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A MATEMÁTICA E AS CIÊNCIAS NATURAIS NO PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR Profa. Janaina Pinheiro Vece Introdução Para complementar o conteúdo do livro-texto da disciplina de Metodologia e Prática do Ensino da Matemática e Ciências, este artigo apresenta uma discussão importante acerca do currículo nos anos iniciais do Ensino Fundamental. No Brasil, em cumprimento à Constituição Federal (BRASIL, 1988) e à LDBEN 9.394/96 (BRASIL, 1996), foram elaborados, pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Educação, documentos curriculares para as diferentes etapas da Educação Básica; entre eles, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1997). Passados mais de vinte anos da publicação desse documento, a atual conjuntura da educação brasileira vivencia um marco histórico: a recente publicação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). Quais são as implicações da publicação da BNCC (BRASIL, 2017) para o ensino de Matemática e Ciências nos anos iniciais no Ensino Fundamental? O que mudou e o que permaneceu na transição dos PCN (BRASIL, 1997) para o novo documento? Contemplaremos estes e dentre outros aspectos para que você futuro (a) Pedagogo (a) compreenda o processo de transição curricular vivenciado pelo sistema educacional brasileiro. Mas, primeiramente, se faz necessário compreender o significado de currículo no contexto educacional. Afinal, o que é currículo? Ao longo da história, o currículo escolar assumiu um posicionamento nuclear e dinâmico. O currículo não é um documento fechado e burocrático; pelo contrário, é orgânico e envolve desde a sua idealização até a sua projeção na sala de aula. Sendo assim, todo o processo de ensino e aprendizagem que acontece na escola faz parte do currículo: documentos oficiais, materiais didáticos, formas como o professor usa esse material, conhecimentos construídos pelos alunos e avaliação do processo de aprendizagem. Todos esses elementos constituem a dinâmica do currículo escolar. Sacristán (2000) concebe o currículo como uma prática que se realiza em diferentes dimensões – o currículo prescrito; o currículo apresentado; o currículo moldado pelos professores; o currículo em ação; o currículo avaliado –, com a participação de diversos atores. Para Sacristán (2000), o currículo prescrito indica diretrizes para a educação e a escola, objetivos e processos de ensino e aprendizagem de uma dada área de conhecimento, em função do que se espera das aprendizagens dos alunos. É um documento de referência para as outras instâncias curriculares. Apresenta fundamentos teóricos, orientações didáticas e metodológicas e critérios de avaliação. Pode ter outras denominações, como “currículo formal” ou “oficial”. Desse modo, situamos os PCN (BRASIL, 1997) e a BNCC (BRASIL, 2017) na dimensão prescrita do currículo, conforme o autor. Para Sacristán (2000, p.104) “em todo sistema educativo existe algum tipo de prescrição, são os aspectos que atuam como referência na ordenação do sistema curricular servindo como ponto de partida para a elaboração de materiais, controle de sistema, etc.”. Este trecho traduz o sentido de currículo prescrito (formal ou oficial). O autor ressalta ainda que é no currículo prescrito que “se entrecruzam componentes e determinações muito diversas: pedagógicas, políticas, práticas administrativas, produtivas de diversos materiais, de controle sobre o sistema escolar de inovação pedagógica, etc.” (SACRISTÁN, 1998, p. 32). Sacristán (1998, 2000) destaca a importância dos objetivos, dos conteúdos e das ações práticas em um currículo, não de forma burocrática e mecânica, mas envolvendo o contexto da escola e as consequências para a prática pedagógica e a formação do educando. Sobre as funções do currículo, afirma que: As funções que o currículo cumpre como expressão do projeto de cultura e socialização são realizadas através de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que cria em torno de si. Tudo isso se produz ao mesmo tempo: conteúdos (culturais ou intelectuais e formativos), códigos pedagógicos e ações práticas através dos quais se expressam e modelam, conteúdos e formas (SACRISTÁN, 2000, p. 16). Nesse sentido, entendemos que é de fundamental importância que os docentes e todos os profissionais envolvidos na educação conheçam e reflitam sobre o currículo prescrito, para que decidam de forma mais consciente sobre os objetivos de aprendizagem e a organização das atividades escolares. Como apresentamos na introdução, o Brasil se encontra na fase de implementação da BNCC (BRASIL, 2017) em que Estados e Municípios brasileiros deverão se mobilizar para (re)organizar diretrizes e propostas curriculares de suas redes de ensino. Para isso, será necessário considerar as mudanças e permanências prescritas de um currículo para o outro. A primeira mudança significativa entre os PCN (BRASIL,1997) e a BNCC (BRASIL,2017) se refere à natureza e ao objetivo de sua publicação. Enquanto os PCN (BRASIL,1997) se apresentavam como uma proposta e não como uma diretriz obrigatória, a BNCC (BRASIL, 2017) é apresentada como um documento de caráter normativo. De acordo com os PCN (BRASIL, 2017, p. 29): Apesar de apresentar uma estrutura curricular completa, os Parâmetros Curriculares Nacionais são abertos e flexíveis, uma vez que, por sua natureza, exigem adaptações para a construção do currículo de uma Secretaria ou mesmo de uma escola. Também pela sua natureza, eles não se impõem como uma diretriz obrigatória: o que se pretende é que ocorram adaptações, por meio do diálogo, entre estes documentos e as práticas já existentes, desde as definições dos objetivos até as orientações didáticas para a manutenção de um todo coerente. Com intuito de superar a fragmentação das políticas educacionais, no texto introdutório a BNCC (BRASIL, 2017, p. 7) é apresentada como: [...] um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996). Desse modo, podemos dizer que a educação brasileira vivencia um marco histórico: a implementação de um documento normativo de referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares integrando a política nacional da Educação Básica. Sendo o Brasil um país caracterizado pela autonomia dos entes federados, de acentuada diversidade cultural e de profundas desigualdades sociais, o processo de (re)formulação curricular deve considerar as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais de cada região. Desse modo, embora seja um documento normativo, a BNCC (BRASIL, 2017), assim como os PCN (BRASIL, 1997), confere autonomia às redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na criação e reformulação dos seus currículos considerando as suas especificidades tendo como primazia os princípios de igualdade, diversidade e equidade. Consideradas as especificidades gerais de ambos os documentos, deste ponto em diante passaremos a discutir e comparar a organização das áreas de conhecimento de Matemática e Ciências. Mas, afinal, como a Matemática e as Ciências são concebidas por esses documentos curriculares? Quais são as mudanças previstas para o ensino de cada área? Matemáticae Ciências Quanto à apresentação das áreas de conhecimento houve uma mudança significativa em relação às nomenclaturas utilizadas no processo de organização de conteúdos e objetivos. Enquanto os PCN (BRASIL, 1997) falavam em objetivos gerais e conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais a BNCC (BRASIL, 2017) organiza as áreas de conhecimento em competências, objetos de conhecimento – entendidos como conteúdos, conceitos e processos – e habilidades. Observa-se, portanto, mais do que uma mudança de nomenclatura, se refere à passagem de um currículo centrado na tipologia dos conteúdos para o desenvolvimento de competências e habilidades. Na BNCC (BRASIL, 2017, p. 9) competência é definida “como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Além da justificativa teórica e conceitual, o foco no desenvolvimento de competências é justificado pelo fato da maioria dos Estados e Municípios brasileiros e diferentes países fazerem referência a essa organização na construção de seus currículos. Além disso, o documento evidencia que é esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais. Essa mudança trouxe algumas modificações em relação à organização da Matemática e das Ciências e de outras áreas de conhecimento no currículo. Podemos observar que a organização das áreas por competências, objetos de conhecimento e habilidades para cada ano da Educação Básica – em especial no Ensino Fundamental – além de demonstrar preocupação com as especificidades de cada área, demonstra a necessidade da gradação sobre o que deve ser ensinado e aprendido em cada ano de escolarização. Tanto os PCN (BRASIL, 1997) quanto a BNCC (BRASIL, 2017) abordam a Matemática como área. Destacam a sua relevância histórica e social destacando suas contribuições para a construção da cidadania e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Além disso, é concebida como uma Ciência, um produto cultural da humanidade, que serve de ferramenta para outras Ciências como a Física, Química, Biologia etc. Quanto à organização da Matemática como componente curricular, podemos identificar mudanças relativas ao tratamento e definição dos conteúdos. Enquanto os PCN (BRASIL, 1997) organizavam a Matemática em cinco blocos de conteúdos (Números, Operações, Espaço e Forma, Grandezas e Medidas e Tratamento da Informação) a BNCC (BRASIL, 2017), além de nomear os conteúdos em unidades temáticas também apresenta algumas modificações relevantes, como: A junção dos conteúdos números e operações em apenas uma unidade temática denominada Números, pelo fato das estreitas relações e imbricações conceituais e inerentes ao processo de aprendizagem dos campos numéricos e operatórios; A inserção da Álgebra a partir dos anos iniciais do Ensino Fundamental pelo fato de contribuir para o desenvolvimento de um tipo especial de pensamento essencial para utilizar modelos matemáticos na compreensão, representação e análise de relações quantitativas de grandezas e, também, de situações e estruturas matemáticas, fazendo uso de letras e outros símbolos; A mudança de Espaço e Forma para Geometria; Tratamento da Informação para Probabilidade e Estatística propondo o ensino da Probabilidade desde os anos iniciais do Ensino Fundamental. Desse modo, a unidade temática é ampliada, não se restringindo à construção e leitura de gráficos e tabelas. Sintetizamos essas alterações na Figura 1. Figura 1 – Organização dos conteúdos matemáticos Fonte: elaborado pela autora. Em relação à organização das Ciências os PCN (BRASIL, 1997) já apresentavam a organização da área em quatro blocos temáticos, sendo eles: Ambiente, Ser Humano e Saúde, Recursos Tecnológicos e Terra e Universo – sendo que o último era desenvolvido, somente, a partir da 6ª série em diante. Na BNCC (2017) são apresentadas três unidades temáticas – Matéria e Energia, Vida e Evolução e Terra e Universo – que devem ser trabalhadas ao longo de todos os anos do Ensino Fundamental. A BNCC (BRASIL, 2017) avança em relação à perspectiva do processo de ensino e aprendizagem das Ciências apresentando o compromisso com o desenvolvimento do letramento científico que se refere à capacidade do sujeito de compreender e interpretar o mundo (natural, social e tecnológico), mas também de transformá-lo com base nos aportes teóricos e processuais das ciências. Mantém, assim como os PCN (BRASIL, 1997), a importância de articular as Ciências aos diversos campos do saber, por meio da abordagem interdisciplinar. A Figura 2 evidencia a organização de Ciências proposta em cada documento. Figura 1 – Organização de Ciências Fonte: elaborado pela autora. Algumas considerações É evidente que as mudanças e transformações propostas pela BNCC (BRASIL, 2017) não se acabam por aqui. Até mesmo porque não apresentamos a análise de outros aspectos, como: o que deve ser ensinado e aprendido em cada ano de escolarização em relação aos conteúdos matemáticos e científicos; quais são os caminhos metodológicos e didáticos propostos por estes documentos curriculares; quais são as perspectivas de avaliação previstas para cada área; etc. Além disso, considerando as especificidades da formação polivalente do (a) Pedagogo (a) essas questões não podem se restringir apenas à Matemática e Ciências, é preciso abranger outras áreas de conhecimento. O intuito deste texto complementar foi apresentar as principais mudanças – em seus aspectos mais gerais – evidentes no processo de transição dos PCN (BRASIL, 1997) para a BNCC (BRASIL, 2017). Entretanto, acreditamos que é apenas um ponto de partida para que o (a) futuro (a) professor (a), ao assumir em seu processo de autoformação, possa analisar e se apropriar da história dos currículos do nosso país. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. ______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de dezembro de 1996. Brasília, 1996. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. ______. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília, DF, 2017. SACRISTÁN, J. G. O currículo: os conteúdos do ensino ou uma análise da prática? In: PÉREZ GÓMEZ, A. I.; SACRISTÁN, J. G. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 119-148. SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000. NÚMEROS NATURAIS E GEOMETRIA: O que as crianças pensam a respeito dos números, do espaço e das formas geométricas? Profa. Janaina Pinheiro Vece Introdução A ideia advinda da Didática da Matemática de que é possível definir hipóteses e níveis no processo de aprendizagem nunca se fez tão presente na investigação de ‘como se dá’ a construção do conhecimento matemático pelas crianças. Nessa perspectiva, podemos citar as contribuições das argentinas Délia Lerner e Patrícia Sadovsky (1996) e das experiências de Pires (2013), na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que abordam as hipóteses numéricas; de Castrogiovanni (2000) que trata da psicogênese das relações espaciais; e de Clements e Sarama (2000) que destacam três níveis de conhecimento na aquisição e compreensão das figuras geométricas. Por envolver a investigação sobre o processo de aprendizagem, o conhecimento didático do conteúdo, ou seja, a compreensão de como o aluno aprende os conteúdos matemáticos, é de suma importância, pois se torna essencial para que a prática pedagógica do professor atenda plenamente às diferentes necessidades de aprendizagem dosalunos. Afinal, a sala de aula é constituída por um grupo heterogêneo, permeado de diversidades sociais, intelectuais e psicológicas, que porventura, podem influenciar no processo de construção do conhecimento. Sendo assim, como descrito no título deste artigo, o nosso principal intuito é apresentar e compreender o que as crianças pensam a respeito dos números naturais, sobre o espaço e as formas que compõem o bloco de conteúdo Geometria. O que as crianças pensam sobre os números? Os números estão por toda a parte, eles estão presentes em nossos documentos, na numeração das casas, nos códigos de telefone, nos jornais, nas revistas, nas páginas dos livros, nas cédulas e moedas e até mesmo nos diferentes recursos tecnológicos que dispomos, como calculadoras, computadores e celulares. De acordo com os estudos de Lerner e Sadovsky (1996), devido ao uso dos números naturais no contexto social, as crianças constroem hipóteses numéricas muito antes de ingressarem na escola. A partir de seu contato com números familiares e frequentes em seu cotidiano, as crianças passam a observar algumas das regularidades do sistema de numeração decimal, formulando uma maneira peculiar de ler e escrever números de diferentes ordens de grandeza (unidade, dezena, centena...). Pires (2013) define como números familiares aqueles que são significativos à criança como, por exemplo: o número que representa a sua idade, a data do seu aniversário, a numeração da sua casa, do seu calçado, dentre outros. Já, os números frequentes se referem aqueles que comumente são utilizados no cotidiano, dessa forma, os canais de televisão, as datas comemorativas, o dia do mês ou ano, podem ser considerados números de uso frequente. Diariamente encontramos e utilizamos os números em suas diferentes funções, como estamos acostumados com a sua prática diária, muitas vezes não paramos para pensar sobre as suas diferentes finalidades. Os números servem para quantificar, codificar, medir e ordenar. Diante desse contexto social, em que o uso dos números naturais se faz necessário, a criança enquanto sujeito biopsicossocial – biológico, psicológico, social - elabora uma lógica infantil quando se requer a habilidade de ler e escrever números. Os estudos realizados por Délia Lerner e Patrícia Sadovsky (1996) trouxeram importantes contribuições a respeito das hipóteses numéricas que as crianças constroem e que podem ser caracterizadas por alguns elementos que descrevemos adiante. Para tanto, tais hipóteses são analisadas considerando duas situações distintas: situação que envolve a escrita de números e situações que envolvem a leitura, especificamente, a comparação entre números. Hipótese que envolve a escrita de números Escrita associada à fala: Em situações que exigem o registro escrito do número, de maneira autônoma, as crianças, em sua maioria, afirmam escrever do “jeito” que falam. Nesta hipótese de escrita numérica, recorrem à justaposição, ou seja, à decomposição do número ajustada à fala, organizando o registro numérico de acordo com as pronúncias dos valores de cada algarismo que compõe o número. Nessa lógica, ao representarem o número 483, podem escrever: 400803 – 40083 – 4803 Para Lerner e Sadovsky (1996) as representações por justaposição são justificadas a partir das próprias características do nosso sistema de numeração decimal, pois falamos os nomes dos números aditivamente (de forma decomposta), no entanto, registramos posicionalmente, ou seja, respeitando o valor que cada algarismo ocupa no número. De acordo com Pires (2013) quando a criança escreve os números em correspondência com a numeração falada, acaba registrando números de forma não convencional, pois o valor posicional do algarismo não é “respeitado”. Sendo assim, a criança, sem ter consciência, escreve outros números, de outras ordens de grandeza, e não aquele que tinha a intenção de registrar. Hipóteses que envolvem a comparação de números O primeiro é quem manda: Conforme a pesquisa de Lerner e Sadovsky (1996) ao comparar qual é o maior ou o menor número, entre dois números compostos com a mesma quantidade de algarismos, como por exemplo, 87 e 78, as crianças observam a posição que os algarismos ocupam no número. Nesta hipótese, afirmam que 87 é maior, porque o 8 vem primeiro, ou seja, “o primeiro é quem manda”. Segundo Pires (2013) apesar das crianças afirmarem que “o maior é aquele que começa com o número maior, pois o primeiro é quem manda” elas ainda não compreendem que o “primeiro é quem manda” porque representa agrupamentos de dez se o número tiver dois algarismos; de cem se o número for composto por três algarismos e assim por diante. A autora ainda ressalta que, embora não percebam essa regularidade de agrupamento, as crianças identificam uma característica importante: que a posição do algarismo no número cumpre um papel significativo no nosso sistema de numeração decimal. A magnitude do número (quantidade de algarismos): Quando convidadas a compararem números compostos com quantidades de algarismos diferentes, as crianças mesmo sem conhecerem as regras do sistema de numeração decimal, são capazes de indicar qual é o maior número. Afirmam, por exemplo, que 999 é maior que 88, porque tem mais números. Para Pires (2013) nessa hipótese as crianças são capazes de indicar qual é o maior número de uma listagem, mesmo sem conhecer as características do sistema de numeração decimal. Portanto, afirmam que “quanto maior é a quantidade de algarismos de um número, maior o número”. Para a autora este critério funciona mesmo que a criança não conheça “o nome” dos números que está comparando, portanto, envolve aspectos visuais “da escrita maior” e não da compreensão da grandeza numérica. Sendo assim, embora essa hipótese “funcione” mesmo que a criança não conheça convencionalmente os nomes dos números, em algumas situações esse critério estabelecido não é mantido. Por exemplo: ao compararem 333 com 88, algumas crianças afirmam que 88 é maior, porque 8 é maior que 3. Portanto, a magnitude do número pode variar de acordo com dois critérios: a quantidade de algarismos no número e o valor absoluto do algarismo, que independe da sua posição no número. Contradições presentes nas hipóteses numéricas das crianças Apesar das hipóteses numéricas do universo infantil sustentarem justificativas pertinentes, de acordo com Pires (2013) podem levá-las a conclusões contraditórias. Segundo Pires (2013) se num determinado momento as crianças escrevem os números relacionando-os à numeração falada, em outro momento, elas consideram que a quantidade de algarismos está relacionada “ao tamanho” e à magnitude do número. Por exemplo: se a criança escreve 4000 200 10 2 para 4.212, ela utiliza mais algarismos do que para escrever 5.000. Logo conclui que o número que representou (4000 200 10 2) é maior que 5.000, pois “quanto mais algarismos, maior é o número”. Entretanto, em outro momento ao comparar 4.000 com 5.000, diz que 5.000 é maior que 4.000, pois o “primeiro é quem manda”. Nesse caso, como a criança pode conciliar as duas hipóteses se aceita que 4000 200 10 2, que se escreve com mais algarismos do que 5.000, seja menor que 5.000, já que o “primeiro é quem manda”? Os estudos exploratórios de Pires (2013) auxiliam na conclusão que a escrita numérica por justaposição – relação com a numeração falada – torna-se inaceitável se comparada às hipóteses que envolvem a comparação e leitura dos números, ou seja, as escritas correspondentes à numeração falada entram em contradição com as hipóteses relacionadas à quantidade de algarismos das notações numéricas. Pode-se dizer que esses conflitos são benéficos para o processo de aprendizagem, pois quando as crianças comparam os números que escrevem, realizam uma autoavaliação doseu próprio conhecimento. Portanto, cabe ao professor conhecer e identificar quais são as hipóteses numéricas apresentadas pelas crianças, para realizar intervenções pontuais contribuindo para o alcance do seu principal objetivo: a aprendizagem. A criança, o espaço e as formas De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) o trabalho com a geometria é de suma importância, pois permite ao aluno desenvolver um tipo especial de pensamento para que se possa compreender, descrever e representar, de forma organizada, o mundo em que vive. Dessa forma, as crianças, mesmo sem frequentar a escola, estabelecem relações com o espaço, observam e exploram diferentes formas geométricas. A geometria enquanto conteúdo particular da Matemática abrange duas áreas fundamentais: o espaço e as formas. Sendo assim, comumente, os currículos oficiais definem a geometria como o bloco de conteúdo Espaço e Forma. Considerando estes dois vieses, analisaremos adiante os estudos de Castrogiovanni (2000) que tratam da evolução da relação que as crianças estabelecem com o espaço; e as pesquisas de Clements e Sarama (2000) que destacam três níveis de conhecimento acerca da aquisição das formas geométricas. O espaço vivido, percebido e concebido As crianças, ao vivenciarem uma série de experiências referentes ao espaço que lhe é familiar, constroem, quase que de forma natural, noções de distância e buscam formas de localização. Isso porque, a estruturação espacial da criança inicia-se pela constituição de um sistema de coordenadas relativo ao seu próprio corpo e por noções adquiridas no convívio social como a identificação de termos como à direita, à esquerda, à frente, atrás etc. Entretanto, essas aprendizagens exploratórias, não são suficientes para que a criança se localize, represente e utilize adequadamente o vocabulário para a sua localização ou movimentação no espaço. É preciso ter conhecimento de como a criança estabelece e constrói a relação com o espaço. Para Castrogiovanni (2000) a apreensão do espaço pela criança segue três etapas denominadas pelo autor como: o espaço vivido; o espaço percebido; e o espaço concebido. É a partir dessas diferentes etapas que a criança passa a identificar o espaço por meio da exploração e da vivência; em segundo momento passa a percebê-lo e apreendê-lo em função do movimento e da observação; e por fim mais adiante, por intermédio da abstração. Segundo Castrogiovanni (2000) o espaço vivido se refere ao reconhecimento do meio físico a partir do movimento e do deslocamento da criança num espaço em que lhe é familiar. Nesse contexto, a criança explora, observa e reconhece o espaço a partir do próprio corpo. Por tratar-se de uma fase egocêntrica, em que o corpo é o ponto de referência para a localização espacial, o sujeito desconsidera outros elementos e objetos que compõem o espaço e que são importantes para se localizar. Quando a criança encontra-se no espaço vivido, ela dificilmente observará os objetos sem considerar o próprio corpo, incorporando à sua observação aspectos generalistas, sem maiores detalhamentos quanto à sua localização em relação aos demais elementos e objetos que constituem o espaço. De acordo com os estudos de Castrogiovanni (2000) o espaço percebido, trata-se daquele que é familiar à criança. Uma vez percebido, é possível executar uma ação, no espaço explorado, sem ter que vivenciá-lo ou abstraí-lo. Por exemplo, quando a mãe pede para a criança pegar uma toalha que está em seu quarto, no guarda-roupa, dentro da primeira gaveta, a criança não precisa vivenciar o espaço com antecedência para localizar a toalha, pois já tem em mente o trajeto de ida e volta a ser percorrido, bem como a localização do objeto a ser encontrado. Por fim, o espaço concebido, que de acordo com Castrogiovanni (2000) é o espaço abstrato, ou seja, nunca vivenciado, onde a criança passa de um conhecimento espacial corporal, o qual era experimentado pelos sentidos, para um saber espacial construído pela reflexão, ou seja, abstração. Nessa etapa, contrariamente à fase egocêntrica, há o estabelecimento de relações espaciais entre diferentes objetos que constituem o espaço, concebendo não só o corpo como referencial, mas também outros elementos. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (1997), nos primeiros anos do ensino fundamental, deve haver um predomínio de atividades orais em que as crianças possam identificar pontos de referência, que não seja somente a partir do seu próprio corpo, de modo que supere o egocentrismo, rumo à ampliação de diferentes vivências, percepções e concepções sobre o espaço. A partir das etapas apresentadas por Castrogiovanni (2000) é possível propor aos alunos uma diversidade de situações cuja resolução possibilite que sistematizem e ampliem esses conhecimentos. Ao explorar o espaço, a localização dos alunos precisa de pontos de referência que podem ser objetos que são fixos ou não. Isso permite o avanço progressivo no domínio de um vocabulário específico que permita chegar a uma localização mais precisa. No entanto, para que os alunos avancem nesses conhecimentos, é necessário desenvolver a capacidade de deslocar-se mentalmente e de pensar o espaço a partir de diferentes pontos de vista, ou seja, é preciso incluir diferentes tipos de representações, tanto orais, quanto gráficas (desenhos e esquemas). Os níveis de conhecimento das figuras geométricas É comum no discurso dos professores que atuam na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que o ensino de Geometria consiste basicamente, no trabalho com as figuras geométricas tais como círculo, quadrado, triângulo e retângulo. Entretanto, se a criança estabelece uma relação espacial, a partir da sua vivência, percepção e concepção sobre o espaço é contraditório iniciar o ensino das formas geométricas a partir das figuras planas. Afinal, o espaço é rodeado e composto por formas tridimensionais. Atualmente os currículos escolares orientam que o trabalho com as figuras geométricas inicie a partir das formas tridimensionais e, que gradativamente, seja ampliado para as formas bidimensionais. As formas tridimensionais, como o nome indica, têm três dimensões: comprimento, altura e largura. As formas bidimensionais, também como o nome indica, têm duas dimensões: comprimento e largura. Podemos considerar que as formas tridimensionais (cubo, paralelepípedo, cilindro, cone etc.), são compostas pelas formas bidimensionais (quadrado, retângulo, círculo e triângulo). A pesquisa realizada pelos estudiosos Clements e Sarama (2010) revela que as crianças constroem ideias sobre formas comuns - como círculos, quadrados, triângulos e retângulos - mesmo antes de entrar na escola, por meio da exploração de brinquedos, livros e programas de televisão com os quais entram em contato com o cotidiano. Mas afirmam que isso não é suficiente, que é preciso que o professor as ajude a ampliar os seus conhecimentos. Nesta mesma pesquisa, os autores americanos Clements e Sarama (2010), definem três níveis de conhecimento geométrico para as crianças de seis a dez anos: o nível de pré-reconhecimento, visual e descritivo. Nível de pré-reconhecimento: concentra-se, exclusivamente, aos aspectos perceptíveis. Nesta etapa, as crianças percebem formas, mas não são capazes de identificar e distinguir uma das outras. Ou seja, muitas vezes desenham uma mesma representação para círculos, quadrados ou triângulos. Nível visual: neste nível as crianças identificam formas de acordo com o seu aspecto e acabam relacionando a forma a um objeto conhecido, por exemplo, uma esfera se parece com uma bola de futebol, um dado se assemelha ao cubo. Nível descritivo: é somente neste nível que as crianças reconhecem e podem caracterizar as formas pelas suas propriedades,ou seja, nesse nível as crianças identificam que um cubo tem seis faces quadradas, oito vértices e doze arestas. Exemplo: Face Vértice Aresta Fonte: elaborado pela autora Para Clements e Sarama (2010) o progresso dos níveis de pensamento depende de experiências pessoais e do ensino. Por isso, em alguns casos os níveis de conhecimento das figuras geométricas, podem ser tardios ou antecipados. Enquanto o nível descritivo pode vir a se desenvolver mais cedo em crianças, algumas pessoas adultas podem permanecer no nível visual para o resto da vida. O aspecto experimental, neste sentido, é colocado em evidência e afirma a importância de se iniciar o ensino das formas geométricas pelas figuras tridimensionais, pois o ensino simplista, que a criança aprende apenas a observar e identificar um quadrado, por exemplo, pouco contribui para o avanço do nível descritivo que, porventura, trata-se de um conhecimento mais elaborado. Referências BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática para o 1º e 2º ciclos. Brasília: Secretaria de Ensino Fundamental, 1997. CASTROGIOVANI, A. (Org.). Apreensão e compreensão do espaço geográfico – ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre, RS: Mediação, 2000. CLEMENTS, D. H. e SARAMA, J. Young Children’s Ideas about Geometric Shapes (Ideias das crianças pequenas sobre formas geométricas), NCTM, USA. 2000. LERNER, D.; SADOVSKY, P. O sistema de numeração decimal um problema didático. In: PARRA, C.; SAIZ, I. (Org.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Artmed. 1996. PIRES, C.M.C. Números naturais e operações. Coleção: Como eu ensino. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2013
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