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Meta da aula Apresentar a importância das diversas concepções de homem, segundo modelos que foram influenciados pelas descobertas em vários campos do saber, assim como sua repercussão nos estudos psicológicos. Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. conceituar inatismo e identificar suas inter-relações com teorias filosóficas; 2. identificar as inter-relações do inatismo com a psicologia e com as descobertas científicas em outras áreas do saber, permitindo identificar como a concepção de homem alterou-se ao longo de sua história; 3. analisar a importância de contextualizar o conhecimento sobre o homem. 2AULAAs concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismoMarise Bezerra Jurberg ob jet ivo s Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 36 CEDERJ Espero que você continue animado com as aulas desta disciplina. Se você prestar atenção à palavra “animado”, vai constatar que ela provém de anima, que significa “alma“, em latim. Daí que expressões como “Eu te amo com toda a minha alma”, ou “A atriz interpretou o papel com toda a sua alma” significam que estamos expressando que algo é superior, melhor que o habitual. Como esse conceito de alma encontra-se agora em sua mente? Pegue uma folha de seu caderno e tente descrevê-lo agora. Guarde-o para mais tarde, quando terminar a leitura, para fazer comparações sobre isso. O conceito de alma é muito importante nas diversas concepções do ser humano ao longo da nossa história. Figura 2.1: Como o conceito de alma encontra-se agora em sua mente? Fonte: http://www.sxc.hu/photo/993150 Após a leitura da primeira aula, você deve ter percebido que os conceitos de fenômenos que, posteriormente, seriam objeto de estudo da Psicologia – que só se firma como ciência no século XIX – começaram como preocupações de pensadores, e de filósofos. A herança filosófica da Psicologia remonta ao estudo do psiquismo como equivalente à consciência, mas esse conceito é posterior a esse período. Antes se discutiam as relações entre a alma, ou espírito, e o INTRODUÇÃO A si f A kb ar CEDERJ 37 corpo. Hoje não temos dúvidas de que somos constituídos de corpo e mente. Somos indivíduos (e, portanto, indivisíveis) únicos. Além disso, estamos inseri- dos nas dimensões espaço e tempo. Tais dimensões nos incitam a realizar uma incursão na História, na cultura e nos diversos grupos sociais, para entender como a humanidade tem apresentado ideias e valores que nortearam diferen- tes concepções sobre o homem. Ora elas priorizavam dispositivos inatos, ora destacavam fatores do ambiente: inatismo e ambientalismo. Desde a Antiguidade, diversos filósofos preocuparam-se com a natureza do conhecimento. Através da visão de diversos estudiosos sobre como conhece- mos o mundo, poderemos inferir as diferentes concepções acerca do homem, através de recortes da história da humanidade. Gadotti (2008), ao tratar da história das ideias pedagógicas, inclui o pensamento oriental, mas aqui nos deteremos nos pensamentos referentes ao Ocidente, já que foram os que mais influenciaram nossa cultura. O INATISMO NOS FILÓSOFOS DA ANTIGUIDADE O inatismo (em latim in natu, ou “nascer com”), em termos gerais, constitui um sistema filosófico que defende que as ideias são inatas, existindo em estado latente, de forma que conhecer é acioná-las ou recordá-las. Teve origem com Platão (429-347 a.C.), para quem as ideias estão na própria alma do homem, uma vez que não podem ser encontradas na natureza. Sócrates (469-399 a.C.), como educador, tinha a preocupação de despertar e estimular o impulso para o autoconhecimento, assim como a busca pessoal e a busca pela verdade. Discutindo essas ideias, Platão e seu discípulo Aristóteles estudaram a forma pela qual apreendemos as experiências por que passamos. Porém, assumiram posições divergentes da de Sócrates quanto à natureza da realidade e quanto ao método de observação a ser utilizado. Para Platão, possuímos ideias inatas, e a realidade só pode ser compreendida pelas ideias abstratas eternas de objetos, que já existem em nossas mentes. O método do platonismo é a dialética, que opera para encontrar as ideias de justiça, bondade etc. É ela que nos leva às ideias. A teoria das ideias é o ponto culminante da filosofia platônica. Ideias essas que formam uma hierarquia em cujo cimo estão as três mais importantes: a ideia do próprio Deus, a ideia do Bem e a ideia superior. di a l é t i c a Segundo o Dicio- nário Houaiss, é a modalidade de classificação em que cada uma das divi- sões e subdivisões contém apenas dois termos; na dialética platônica, repartição de um conceito em dois outros, geral- mente contrários e complementares. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 38 CEDERJ Já para Aristóteles, a realidade situa-se no mundo concreto dos objetos que nossos sentidos percebem. Em sua concepção educacional, aponta três fatores como essenciais que determinam o desenvolvimento espiritual do ser humano: disposição inata, hábito e ensino. Ambos dife- Ambos dife- rem também em relação ao método de observação da realidade: para o platonismo, só podemos obter o conhecimento pelo uso da mente e da reflexão sobre o mundo das ideias; na visão aristotélica, o conhecimento só pode ser obtido por meio da experiência e da observação. Defendem, portanto, posições inatistas e ambientalistas, que seriam, mais tarde, classificadas como racionalistas e empiristas, respectivamente. Figura 2.2: À esquerda, Platão, filósofo grego, discípulo de Sócrates. À direita, seu discípulo Aristóteles. Detalhe da Escola de Atenas, por Rafael Sanzio (1510). Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sanzio_01_Plato_ Aristotle.jpg Se pensarmos na visão platônica relacionada à Psicologia, ensina ele que o ser humano é formado de alma e corpo e que a alma é formada por três elementos: CEDERJ 39 • a parte racional, com sede no cérebro; ela é livre, espiritual e imortal; • a irascível, residindo no peito; • a apetitiva, localizada nas entranhas. Na sociedade, a organização do Estado deve assemelhar-se à alma humana, dividida em três classes: • a parte racional seria formada pelos filósofos e pelos que com- poriam os encargos públicos; • a irascível, formada pela classe dos guerreiros, para a defesa social; • a apetitiva, por operários e lavradores, responsáveis pela sub- sistência. Mais tarde ele reconheceu a impraticabilidade de sua teoria política entre indivíduos que são seres humanos, e não divinos. Em relação à visão aristotélica, verificamos que sua posição não é idealista, mas realista, uma vez que seu objeto de estudos é o mundo animado, ou seja, aquilo que tem vida, que se diferencia essencialmente do mundo inorgânico. O princípio da atividade, portanto, é a alma. Tais estudos podem ser classificados, como o fazem muitos autores, como característicos de uma fase denominada Psicologia Filosófica. Esta perdurou até o século XVII, a partir do qual a visão aristotélica de ciência continuaria a fomentar discussões que se centralizam ainda em duas possíveis vertentes: o conhecimento teria como fonte as sen- sações – e, portanto, o papel da experiência é mais importante – ou estas não conseguem nos fornecer uma visão fidedigna da realidade, a não ser que usemos a razão. O INATISMO NAS ÉPOCAS MEDIEVAL E MODERNA Podemos considerar a Idade Média como um período de grande desenvolvimento cultural nas universidades e o período eminente do catolicismo.A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 40 CEDERJ Figura 2.3: Monge medieval preparando manuscritos. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Escribano.jpg Além do ensino nas primeiras universidades criadas, o ensino filosófico era seguido em escolas ligadas à teologia (escolástica) e per- durou até o final do século XVII. A filosofia escolástica, fortemente influenciada por Aristóteles, tinha, como uma de suas preocupações principais, a questão da realidade das ideias gerais ou universais. Três escolas ocuparam-se dessa questão: • a escola realista, que defendia que as ideias existiam realmente antes das coisas; • a escola nominalista, para a qual as ideias nada mais eram do que nomes e que só existiam depois que as coisas eram percebidas; • a escola conceptualista, que admitia as ideias gerais, mas no nível individual. escolástica Constitui uma linha dentro da filosofia medieval, de características notadamente cris- tãs, que surgiu da necessidade de responder às exigências da fé que era ensinada pela Igreja, instituição que dividia o poder com os reinados e que se atribuía a função de guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade. A Escolástica deve seu nome às artes ensinadas nas escolas medievais e perdurou do começo do século IX até ao fim do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/ File:Laurentius_de_Voltolina_001.jpg CEDERJ 41 As doutrinas platônicas foram retomadas, no século IV, por santo agostinho, associadas à doutrina cristã; inspirado em Platão, destaca-se pela profundidade de suas ideias, associando o caráter especulativo dos gregos com a praticidade latina. Suas principais preocupações eram ligadas a problemas práticos e morais, tais como a liberdade, o mal, a predestinação. Destacou-se como padre e, no século XIII, são tomás de aquino torna-se uma das figuras mais destacadas no campo da Escolás- tica, inspirado na filosofia de Aristóteles. santo agostinho (354-430), filho de mãe devota e cristã, depois canonizada (Santa Mônica), foi o mais célebre dos padres latinos. Nas- ceu na África, que na época era romana, e, após uma vida licen- ciosa, converteu-se ao cristianismo aos 33 anos de idade, quando se batizou. Foi um teólogo- filósofo. No campo da Filosofia, seguiu as ideias de Platão, tentando adaptá-las à teologia cristã. Para isso, fundamen- ta-se na demons- tração racional da existência de Deus, assim como na imu- tabilidade das leis que regem o conhe- cimento humano. Como Platão, defen- de a imortalidade da alma, cuja origem é divina, e pretendeu a conciliação entre fé e inteligência. são tomás de aquino (1225-1274), denominado o “Doutor Angélico”, é con- siderado o maior teólogo da igreja no Ocidente. Dentre suas obras, destacam-se a Suma teológica e a Suma contra os gentios, que são expressões da ortodoxia cató- lica. Representa a Escolástica em toda a sua pureza. Construiu um sistema teológi- co-filosófico, tentando uma distinção e, ao mesmo tempo, uma conciliação entre fé e razão. Para ele, é próprio da Filosofia o conhecimento das coisas à luz da razão; a Teologia serve-se da razão, porém, esta opera à luz da revelação e dos dogmas do cristianismo. Para a filosofia tomista, a espécie inteligível não é o objeto mate- rial entendido, ou seja, a representação da coisa, mas o meio pelo qual a mente entende as coisas do mundo exterior. Isto corresponde aos dados do conhecimento, permitindo-nos conhecer coisas, e não ideias. As coisas não podem entrar no nosso cérebro, pois são conhecidas através de imagens. nicolau copérnico (1473-1543) foi astrôno- mo e matemático. Foi também cônego da Igreja Católica, governador e administrador, jurista, astrólogo e médico. Sua teoria do heliocentris- mo, contrariando a então vigente teoria geocên- trica, é tida como uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia moderna, embora desacreditado e mal divulga- do na época. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro: Copernicus.jpg É na Idade Média, quando a educação formal restringia-se a nobres e sacerdotes e era realizada sob a égide da Igreja Católica, que um cientista polaco é responsável por uma mudança radical. A revolu- ção promovida por nicolau copérnico, que desfere o primeiro golpe na concepção de homem e da realidade quando ousa retirar o planeta Terra do centro do Universo, ou seja, negando o geocentrismo e defendendo a teoria heliocêntrica (de héliou, que significa “sol”, em grego), e colocando o Sol como centro de nosso sistema planetário. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 42 CEDERJ O italiano Galileu Galilei (1564-1642), ao defender e divulgar a teoria heliocêntrica, proposta anteriormente por Copérnico, é acusado de herege e a perseguição a que foi submetido pela Inquisição tornou-se quase tão célebre quanto suas descobertas como astrônomo. Figura 2.4: Galileu ante o Tribunal da Inquisição. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/88/Galileo_facing_ the_Roman_Inquisition.jpg Na Idade Moderna, que vai do século XV (1453) até o século XVII (1789), ocorreram grandes invenções e descobrimentos maríti- mos; foi um período de absolutismo real, com uma descristianização do mundo moderno, pela implantação da Reforma protestante. Do ponto de vista cultural, a Idade Moderna não pode ser separada da Ao discorrer sobre a “revolução copernicana” que representou a resposta do filósofo Emanuel Kant (1724-1804) aos problemas do inatismo e do empirismo, Chauí (1999) tece algumas considerações sobre a revolução de Copérnico. Descreve que, na Antiguidade e na Idade Média, ainda se considerava que o mundo possuía limites, que era formado por um con- junto de sete esferas concêntricas, tendo a “Terra”, imóvel, em seu centro. Nessas esferas, os planetas estariam presos (neles incluíam o Sol e a Lua como planetas). Esse sistema astronômico era denominado geocêntrico, pois em grego Gaia, ou Geia, significa “Terra”. A teoria heliocêntrica, além de colocar o Sol no centro do sistema, incluiu outras descobertas, como os movimentos da Terra e do Sol, que já havia sido classificado como estrela e não como planeta por outros astrônomos. CEDERJ 43 Idade Contemporânea, pois esta constitui uma continuação da primeira. O período denominado Renascença (renascimento das Letras e das Artes), iniciado na Itália no século XIV e caracterizado pelo estudo e pela admiração dos cânones artísticos da Antiguidade clássica, marca a transição para a Idade Moderna. As profundas transformações na visão do homem, associadas às grandes descobertas (a bússola, a imprensa, o uso militar da pólvora, a descoberta da América) são acompanhadas pelo desenvolvimento de duas correntes filosóficas – empirismo e racionalismo. Figura 2.5: A bússola, instrumento para indicar os pontos cardinais. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/236787 De um modo geral: • O empirismo defende que todas as nossas ideias são prove- nientes de nossas percepções sensoriais (visão, audição, tato, paladar, olfato) e que podem ser assimiladas através do processo de aprendizagem. • No racionalismo, os princípios lógicos seriam inatos à mente do homem, motivo pelo qual a razão deve ser a fonte básica do conhecimento. Somente a razão humana, operando com princípios lógicos, pode atingir o conhecimento verdadeiro, universalmente aceito. Je tm ir D ec an i A U LA 2Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 44 CEDERJ A partir do século XVII, ainda na Idade Moderna, novas discus- sões voltam a fundamentar-se no valor de se adotar o racionalismo ou o empirismo, na tentativa de explicar o conhecimento. Seus maiores defen- sores foram, respectivamente, na França, René Descartes (1596-1650), considerado o pai da filosofia moderna, e John Locke (1632-1704), na Inglaterra, rejeitando as ideias inatas. Na visão cartesiana, anterior à de Locke, a razão é privilegiada: “Penso, logo existo” (“Cogito, ergo sum”) e a racionalidade é defendida como a via de acesso ao conhecimento. O racionalismo defendido por seu maior precursor (Descartes, em Discurso do método) preconizava que a experiência sensorial constitui uma fonte permanente de erros e confusões sobre a complexa realidade do mundo. Só através dos prin- cípios da lógica, próprios da razão humana, pode-se atingir a verdade, ou o conhecimento universal. O cartesianismo utiliza-se da “dúvida metódica”, proposta como uma via para se chegar à certeza; ela não é uma dúvida sistemática, com a finalidade apenas de manter o próprio ato de duvidar, como o é para os céticos. As ideias em geral são incertas e instáveis, sujeitas à imperfeição dos sentidos. Algumas, porém, apresentam-se ao espírito com nitidez e estabilidade. Tal fenômeno ocorre em todas as pessoas, da mesma maneira, e independe das experiências dos sentidos. As ideias gerais, universais, residem na mente de todas as pessoas e são inatas. Figura 2.6: René Descartes. Fonte: http: / /pt.wikipedia.org/wiki / F i chei ro :Frans_Hals_ -_Portret_van_ Ren%C3%A9_Descartes.jpg CEDERJ 45 Resumindo o cartesianismo, pode-se dizer que ele admite, como ideias absolutamente certas – das quais a inteligência não pode abstrair –, as ideias de pensamento e de extensão. O cartesianismo adota a dúvida sistemática como método, o mecanismo como princípio e o espiritualismo e o deísmo como princípios metafísicos. Na Inglaterra, John Locke rejeitava as ideias inatas, colocando a fonte de todo o nosso conhecimento na experiência e na sensação, com o auxílio da reflexão; para ele, o psiquismo seria uma página em branco, na qual seriam inscritas as impressões que nos chegassem pelos sentidos. No século seguinte, novas discussões e controvérsias ocupam os filósofos, até alcançarem certo consenso acerca das faculdades inerentes ao psiquismo humano: a inteligência, a vontade e as emoções. Em seus primórdios, portanto, as explicações psicológicas que advieram da filo- sofia tiveram, como ponto de partida, o estudo das faculdades mentais, ou a pesquisa da verdade, o que seria realizado através da compreensão dos nexos existentes entre os acontecimentos. Foram muitas as discus- sões sobre a possibilidade de que o pensamento corresponderia ou não à realidade percebida, preocupação que remonta às discussões de Platão. de í s m o Atitude dos que rejeitam toda espécie de revelação divina e, portanto, a auto- ridade de qualquer igreja. Porém, acre- ditam na existência de um Deus, des- provido de atribu- tos intelectuais ou morais, o qual pode ou não ter criado o Universo. Atende ao Objetivo 1 1. É importante para você saber conceituar inatismo e identificar suas inter-relações com a Filosofia. Relacione a frase “O racionalismo deu origem a teorias sobre as funções da mente” com o conceito de inatismo, segundo os filósofos que discutiram tais ideias, até a Idade Moderna. ATIVIDADE A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 46 CEDERJ O INATISMO NA IDADE CONTEMPORÂNEA Paralelamente, no final do século XIX as ciências físicas e naturais começam a se desenvolver, centrando-se na quantificação e na experimen- tação. Nesse período, destacam-se dois cientistas que revolucionaram as concepções vigentes sobre o homem, trezentos anos após Galileu ter tira- do a Terra do centro do sistema solar. Agora, é o ser humano que perderá seu lugar no centro da criação. Em uma época em que se acreditava que uma pessoa morria porque chegara sua hora, por desígnios divinos, foi difícil aceitar que seres inferiores, invisíveis a olho nu, pudessem atacar nosso corpo e destruí-lo. O primeiro golpe na vaidade do ser humano veio com Louis Pasteur (1822-1895), químico francês e professor da Sorbonne. Ele descobriu que a fermentação, observada na fabricação de diversas bebidas (vinho, cerveja, vinagre), era causada pela ação de micro-organismos. Essa ação podia ser evitada através de um processo simples de esterilização, mais tarde denominado pasteurização (técnica que consistia em aquecê-las a 75 graus centígrados, a fim de matar esses micróbios). Seus estudos sobre micro-organismos levaram-no a reconhecer o papel que desempenham em RESPOSTA COMENTADA Para filósofos, desde a Antiguidade, era discutida a natureza inata ou não das ideias humanas, dando origem a duas tendências que se mantiveram durante a Idade Média e a Idade Moderna, per- sistindo ainda na modernidade: a empirista e a racionalista. Estas ainda perduram nas divisões das teorias psicológicas, que ainda são agrupadas em duas grandes categorias: teorias que defendem as associações entre eventos percebidos pelos sentidos e teorias racionalistas, preocupadas com os processos racionais ou cognitivos. Os filósofos mais importantes como defensores do inatismo foram Platão, com sua teoria das ideias abstratas e eternas de objetos, que já existem em nossas mentes, e Descartes, respectivamente na Antiguidade e na Idade Moderna. De acordo com o cartesianismo, somente através dos princípios da lógica, próprios da razão humana, pode-se atingir a verdade, ou seja, o conhecimento universal. O ina- tismo, nessas duas épocas, referia-se ao que é inato em termos de funções da mente, com a finalidade de promover o conhecimento. CEDERJ 47 diversas doenças e epidemias, as quais começou a evitar através da vacina- ção. Certa época, uma doença alastrava-se e estava dizimando um rebanho de ovelhas do interior da França. Ele avisou às autoridades que se tratava de uma epidemia, a qual estava sendo transmitida através dos animais mortos deixados à beira dos rios. Para que ela fosse contida, propôs vaci- nar a metade dos rebanhos de cada fazenda por onde passariam os cursos de água contaminados, e só depois que os animais vacinados e marcados sobreviveram pôde comprovar a efetiva ação dos micro-organismos na transmissão de doenças. Assim como os animais, as pessoas também não morriam por causas indeterminadas, mas porque eram atacadas por seres microscópicos. Como acreditar que o ser humano – criado à semelhança divina – pudesse sucumbir a criaturas tão inferiores? Figura 2.7: Saber da existência de micro-organismos mudou a forma do homem olhar o mundo e a si mesmo. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:E_coli_at_10000x,_original.jpg Combatendo micróbios Pasteur expôs a “teoria germinal das enfermidades infecciosas”, segundo a qual toda enfermidade infecciosa tem sua causa (etiolo- gia) num micróbio com capacidade de propagar-se entre as pessoas. Deve-se buscar o micróbio responsável por cada enfermidade para se determinar um modo de combatê-lo. Pasteur passou a investigar os microscópicos agentes patogênicos, terminando por descobrir vacinas, em especial a antirrábica. Fundou, em 1888, o Instituto Pasteur, um dos mais famosos centros de pesquisa atuais. Figura 2.8: Louis Pasteur em seu laboratório. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Tableau_Louis_ Pasteur.jpg A U LA2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 48 CEDERJ O segundo golpe veio do naturalista inglês Charles Darwin (1809- 1882), que publicou sua teoria sobre a origem e a evolução das espécies em 1859: On the Origin of Species by means of Natural Selection. Essa obra provocou numerosas controvérsias, uma vez que se opunha ao criacionismo, conforme a religião católica pregava havia séculos. Para o darwinismo, as espécies atuais são o resultado de uma longa e gradual adaptação evolutiva de espécies mais antigas, através de mecanismos de seleção natural, que faz sobreviver o mais apto na luta pela vida. A seleção natural completa-se com a seleção sexual, pela qual as fêmeas são atraídas pelos machos portadores de determinadas características que garantam a sua sobrevivência e a de seus filhotes (DARWIN, 2000). Atualmente, outros fatores estão sendo incluídos, como determinantes de novas espécies, tais como a teoria das variações somáticas e genéticas e de determinantes geográficos, fisiológicos e o isolamento de populações. Figura 2.9: Durante sua vida, Charles Darwin tornou- se famoso como um influente cientista, estudando tópicos controversos. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/ 8/8b/Hw-darwin.jpg CEDERJ 49 O INATISMO E A PSICOLOGIA Até o final do século XIX, portanto, a Psicologia era mediada pelo conhecimento filosófico, uma vez que seu objeto de estudos abrangia tanto visões mais gerais do mundo como também se interessava pelos grandes sistemas filosóficos. Somente em suas últimas décadas observa-se uma tendência a distanciar a Psicologia da Filosofia, ao ser privilegiada a possibilidade de transformá-la em uma ciência autônoma. O mesmo aconteceu com a Educação, que passou a buscar, na Psicologia, fontes de informação para a formulação de teorias educativas científicas. Daí o nascimento da Psicologia da Educação, na primeira década do século XX. O criacionismo consiste na mais difundida explicação sobre a criação e desenvolvimento do Universo, incluindo galáxias, planetas e a própria vida. Um sistema de crenças segundo o qual tudo teria sido criado por uma entidade inteligente, superior, normalmente identificada como Deus. Com o avanço das ciências naturais e sua desvinculação da religião, novas explicações foram deduzidas sobre a origem do Universo, do homem, do nosso planeta e da vida. Tais mudanças geraram e até hoje geram contro- vérsias e conflitos entre certos grupos religiosos. Os cristãos, assim como os fundamentalistas, configuram-se como os principais mantenedores dessa polêmica, através do embate entre criacionistas versus evolucionistas. Nos Estados Unidos da América do Norte, por exemplo, país considerado desenvolvido segundo critérios econômicos e tecnológicos, em mais de vinte estados ainda é proibido o ensino da teoria da evolução de Darwin. Figura 2.10: A criação de Adão: patriarca da humanidade no cris- tianismo, no judaísmo e no islamismo. Pintura de Michelangelo, na Capela Sistina. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f2/Creation_ of_Adam.jpg A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 50 CEDERJ O caminho da busca por cientificidade veio através de um médico francês, claude Bernard, que defendia a necessidade de se criarem méto- dos mais precisos e que propiciassem maior controle no tratamento de doentes e enfermos, iniciando a fisiologia e a medicina experimentais. Não aceitava mais que se continuasse a tratar os pacientes com ensaios e erros, com acertos ocasionais. No lugar de fazer experiências com pacientes, era necessário um método que permitisse verificar hipóteses e criou, assim, as regras da experimentação, comparando tratamentos e controlando a influência de variáveis do organismo e do meio. O método experimental, por ele criado, tornou-se o modelo de cientificidade e passou a ser adotado pelas diversas áreas de conheci- mento, inclusive determinando a fase experimentalista também na Psi- cologia, fase que perduraria até o final do século passado, como modelo hegemônico deste campo de saber. claude Bernard (1813-1878) foi pro- fessor de Medicina Experimental no College de France, chamando a atenção de seus colegas para a nova disciplina comparativa, tendo publicado, em 1865, um livro sobre o assunto, o qual lhe conferiu, quatro anos após, a eleição para a Academia Francesa. Não confunda experimentalismo com empirismo, este último já definido na Aula 1. Para os empiristas, o conhecimento tem sua origem FORA do indivíduo e é interiorizado através dos SENTIDOS. Os pressupostos do método experimental para a verificação de hipóteses implicam, em sua versão clássica, trabalhar com dois grupos, cujas respostas serão comparadas: a um deles é aplicado um determinado tratamento (grupo experimental), e ao outro (grupo de controle) não se introduz nenhu- ma variável, tomando-se o cuidado de manter as mesmas condições do primeiro. Tal controle permitiria que ambos os grupos fossem homogê- neos. As respostas dos sujeitos de ambos os grupos seriam comparadas, e as diferenças encontradas seriam atribuídas ao tratamento utilizado. Atualmente este método vem sendo aperfeiçoado, inclusive em face do desenvolvimento da estatística, e passou a incluir diversos tipos de planejamento experimental e a possibilidade de pesquisar vários grupos simultaneamente para os testes de hipóteses. No lugar de se tentar anali- sar a ação de determinada droga, por exemplo, com uma única dosagem, pode-se testar várias doses ao mesmo tempo, utilizando grupos de pessoas em diferentes faixas etárias, como se faz nos planejamentos fatoriais. ! Atende ao Objetivo 2 2. Através desta atividade, buscamos atingir mais um dos objetivos de nossa aula: identificar as inter-relações do inatismo com a Psicologia e com as descobertas científicas em outras áreas do saber. Neste sentido, responda à seguinte questão: ATIVIDADE CEDERJ 51 A teoria evolucionista ainda sofre críticas e desconfiança, embora também tenha sido ampliada, apresentando novas evidências e algumas correções. Ainda dentro da Biologia, diversas contribuições da etologia e da genética vêm revolucionando as aplicações do mapeamento do genoma humano, gerando concepções sobre o homem que jamais poderiam ser imaginadas. Tais concepções estão em um processo constante de vir-a-ser. INATISMO NA PSICOLOGIA E NA EDUCAÇÃO A busca pela cientificidade atingirá também a Psicologia, que seguirá o mesmo caminho das Ciências Naturais. É nesse período que Wilhelm Wundt (1832-1929) cria o primeiro Laboratório de Psicologia Experimen- tal em 1879, na Universidade de Leipzig. Tornou-se o líder do movimento conhecido como estruturalismo, para o qual o objeto de estudos deve ser a consciência, servindo-se, para esse fim, da introspecção e analisando Como descobertas científicas na Astronomia e na Biologia modificaram as concepções do homem? RESPOSTA COMENTADA Ao tirar a Terra do centro do Universo e o homem do centro da criação divina, Galileu e Darwin, respectivamente no período medieval e na Idade Moderna, provocaram uma revolução nas ideias sobre a concep- ção do homem. As mudanças radicais não costumam ser aceitas sem perseguições de grupos que sentem seus ideais ou crenças abalados. A revolução galileana foi precursora de outras grandes teorias da Física, que vêm mudando substancialmente esta área de saber. As concepções baseadas no inatismo deixam de ser uma verdade universal, o que mudou a concepção de homem como um ser criado completo e não sujeito às variáveis do meio ambiente. A U LA2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 52 CEDERJ os processos mentais em seus elementos. Além dessas características, os estruturalistas tentam localizar, no sistema nervoso, as estruturas relacio- nadas aos elementos que compõem tais processos (DAVIDOFF, 1983). Em Lepzig, os resultados das pesquisas de seu fundador, sobre emoção e sentimentos, foram publicadas no livro Elementos de Psicologia Fisio- lógica. Lá também trabalharam Weber e Fechner, realizando pesquisas psicofísicas sobre estímulos limiares: absolutos (a menor intensidade de um estímulo capaz de torná-lo perceptível por um determinado órgão sensorial) e relativos (dependendo do estado do organismo no momen- to). Ambos elaboraram as célebres leis de Fechner e Weber, acerca das sensações. Também neste laboratório J. M. Catell (1860-1944) inicia suas pesquisas sobre tempo de reação, aplicando a experimentação, o que o levou à formulação de leis sobre as diferenças individuais. Tentou aplicar os conhecimentos da Psicologia a diversas áreas do conhecimento, inclu- sive a Educação, para a qual construiu diversos testes mentais. Os primeiros anos do século que acabou de findar foram marcados pelo avanço na criação de testes e instrumentos de medida, tanto nos EUA como na Europa. Na França, Alfred Binet publica, em 1903, o livro Étude experimental de l’intelligence, em que apresenta a possibilidade de medir a inteligência, criando um teste que, depois de traduzido para o inglês, passou a denominar-se Stanford-Binet. Foram criados testes que mediam um fator geral de inteligência e outros que identificavam o nível de fatores específicos, que tinham relação com a capacidade intelectual. Outros testes foram sendo criados, com o intuito de medir as capacidades mentais e as aptidões, a fim de determinar as possibilidades dos educandos em relação à aprendizagem. A onda psicométrica tentou utilizar ferramentas que facilitassem o trabalho do educador. ALÉM DA DICOTOMIA INATISMO-AMBIENTALISMO Na aula anterior, assim como na Introdução desta, você aprendeu que, em suas origens, estas duas áreas do saber – Psicologia e Filosofia – confundiam-se. Viu também como as relações entre Psicologia e Educação eram igualmente norteadas por premissas criadas no campo daFilosofia. Agora, vamos tentar mostrar como conhecimentos advindos de outras áreas repercutiram nos avanços da Psicologia e nas teorias e nas práticas educativas, ora defendendo o inatismo, ora privilegiando o ambientalismo. CEDERJ 53 A dicotomia inato-ambiental separa a multidiversidade – que caracteriza o ser humano – em apenas duas possibilidades. Ela pode ser denominada de outras formas, tais como: hereditário x aprendido, essencialismo x construtivismo social, sociedade x natureza ou ainda “nature” x “nurture”. É necessário que você atente para o fato de que, embora essas duas posições pareçam dar conta do objeto da Psicologia, não podemos nos contentar em tentar compreender os fenômenos psíquicos que ocorrem dentro do indivíduo apenas com essas duas vertentes. Conforme ressalta Paulilo (1996), precisamos admitir que processos externos e internos têm significação anterior à existência do ser humano, ou seja, há variáveis que são oriundas da história da sociedade na qual o indivíduo nasce e vive. Tentando aplicar as teorias psicológicas, a Psicologia da Educação buscou fundamentação nas três áreas que estavam em franco desen- volvimento no início do século passado: os estudos sobre diferenças individuais e a preocupação psicométrica (uso de testes de inteligência, atenção, aptidões), as pesquisas sobre processos e tipos de aprendizagem e, finalmente, os estudos sobre o desenvolvimento infantil. No que concerne ao estudo das diferenças individuais: • O interesse pelas diferenças individuais entre os indivíduos começou na área das Ciências Físicas, especificamente na Astro- nomia, quando foi constatada uma diferença nos cálculos de velocidades e distâncias de corpos celestes, ao serem compara- dos os resultados de diferentes astrônomos. Uma aproximação do tempo real deveria ser estimada, a partir de uma equação pessoal dos erros. Daí resultaram estudos psicofísicos no Labo- ratório de Leipzig, incluindo testes de tempo de reação. • Na Psicologia, estes estudos influenciaram uma visão psico- métrica da inteligência, buscando entender a forma pela qual a inteligência se estrutura; neste modelo, coexiste uma pressu- posição de que a inteligência é composta de habilidades e que estas podem ser medidas por provas de capacidade mental. • Além desse, outros paradigmas foram marcantes para o estudo da inteligência: o desenvolvimento da psicologia cognitiva – que concerne aos processos mentais responsáveis pelo funcionamen- to do pensamento – e a ciência biológica, ao tratar das bases neurais de inteligência, atualmente denominada neurociência. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 54 CEDERJ Quanto à aprendizagem, comecemos por uma definição abrangente: • Constitui o modo como os seres vivos adquirem novos conhe- cimentos, desenvolvem suas competências e modificam seus comportamentos, valores e atitudes, em função de suas expe- riências. Nesta definição, foram contemplados tanto fatores inatos quanto fatores do ambiente sociocultural, na medida em que dependerá de pressupostos políticos, econômicos, históricos e ideológicos vigentes em determinado espaço e determinado tempo, todos relacionados à visão do mundo e aos conheci- mentos de que dispomos no momento. • Como um PROCESSO, a aprendizagem pode ser estudada segundo um conjunto de DIMENSÕES, e não apenas as duas dimensões opostas, propostas pela dicotomização entre inatismo e ambientalismo. As teorias associacionistas serão mais deta- lhadas na Aula 3, por estarem relacionadas ao ambientalismo. • Dentre as teorias da aprendizagem, as que se fundamentam nos processos cognitivos são as que mais se aproximariam da visão inatista, uma vez que os cognitivistas acreditam que a inteligência compreende uma gama de representações mentais das informações (proposições, imagens, etc.) e uma série de processos que podem operar sobre essas representações. O construtivismo piagetiano, a ser apresentado de forma sucinta, a seguir, possui princípios igualmente ligados ao inatismo. Quanto ao desenvolvimento infantil, várias teorias o estudaram, mas na presente aula você irá se familiarizar com aquelas cujos prin- cípios denotem uma visão inatista. Dentre as teorias da aprendizagem, que serão abordadas em outras aulas, o construtivismo de Jean Piaget (1896-1980) apresenta, em sua estrutura, mecanismos próprios, deter- minados principalmente pela maturação biológica. Utilizando o método estruturalista, o autor centraliza seus estudos mais no sujeito do que no objeto, este último visto como perturbador da estrutura cognitiva. Piaget tomou as descobertas de Konrad Lorenz – juntamente com os resultados de sua própria pesquisa – como base para sua inovadora psicobiologia. O conhecimento, dentro do construtivismo piagetiano, é “cons- truído” de acordo com os estágios do desenvolvimento do ser humano. Tais estágios são fixos e universais, como o são os processos de matura- ção, e são independentes da aprendizagem. As constantes trocas com o CEDERJ 55 meio, a partir das ações do ser humano, propiciam adaptação progressiva, objetivando uma equilibração constante. A aprendizagem beneficia-se desses progressos, mas não o influencia. Certos tipos de aprendizagem só serão possíveis quando o organismo alcançardeterminados níveis de desenvolvimento das estruturas cognitivas. Desde que iniciou sua car- reira, Piaget tinha interesse em fenômenos de adaptação ontogenética que tinham repercussão na filogênese. Segundo alguns autores, como Figueiredo (1991) e Palangana (1994), a visão piagetiana é vista como interacionista, em face da neces- sidade de a criança interagir com o meio para que ocorra a gênese do pensamento. O interacionismo determinou o fim da dicotomia inatismo x ambientalismo, inclusive porque esses dois termos possuem conotações diferentes em outras áreas do saber. As mil faces da Psicologia Você deve estar se perguntando por que, ao observarmos a história da Psicologia, nos deparamos com um conjunto de discursos composto por inúmeras escolas, com diferentes orientações, o que lhe dá a aparência de um corpo em pedaços, sem unidade, como observa Patto (1994). Realmente, o objeto atual da Psicologia, com suas inúmeras especialida- des, desde a Psicologia Biológica à Psicologia Social, abarca um grande número de possibilidades para os que se dedicam a essa área de estudos. ! O INATO NA PERSPECTIVA ETOLÓGICA Uma nova perspectiva de base inatista apareceu nos últimos cin- quenta anos, com o desenvolvimento de estudos etológicos. A etologia, definida como a biologia do comportamento, surgiu na Europa, com o objetivo de estudar os mecanismos do comportamento através de uma perspectiva evolucionária. Ocupou-se inicialmente das atividades instintivas nas diversas espécies, em ambiente natural. Destacam-se, nessa fase, os trabalhos pioneiros de Konrad Lorenz e Niko Tinbergen (1951), sobre instintos em aves, introduzindo a noção de imprinting (ou “estampagem”) para atos instintivos – e, portanto, inatos – que necessitam de certo estágio do desenvolvimento do animal, assim como a presença de certo estímulo para que sejam gravados. etologia Disciplina dedicada, em seus primórdios, ao estudo do com- portamento animal, mas que passou a estudar a espécie humana. O termo provém do grego -ethos (conduta, costumes, compor- tamento) e logos (estudo, tratado). Ela se utiliza de estudos em ambiente natural e também em labo- ratórios, possuindo caráter interdiscipli- nar e combinando conhecimentos de neuroanatomia, ecologia e teoria da evolução. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 56 CEDERJ Os comportamentos animais desenvolvem-se como resultado da interação de influências genéticas e ambientais. Certas condutas possuem determinantes mais inatos do que comportamentais. Em outras, ocorre o oposto. Os comportamentos denominados em geral como instintivos são geneticamente programados e geralmente sofrem muito pouca influência da experiência ou da aprendizagem. Eles fazem parte do repertório de condutas e de habilidades essenciais para a vida e a sobrevivência da espécie, em geral, e do indivíduo, em particular. O ato de chupar o dedo – e, após o nascimento, o mamilo da mãe – nos bebês humanos ocorre mesmo dentro do ventre materno e constitui um dos comportamentos instintivos com que já nascemos. Na figura a seguir, você verá o próprio Lorenz sendo seguido por filhotes de ganso que, ao nascerem, estão programados para seguir o primeiro objeto que apresente movimento. Na ausência da mãe, eles depararam-se com Lorenz movimentando-se próximo ao ninho, e, assim, sofreram o processo de estampagem, passando a segui-lo como o fariam em relação à mãe, que normalmente é o primeiro ser vivo com que os filhotes convivem. Figura 2.11: Lorenz e os filhotes de ganso. Fonte: http//pt.www.cerebromente.org.br/n14/ experimento/lorenz/index.lorenz.html CEDERJ 57 Dentre as descobertas desses pioneiros, há ainda as que se rela- cionam aos “estímulos sinais”, ou estímulos deflagradores de compor- tamentos inatos, como o grito de alerta à aproximação de predadores. No caso das aves, por exemplo, a visão de um simples contorno que caracterize um ganso ou uma águia provocará reações diversas, não importando os demais detalhes da figura percebida. Em seu livro Fundamentos da etologia (1981), Lorenz aborda diversos temas, tais como: metodologia etológica, aspectos ligados ao comportamento e à cognição como modificadora de comportamentos. Defende a ideia de que muitos dos mais importantes padrões de compor- tamento dos animais – aqueles tradicionalmente chamados instintivos – eram inatos, fixos, e não podiam ser modificados ou eliminados pelo meio. O critério para determinar se certo padrão de comportamento é inato é verificar se ele ocorre em todos os indivíduos normais da espécie. Leva-se em consideração idade e sexo, sem que tenha havido aprendi- zado anterior e que esse comportamento se apresente sem necessidade de tentativas e erros. Lorenz e Tinbergen testaram diversos modelos de gansos e águias e che- garam à conclusão de que a relação entre pescoço e cauda é que servia de parâmetro para a percepção da águia predadora, fazendo com que os animais buscassem refúgios. A mesma figura apresentada, ora amarrada na parte dianteira, ora na parte traseira, deflagrava ou não sinais de aler- ta. A seguir, o modelo de cartolina preta utilizado pelos dois cientistas. Quando se observa um bando de macacos, o grito de alerta para águias e felinos é diferente: no primeiro caso, o bando procura proteção no centro da copa de árvores, local de difícil acesso aos voos rasantes da ave predado- ra; quando se trata de felinos, o bando se refugia nos galhos menores, mais difíceis de serem escalados, em face do peso desses últimos predadores. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 58 CEDERJ Comportamentos instintivos acontecem espontaneamente, como que provocados por causas internas ao próprio animal. São comporta- mentos de busca, que prescindem de um estímulo externo. É como se houvesse um reservatório (modelo hidráulico) que vai se enchendo, à proporção que aumenta uma necessidade primária, até que o animal tem de diminuir a pressão, através de um comportamento fixo, mesmo que o objeto que satisfaria a necessidade em questão não esteja presente. É o caso de pombos, por exemplo, que, quando afastados da fêmea, podem tentar copular com um pombo empalhado, um pedaço de pano ou mesmo um objeto da gaiola. Para Lorenz, o comportamento do homem é semelhante aos dos outros animais e está sujeito às mesmas leis causais da natureza. Agressão e autocontrole O ponto crucial da visão de Lorenz a respeito da natureza humana, exposto no livro Sobre a agressão, é que o ser humano, assim como acontece com outros animais, tem o impulso inato do comportamento agressivo em relação à sua própria espécie. Esse impulso deveria estar limitado, provocando poucos danos ao outro, como acontece em geral, entre outros animais, nas disputas por fêmeas ou por território. Entre os humanos, no entanto, a agressão pode levar à morte do oponente, consequência que contraria a necessidade de sobrevivência da espécie. Nos seres humanos foram observadas duas grandes diferenças: a primeira é o poder em termos destrutivos, com o crescente arsenal disponível para matar. Se antes as armas demandavam contato com o inimigo ou com o opositor, como eram os casos em que eram usados machados, espadas e armas brancas em geral, passando pela lança e pelo arco e flecha, o agressor podia ver o sofrimento causado ao outro, o que deveria inibir o comportamento agressivo. Com a nova utilização da pólvora e a invenção do revólver e, depois, de armas que impediam a visão das reações das vítimas da agressão, o alvo ficoucada vez mais longínquo. Até que a humanidade chegou à “assepsia” de apertar um botão e lançar mísseis de longo alcance que sequer são associados à grandeza da destruição que provocam e tampouco à população dizimada. Dessa forma, o equilí- brio natural entre o potencial de agressão e a inibição a ela passou a ser dificilmente percebido. A tecnologia destruiu a possibilidade de que a espécie humana iniba o comportamento agressivo ao perceber a vítima apresentando gestos ou posturas de submissão, como fazem os cães e outros mamíferos, que se deitam de barriga para cima, mostrando-se, dessa forma, vulneráveis e sem capacidade de reagir. Para Lorenz, o conhecimento pautado na filogênese, nas capaci- dades e habilidades inatas, não leva a pensarmos que não sejamos livres. Ao contrário, nosso crescente conhecimento de nós mesmos aumenta o nosso poder de autocontrole. Se compreendermos melhor as causas de nossa agressão, mais aptos seremos para tomar medidas para controlá-la. CEDERJ 59 Em 1973, Lorenz, Tinbergen e Von Frisch receberam o Prêmio Nobel por suas descobertas, tendo este último se destacado por suas pesquisas sobre a comunicação entre abelhas, quando percebeu que, de alguma forma, elas passavam informação às demais sobre o local da fonte de alimento, ao chegarem à colmeia: a famosa “dança do oito”, como ficou conhecida. Para assistir ao vídeo (em inglês) sobre imprinting, com Konrad Lorenz em ambiente natural, acesse http://www.youtube.com/ watch?v=2UIU9XH-mUI. Neste aqui (em italiano), aparece a reação de alarme à figura do gavião e imprinting em patos e gansos: http://www.you- tube.com/watch?v=v8c4iXaYNwo O vídeo K. Lorenz, el padre de la etologia (em espanhol) trata da agressão em animais (mais defensiva ou ritualizada) e no homem: http://www.youtube.com/watch?v=T-0Pub1ma4U Por fim, assista a este vídeo (em espanhol): http://www.you- tube.com/watch?v=f-nBJRhDVWI. Nele é mostrado como Von Frisch decifrou o código usado pelas abelhas na passagem da informação pela colmeia. Karl Von Frisch e a descoberta da dança das abelhas Zoólogo austríaco nascido em Viena, Karl Von Frisch se destacou estu- dando o comportamento das abelhas. Fez importantes descobertas sobre seus sentidos, como a utilização desses pelos demais membros de sua sociedade, para troca de informações. Conseguiu decodificar a linguagem das abelhas, verificando que elas usam a radiação solar como método de orientação mesmo quando o Sol não está visível; observou que as abelhas comunicam ao resto da colmeia a localização de uma fonte de alimento através de dois tipos de movimentos rítmicos: a dança circular, para indicar que a comida se encontra num raio de menos de 75m, e a agitação violenta do abdome, que assinala distâncias maiores. A direção do eixo central da dança indica a direção do Sol, enquanto o número de voltas indica a distância até o alimento. Estudos posteriores detectaram sinais combinados e mais complexos na troca dessas informações. Fonte: http://www.i-l-g.at/preistraegerbild35.htm A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 60 CEDERJ As pesquisas de Harry Harlow (1959) sobre as relações maternais de macacos com a mãe de pano e a mãe de arame evidenciaram que a preferência não era definida pela mãe que fornecia alimento, mas a que facilitava o apego pelo contato macio, pelo aconchego. Nessa fase inicial, denominada etologia tradicional, as pesquisas realizadas focalizaram os mecanismos causais imediatos e a ontogênese do comportamento. Somente dez anos depois Bowlby (1969) vai deno- minar o vínculo entre mãe e filho de “apego”, chamando a atenção para o fato de que formar vínculos tem, como uma de suas principais consequências, a criação de novas interações sociais entre ambos, garan- tindo um desenvolvimento saudável. A abordagem etológica influenciou diversos psicólogos, inclusive Piaget, que utilizou, para criar sua inova- dora psicobiologia, as descobertas de Konrad Lorenz, juntamente com os resultados de suas próprias pesquisas, através de observações do desenvolvimento em crianças. Para assistir os experimentos de Harry Harlow sobre a mãe substituta, assista aos seguintes vídeos (em inglês): http://www. youtube.com/watch?v=fLrBrk9DXVk e http://www.youtube. com/watch?v=hsA5Sec6dAI Após 1975, os estudos passam à fase denominada etologia com- portamental, focalizando mais as questões sobre evolução e os estudos sobre etologia humana. Diversas áreas foram contempladas, mas se nos detivermos na questão da formação do vínculo afetivo entre macho e fêmea, verificaremos que os etologistas apontam, no Homo sapiens, diver- sas mudanças nos mecanismos de reprodução. Tais mudanças teriam sido resultado do andar bípede e da posição ereta do corpo, o que reduzia as chances de a fêmea conseguir sustentar um feto – cujo cérebro estava se desenvolvendo gradativamente, ao longo da evolução – dentro de uma cavidade pélvica estreitada pelo bipedismo. Quanto ao apego dos pais em relação aos filhotes, a neotenia faci- litou-lhes o desenvolvimento, principalmente porque ela vem associada às características dos rostos dos bebês, que funcionam como estímulos e sinais para a proteção e a ternura, como assinalam Bussab e Otta (1992). neotenia Processo que retarda a maturação da espé- cie humana, em com- paração com outros primatas, permitindo uma infância muito longa, além do cres- cimento do cérebro, especialmente o neo- córtex. CEDERJ 61 Afirmam que foi a contínua interação entre o apego e o investimento parental que deu origem ao amor entre pais e filhos e que, como evoluímos em um contexto de vínculos afetivos individualizados, também permitiu o desenvolvimento da própria sociedade (BUSSAB; OTTA, 2000). Figura 2.12: O vínculo entre pais e filhos ajuda o desenvol- vimento da sociedade. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/992546 Segundo diversos autores, a biologia do comportamento ultra- passa concepções dicotômicas como as de inato x aprendido ou natu- reza x cultura. Para Ana Maria Carvalho (1989), na espécie humana o ambiente é fortemente marcado pela cultura, que pode ser desvinculada da evolução biológica; para a autora, “a cultura produziu o cérebro que a produz” (op. cit., p. 89). Muitos dos estudos e pesquisas na área da Etologia atualmente seguem a denominação de Psicologia Evolucionista (ou Evolucionária, ou Psicologia Biológica). V iv ek C h u g h Não confunda o termo Psicologia Evolucionista com Psicologia Evolutiva, ou Psicologia do Desenvolvimento. Esta última está mais ligada à ontogênese, ou seja, ao desenvolvimento do indivíduo. E isso é diferente da filogênese, ligada à primeira, que se refere ao desenvolvimento das espécies. ! A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 62 CEDERJ Podemos ainda nos perguntar: Qual seria a utilidade de um pensamento biológico, como o da Etologia, para a Psicologia? Quem responde é Bertelli (2008, p. 2): O objeto da Psicologia, de um modo geral, é o ser humano. E nós, seres humanos, somos seres biológicos e sociais, ao mesmo tempo. A integração das perspectivas biológicas e sociais é necessária para compreender o fenômeno humano. Nenhuma das visões (biológica e social), sozinha, é capaz de explicar o ser humano. A teoria da Evolução, utilizada pela Etologia como pressuposto teórico, pode ampliar a compreensão das causas do comportamento humano. Atende ao Objetivo 3 3. Ao verificar o comportamento agitado de um aluno, a professora chama seus pais para uma entrevista. A mãe explica que seu filho é assim porqueseu marido também o era, quando criança, afirmando que “tal pai, tal filho”. Já pensara em levá-lo a um psiquiatra para que receitasse um calmante. A professora argumenta que o menino acalma-se após o recreio e princi- palmente nos dias em que tem aulas de artes, participando e interagindo com os grupos de trabalho. Sugere um diagnóstico psicológico e, talvez, uma atividade esportiva, uma vez que o menino lhe contou que passa horas sentado em frente ao computador. Como você classificaria as tendências da mãe e da professora, em termos inatistas e ambientalistas? RESPOSTA COMENTADA No comportamento da professora, nota-se uma orientação mais ambientalista, além do reconhecimento de que natureza e ambiente interagem contínua e reciprocamente, o que nos permite inferir uma tendência interacionista nos processos que envolvem a criança. ATIVIDADE CEDERJ 63 CONCLUSÃO A verdade em ciência pode ser definida como a hipótese de trabalho melhor adequada para abrir caminho para uma próxima que seja melhor. (LORENZ) E agora? Você deve estar se perguntando o que tudo isto tem a ver com a Pedagogia? Qual a importância e as inter-relações entre posições inatistas, para a Psicologia da Educação? Durante séculos os estudiosos tentaram chegar a um consenso a respeito da origem dos princípios racionais, da capacidade para a intuição e de raciocínio do homem. Será que as pessoas já nascem com potencialidades, dons e aptidões que serão desenvolvidos de acordo com o amadurecimento biológico ou tudo isso é desenvolvido através da experiência com o mundo externo? Essa discussão, que se iniciou a partir de dois dos maiores filósofos da História, Platão e Aristóteles, ocupou filósofos no período medieval e chegou à modernidade com diferentes nomes, apresentando o ser humano como um agente estático, sem a possibilidade de sofrer mudanças. Desta forma, quando o homem nasce, tudo está definido, toda a atividade de conhecimento é exclusiva do sujeito e o meio dela não participa. Já a predominância do meio ambiente, como única fonte na produção do conhecimento, característica do empirismo, destaca a importância da educação e da instrução na formação do homem. No interacionismo, não cabe a divisão em somente duas categorias isoladas e não é aceita a dicotomia inato x aprendido. Quanto às atitudes da mãe, há uma tendência ao inatismo; para ela, o com- portamento do filho seria devido, exclusivamente, a fatores internos, o que limita as possibilidades e a multidiversidade de alternativas de que ela poderia dispor. A necessidade de contextualização, ou seja, de aceitar a influência de diferentes variáveis, tanto internas quanto externas, constitui uma premissa básica para o conhecimento psico- lógico e suas aplicações à educação, favorecendo uma concepção abrangente e mais compreensiva do ser humano. A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 64 CEDERJ O estudo do empirismo e do inatismo é importante devido ao fato de que, atualmente, muitas questões polêmicas giram em torno destas duas teorias, tais como o desenvolvimento da homossexualidade, a formação de líderes, o desenvolvimento de superdotados, as técnicas de inseminação artificial, dentre outras. Outra premissa do inatismo – o ser humano concebido como biologicamente determinado – nos remete à concepção de uma sociedade “naturalmente” organizada, hierarquizada, onde cada ser humano tem seu lugar segundo suas capacidades herdadas. Isto desencorajará as ini- ciativas de mudanças pessoais, impossibilitando inclusive a mobilidade social, assim como dos movimentos que vierem a propor transformações sociais em larga escala. Na educação, a concepção inatista tem levado a que pais e educa- dores esperem que as crianças amadureçam “naturalmente”, atingindo os níveis de desenvolvimento esperado para cada faixa etária. Por outro lado, faz com que não esperem muito daqueles que não apresentam um bom prog- nóstico, em função de uma herança genética ou cultural mais desfavorecida. Cria-se uma expectativa de que se deve deixar que o aluno desabroche por ele mesmo, pois acabará demonstrando suas aptidões e potencialidades. O papel do professor é o de facilitar que a essência se manifeste e que, quanto menos ele interferir, mais facilmente surgirão a espontaneidade e a criatividade do aluno. Assim, o sucesso ou o fracasso escolar constituirá responsabilidade única do aluno, como assinala Patto (1991). A teoria inatista baseia-se em uma concepção de ser humano que se inspira no racionalismo e no idealismo. O primeiro fundamenta-se na crença de que o único meio para se chegar ao conhecimento é pelo uso da razão. Todos chegarão a ele, uma vez que a razão é inata, imutável e igual em todos os seres humanos. Para o idealismo, o real é o mundo das ideias e dos significados. Dar realidade às ideias, oferecer respostas ideais (de ideias) às questões reais constitui a forma de compreender a realidade (NUNES, 1986). Os fatores maturacionais e hereditários são priorizados nessa perspectiva. O ser humano nasce com potencialidades, dons e aptidões que serão desenvolvidos, à proporção que amadurece, em termos biológicos (fisiológico e neurológico). Dotado de dons divinos, o homem não teria necessidade ou possibilidade de mudança. Ele não agiria sobre o meio ambiente, nem receberia influências significativas do contexto sociocultural. CEDERJ 65 Para entender o desenvolvimento, o inatismo parte do pressuposto de que o homem, em seu processo de aprendizagem, apenas aperfeiçoa o que lhe foi dado de forma inata. A aplicação dessa concepção na educa- ção gera imobilismo e resignação, uma vez que as diferenças individuais não podem ser superadas, isentando a escola, a família, o educador – e a própria sociedade – de qualquer responsabilidade. ATIVIDADE FINAL Leia os dois textos a seguir, de autoria de dois professores da USP/SP: o primeiro, de Ana Maria Carvalho, sobre contribuições da etologia para o conceito de Homem, disponível na revista Biotemas, 2 (2): 81-92, 1989; o segundo, de autoria do etólogo Cesar Ades, sobre a vida e a obra de Tinbergen. A Etologia tem contribuído para a recuperação da noção de homem como um ser bio-psico-social, abandonando a concepção insular do ser humano que dominou as ciências humanas (inclusive algumas áreas da Psicologia) na primeira metade do século XX, que destaca o homem da natureza e coloca-o em oposição a esta. A concepção etológica do ser humano é a de um ser biologicamente cultural e social (CARVALHO, 1989). É interessante notar o quanto Tinbergen, que valorizava a análise e acreditava que a explicação última para os fatos do comportamento seria fisiológica, adotava uma perspectiva sistêmica, não reducionista: “Tudo no comportamento de um animal está relacionado a quase todo o resto.” Ele propunha que a organização dos mecanismos que controlam a ação se compõe de uma “hierarquia“ de níveis de integração. À liberação de tendências comportamentais gerais segue a de tendências mais específicas, estas levando a tendências mais específicas ainda e assim por diante, até serem produzidas as unidades mais moleculares do comportamento (ADES, 2011). Agora responda: Em relação ao inatismo, em que diferem as opiniões de Carvalho (1990) e as de Tinbergen? A U LA 2 Psicologia e Educação | As concepções de homem relacionadas ao desenvolvimento humano: o inatismo 66 CEDERJ RESPOSTA COMENTADA A Etologia animal e humana revolucionou muitos conceitos, demonstrando que o determinismo do inato não é automático, mas depende de certascondições do ambiente, de certos “estímulos sinais”, ou estímulos deflagradores, e que estes devem ocorrer em determinados “períodos críticos” da ontogênese. Contribuiu, com a teoria do apego, para a compreensão da formação de vínculos afetivos, principalmente entre mãe e filho. A base biológica do homem, como afirma Carvalho (1989) deve ser analisada dentro do contexto sociocultural. Mesmo possuindo uma abordagem baseada na fisiologia, o etólogo Tinbergen, conforma assinala Ades (s/d), não aceita o reducionismo inato, afirmando que o desenvolvimento das ações huma- nas é composto de diversos níveis de integração, níveis estes que, dependendo da ação em questão, obedecem a uma hierarquia: em certos comportamentos podem predominar fatores inatos; em outros, o ambiente é que predomina, mas sempre haverá participação de ambos os fatores. R E S U M O A dicotomia corpo x alma, preocupação de pensadores na Antiguidade e na Idade Média, passou a denominar-se empirismo e racionalismo, gerando várias teorias controversas ainda dentro do campo da Filosofia. Com o avanço da Psicologia, a alma passou a ser comparada ao psiquismo, sem mais conotações de fundo religioso. A capacidade de raciocinar, imaginar, criar imagens mentais e organizá-las logica- mente passa a se referir à atividade psíquica. A contribuição da Biologia, através da Etologia, provou que nem todo comportamento herdado, ou pré-programado, pode vir a fazer parte do repertório do indivíduo, relativizando o conceito de inato. Outros desenvolvimentos nos campos da Psicologia, da Biologia e da Neurociência evidenciam, cada vez mais, a necessidade de interação, e não de separação entre inato e aprendido. Somente abordagens interacionistas podem das conta da complexidade de estímulos – internos e externos – que influenciam nosso comportamento. CEDERJ 67 INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA Dentro da visão ambientalista, as ideias aristotélicas serão mais aprofundadas, assim como a posição de Locke. Este rejeitava as ideias inatas e colocava a fonte de todo o nosso conhecimento na experiência e na sensação, com o auxílio da reflexão. Veremos mais sobre isso lá! Mesmo o inatismo piagetiano, um inatismo mais relacionado aos estágios de desenvolvimento desde a infância e até a adolescência, coloca em evidência que as estimulações do ambiente são essenciais, para a passagem de um para outro nível de desenvolvimento. Na psicopedagogia, reconhecer a predominância do inato deixa de lado a responsabilidade dos pais, da escola e da própria sociedade no desenvolvimento infantil – e, por consequência, no desenvolvimento humano – anulando qualquer influência que venha do ambiente psicológico e sociocultural. A U LA 2
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