românticos e antigos
colegas de turma. Como sempre, Saidani tratará do Facebook e de
coisas relacionadas com computadores, telefones e redes sociais.
Saidani ergueu os olhos do computador portátil e assentiu,
agitando os caracóis escuros do seu rabo de cavalo. Larsen manteve-
se sentado em silêncio, os braços cruzados sobre o peito.
— Werner e eu iremos notificar os pais da vítima, e depois
faremos outra visita a Esther de Laurenti. A autópsia terá lugar
amanhã de manhã. Nós também vamos tratar disso — disse ele,
olhando para a parceira. — Temos polícias em Copenhaga e no sul
da Suécia à procura de Caroline Boutrup e da sua amiga — Jeppe
passou discretamente o peso de uma perna para a outra para aliviar
a região lombar. — E precisamos de alguém para verificar as
câmaras de vigilância no local. Os bancos, lojas 7-Eleven, em frente à
farmácia, e assim por diante. Quem está disponível?
Falck fez outra saudação à maneira dos escoteiros.
O toque do telemóvel de Ane�e quebrou o ambiente intenso na
sala do pessoal; ela atendeu sem sair da sala. Jeppe e a equipa
esperaram enquanto ela berrava as suas respostas tensas.
Meio minuto depois, desligou e olhou para eles com ansiedade.
— Era da polícia da Jutlândia Central e Ocidental. Foram a casa
da família, em Sørvad, mas não estava ninguém lá. Adivinha onde o
vizinho diz que estão?
Provavelmente não fazia sentido adivinhar.
— Copenhaga! — gritou, pegando no casaco enquanto se dirigia
para a porta. — Mas que raio fazem eles em Copenhaga agora! Vão
ficar no Hotel Phoenix. Vamos lá, Jeppe! Vou ligar para a receção
para saber se estão no quarto. Caso contrário, tenho o número de
telefone do pai.
Ela já estava fora da sala antes que Jeppe conseguisse dizer uma
palavra.
* * *
Bredgade, a mais chique das avenidas de Copenhaga, estava a
zumbir com o trânsito lento do meio-dia. Ane�e estacionou o carro
na esquina e caminharam à chuva miudinha até ao hotel. Um grupo
de turistas japoneses havia-se armado de guarda-chuvas e,
estranhamente, as mulheres usavam luvas brancas, voltando aos
felizes dias do Electric Boogie dos anos 1980. É claro que os turistas
japoneses poderiam estar a caminho de uma batalha de dança, mas
ela duvidava disso. Jeppe abriu a porta de vidro com acabamento
dourado do Hotel Phoenix, e entraram.
O átrio do hotel parecia um merengue virado do avesso, lustres
de cristal com gotas de diamante, e pesadas cortinas de brocado a
emoldurar as janelas. Ane�e detestava este tipo de decoração
decadente e olhou para uma fonte no meio do chão de mármore
branco com desagrado.
Sentiu-se tensa e reticente, e um pouco distraída. Svend e ela
haviam decidido há muito tempo não terem filhos, mesmo que todos
ao seu redor se reproduzissem como se não houvesse amanhã. Eles
referiam-se aos seus três border collies como os seus meninos, e não
sentiam que estavam a perder alguma coisa nas suas vidas. Mas,
ainda assim, sabia que não havia dor maior na vida do que a perda
de um filho, e aqui estava ela a caminho de infligir a alguém
exatamente essa dor.
O pessoal do hotel, a pedido dela, pediu ao Sr. e à Sra. Stender
para permanecerem no seu quarto sem maiores explicações. Ane�e e
Jeppe subiram ao segundo andar, encontraram o quarto 202 e
bateram à porta. Um segundo depois, uma mulher pequena e
elegante, com cabelos grisalhos curtos, abriu a porta. Acenou-lhes
com a cabeça, gravemente. As rugas de preocupação na sua testa
pareciam uma marca de casta hindu sobre os óculos de madrepérola.
Recuou para dentro do quarto de hotel para que Jeppe e Ane�e
pudessem entrar.
Christian Stender estava sentado numa poltrona de seda,
segurando a cabeça nas mãos. Desabotoara os botões de cima da
camisa, de modo que eram visíveis um tufo de pelos grisalhos no
peito e a parte de cima de uma barriga considerável. Um par de
sapatos de couro bem gastos, a precisar de serem engraxados, estava
ao lado da sua cadeira, dando sinal de um proprietário que
valorizava o conforto em vez do estilo. Levantou a cabeça e, ao ver as
suas visitas, olhou para baixo novamente. O rosto dele estava
coberto de gotas de suor, os olhos pequenos e avermelhados. Este
homem ou estava petrificado ou a sofrer de uma gastrite grave.
— Christian começou a sentir-se mal quando a rececionista ligou
para dizer que a polícia queria conversar connosco — explicou a Sr.ª
Stender, torcendo as mãos num gesto caricatural de preocupação. —
Ele está convencido de que algo aconteceu à Julie. A minha... hum,
enteada. Ela não tem atendido o telefone. Eu tentei tranquilizá-lo,
mas ele não quer ouvir. Isto é sobre o roubo da empresa, certo? Não
é sobre Julie? 
Ane�e e Jeppe trocaram um olhar, nenhum deles
particularmente ansioso por confirmar o pior. Ela assentiu para ele,
grata pela divisão de trabalho, depois deslizou para a parede de
onde podia observar o rosto de ambos os pais.
— Infelizmente — disse Jeppe —, não estamos aqui para falar
sobre um roubo — clareou a garganta, a voz inesperadamente
nervosa. — Eu lamento muito. Temos más notícias. Viemos por
causa de Julie. 
Christian Stender ergueu os olhos da poltrona com as pupilas
pequenas como as de um viciado em heroína. Tudo nele congelou
em antecipação. Ane�e tentou analisar a sua expressão em busca de
sinais ocultos, mas viu apenas o terror de um pai confrontado com o
seu pior medo.
Jeppe continuou de forma hesitante.
— Lamento muito ter de informar que...
Não se adiantou mais antes de Christian Stender começar a
berrar como um louco. Ele colapsou, caiu da poltrona de seda e
acabou meio ajoelhado, enquanto gritava. O seu rosto estava
angustiado; os cabelos como um véu fino sobre o seu couro cabeludo
brilhante. Parecia um cantor de ópera a desempenhar a sua grande
cena de tormento e desespero. 
Ane�e observou esses fatores, tão calmamente como se estivesse
a assistir a um teatro amador. O medidor de empatia não se mexeu.
Que diabo havia de errado com ela? Ou com ele?
— Encontrámos o corpo de uma jovem no apartamento de Julie e
de Caroline — continuou Jeppe, hesitante, entre os gritos do pai. —
Lamento informar que é o corpo de Julie. Ainda precisamos de
concluir... algumas investigações antes de a identificação ser oficial,
mas não achamos que haja alguma dúvida.
Procurou os olhos de Ane�e, e assentiram um para o outro.
Ainda não é necessário mencionar a autópsia ou a verificação
dentária.
— Lamento imenso... — começou Jeppe, mas não conseguiu
concluir.
Christian Stender estava encolhido no chão. A sua esposa estava
atrás de uma cadeira, a olhar para ele, enquanto agarrava a borda do
estofo.
— Podemos ter um momento a sós? — perguntou lentamente
Ulla Stender, com uma autoridade inesperada. — Sei que
provavelmente precisaremos de ir à esquadra ou o que for, mas
poderiam dar-nos um momento para nos recompormos? Sozinhos?
— Vamos esperar no átrio — disse Ane�e enquanto Jeppe
caminhou até à porta. — Levem o tempo de que precisarem.
Saíram juntos para o corredor, ansiosos por fugir do quarto
abafado e se afastarem da emoçãointensa deles. Nenhuma das suas
condolências parecia adequada, por isso não disseram mais nada.
Ane�e fechou a porta atrás deles. A última coisa que viu antes de a
porta se fechar foi a mulher a aproximar-se do marido, os braços
estendidos.
CAPÍTULO 5
— Quer que carregue num botão? Para que andar?
A mulher calva com um suporte para soro mostrou um sorriso
amigável, o dedo a pairar no ar diante dos muitos botões do
elevador.
— Catorze — disse Esther, devolvendo o sorriso. — Muito
obrigada.
As portas fecharam-se. Ela perscrutou o cérebro por algo para
dizer — talvez apenas um comentário sobre o tempo —, mas então
apercebeu-se de que não sabia quando a mulher tinha estado no
exterior pela última vez. Por isso, ficou calada, cuspindo
discretamente sobre a ponta dos dedos, tentando esfregar os últimos
vestígios da tinta para impressões digitais com um lenço enrolado
que retirou do bolso. O técnico da cena do crime tinha explicado
como a Dinamarca era um dos poucos países do mundo que ainda
usava tinta, em vez do moderno sistema de digitalização que o resto
do planeta havia adotado há muito tempo. Mesmo países como a
República Centro-Africana estavam à frente da Dinamarca, explicou
ele, enquanto passava os dedos sobre o bloco de tinta e o papel. Um
tipo estranho. Ela esfregou as mãos com uma escova de unhas logo
depois, mas a tinta não saiu.
À primeira vista, a enfermaria dos cuidados intensivos cardíacos
do Hospital Nacional da Dinamarca não parecia o lugar mais
animador para se estar, mesmo que o sofrimento omnipresente
estivesse um pouco camuflado com uma variedade heterogénea de
pósteres nas paredes. As pessoas usam sempre as cores mais alegres
em lugares onde se perde toda a esperança. Havia até um anúncio
pendurado ao lado do elevador a propósito de um concerto dado
pelo ex-chefe de polícia, prometendo oito peças do cancioneiro
folclórico dinamarquês com acompanhamento ao piano.
Será que o humor dos pacientes melhora de facto com o entretenimento
compassivo que nenhuma pessoa saudável toleraria durante cinco minutos?,
pensou Esther ao entrar na enfermaria 3-14-2.
Encontrou o quarto do paciente certo e parou junto à porta
aberta. A primeira das duas camas lá dentro estava vazia, mas
Gregers Hermansen estava deitado na outra, com o rosto voltado
para a janela.
— Olá, Gregers — disse Esther, após bater à porta de forma
hesitante.
Sem se virar, os ombros dele começaram a tremer por causa do
choro. Como uma criança que tem suportado a dor até a sua mãe
chegar por fim para cuidar do seu cotovelo esfolado, e as lágrimas
terem uma audiência. Esther permaneceu à porta, a lutar contra o
impulso de fugir do quarto sombrio e triste do hospital. Reuniu
forças e caminhou para junto dele.
— Sou só eu — disse ela.
Gregers deixou as lágrimas fluírem livremente. Ela pegou na mão
dele e ficou ali em silêncio, até ele se acalmar.
Coitado do meu amigo, pensou, cheia de pena deste homem que
conhecia há vinte anos, mas que, na verdade, mal conhecia. Nunca
tinham sido realmente amigos, apesar de viverem sob o mesmo teto
há tanto tempo. Naquele momento, isso parecia um desperdício.
Esther puxou uma cadeira, desabotoou o casaco e depois segurou
a mão de Gregers novamente. Queria dizer-lhe algo reconfortante,
mas tudo lhe parecia errado. Então, em vez disso, sentou-se
simplesmente e ficou a ouvi-lo chorar, sentindo-se inadequada e
desorientada. Precisava de férias e de um copo de vinho tinto.
Precisava de acalmar a sua mente. De não pensar mil pensamentos,
todos eles redundando em atalhos. De não se lembrar de quando —
aparentemente, há mil anos — fora ela quem chorara deitada numa
cama de hospital. Nessa altura, não tinha tido ninguém que lhe
segurasse a mão.
Apercebeu-se de que estava a apertar a frágil palma da mão dele
com muita força e afrouxou o aperto, dando-lhe palmadinhas na
mão de forma desajeitada. As lágrimas dele diminuíram lentamente.
— Quem... — começou ele, vacilante, na voz de um homem que
morava sozinho. Esther inclinou-se para mais perto e concentrou-se
em ouvi-lo.
— Quem. É. Ela? — disse ele. Estava tão rouco que, a princípio,
não entendeu o que estava a perguntar-lhe. Clareou a garganta com
impaciência e apontou para o jarro de água de plástico. Esther
derramou um pouco num copo usado e deixou-o beber, encheu-o
novamente e esperou até que ele estivesse pronto.
— Eu caí por cima de um... corpo — gaguejou. — Havia sangue
nas paredes. A polícia não me disse nada — Gregers parecia
encovado, decrépito; de repente, ela percebeu que via nele um velho
e se via a si mesma como... qualquer coisa de diferente.
— Não sei quem era, Gregers — disse ela. — A polícia ainda não
está pronta para divulgar nada.
— Ela estava morta? Quando eu... a encontrei. Estava morta?
Claro, pensou ela. É disso que ele tem medo! Está angustiado de que
pudesse tê-la salvado. Será que a polícia não teve nenhuma consideração por
ele?
— Gregers, escute — disse Esther com autoridade. — Ela estava
morta há muito tempo quando chegou lá. Não havia nada que
pudesse fazer, ouviu? — na verdade, não sabia quando a rapariga
tinha morrido e não sabia de nenhum detalhe específico. Mas não
viu razão para não o tranquilizar como pudesse.
Sem aviso, sentiu um aperto no estômago, rápido como uma
tonelada de tijolos a cair. A névoa da ressaca que andava a sentir
durante todo o dia subiu repentinamente quando o foco foi desviado
de si mesma. Um crime no meu prédio, pensou. Oh, que coisa horrível!
Demasiado horrível para banir a ideia da minha cabeça. A garganta
apertava. Isto aconteceu mesmo? E porquê?
— Porquê? — perguntou Gregers com olhos suplicantes, sem
saber que os seus pensamentos ecoavam os dela.
Esther sentiu uma pontada aguda de culpa, mas ignorou-a.
Deve ser uma coincidência. Uma coincidência macabra e remota.
O pai dela liga-lhe todos os dias. Às vezes, responde, hoje deixa o
telefone tocar; simplesmente não consegue encará-lo. Sente falta da
mãe, cuja doença e morte a deixaram num estado de saudade
permanente. Saudade de ser vista e amada pelo que realmente é,
saudade de ouvir de novo as palavras tranquilizadoras da sua mãe.
Tu serás sempre a minha Criança Estrela, dizia a mãe dela, e eu irei
sempre ajudar-te a suportar os fardos da vida. Agora ela suporta os
fardos sozinha. O pai dela não a pode ajudar com isso. Ele acha que
ela ainda é a sua menina inocente. 
Arruma a toalha e os livros no cesto da bicicleta e atravessa a
ponte Knippelsbro. As ruas estão desertas no calor do meio-dia.
Prende a bicicleta a uma estrutura no troço da estrada plana que leva
ao aeroporto, Amager Strandvej, põe o cadeado e caminha até à
praia, com o cesto a roçar as coxas nuas. Tira uma selfie na ponte de
madeira e posta a foto no Instagram.
A praia está cheia de corpos seminus em posições meio
derretidas. Ela encontra um canto para pousar as suas coisas e
despe-se lentamente, ciente de todos os olhos atentos ao seu
striptease. Prolonga o momento, até ficar de biquíni e óculos de sol.
Estica-se e olha de esguelha para todas as pessoas através das lentes
escuras. 
Um careca fica imóvel, deixando o gelado derreter sobre os dedos
enquanto a devora com os olhos. Velho tarado. Olha em direção ao
horizonte, distante e inatingível, e inclina-se para o cesto com as
pernas esticadas para pegar no protetor solar. Aplica-o lentamente
no corpo todo perante os muitos olhares colados nela. 
Mas há um par de olhos que ela não vê. Um par de olhos
escondidos atrás de uns óculos de sol, observando o corpo dela
como se lhes pertencesse. Como se a pele dela fosse uma tela. Se ela
ao menos reconsiderasse o que está a fazer, ainda teria tempo para o
impedir.
Só que não o faz.
CAPÍTULO 6
A sala de interrogatório tipo bunker número seis não era
propriamente uma suíte júnior, mas, mesmo assim, Jeppe sentia-se
mais confortável nesse ambiente oficial do que na sala sombria do
Hotel Phoenix. 
Os detetives haviam chegado à sede com os Stenders há meia
hora, e agora Christian Stender estava a segurar a mão da sua
esposa, balançando inconscientementena cadeira e cantando
baixinho para si mesmo. Ane�e estava encostada à parede, no seu
estilo habitual de Philip Marlowe, movendo-se apenas para se
afastar e deixar passar um agente que trouxe chá doce em dois copos
de plástico branco.
Jeppe acenou com a cabeça para o casal, para mostrar que tinham
de prosseguir com o assunto horrível.
— Eu entendo que isto deve ser um choque terrível para vocês —
começou, estabelecendo contacto visual com Ulla Stender, que
piscou os olhos para ele algumas vezes. — Infelizmente, precisamos
de informá-los sobre algumas questões e também fazer algumas
perguntas, mesmo que seja difícil.
Ela assentiu, hesitante.
— Fizemos o que consideramos ser uma identificação cem por
cento positiva, portanto não é necessário que identifiquem
pessoalmente o... corpo. Podem vê-la uma última vez. No entanto, eu
desaconselho. Ela não está parecida com o que era, com a forma
como a conhecem.
Ulla Stender encolheu-se perante estas palavras desconfortáveis;
Christian Stender ficou paralisado.
— Depois, preciso de vos perguntar sobre a autópsia —
continuou Jeppe. — Veem alguma objeção?
Ulla lançou um olhar para o marido e depois abanou a cabeça.
Pedir era essencialmente uma formalidade — o corpo seria
autopsiado, mesmo que dissessem que não.
— Obrigado — disse Jeppe. — Também precisamos de vos
perguntar se conhecem o paradeiro da colega de quarto de Julie,
Caroline Boutrup. Dada a natureza do caso, é urgente localizá-la.
O pai, desolado, fechou os olhos e continuou o seu diálogo
interno. A conversar com o divino, supunha Jeppe. A esposa dele
respondeu.
— Julie não nos conta muita coisa, mas sei pelos pais de Caroline
que ela ia andar de canoa com uma amiga esta semana. Na Suécia,
algures.
Jeppe empurrou um bloco de notas sobre a mesa até ela.
— Escreva por favor o nome de alguma amiga, colega de turma
ou outro contacto que Julie tenha aqui em Copenhaga e em Sørvad.
Precisamos de falar com todas as pessoas que ela conhecia.
Ulla Stender pensou por um momento e escreveu alguns nomes.
— Também precisamos de vos perguntar onde estavam ontem à
noite. É pura rotina. Perguntamos isto a toda a gente, sempre que
têm algo que ver com um caso.
— Ontem à noite, durante a noite? — perguntou Ulla Stender,
tirando os olhos por um instante do bloco de notas antes de
continuar a escrever. — Bem, nós estávamos a dormir no hotel.
Chegámos terça-feira — foi mesmo só ontem? — e encontrámo-nos
com Julie para tomar um café à tarde, num café perto do hotel.
Christian tinha reuniões importantes agendadas para hoje e amanhã,
mas foram canceladas, é claro.
— Não saíram do quarto para ir buscar uma bebida ou algo
assim?
— Não, tínhamos acordado cedo e estávamos exaustos, então
demos uma pequena caminhada no bairro de Nyhavn e depois
voltámos para o hotel. Pedimos o serviço de quarto para jantar em
frente à TV. Acho que já estávamos na cama às onze da noite.
— Como é que vos pareceu que estava Julie quando a viram?
— Bem, parecia igual a si própria. Feliz e contente. Contou-nos
sobre o curso de licenciatura que estava prestes a iniciar. Ficou
agarrada ao telefone a maior parte da hora que passámos juntos,
você sabe como é hoje em dia.
— Eu entendo o quão difícil deve ser falar disto agora, mas
precisamos de saber o máximo possível de coisas sobre a Julie.
Podem falar-nos um pouco sobre ela? — Jeppe perguntou
gentilmente. — Como era ela? O que gostava de fazer? Esse tipo de
coisa.
Ulla Stender olhou para o marido, cujos olhos ainda estavam
cerrados.
— Bem, a Julie é uma menina doce — disse, timidamente. —
Normal, sabe, feliz... jovem. Gostava de ir a espetáculos, adorava
teatro — a Sr.ª Stender procurou as palavras que queria, mas não
conseguiu partilhar muito mais.
— Conseguem pensar em alguém que pudesse querer magoá-la?
Ela abanou a cabeça, ofendida.
— E alguém que pudesse querer magoar algum de vocês?
Magoar-vos através de Julie?
Ela abanou a cabeça novamente.
Jeppe olhou para a mesa para lhe dar um momento para assoar o
nariz.
— Christian teve alguns atritos com parceiros e clientes, mas
nunca nada que não pudesse ser resolvido com um jogo de golfe. E
não acredito que alguém tenha pensado em prejudicar Julie por algo
assim. Quero dizer, isso é uma loucura!
— Há quanto tempo conhece Julie? — perguntou Ane�e,
aproveitando uma pausa de onde estava encostada à parede. —
Quando é que você e Christian casaram?
As sobrancelhas de Jeppe lançaram um sinal para Ane�e de que
não deveria interromper, mas ela não reparou.
— Em março de 2004 — respondeu Ulla Stender, os olhos
errantes inquietos. — Julie cantou para nós. Fly on the Wings of Love.
Tinha apenas nove anos! Toda a gente ficou tremendamente
impressionada.
Christian Stender choramingou e cobriu os olhos com as mãos. A
sua esposa continuou, vacilante.
— Julie era apenas uma criança quando fui contratada pela
empresa de Christian, e conheço a família há todos esses anos.
Depois de a mãe de Julie... falecer — tinha um cancro —, eu e ele
aproximámo-nos. E, bem, depois acabámos por casar. Espero que
por esta altura Julie me veja como sua mãe. Ou me visse... — Ulla
Stender estava com gotas de suor no lábio superior e brincava com o
colar.
— Quando é que a mãe de Julie morreu? — perguntou Ane�e,
ainda não preparada para dispensar Ulla Stender.
— Irene morreu em 2003 — respondeu Ulla —, mas já estava
doente há muito tempo. Christian estava completamente desgastado
por estar no hospital. Foi uma época terrível.
Especialmente para Irene, pensou Jeppe. Claramente, Ulla Stender
estava habituada a ter de defender o seu casamento. Terá havido
alguma intriga na pequena cidade de Sørvad quando Stender se
casou com a sua secretária, apenas cinco minutos depois de a sua
esposa ter sido enterrada? Ulla Stender parecia uma criança pequena
que quer rastejar para debaixo da mesa para se livrar da atenção
indesejada.
— Há quanto tempo mora Julie em Copenhaga? — Jeppe mudou
de assunto e lançou um olhar de aviso para Ane�e.
— Seis meses — respondeu Ulla. — Mudou-se para cá em março
para se instalar no apartamento e arranjar um emprego em part-time
antes do início das aulas, no outono.
— Ela foi... violada? — a voz crua de Christian Stender cortou a
sala como um garfo num prato. Violação, a pior coisa que um pai
poderia imaginar para a sua filha.
— Não havia sinais imediatos de agressão sexual — Jeppe ficou
sentado imóvel e observou o casal enquanto falava. — Mas o
agressor usou uma faca.
O pai exalou pesadamente e baixou a cabeça outra vez.
— E receio que a tenha cortado... — disse Jeppe, ignorando o
olhar penetrante no rosto de Ane�e. — Não sabemos porquê, ou
exatamente como, mas alguns dos atos de violência ocorreram antes
da morte — continuou. — Lamento muito ter de vos contar isto. Se
têm alguma ideia do que isso possa significar, é importante que a
partilhem connosco.
Ulla Stender colocou as mãos sobre a boca e abanou a cabeça, em
choque.
— Temos uma equipa no Hospital Nacional que está à vossa
disposição para oferecer apoio psicológico, se quiserem... Eu tenho o
número aqui.
Christian Stender ergueu a cabeça, os olhos bem abertos. O seu
rosto ficou da mesma cor pálida da parede atrás dele. E depois
vomitou.
Tiveram de interromper o interrogatório e colocá-lo num sofá
com um balde à frente, mas quando perdeu a consciência, entre dois
vómitos, colocaram-no numa posição de recuperação no chão e
chamaram uma ambulância. A sua esposa estava a respirar de forma
ofegante, como se tivesse acabado de subir uma escada íngreme.
Antes que as portas da ambulância se fechassem, Jeppe conseguiu
avisá-la de que a polícia precisaria de falar com eles novamente.
— Mas qual é o teu problema? — protestou Ane�e, quando a
ambulância se afastou da berma do passeio.
— O que queres dizer?
— Por que razão contaste a estas pobres pessoas que o criminoso
cortou a filha deles quando ela ainda estava viva? Isso é totalmente
inapropriado. Não costumas ser tão insensível.
— Precisamos de saber se isso significa alguma coisa — protestou
Jeppe.
— Sim, mas pelo

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