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0 INSTITUTUM SAPIENTIAE ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS CURSUS PHILOSOFIAE GABRIEL HUDSON SOUZA DE OLIVEIRA SUMA TEOLÓGICA, PARTE I, QUESTÃO 87, ARTIGO 3: O INTELECTO CONHECE O PROPRIO ATO? ANÁPOLIS – GO 2020 1 INSTITUTUM SAPIENTIAE ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS CURSUS PHILOSOFIAE GABRIEL HUDSON SOUZA DE OLIVEIRA SUMA TEOLÓGICA, PARTE I, QUESTÃO 87, ARTIGO 3: O INTELECTO CONHECE O PROPRIO ATO? Seminário de Filosofia antropológica, apresentado ao Professor Padre Doutor, Titus Keninger para obtenção de nota parcial na disciplina. 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 3 2 SÃO TOMÁS DE AQUINO E A SUMA TEOLÓGICA ................................................... 4 2.1 A SUMA TEOLÓGICA E O PENSAMENTO HUMANO ............................................. 5 3 I PARTE, QUESTÃO 87, ARTIGO 3 ................................................................................. 7 3.1 Sed Contra ........................................................................................................................ 8 3.2 Corpo do Artigo ................................................................................................................ 9 3.2.1 Tipos de Intelecto ................................................................................................... 11 3.3 Objeções e Respostas ...................................................................................................... 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 16 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 18 3 1 INTRODUÇÃO Se alguém sai de Anápolis com destino a Goiânia, precisará fazer um trajeto que leva cerca de 30 a 40 minutos de viagem. É a passagem de um ponto A, a um ponto B. De igual modo, o nosso conhecimento é a passagem do objeto não conhecido (A) ao conhecimento do objeto através da abstração (B). O presente trabalho fundamenta-se na questão 87 da primeira parte da Suma Teológica de Tomás de Aquino, artigo 3, que nos apresenta a seguinte questão: O intelecto conhece seu próprio ato? Quando a pessoa do supracitado exemplo chegar a Goiânia, estará consciente de que fez um caminho até aquele lugar. Será que o intelecto é capaz de conhecer o caminho pelo qual um objeto desconhecido tornou-se presente a ele de modo essencial? Em outras palavras, o intelecto conhece a operação que há entre o objeto desconhecido (A) e o objeto agora conhecido (B)? De início fazemos um breve relato histórico de Santo Tomás de Aquino e de sua Magnum opus a Suma Teológica. Nosso enfoque dentro da Suma é o conhecimento, a faculdade do intelecto, por isso apresentamos de modo superficial alguns conceitos importantes na filosofia epistemológica do doutor angélico, antes de nos aprofundarmos na primeira parte da Suma, conquanto trata do homem, especificamente a questão 87, artigo 3. A análise que fazemos do artigo parte da compreensão da questão levantada pelo aquinate, passa pelo sed contra à luz da doutrina de Santo Agostinho que é retomada na Suma e clarificada. O corpus do artigo é explicitado minuciosamente e faz-se uma divisão acerca do conhecimento nos diferentes tipos de intelecto. Por fim, apresentamos as objeções junto de suas respectivas respostas, o caminho pedagógico de Tomás de Aquino que conduz à plena verdade os errantes das mais diversas margens do conhecimento. 4 2 SÃO TOMÁS DE AQUINO E A SUMA TEOLÓGICA À biografia de Santo Tomás de Aquino não está feita justiça se a encontramos somente em brochuras e panegíricos, Sertillanges em sua obra intitulada “As Grandes Teses da Filosofia Tomista” aponta tal injustiça feita ao santo mas dá causa de sua existência, A vida de Santo Tomás de Aquino está na sua doutrina, anda encarnada nas suas ideias; por conseguinte, se lhe dominarmos as suas ideias, dominamos o homem todo, mesmo o homem adormecido, porque Santo Tomás até dormindo ditava. Pensa; pensa continuamente.1 Assim, é breve o relato de cunho biográfico que fazemos por ocasião deste trabalho, para que melhor possamos nos atentar e dedicar à doutrina do grande doutor angélico. Tomás de Aquino, filho de Landolfo e de Teodora, nasceu em Roccasecca, no Sul de Lácio no ano de 1221. Em Nápoles, na universidade, Tomás teve contato com a ordem dos dominicanos, da qual foi um dos primeiros membros, sua motivação foram as novas formas de vida religiosa livres de interesses mundanos. Apesar da oposição de sua família, sua decisão de ingresso na ordem permaneceu firme. Seu grande potencial intelectual, apesar de sua postura reservada e silenciosa, foi logo descoberto e aclamado. Tomás foi indicado por seu mestre Alberto Magno à carreira acadêmica em 1252, na Universidade de Paris, desde então, fez grandes progressos intelectuais e foi se destacando dentro da Ordem Dominicana e perante a Santa Igreja, de modo que sempre era solicitado para combater doutrinas heréticas. Sua postura sempre foi de admissão da própria pequenez, não se vangloriava de suas obras, isto fica claro no diálogo descrito por Giovanni Reale e Dario Antiseri, em sua obra “História da Filosofia, vol. 2”2, obra que fundamenta esta breve biografia, Tomás dizia a seu fiel amigo e secretário Reginaldo de Piperno “Raynalde, non possum, quia omnia quae scripsi videntur mihi paleae3” e como persistisse seu assistente para que prosseguisse com a composição da Suma Teológica, Tomas dizia ainda: “Videntur mihi paleae respectu eorum quae vidi et revelata sunt mihi4”. 1 SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. As Grandes Teses da Filosofia Tomista. Tradução: L. G. Ferreira da Silva. Braga: Livraria Cruz, 1951, n. 8. 2 Cf. ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da filosofia: patrística e escolástica, v. 2. São Paulo: Paulus, 2003, p. 212. 3 “Reginaldo, não posso, porque todas as coisas que escrevi me parecem inépcias”. 4 “Parecem-me inépcias em relação às coisas que vi e que me foram reveladas”. 5 A morte o surpreendeu sem que pudesse concluir sua obra. Tomás de Aquino faleceu em 7 de março de 1274, quando passava pelo mosteiro cisterciense de Fossanova, em direção a um Concílio para o qual havia sido convocado pelo Papa Gregório X. 2.1 A SUMA TEOLÓGICA E O PENSAMENTO HUMANO Tomás expõe já no prologo de sua Suma Teológica o que com a obra pretende, expor a doutrina cristã de acordo com a “ordem da disciplina”, essa é a interpretação do que diz Chenu na tradução feita por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, para a Universidade Federal de Uberlândia, há segundo Nascimento uma tríplice característica: expor concisa e abreviadamente o conjunto de um domínio cientifico; temas organizados sistematicamente; fazer uma obra que esteja adaptada aos estudantes; destes três intentos, o que se tem na Suma Teológica é uma obra enciclopédica, sinteticamente ordenada e de alcance pedagógico5. A Suma Teológica é dividida em três partes, seja por sua grande extensão, seja pela divisão temática desejada por Tomás, é uma obra de grande dimensão e os números impressionam, são 38 tratados, 512 questões, 2.669 artigos que são compostos por mais de 10.000 ideias6. Uma das características mais impressionantes é o avanço da obra, respondia às questões do tempo de sua composição e permanece respondendo novos questionamentos que são levantados ainda hoje. Por ocasião deste trabalho, damos enfoque às tratativas que o doutor angélico faz acerca doconhecimento, encontradas na parte da Suma que fala sobre o homem, sua psicologia filosófica, a este tema são dedicadas as questões 75 a 102. Nos aprofundamos na questão 87, artigo 3. Mas para introduzir-nos na temática, é bom saber em linhas gerais o que na Suma Teológica se entende por conhecimento. Para Santo Tomás a alma não é um ser completo que se encontra unido acidentalmente ao corpo, mas é unidade com ele, assim, as faculdades da alma estão de certo modo, ligadas ao corpo dentro da unidade de corpo e alma. Sendo o intelecto, responsável pelo conhecimento, uma faculdade da alma, ele dependerá da materialidade do corpo, composto dos seus sentidos externos que serão para o intelecto, como que uma porta para toda a realidade que está à sua volta. 5 Cf. AQUINO, Tomás de. Suma de Teologia: Primeira Parte – Questões 84-89. Tradução: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2016, p. 9 6 KIENINGER, Titus. O Método no artigo da Suma Teológica de S. Tomás, Homem de diálogo e “Mestre de todos” (Leão XIII). Sapientia Crucis. Anápolis: Institutum Sapientiae, 2004, p. 234. 6 Para Tomás, conhecer é, no fim do processo, possuir a forma de outro ser, segundo Sertillanges, é justamente esta “invasão” do externo na nossa interioridade que nos comunica a nossa própria consciência7. Por isso surge a pergunta: o homem saberia que existe se não pensasse e nem sentisse? A Teoria do Conhecimento de Aquino parte da premissa de que conhecer é, a partir do processo de apreensão, possuir em si a forma do objeto que é conhecido. Este objeto nos chega primeiramente pelos sentidos externos, comunicam-se nos sentidos internos, até formarem em nós as impressões internas e a intelecção completa desse objeto. A realidade ganha uma “nova existência” dentro do homem. Cabe-nos já dizer que o tema principal que aqui tratamos não se funda na relação sujeito e objeto, mas na relação entre sujeito conhecedor, objeto conhecido e ato pelo qual se deu o conhecimento. 7 SERTILLANGES, 1951, n. 26. 7 3 I PARTE, QUESTÃO 87, ARTIGO 3 A questão 87 da primeira parte da Suma Teológica traz a seguinte tratativa: Como a alma intelectiva se conhece a si mesma e àquilo que nela existe?8 O que aqui Santo Tomás busca esclarecer é sobre a capacidade de autoconsciência do intelecto, se ele conhece a si mesmo e conhecendo-se, se é capaz de conhecer o que nele está. Para responder a essas questões, Santo Tomás de Aquino propõe quatro artigos: primeiro, se a alma intelectiva se conhece a si mesma pela sua essência; segundo, se o nosso intelecto conhece os hábitos da alma pela essência deles; terceiro, se o nosso intelecto conhece o ato próprio; e quarto, se o intelecto conhece o ato da vontade. Por ocasião desta pesquisa, dá-se comento ao terceiro artigo, em que Aquino propõe o seguinte: “parece que o intelecto não conhece o próprio ato”9, ou de outro modo, que o intelecto que é responsável pelo conhecimento das coisas não é capaz de realizar sua operação sobre o seu próprio ato de conhecimento. O fato de que o tema do artigo se inicie com o “Utrum sit...”, isto é, “parece que...” é uma forma pedagógica que Aquino aplica em seus artigos de modo a convencer o outro a manifestar com sinceridade sua própria opinião sem dar ainda algum parecer, método que ele aprende de seu mestre Aristóteles10. Usemos um exemplo para tornar mais claro a nós o tema do artigo 3 da questão 87: Se para a aula o professor traz uma caixa fechada e pergunta aos alunos: “Alguém sabe o que há dentro desta caixa?”, todos responderão que não sabem. Assim, tem-se que seus intelectos não conhecem ainda qual seja o objeto que há dentro da caixa. O professor então tira da caixa uma tesoura, um ente concreto, constituído de ser e essência, todos os alunos possuem sentidos externos e capacidade intelectiva para conhecer o objeto, eles sabem o que é uma tesoura e a reconhecem, tem dentro de si sua forma. Agora todos conhecem o conteúdo da caixa, o professor guarda o objeto e repete a pergunta: “vocês sabem o que há dentro da caixa? ” ao que todos respondem “sim!”. O professor então provoca-os com mais uma pergunta: “como vocês conheceram o conteúdo da caixa?”, “o senhor nos mostrou!” algum aluno responde, todos assentem em silêncio. “Como sabem que conhecem o objeto dentro da caixa?” o professor insistiu. Como dessa vez ninguém respondesse ele prosseguiu: “Vocês primeiro viram, guardaram a imagem, identificaram o objeto, em outras palavras, conheceram-no”. 8 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, vol. 2, 2º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. I, q. 87. 9 ST, p. I, q. 87, a. 3. 10 Cf. KIENINGER, 2004, p. 245. 8 E prosseguiu dizendo: “Quando vocês não conheciam o objeto dentro da caixa estavam em um ponto (A), agora que eu mostrei o que há na caixa e vocês o conhecem estão em um ponto (B), o que há entre o ponto (A) e o ponto (B) é o processo pelo qual o objeto se lhes tornou conhecido, mas não se trata de um terceiro ponto, porque o ato do conhecimento não é transitivo, o ato pelo qual vocês conhecem que conhecem está junto do ponto (B)”. Percebendo que os alunos ainda não haviam compreendido, o professor então apresenta-lhes o artigo da Sumo Teológica que tratamos neste seminário, artigo 3 da questão 87, I parte, para dizer-lhes que o intelecto é capaz de conhecer o próprio ato pelo qual conhece. Para nós, diante do exemplo, parece ser uma assertiva simples e evidente, a que afirma a capacidade do intelecto de conhecer o seu próprio ato, mas Tomás de Aquino em sua época, precisou lidar com diversas objeções para fazer ser conhecida a verdade acerca do conhecimento, sua operação, seu objeto e sua auto percepção, é o que veremos a seguir. 3.1 Sed Contra A riqueza da Suma Teológica é a amplitude de assertivas acerca das temáticas tratadas. Tomás não teme as opiniões em contrário ao que toma por verdadeiro, mas apresenta- as de modo esclarecido e opõe uma ou mais objeções a elas, essas objeções contrarias consistem nos pensamentos de autoridades da Igreja de até então ou de filósofos cuja doutrina estivesse de acordo com a verdade objetiva. Essa parte encontrada nas questões da Suma é chamada Sed Contra, isto é, em sentido contrário, lendo-a torna-se a nós conhecido de modo breve a resposta que Aquino dará ao artigo11. Com tal divergência, torna-se possível o debate, há uma posição, uma oposição e a busca pela verdade, tão característica do doutor angélico. Isso é o que dá a segurança assertiva à resposta que logo se subseguira na questão. No artigo que aqui tratamos não é diferente, após levantar a questão acerca da possibilidade de que o intelecto conheça o próprio ato de conhecimento, Tomás aponta três opiniões segundo as quais a resposta seria negativa, em outras palavras, respostas das quais se depreende que o intelecto não conhece o próprio ato de conhecimento. O que é levantado em sede de Sed Contra é a afirmação de Santo Agostinho, encontrada no livro De Trinitate, da qual Tomás cita: “Eu conheço que conheço”12, atestando 11 Cf. KIENINGER, 2004, p. 254. 12 ST, p. I, q. 87, a. 3, s.c. 9 da capacidade auto reflexiva do intelecto. Falando do conhecimento acerca de si mesmo, Agostinho afirma que: [...] quando se diz: “conhece-te a ti mesma”, no mesmo ato em que ela entende: “ti mesma”, ela se intui e não por outra razão do que pelo fato de estar presente a si mesma. Mas se não entende o que é dito, também não realiza o ato. Uma vez tendo sido imposto o preceito de se conhecer, e ela o tendo entendido, passa logo a executá-lo e a conhecer-se. (De Trinitate, Livro X, cap. 9, n. 12) Assim atese do grande autor patrístico foi reafirmada na ideia que Tomás levantará na solução do artigo 3 da questão 87, a de que o conhecimento de determinado objeto é simultâneo ao conhecimento do ato pelo qual este objeto está sendo conhecido13. Santo Agostinho prossegue: Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa. (De Trinitate, Livro X, cap. 10, n. 14) A alma duvida que conhece, mas só pode ter certeza da dúvida porque é capaz de conhecer, assim o intelecto sabe que conhece algo. Como no exemplo, os alunos sabiam já o que havia dentro da caixa depois que o professor lhes mostrou a tesoura, e embora depois de guardada novamente, eles não a vissem, sabiam certamente o que era e conheciam o ato pelo qual ela se tornou conhecida a eles, pois quando o professor tirou o objeto da caixa, eles procederam a abstração de em ente, de uma perfeição, objeto do intelecto humano. 3.2 Corpo do Artigo O corpus do artigo é onde se pensa14! É o momento em que Tomás, desconsiderando toda a polemica passional que envolve a questão, se pronuncia de modo esclarecido, fundamentando filosófico ou teologicamente, de modo católico e cientifico. Nesta argumentação, Tomás parte do mais evidente, passa pelos princípios universais e metafísicos, 13 Cf. ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 14 Cf. KIENINGER, 2004, p. 256. 10 para conduzir o leitor a uma compreensão clara, por isso seu texto se caracteriza pela objetividade e simplicidade15. Para a solução do artigo, Tomás retoma um raciocínio iniciado nos dois artigos anteriores, dos quais ele extrai: “tudo é conhecido na medida em que é em ato”16, assim, tudo o que o intelecto conhece, só o faz em vista de algo que é, só se conhece uma tesoura enquanto ela em ato, é uma tesoura, se fosse apenas a potência de ser uma tesoura, ainda não realizada por exemplo, não seria possível conhece-la. Aqui há também a graduação do ato, isto é, se as partes de uma tesoura se fossem vistas separadas, com a potência de ser tesoura ainda não atualizada, talvez não nos conduziriam ao conhecimento do que viria a ser a união das peças, o ato da tesoura completa, composta de suas partes, é mais perfeito que o ato das partes já fabricadas e ainda não unidas, também o conhecimento dela segue tal graduação, quanto mais perfeito for o ato, mais ele é cognoscível17. Qual a perfeição última do intelecto? Santo Tomás diz que “a perfeição última do intelecto é sua operação”18. Assim, ele torna-se conhecido em sua operação, cuja última perfeição é o ato de conhecer. O intelecto além de operar sobre os objetos que estão externos a ele e em ato, conhecendo-os mais ou menos na medida em que eles se apresentam, conhece sua própria atividade que é também um ato. Aqui a perfeição última do intelecto que é sua própria operação, poderia ser comparada ao exemplo da tesoura, o intelecto que conhece é como a tesoura completa e pronta para uso, na sua perfeição. Entretanto, da tesoura ainda não se poderia falar em perfeição última, talvez ela precise ser amolada, limpa, lubrificada, para chegar a sua plenitude de utilidade, porém do intelecto não se pode esperar ato mais perfeito que o conhecimento, assim é próprio e correto dizer que dele, o ato mais perfeito é a sua operação, a intelecção. O seu ato mais perfeito é sua própria capacidade de conhecimento, que realizado, torna-se também por sua vez, objeto de sua operação cognoscitiva. Quando se toma por causa final o desejo de um edifício construído, far-se-á uma transição da causa final, primeira na intenção e última na execução, à causa eficiente. Do desejo de ter o edifício construído à sua operação de construção, sendo a perfeição última deste ato a conclusão da construção. Entretanto, no exemplo apresentado na Suma Teológica, à operação do intelecto tal lógica não se aplica. 15 Cf. KIENINGER, 2004, p. 256. 16 ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 17 Cf. ST, p. I, q. 84, a. 2, c. 18 ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 11 Para esclarecer esse ponto, convém citar a tradução da Suma Teológica feita pela Edições Loyola, “esta não é uma ação transitiva cuja perfeição é a coisa feita, como o edifício é a perfeição do ato de construir”19, a referida ação do intelecto não é transitiva, não há uma passagem do desejo de conhecer até o objeto conhecido como sendo etapas diversas. O objeto conhecido é a perfeição última do intelecto, mas essa perfeição engloba também o ato pelo qual aquilo se tornou conhecido, “essa operação permanece no intelecto como sua perfeição e seu ato”20, retomando o exemplo, não há no intelecto uma dissociação entre o edifício e sua construção, entre a coisa conhecida e seu processo de conhecimento. 3.2.1 Tipos de Intelecto Ainda dentro do corpus, Tomás apresenta uma importante distinção acerca da ordem do conhecimento, isso porque o processo cognitivo acima descrito, aquele pelo qual é conhecido o ato de inteligir, se dá de diferentes formas de acordo com os diferentes tipos de intelecto, não se trata aqui do intelecto de João diferente do intelecto de Maria, mas do intelecto humano, diferente do intelecto dos anjos, diferentes do intelecto divino. Deste modo, no intelecto divino, o conhecimento do conhecimento, isto é, saber que sabe é essencial, pois o intelecto de Deus é o Seu próprio conhecer e não conhece nada fora de si, porque tudo está nEle. A essência de Deus é Seu conhecer, logo, Deus conhece que conhece21, pois não pode negar a si mesmo (cf. 2Tm 2,13). Em aplicada ordem de conhecimento, o primeiro objeto que Deus conhece é sua própria essência divina. Dentro desta operação, Deus conhece que conhece, isto é, o ato de conhecimento se lhe torna conhecido e Deus conhece a si e a tudo o que existe, pois, tudo está presente nEle. Ainda outro intelecto que embora se disponha de modo diferente, é também capaz de conhecer o próprio ato é o intelecto dos anjos. Seu intelecto, diferente do divino, não é seu próprio conhecer, não é sua essência, porém é este o primeiro objeto do seu conhecimento, a sua essência22. Havendo nos anjos a distinção racional entre cognoscibilidade do ato e da essência, o conhecimento que eles têm de ambos se dá simultaneamente, pois o conhecimento 19 ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 20 Ibid. 21 Cf. Ibid. 22 Cf. Ibid. 12 da própria essência é a perfeição da essência angelical “Ora, uma coisa é conhecida ao mesmo tempo que sua perfeição, em um só e mesmo ato”23. Aplicando a ordem do conhecimento ao intelecto angélico, o primeiro objeto dos anjos não é o seu próprio ato de conhecer, pois sendo limitados, necessitam de um objeto para o qual direcionar a sua potência conhecedora, tal objeto é a sua essência. Porém em ato simultâneo, além de conhecer a si mesmos eles conhecem o ato intelectivo que estão operando. Por fim, tendo analisado os seres mais simples, o doutor angélico fala do intelecto humano, o mais complexo inteligir, pois o ato do seu conhecimento consiste na existência de matéria e forma, bem como sua essência. Diferente do intelecto divino e do intelecto angelical, o intelecto humano não é seu próprio conhecer, nem tem como objeto primeiro o conhecimento de sua essência. O que o homem conhece primeiro é a realidade exterior a si, as coisas de natureza material através dos sentidos externos. Assim, o que o homem conhece primeiro é oobjeto, o verdadeiro24, só depois conhece o ato pelo qual o objeto se tornou conhecido a ele, do conhecimento desse ato, resulta o conhecimento do próprio intelecto, pois do conhecimento do objeto próprio, o intelecto chega ao conhecimento de todas as outras coisas25. A ordem do conhecimento do homem segue a seguinte ordem: sendo também limitado, por os anjos também o são, o homem necessita de um objeto material, um ente atualizado do qual a perfeição atue sobre os seus sentidos externos, estes se comunicam com os sentidos internos para que se formem os fantasmas, o intelecto agente atua sobre esses fantasmas para produzir no intelecto possível a espécie impressa, no intelecto possível é onde se encontrará por fim a ideia.26 Alguém que tem diante de si uma cadeira, primeiro conhecera o objeto, depois o ato pelo qual conheceu a cadeira e por fim, reconhecera o intelecto com a capacidade de abstrair a essência do objeto cadeira. “os objetos são conhecidos antes dos atos, e os atos antes das potências”27 assim, Tomás de Aquino explica a ordem do conhecimento humano, na qual está inclusa a possibilidade cognitiva do ato do conhecimento. Outro exemplo seria dizer que, alguém estando dirigindo passa por uma placa que anuncia hambúrgueres grátis, mas como está em alta velocidade, tem somente uma impressão de ter lido essa mensagem, mas não tem ainda certeza disso, também porque não é comum 23 ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 24 Cf. ST, p. I, q. 87, a. 3, ad. 1. 25 Ibid. 26 ST, p. I, q. 79, aa. 3-5. 27 ST, p. I, q. 87, a. 3, c. 13 encontrar hambúrgueres grátis em um restaurante, então faz um retorno e volta novamente a ver a placa, da qual agora com calma, obtém o conhecimento perfeito. Quando essa pessoa se deparou com o ato do conhecimento da placa, quando o viu pela primeira vez, constatou que o ato do seu conhecimento foi imperfeito, voltou para aperfeiçoa-lo. Isto é, se deu conta de que havia conhecido algo, compreendeu o ato pelo o qual o conheceu. 3.3 Objeções e Respostas Tomás não hesita em debater com judeus, muçulmanos e até heréticos28, esse debate torna a procura pela verdade algo cientifico, pois não se trata de uma simples apresentação de uma verdade objetiva, mas de uma condução virtuosa daqueles que estão às margens do conhecimento para o centro onde se encontra a plena verdade. Por outro lado, ensina-nos a lidar com as oposições que se nos apresentam nas temáticas da Suma Teológica, pois ele não somente apresenta as objeções mas também a justificação pela qual a elas não se associou, tudo sempre apontando para a verdade mais plena29. São três as objeções que Tomás de Aquino levanta para a discussão desta questão, as objeções são posicionamentos levantados até seu próprio tempo e muitas vezes também, previstos pelo santo. Neste artigo, as três objeções dão como negativa a resposta à questão, isto é, que o intelecto não seria capaz de conhecer o próprio ato. Como vimos anteriormente, o intelecto conhece o mundo externo ao homem, tem por objeto o que há na realidade concreta e está ao alcance dos sentidos, “com efeito, conhece- se com propriedade aquilo que é objeto da potência cognoscitiva”30, assim está a coisa material para a visão, o som para os ouvidos, o sabor para o paladar, etc., o intelecto não está fora do homem, mas dentro dele mesmo, logo não é conhecível aos sentidos externos que só alcançam o que há fora, “o ato difere do objeto”31, assim explica-se a primeira objeção que afirma que “o intelecto não conhece seu ato”32. A resposta que se coloca a esta objeção parte da máxima de que o intelecto tem por objeto um universal, o ente e o verdadeiro33, a este objeto está Segundo São Tomás, incluso o ato de conhecer, e portanto seria este ato passível da operação intelectiva, porém não em prima 28 Cf. KIENINGER, 2004, p. 247. 29 Cf. Cf. KIENINGER, 2004, p. 262. 30 ST, p. I, q. 87, a. 3, obj. 1. 31 Ibid. 32 Ibid. 33 Cf. ST, p. I, q. 87, a. 3, ad. 1. 14 intentio, porque o objeto primeiro não é qualquer ente ou verdadeiro, mas um ente especifico e verdadeiro dentre as coisas materiais34, a partir deste conhecimento iniciado na realidade presente, é que chega-se ao conhecimento de todas as outras coisas, entre as quais, o ato pelo qual o intelecto conhece. Além disso, na segunda objeção, Santo Tomás toma como verdade que “tudo o que é conhecido é conhecido por um ato”35, mas chega por um raciocínio a dar a impressão que isso seria impossível. A argumentação seria esta: esse ato pelo qual o intelecto conhece é passível também de conhecibilidade, assim sendo, ainda que o intelecto fosse capaz de conhecer seu ato, esse conhecimento adviria de um outro ato de conhecimento que novamente precisaria ser conhecido por mais um ato, gerando assim um movimento ad infinitum em que o intelecto nunca conheceria o ato final pelo qual é capaz de conhecer36. Por esta razão, a segunda hipótese dá o conhecimento do ato do intelecto como algo impossível. Para esclarecer esta objeção Tomás afirma que realmente um é ato pelo qual a coisa é conhecida e outro é o ato pelo qual o intelecto conhece que conhece “o conhecer humano não é o ato e a perfeição da natureza da coisa material conhecida”37, assim sendo, quando os alunos veem uma tesoura eles a conhecem em um ato cuja perfeição é conhecer a tesoura, outro será o ato pelo qual eles conheceram que conheceram aquele objeto. Por fim, Tomás afirma que não há oposições ao movimento ad infinitum em potência, quanto ao conteúdo possível de acolhida no intelecto38. Por fim, na terceira objeção, Tomás afirma que “o intelecto está para seu ato como o sentido para o seu”39, assim como os olhos veem, o nariz cheira e os ouvidos escutam, o intelecto conhece. Desta comparação aplicam-se portando ao intelecto e aos sentidos semelhantes regras, entretanto “o sentido próprio não sente seu ato”, então os olhos veem, mas não sentem a visão, o nariz cheira, mas não sente seu ato, os ouvidos escutam, mas não sentem sua audição e semelhantemente, o intelecto conhece e não conhece o ato pelo qual intelige, pois a ele se aplica a limitação que cabe ao sentido. A limitação do sentido, segundo o que se encontra no livro Sobre a Alma (De anima) de Aristóteles, é superada somente pelo sentido comum, restando negativa a possibilidade de que o intelecto conheça o próprio ato. 34 Cf. ST, p. I, q. 87, a. 3, ad. 1. 35 ST, p. I, q. 87, a. 3, obj. 2. 36 Cf. Ibid. 37 ST, p. I, q. 87, a. 3, ad. 2. 38 Cf. Ibid. 39 ST, p. I, q. 87, a. 3, obj. 3. 15 Santo Tomás responde a essa objeção partindo da premissa de que o sentido “sente” na medida em que o órgão material é alterado por algo sensível e exterior a si, deste modo, os olhos sentem seu ato na medida em que são influenciados pelo objeto exterior40, do mesmo modo o nariz, os ouvidos e demais órgãos ligados aos sentidos. Porém, Segundo Tomás de Aquino, tal conclusão não se aplica ao intelecto porque ele não conhece através de um órgão material modificado41, pois os sentidos externos, ligados a um ou mais órgãos, sentem na medida em são modificados por algo exterior a si, o olho por uma cadeira no caminho, os ouvidos por uma música que toca no rádio, o nariz por um cheiro que vem da cozinha, etc., é segundo Tomás, impossível que um órgão modifique a si mesmo, o olho veja o olho, os ouvidos escutem o próprio som, o nariz sinta o próprio cheiro, etc., mas sempre são modificados, isto é, percebem a partir de algo exterior a si, diferente de como funciona o intelecto42, não prosperando a objeção combatida. Assim, Tomás rebate as três objeções que se colocavam como empecilho ao reconhecimento da capacidade de intelecção do intelecto acerca de seu ato intelectivo.O homem não só é, através do seu intelecto, capaz de conhecer a realidade, como também é capaz de conhecer o processo pelo qual essa realidade se tornou a ele conhecida. 40 Cf. ST, p. I, q. 87, a. 3, ad. 3. 41 Cf. Ibid. 42 Cf. Ibid. 16 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalhou buscou aprofundar-se na temática levantada por Santo Tomás de Aquino na primeira parte da Suma Teológica, questão 87, artigo 3, onde se questiona: O intelecto conhece seu próprio ato? Na introdução deste trabalho apresentávamos como exemplo figurativo do que na supracitada questão está disposto, assemelhando-o ao processo de uma viagem, alguém que partia de Anápolis rumo a Goiânia, sendo a primeira cidade, o ponto (A), no qual entendemos o objeto atualizado na existência e conhecível aos sentidos próprios. Íamos por ocasião do exemplo no início direto ao ponto (B), a cidade de destino, na qual entendemos o objeto conhecido no intelecto, a ideia abstraída da coisa. O que buscamos neste trabalho é explicitar o que aconteceu no caminho de uma cidade à outra e como tomamos ciência deste caminho feito. Poder-se-ia pensar que sendo afirmativa a resposta à pergunta do artigo 3, questão 87, parte I da Suma, haveria um ponto (C) no qual o ato do conhecimento, a viagem entre (A) e (B) se tornaria conhecida. Há o objeto, a pessoa o conhece e só depois a pessoa conhece que conheceu, em um terceiro ato. Mas a resposta que o doutor angélico nos apresenta é de que o conhecimento não é um ato transitivo, no qual se realiza uma ação que tem por perfeição a coisa conhecida, mas a ideia abstraída e o conhecimento do ato pela qual esta ideia se abstraiu da coisa concreta são uma só coisa, como se nosso ponto (B) fosse composto do conhecimento e do conhecimento do conhecimento, não havendo que se falar em um terceiro ponto onde a intelecção é inteligida. Outro exemplo apresentado foi o do professor que mostra um objeto dentro de uma caixa para seus alunos, e depois que este objeto se torna conhecido ele questiona se eles sabem o que é e como souberam disso. Do objeto desconhecido até sua ideia abstraída presente no intelecto dos alunos, houve um caminho feito. O que queríamos por ocasião deste exemplo explanar é que, segundo a disciplina de Santo Tomás de Aquino, o conhecimento da passagem de um ponto (A) a um ponto (B), não só é possível, como também não vindica um terceiro ponto para que esse caminho se torne conhecido a nós, mas na coisa conhecida no intelecto é a própria perfeição e seu ato. Do exposto, concluímos que o que primeiro intelecto conhece a respeito de si mesmo é seu ato de conhecer, porque o conhecimento da coisa implica no conhecimento do ato pelo qual a ideia desta coisa tornou-se presente no intelecto. 17 Vale ressaltar que esta ordem do conhecimento se aplica ao intelecto do homem, que é limitado e depende de um objeto atualizado presente diante de si, como também já tratamos acima. O intelecto humano difere na ordem do conhecimento do intelecto divino e do intelecto angelical, como também está exposto. Esta conclusão faz cair por terra a problemática das filosofias subjetivistas e idealistas, bem como daquelas que afirmam tão somente a percepção imediata sem que haja uma reflexão intelectual. O que percebemos na realidade acessível aos sentidos, constitui uma verdade objetiva da qual ninguém ponde escusar-se. Realidade que é composta ontologicamente de ser e essência, matéria e forma e assim torna-se acessível aos nossos sentidos e, por conseguinte ao nosso intelecto, que não só é capaz de conhece-la como também de refletir sobre ela. Negar a capacidade do homem de conhecer é negar o homem. Tal negação não encontra fundamento certo em hipótese nenhuma, dos que a fazem não se espera nada menos do que um ato grandioso de fé, para negar a realidade é preciso ter muita fé e fazer-se muito ignorante a tudo que está a sua volta. Toda a realidade comunica ao homem a obra de Deus criador, no qual encontra-se a verdade absoluta de tudo o que existe e pode vir a ser. Tudo está concretizado na realidade, conforme determinou o intelecto divino, tudo está disposto ontologicamente como Deus pensou e criou. 18 REFERÊNCIAS AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Primeira parte – questões 84-89. Tradução: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: UEUFU, 2018. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, vol. 2, 2º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. KIENINGER, Titus. O Método no artigo da Suma Teológica de S. Tomás, Homem de diálogo e “Mestre de todos” (Leão XIII). Sapientia Crucis. Anápolis: Institutum Sapientiae, 2004, p. 229-267. SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. As Grandes Teses da Filosofia Tomista. Tradução: L. G. Ferreira da Silva. Braga: Livraria Cruz, 1951.