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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI LITERATURA PORTUGUESA GUARULHOS – SP SUMÁRIO 1 A LITERATURA E A CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA........3 2 A LÍRICA TROVADORESCA: CANTIGAS LÍRICAS (DE AMIGO, DE AMOR) E CANTIGAS SATÍRICAS (DE ESCÁRNIO E DE MALDIZER). ..................................... 5 3 O TROVADORISMO (CANTIGAS LÍRICAS E CANTIGAS SATÍRICAS) ................ 6 4 TROVADORISMO EM PORTUGAL ........................................................................ 7 5 CANCIONEIROS .................................................................................................. 11 6 A FICÇÃO CAVALEIRESCA ................................................................................. 12 7 TEATRO DE GIL VICENTE .................................................................................. 20 8 GÊNEROS PRINCIPAIS, CRONOLOGIA E EVOLUÇÃO .................................... 22 9 AUTO DA BARCA DO INFERNO ......................................................................... 24 10 PERSONAGENS .................................................................................................. 25 11 ENREDO ............................................................................................................... 25 11.1 Tempo e espaço ............................................................................................. 28 11.2 Biografia .......................................................................................................... 28 11.3 Trechos comentados ...................................................................................... 28 12 O PARADIGMA DO ESCRITOR CLÁSSICO – CAMÕES .................................... 30 12.1 Biografia .......................................................................................................... 30 12.2 Morte............................................................................................................... 31 12.3 Características e obras ................................................................................... 32 12.4 Os Lusíadas .................................................................................................... 33 12.5 Curiosidade ..................................................................................................... 34 12.6 Poesias ........................................................................................................... 34 12.7 Frases de Camões ......................................................................................... 36 12.8 Poesia épica camoniana ................................................................................. 37 13 BARROCO: NORMA E TRANSGRESSÃO; RELEITURAS DO LÍRICO E DO SATÍRICO: BOCAGE ................................................................................................ 43 14 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 68 3 1 A LITERATURA E A CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA Do sentido de identidade nacional ao sentido de identidade individual Fonte: www.estudopratico.com.br Esta reflexão toma como exemplo das literaturas nacionais a Literatura Portu- guesa, entendendo-a como entidade identificadora de um núcleo de obras literárias da autoria de indivíduos que escrevem e que publicam em língua portuguesa e que se identificam com o país que é Portugal. A definição é com certeza deficiente como quase todas as definições que se apresentam num período de turbulência epistemo- lógica, como é o nosso atual, marcado por mudanças em todos os domínios, como tão bem sintetiza os pontos: resistências, mutações e linhas de fuga em relação a uma continuidade ou a um fim da concepção de literatura nacional. Deficiente ou não, a definição não se ajusta a outras literaturas em língua portuguesa, como são os casos da Literatura Angolana, Moçambicana, Bissau-guineense, Timorense, São Tomense e Cabo-Verdiana. Não se refere à Literatura Brasileira porque essa, sendo dotada há muito de uma identidade nacional forte e autônoma, é uma exceção em relação às outras mencionadas. É comum considerar que as literaturas de língua portuguesa formam a enti- dade designada como Lusofonia, mas à medida que as políticas comuns esperadas e 4 desejadas não surgem, a Lusofonia pode ser percebida por um número crescente de pessoas mais como um propósito de intenções benevolentes e formais e menos como uma prática efetiva de diálogo e de intercâmbio culturais verdadeiramente democrá- tica entre os países de língua portuguesa. Fenômenos relativamente recentes como a inserção de Portugal na União Europeia, a internacionalização e a globalização têm sido determinantes para a mudança de paradigma no que diz respeito à identidade nacional implícita na designação de Literatura Portuguesa, aquela que é escrita, pu- blicada e identificada com Portugal. Com efeito, a produção, a recepção e a instituci- onalização de obras portuguesas têm circulado no espaço cultural e artístico segundo lógicas e dinâmicas novas sobretudo desde finais da década de 80. Parecem sobressair, então, três etapas na concepção e na representação da identidade nacional na Literatura Portuguesa, atendendo sobretudo a obras ficcionais: A primeira etapa consiste na exaltação e na propagação da identidade nacional assente na noção de Pátria portuguesa; A segunda etapa consiste no desvanecimento da questão da identidade nacional em obras que problematizem a identidade nacional portuguesa, posteriormente interpelada também por outras coordenadas decorrentes da integração na União Europeia. Na primeira etapa, podemos distinguir dois períodos: o romântico em que em obras paradigmáticas tais como Viagens na Minha Terra (1846) de Almeida Garrett e Eurico, o Presbítero (1843) de Alexandre Herculano, a língua e a nacionalidade por- tuguesas são entidades que outorgam identidade a pessoas individuais e coletivas que se encontram na sua posse. Findo o período romântico, e apesar da autonomia estética reivindicada por movimentos literários tais como o Simbolismo e o Modernismo literário portugueses, a noção de Pátria portuguesa mantém-se crucial para o entendimento da língua em geral e da língua literária em particular. 5 Alexandre Herculano, escritor do Romantismo português. Fonte: www.portaldaliteratura.com Referente ao período abrangido pelo Modernismo português, o artigo de Os- valdo Manuel Silvestre, que desconstrói analiticamente a famosa frase de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego: “Minha pátria é a língua portuguesa”, é esclare- cedor quanto ao subtexto fortemente colonial da afirmação. Ora, esta frase tem ser- vido de estandarte à Lusofonia na medida em que é considerada uma afirmação de teor pós-colonial. Contestando esta interpretação comum, percebem-se vetores de cunho emancipatório e pós-colonial. 2 A LÍRICA TROVADORESCA: CANTIGAS LÍRICAS (DE AMIGO, DE AMOR) E CANTIGAS SATÍRICAS (DE ESCÁRNIO E DE MALDIZER). O vocábulo lírico deriva de lira, instrumento musical muito utilizado pelos gregos a partir do século VII a.C. Chamava-se lírica a canção que se entoava ao som das liras. Havia, pois um casamento entre a música e a palavra, o qual perdurou até o século XV, quando os poemas se distanciaram da música e passaram a ser lidos ou declamados. Por isso, a poesia lírica apresenta muitos elementos comuns à música: o ritmo, a melodia, a harmonia. 6 Fonte: www.halloweencostumes.com O gênero lírico expressa uma realidade interna. É o texto no qual o eu-lírico exprime suas emoções, ideias e impressões sobre o mundo exterior. Normalmente, é usada a 1ª pessoa,e há predomínio da função poética da linguagem. Pertencem a esse gênero os poemas em geral. 3 O TROVADORISMO (CANTIGAS LÍRICAS E CANTIGAS SATÍRICAS) Contexto Histórico A Idade Média foi um longo período da história que esteve marcado por uma sociedade religiosa. Nele, a Igreja Católica dominava inteiramente a Europa. Nesse contexto, o teocentrismo (Deus no centro do mundo) foi sua principal característica. Sendo assim, o homem ocupava um lugar secundário e estava à mercê dos valores cristãos. Dessa maneira, a igreja medieval era a instituição social mais importante e a maior representante da fé cristã. Ela que ditava os valores e assim, agia diretamente no comportamento e no pensamento do homem. Esse sistema, chamado de feudal, estava baseado numa sociedade rural e autossuficiente. Nele, o camponês vivia mi- seravelmente e a propriedade de terra dava liberdade e poder. Naquele momento, somente as pessoas da Igreja sabiam ler e tinham acesso à educação. https://www.todamateria.com.br/idade-media/ 7 4 TROVADORISMO EM PORTUGAL Na Península Ibérica, o centro irradiador do Trovadorismo foi na região que compreende o norte de Portugal e a Galiza. Assim, a Catedral de Santiago de Com- postela, centro de peregrinação religiosa, desde o século XI, atraía multidões. Ali, as cantigas trovadorescas eram cantadas em galego-português, língua falada na região. Os trovadores provençais eram considerados os melhores da época, e seu estilo foi imitado em toda a parte. O Trovadorismo português teve seu apogeu nos séculos XII e XIII, en- trando em declínio no século XIV. O Rei D. Dinis (1261-1325) foi um grande incentivador que prestigiou a produ- ção poética em sua corte. Foi ele próprio um dos mais talentosos trovadores medie- vais com uma produção de 140 cantigas líricas e satíricas aproximadamente. Além dele, outros trovadores obtiverem grande destaque: Paio Soares de Taveirós, João Soares Paiva, João Garcia de Guilhade e Martim Codax. Nessa época, as poesias eram feitas para serem cantadas ao som de instru- mentos musicais. Geralmente, eram acompanhadas por flauta, viola, alaúde, e daí o nome “cantigas”. O cantor dessas composições era chamado de "jogral" e o autor era o "trovador". Já o "menestrel", era considerado superior ao jogral por ter mais instrução e habilidade artística, pois sabia tocar e cantar. O Trovadorismo foi a primeira manifestação literária da língua portuguesa. Sur- giu no século XII, ainda na época da formação do Estado nacional português. Sua primeira manifestação foi em 1189 foi a Cantiga da Ribeirinha ou Cantiga da Garvaia, de Paio Soares de Taveirós. Os trovadores eram, em geral, artistas de origem nobre, que escreviam e cantavam as cantigas (poesias cantadas) com o acompanhamento de instrumentos musicais. A reunião em livro dos manuscritos ficou conhecida como “Cancioneiro”. Ao todo, são três: Cancioneiro da Biblioteca, Cancioneiro da Ajuda e Cancioneiro da Vaticana. Os artistas mais famosos são: Dom Duarte, Dom Dinis, Paio Soares de Tavei- rós, João Garcia de Guilhade e Aires Nunes. http://www.infoescola.com/literatura/poesia/ 8 Este período da literatura portuguesa vai até o ano de 1418, época do início do Quinhentismo. Nessa época, a Igreja possuía considerável influência tanto no as- pecto político e econômico, quanto no cultural, artístico e literário. Dessa forma, pre- dominava a visão teocêntrica, voltada a Deus, sendo o homem bastante religioso e entregando sua vida à vontade divina. A Igreja Católica tinha uma função de destaque, influenciando inclusive as produções artísticas e literárias. No que diz respeito ao aspecto político-econômico, predominava o sistema de- nominado de “Feudalismo”, no qual o poder era descentralizado e o direito de gover- nar concentrava-se nas mãos de um senhor feudal que tinha plenos poderes sobre todos os servos e vassalos que trabalhavam em suas terras. Este senhor, também chamado de “suserano”, cedia a posse de parte de suas terras a um vassalo, que, por sua vez, se comprometia a cultivá-las, repassando parte da produção ao senhor. Em troca, recebiam proteção militar e judicial no caso de possíveis ataques e invasões. Essa relação de subordinação recebeu o nome de vassalagem. Tal característica, como será exposto a seguir, desempenha um papel fundamental na elaboração das cantigas. Escritas em galego-português, as cantigas são divididas em: Líricas (Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo) e satíricas (Cantigas de Escárnio e Cantigas de Mal- dizer). Nas Cantigas de Amor, o trovador costumava destacar as qualidades da mulher amada, colocando-se sempre em posição de vassalo, termo que, na Idade Média, significa “inferior”. O tema mais desenvolvido é o do amor não correspondido. Pos- tando-se como vassalo, o trovador espera receber da amada (suserana) um benefício em troca de seus “serviços” artísticos e amorosos. Quantos o amor faz padecer Penas que tenho padecido Querem morrer e não duvido Que alegremente queiram morrer. Porém enquanto vos puder ver, Vivendo assim eu quero estar E esperar, e esperar. Sei que a sofrer estou condenado http://www.infoescola.com/literatura/quinhentismo/ http://www.infoescola.com/historia/feudalismo/ 9 E por vós cegam os olhos meus. Não me acudis; nem vós, nem Deus Mas, se sabendo-me abandonado, Ver-vos, senhora, me for dado. Vivendo assim eu quero estar E esperar, e esperar. GUILHADE, João Garcia de. In: CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego- portugueses. As Cantigas de Amigo também versam sobre temas amorosos, no entanto, o eu-lírico é uma mulher, embora os autores fossem homens. Assim, o termo “amigo” assume o significado de “namorado”. O principal tema consiste na lamentação da mu- lher pela falta do amado. Ondas do mar de Vigo Se vires meu namorado! Por Deus, (digam) se virá cedo! Ondas do mar revolto, Se vires o meu namorado! Por Deus, (digam) se virá cedo! Se vires meu namorado, Aquele por quem eu suspiro! Por Deus, (digam) se virá cedo! Se vires meu namorado Por quem tenho grande temor! Por Deus, (digam) se virá cedo! Dom Diniz 10 Nas Cantigas de Escárnio, as sátiras eram indiretas, com uso de duplo sentido, de modo que o nome da pessoa satirizada nunca aparecia. Sobre vós, senhora, eu quero dizer verdade E não já sobre o amor que tenho por vós: Senhora, bem maior é vossa estupidez Do que a de quantas outras conheço no mundo Tanto na feiura quanto na maldade Não vos vence hoje senão a filha de um rei Eu não vos amo nem me perderei De saudade por vós, quando não vos vir. Pero Larouco Já nas Cantigas de Maldizer, haviam sátiras diretas e não raras eram as agres- sões verbais com o uso de palavrões. O nome da pessoa muitas vezes aparecia. O bela dama gorda, que anda pelos bosques a noite O que será que queres com essas saias curtas? Estarás à procura de um pretendente? Ou apenas de uma diversão passageira Com rapazes vorazes para mostrar suas forças. Ó bela dona gorda, por que fazes isso? Provocar o desejo alheio e depois renunciar O que pretendes fazer agora, com sua fome enorme? Engolir o mundo e soltar os pedaços ao longe? Não sabes responder, pois suas formas globais não deixam. És a o barril de vinho da taverna, onde todos bebem Sem pudor nenhum de mostrar suas vergonhas ao dia Dá ao peito a quem é de direito, a não foges a luta É bela dama feia e gorda, nunca irás casar Nem com o belo cavaleiro de roupas azuis Que faz de sua espada, a faca perfeita 11 Nos dias de festas e as carnes de javali. Não satisfaz suas vontades pervertidas e maldosas És apedrejada a cada canto que passas Sua reputação não é das melhores, nem exemplo O bela dama feia, gorda e velha, digna de pena Nãose maltrate assim, não é preciso fazer isso Deixa sua avantajada cabeça pensar Ou já perdestes o dom de pensar? Achas que não, mas é o que parece, bela gorda Deixe os anos passarem e sua pele ficar, mas argilosa Perceberás que não poderá desfrutar das alegrias Que antes fazias e gozavas em demasiada euforia Sua época de outono chegou e o inverno logo chegará Com seu corpo imenso e pesado no mármore gelado É bela dama gorda, sente-se e tome um café. 5 CANCIONEIROS Os Cancioneiros são os únicos documentos que restam para o conhecimento do Trovadorismo. Trata-se de coletâneas de cantigas com características variadas e escritas por diversos autores. Eles são divididos em: Cancioneiro da Ajuda: Constituído de 310 cantigas, esse cancioneiro se encontra na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa, originado pro- vavelmente no século XIII. Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa: conhecido também pelo nome dos italianos que os possuíam, “Cancioneiro Colocci-Bran- cuti”, esse cancioneiro composto de 1.647 cantigas, foi compilado pro- vavelmente no século XV. Cancioneiro da Vaticana: originado provavelmente no século XV, esse cancioneiro está na Biblioteca do Vaticano composto de 1.205 cantigas. 12 6 A FICÇÃO CAVALEIRESCA O conteúdo específico dessa virtude evolui e amplia-se com o correr do tempo e com a transição do poema épico ao livro de cavalarias, mas registra um núcleo semântico invariável que remete ao seu étimo latino, o verbo pode-se, ‘ser útil, apro- veitar, beneficiar, servir de maneira excelente ou eminente’; trata-se assim de obser- var, em cada etapa de sua evolução, de que diferentes maneiras o guerreiro cristão demonstra sua utilidade ou capacidade de serviço, e, conforme a ela, como variam seus modos concretos de sobressair em excelência no exercício do ofício heroico que lhe é próprio, ou seja, na guerra, na política, na sociabilidade aristocrática. Se se examinam com cuidado os cantares de gesta franceses e castelhanos, a utilidade e a excelência do guerreiro definem-se claramente como um justo exercício da virtude vassálica relativa ao senhor, segundo os dois tipos concretos de serviço que distinguem o direito feudal, o auxilium e o consilium, quer dizer, a assistência na batalha e o conselho na corte, a guerra e a política – nos termos célebres de Santo Isidoro de Sevilha, a fortitudo e a sapientia. Porém, essa semântica restrita da virtude heroica cristã, tão clara e precisa nos poemas épicos primitivos, amplia-se já nos ro- manos franceses de matéria clássica e troiana no século XII e, muito mais notada- mente, nas novelas de cavalarias de matéria artúrica, até o ponto de acrescentar ao inicial dever de auxilium e consilium para com o senhor um novo dever, agora de serviço amoroso para com a “senhora”, a dama, com o qual aquela virtude heroica inicialmente feudal se redefine como cortês. A mulher, e a par dela o vasto mundo da intimidade e da relação entre os sexos, fazem assim sua fulgurante aparição na ficção heroica e reformulam um tipo de vas- salagem até então puramente masculino, até convertê-lo em outro serviço mais rico e profundo, de natureza mista masculino feminina: os cenários para as façanhas e para a manifestação das virtudes do herói já não serão apenas a guerra e a política, mas também, junto a estas, o amor, a alcova, a festa e os jogos, formas e ocasiões, todas elas, de uma sociabilidade ampliada e tornada complexa . Essa evolução e ampliação do conceito de proeza –e, por sua vez, o de hero- ísmo– foi possível não apenas pelos embriões evolutivos insertos na própria canção de gesta, cujos estreitos parâmetros iniciais tendem por si próprios a transbordar e a 13 alargar-se ao ritmo da mutação do contexto histórico-social que a sustenta, como tam- bém pela decidida influência que sobre a textualidade ficcional começaram a exercer outros discursos e tradições literárias, históricas, míticas e culturais, como a historio- grafia e pseudo historiografia latinas medievais, o código histórico da cavalaria e os tratados doutrinais em que este é exposto e analisado, e o fecundo corpus da lírica trovadoresca provençal, veículo do fenômeno sociocultural do amor cortês. Trata se de uma somatória de influências e componentes que, em equilibrada integração e recíproca potenciação, darão como resultado o produto mais caracterís- tico dessa nova épica heroica, que, para distingui-la da antiga, chamamos cavalei- resca ou cortesã, e que, até os fins do século XII e ao longo de todo o XIII, há de plasmar-se na riquíssima floração da novela artúrica. Seu processo de gestação é bem conhecido: a partir de um conjunto de antigos mitos célticos recolhidos pelo dis- curso pseudo cronístico de certa historiografia inglesa em língua latina, cujo mais no- tável resultado é a História Regum Britanniae de Godofredo de Monmouth, os perso- nagens do rei Artur, da rainha Guinevere, do cavaleiro Lancelote e do mago sábio Merlim passam à ficção, em verso francês, pela mão do Roman de Brut de Wace e, sobretudo, pelas novelas de Chrétien de Troyes, quem se encarrega de incorporar à matéria a doutrina occitânica do amor cortês e os códigos da cavalaria histórica. O sucesso dos livros de cavalarias portugueses ao longo do século XVI e inícios do XVII é um dado mais que evidente. Da publicação em 1522 da Crónica do Impera- dor Clarimundo donde os reis de Portugal descendem (Lisboa, Germão Galharde), do historiador João de Barros, até à reedição da Terceira e Quarta parte da Chrónica de Palmeirim de Inglaterra na qual se tratam as grandes cavallerias de seu filho o príncipe dom Duardos Segundo (Lisboa, Jorge Rodrigues, 1604), de Diogo Fernandes, este género conta em terras portuguesas cerca de vinte e cinco edições, cifra nada desde- nhável do ponto de vista da recepção, que se vê incrementada pelas dezenas de ma- nuscritos cavalheirescos conhecidos na atualidade, os quais deixam supor uma per- sistência do gosto por este tipo de literatura até bem entrado o século XVII, ou ainda princípios do XVIII. Contudo, estes copiosos números não serviram para atrair a aten- ção dos investigadores a um campo que, junto com os livros de pastores e os livros de viagens, está na base da novelística portuguesa moderna. Esse descuido da crítica tem acarretado um dado verdadeiramente desolador, como é o de uma grande quantidade de textos deste género não ter sobrevivido até 14 aos nossos dias. Quanto aos livros de cavalarias na sua difusão manuscrita, os dados seguintes falam por si: extraviaram-se as Aventuras do Gigante Dominiscaldo, de Ál- varo da Silveira; a Crónica do Espantoso e nunca vencido Dracuso, Cavaleiro da Luz, de Francisco de Morais Sardinha; um de título desconhecido, de Fernão Lopes de Castanheda; e o Clarindo de Grécia, de Tristão Gomes de Castro. Deste último autor, madeirense, até há pouco também entrava neste grupo a sua Argonáutica da cavalaria ou Leomundo de Grécia, que foi descoberto no ano pas- sado, depois de intensas pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lis- boa. Também nada sabemos de duas anónimas vidas de imperadores, cujos nomes, Alberto e Siderico, parecem assinalar a sua procedência ficcional. Mas aqui não acaba tudo. Este desdém também trouxe consigo o desconhecimento quase absoluto da bi- ografia de alguns autores desta classe de obras. Por exemplo, de Diogo Fernandes só sabemos o que se diz no pé do frontispí- cio da Terceira e Quarta partes do Palmeirim, ou seja, que era oriundo da cidade de Lisboa. O mesmo acontece com Baltasar Gonçalves Lobato, que escreveu a Quinta e Sexta parte de Palmeirim de Inglaterra mais Chronica do famoso príncipe Dom Clarisol de Bretanha, filho do príncipe dom Duardos de Bretanha (Lisboa, Jorge Rodrigues, 1602), e cujos dados biográficos se resumem a uma linha: «natural da cidade de Ta- vira. Em conjunto,toda esta situação se traduz ainda no desprestígio social e literá- rio que pesou sobre este género durante boa parte do século XVI, devido sobretudo às críticas de eclesiásticos e humanistas. Estes viam nos livros de cavalarias uma fonte de perversões morais onde os jovens – em particular as mulheres –, podiam beber e adquirir uma desenfreada fantasia que os afastaria tanto das suas verdadeiras obrigações como da sua devoção religiosa. Sem dúvida, esta suposta influência, per- niciosa e daninha, foi um dos motivos pelos quais a maior parte da crítica posterior renunciou a estudar esses textos, tidos por nocivos à moral pública, atitude que, por outro lado, se refletiu na visão dada pelos manuais da literatura. Neste sentido, ao longo das próximas páginas pretendemos realizar um per- curso histórico através de um conjunto considerável, embora não exaustivo, de histó- rias da literatura portuguesa, com o fim de observar não só o deficiente tratamento consagrado a estas narrativas, senão também as causas pelas quais foram preteridas, já que consideramos que todas elas contribuíram de alguma maneira para marcar os 15 estudos filológicos dos séculos XIX e XX. Deixando de parte a literatura cavaleiresca de corte medieval, ou seja, a Demanda do Santo Graal, o Livro de Josep ab Arimathia, mais os fragmentos do Livro de Merlim e do Livro de Tristam, e esquecendo a debatida questão da origem portuguesa do Amadis de Gaula, de cujo estudo se ocuparam em maior medida, os livros de cavalarias renascentistas foram um dos géneros mais des- denhados nos manuais de teoria literária portuguesa. Procuremos, pois, conhecer as chaves desta aziaga realidade. Além dos con- tributos estrangeiros, vindos da mão de autores tão prestigiosos como Bouterwek, De- nis ou Wolf, que são os autênticos pioneiros na exploração deste terreno, a primeira análise global relativamente interessante é a de Teófilo Braga, que de 1870 até 1914, em sucessivas reedições da sua história literária, publica, matiza e amplia as suas opiniões sobre a matéria cavaleiresca. No primeiro momento só considera dois textos originalmente escritos em português: o Clarimundo e o Palmeirim de Inglaterra, este último atribuindo-o a Francisco de Moraes numa época (finais do século XIX) em que existia um aceso debate sobre a sua genuína paternidade, chegando a declarar num tom de sentido nacionalismo. Seguindo esta veia patriótica aventura-se ainda a declarar que, segundo a tra- dição, foi originariamente em português. Fora de conjecturas e após uns anos, depois de agregar a este corpus o Memorial de Ferreira de Vasconcelos e as continuações do Palmeirim, e apesar de realçar um facto tão relevante como o de que, Teófilo não deixa por isso de menosprezar um grupo literário copioso e de grande importância no desenvolvimento da prosa quinhentista. A sua opinião sobre o Clarimundo não deixa lugar a dúvidas. O estilo de Jorge Ferreira na Novella é inferior ao das suas três comedias; falta- -lhe esse elemento popular das locuções e dos Anexins, que o torna bem digno de ser estudado. Deste modo, na aproximação aos livros de cavalarias, apreciados sob a epígrafe geral de, ficam fixados alguns pontos que marcarão o rumo de trabalhos pos- teriores: estabelece-se o corpus do género na sua transmissão impressa; menos- preza-se o género por conter um alto grau de fantasia e imaginação; vincula-se a sua criação e desenvolvimento ao âmbito cortesão; e julgam-se as obras cavaleirescas de autores consagrados, como é o caso de João de Barros, num segundo plano dentro 16 da sua própria produção literária, até ao ponto de tomar o Clarimundo como uma ta- refa de juventude e, por conseguinte, imperfeita, de menor qualidade e à margem dos seus grandes livros historiográficos. Isto mesmo acontece com o Memorial de Vasconcelos, que, segundo este cri- tério, nem está à altura das suas excelentes comédias nem é digno de ser estudado. Com a passagem de século, uma vez aclarada definitivamente a autoria do Palmeirim de Inglaterra a favor de Francisco de Moraes, com dissertações tão fundamentais como as de Odorico Mendes, Carolina Michaëlis de Vasconcelos ou William E. Purser, pouco a pouco os livros de cavalarias começam a achar o seu lugar e a adquirir certo relevo nos manuais de história da literatura. Para isso contribui em grande medida o extraordinário labor de Fidelino de Figueiredo, que completa as diversas lacunas que Teófilo Braga tinha deixado a respeito da relevância – ou não – da narrativa cavalei- resca portuguesa. Neste sentido, embora as suas conclusões não sejam nem exatas nem conclu- dentes, o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa oferece um corpus muito mais definitivo com a exumação dos textos cavaleirescos manuscritos conservados na dita instituição. Deste modo, amplia a já referida listagem de impressos com a in- clusão de um considerável conjunto de códices inéditos: a Crônica do imperador Be- liandro, de Leonor Coutinho; o Libro terceiro de la Segunda parte de la Selva de ca- valarias famosas, redigido em castelhano por António de Brito da Fonseca; e uma série de continuações palmerinianas atribuídas ficticiamente ao historiador Gomes Eannes de Zurara, formada pela Vida de Primaleão, a Segunda Parte da Crónica do Príncipe dom Duardos e a Terceira Parte da Crónica do Príncipe dom Duardos. Como desaparecidos figuram o Lesmundo [sic] de Grecia, de Tristão Gomes de Castro, o Dominiscaldo, de um tal Álvaro da Silveira, e dois livros de cavalarias de Gonçalo Coutinho titulados História de Palmeirim de Inglaterra e de D. Duardos. Para Figuei- redo. Com este mesmo propósito, além de assinalar as múltiplas traduções de que é objeto durante o século XVI – para o espanhol, o francês, o italiano e o inglês –, não só inclui um amplo resumo do romance de Moraes, mas também o insere na órbita do denominado ciclo dos palmeirins castelhanos, cujo conjunto é composto pelo Palmerín de Olivia (Salamanca, 22 de dezembro de 1511), o Primaleón (Salamanca, Juan de Porras, 3 de julho de 1512) e o Platir (Valladolid, Nicolás Tierri, 1533). Em relação ao 17 Clarimundo, Figueiredo não hesita em notar que, e que ajuda a essa «glorificação pátria» que será a base de Os Lusíadas de Camões. Em suma, estas investigações mostram um novo rumo encaminhado para o conhecimento global da prosa renascen- tista, uma nova orientação que tardará a dar os seus frutos, muitas décadas depois. O resto das histórias da literatura dos anos vinte e trinta quase não acrescenta novos detalhes às premissas anteriores. José Agostinho perfilha as velhas teses de Braga e, sob a etiqueta de, torna a arremeter contra Francisco de Moraes porquê. No polo oposto encontra- se o inglês Aubrey F. Bell, que, além de destacar o valor que os portugueses outorgavam a estes livros pelo facto de serem um reflexo das suas próprias façanhas no Oriente, também crê que o Palmeirim. No que concerne ao estilo do Memorial, Agostinho entende que, opinião de que se distancia Albino Forjaz de Sampaio. É já por volta da década de sessenta que se torna a abordar o tema com uma certa extensão, embora sem aproveitar em nenhum caso as pesquisas bibliográficas realizadas por Massaud Moisés durante os anos cinquenta, graças às quais este es- tudioso achou um número ingente de manuscritos cavaleirescos conservados nas bi- bliotecas públicas de Portugal, reordenando assim a lista oferecida por Figueiredo anos atrás. Contamos, neste período, com os manuais de Feliciano Ramos, Joaquim Ferreira e António José Barreiros, onde se percebe imediatamente que a narrativa de cavalarias ocupa um espaço igual ou maior do que a novela de pastores e a senti- mental. No primeiro e mais meritório, ainda sob o rótulo genérico, misturam-se numa sucessão sem ordem concreta tanto Barros, Moraes e Vasconcelos como Bernardim Ribeiro, Jorge de Montemorou Fernão Álvares do Oriente, ressaltando acima de todos o Palmeirim de Inglaterra, porque Feliciano Ramos faz de Francisco de Morais um autêntico homem de seu tempo, capaz de insuflar vida às suas personagens através da dialética e da descrição de costumes cortesãos: “Os episódios sucedem-se com facilidade, revelando um novelista rico de fa- culdades imaginativas. A mitologia da literatura deste género, com o seu maravilhoso habitual, acontecimentos fabulosos e inexplicáveis, feiticeiras e gigantes, depara-se através de todo o romance. […]. Nos costumes, nos trajes, nos diálogos, nas reações das almas, apercebe-se por vezes o homem do século XVI, e acha-se que o novelista entra em contato com a vida. ” 18 O Memorial continua sendo desvalorizado porque, segundo o mesmo Ramos. Sobre o tema em questão, uma das últimas aproximações de interesse é a boa história da literatura de António José Saraiva e Óscar Lopes, onde, com a bucólica, se relaci- ona a ficção cavaleiresca, inserindo-a na época renascentista e maneirista. Nela se destaca o Palmeirim, não pelo seu conteúdo, cheio de tópicos e lugares-comuns re- petidos até à saciedade, mas sim pelo seu estilo e descrição de costumes cortesãos, que não contribuem, em todo o caso, para dar um toque mais dinâmico à narração. O Memorial de Vasconcelos é analisado ao mesmo tempo que as suas comé- dias em prosa, sem existir uma separação nítida entre a sua produção cavaleiresca e o seu labor dramático, sobressaindo aquele não pelo seu valor literário, mas antes porque, ou seja, a relação do torneio de Xabregas através do qual o infante D. João é armado cavaleiro, o que converte este volume num manual de educação de príncipes. Dos estudos posteriores, que não são propriamente histórias da literatura, dois deles merecem uma atenção especial nestas páginas. Em primeiro lugar, sobressai a História do romance português de Gaspar Simões (o mais influente crítico saído da revista coimbrã Presença), que oferece o primeiro estudo monográfico sobre a evolu- ção diacrónica do género novelesco em terras lusas, estudo no qual se inclui um ca- pítulo exclusivamente dedicado à matéria cavaleiresca renascentista. Os valores deste excelente manual radicam em tomar o Clarimundo como o primeiro, isto é, com a obra de Barros publicada em 1522 surge. Também as suas palavras sobre o Pal- meirim, onde Moraes reflete através das suas personagens rasgos da sua própria personalidade individual, são palpavelmente elogiosas. No que toca ao Memorial, às continuações do Palmeirim e aos manuscritos cavaleirescos, Gaspar Simões não oferece nada de novo, dando a entender que todos eles representam um retrocesso. O outro manual que sobressai é o de Ettore Finazzi- Agrò, que analisa o processo evolutivo do género novelesco limitando-se apenas ao século XVI. Trata-se, não obstante, de um pequeno volume de boa divulgação de 126 páginas, metade das quais está dedicada por completo à análise da narrativa cavalei- resca, o que indica a supremacia atribuída a este género face aos outros dois também tratados, isto é, o pastoril e o conto. A tese fundamental do italiano baseia-se em situar a decadência dos livros de cavalarias ao longo da segunda metade do século XVI, concretamente a partir da pu- blicação do Memorial de Vasconcelos, onde se perde não só o carácter apologético 19 nacional do Clarimundo, senão também a caracterização do ambiente cortesão sob um manto cavaleiresco. Esse ocaso revela, em clara oposição ao mundo moderno. Contudo, este livro alcança maior relevância quando nos aproximamos de duas histó- rias da literatura publicadas há relativamente pouco tempo, a História crítica da Lite- ratura Portuguesa dirigida por Carlos Reis, a qual segue o modelo que Francisco Rico aplicou ao âmbito castelhano, e a História de la Literatura Portuguesa, elaborada pelos autores Apolinário e Gavilanes Laso. Na primeira transcrevem-se diretamente vários extratos da obra de Finazzi- Agrò, ao passo que na última os responsáveis pelo capítulo dedicado à (Gavilanes Laso e Carrasco González), partem dos pressupostos ditados pelo italiano, a quem tomam como autorias, discrepando apenas num único aspecto: a data do declínio dos livros de cavalarias. Por outro lado, resulta desolador que nestes manuais se acolham teorias com mais de duas décadas de vida e que neles não se haja tido em conta os sucessivos estudos realizados nos últimos anos, no domínio universitário, em forma de teses de mestrado, de dissertações de doutoramento e ainda de teses de doutora- mento. Referimo-nos às análises de Maria Helena Duarte Santos, Maria Leonor Ra- mos Riscado, Rosário Santana Paixão– todas elas centradas no Clarimundo–, Isabel Almeida– a única a tratar com rigor crítico o género impresso na sua totalidade –, ou Cláudia Ferreira de Sousa Pereira– dedicada ao Memorial. Na verdade, não deixa de ser curioso o facto de a esta geração de mulheres (a que haveria de somar o nome de Margarida Alpalhão) se estar a dever a recuperação de um género esquecido que no Renascimento foi devorado, sobretudo, pelo público feminino. Ainda mais frustrante é que em vários dos manuais de literatura publicados já no século XXI nem sequer se faça uma sucinta menção aos livros de cavalarias re- nascentistas, sem dar importância a todo um grupo literário que mereceu durante sé- culos a predileção tanto de criadores como de leitores. Como vemos, não há um cri- tério único. Para uns o Palmeirim é um livro de extraordinária beleza, cheio de imagi- nação e susceptível de configurar grandes personagens literárias. Outros, contudo, encarregam-se de desdenhá-lo por verem nas suas páginas um alto grau de fantasia com infindáveis aventuras desconexas e sem sentido. Quanto a Barros e a Vasconcelos, todos parecem estar de acordo em conside- rar respectivamente o Clarimundo e o Memorial de ínfima qualidade face ao resto da sua produção literária. Do historiador, às vezes é possível ouvir alguma voz a seu 20 favor graças à mistura de ficção e história de que faz gala, enquanto que, no que diz respeito ao comediógrafo, a maioria dos autores é unânime em julgar a sua obra como um passo atrás no desenvolvimento da narrativa cavaleiresca. Sobre as continuações do Palmeirim e o conjunto de livros de cavalarias manuscritos, dá a sensação de que quase ninguém os leu. Desta maneira, está claro que quando recorremos às histórias da literatura o que procuramos são respostas, e estes manuais, cuja finalidade deveria ser o conhe- cimento dos textos literários, não nos ajudam muito a achá-las: pelo contrário, incitam os leitores a não abordar o estudo dos livros de cavalarias por considerá-los inferiores em relação a géneros literários como a épica e o teatro, onde autores como Camões ou Gil Vicente se distinguiram, levando a cultura portuguesa além das suas próprias fronteiras. Assim, depois de ter analisado um grupo considerável destas ferramentas de consulta, a intenção última do presente trabalho foi chamar a atenção da crítica para o género dos livros de cavalarias, que, como pudemos ver ao longo destas pági- nas, continua a ser menosprezado e desconhecido não só pelo público em geral, se- não também pelos próprios estudiosos da literatura. Não se poderá alcançar um autêntico conhecimento global da ficção roma- nesca renascentista até que não se esclareça o verdadeiro lugar que ocupa este grupo literário, o primeiro a aparecer em terras portuguesas e o que mais sucesso suscitou no público do século XVI. Além disso, ajudará a compreender as relações culturais e literárias havidas na Península Ibérica, assim como também entre esta e os outros países do continente europeu, tais como a França e a Itália. 7 TEATRO DE GIL VICENTE Pode-se dizer que, em boa parte, o teatrólogo e ator português Gil Vicente é fruto de uma época. Criou o que se convencionou chamarde teatro vicentino, carac- terizado pelo poder da sátira. Sua biografia repleta de incertezas se dá aproximada- mente entre 1465 e 1536, no contexto do que se convencionou chamar de Humanismo português. É um período iniciado em 1418, quando D. Duarte nomeia Fernão Lopes como guardador da Torre do Tombo, o arquivo central do Estado Português desde a Idade Média, e termina quando Sá de Miranda retorna da Itália, em 1527, trazendo 21 para Portugal a cultura clássica. O Humanismo é um período de transição entre o fim da Idade Média e a Idade Moderna. Caracteriza-se pelo crescimento das cidades e o enfraquecimento do feudalismo. Com a perda de poder dos senhores de terras, os reis se aliam aos burgueses, principalmente comerciantes, passando a dividir com a Igreja o poder político. Fonte: bparlsr.azores.gov.pt Em 1502, o Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação, de Gil Vicente, dá início ao teatro em Portugal. A apresentação do monólogo foi feita em comemoração ao nascimento do filho de D. Manuel e D. Maria Castela, D. João III. A peça foi encenada pelo próprio autor que assumiu a personagem como se fosse um vaqueiro e recitava saudava o nascimento de D. João III. Após isso, Gil Vicente passou a ser protegido pela rainha-mãe, D. Leonor, e foi incumbido de divertir a corte da sua época. Os primeiros trabalhos do teatrólogo receberam influências de autores espa- nhóis, dentre eles Torres de Navarro que escrevia farsas. Porém, com o tempo, Gil Vicente começou a produzir textos com características extremamente particulares, sendo adepto do lema moralista. “Rindo, castigam-se os costumes” é, talvez, uma das frases mais famosas do teatrólogo e era nisso que ele acreditava, isto é, por meio do humor é possível corrigir os costumes e denunciar a hipocrisia da sociedade. Em suas obras satirizou o povo, o clero e a nobreza, maiores alvos de suas críticas. Gil Vicente não temia em apontar o que de errado via na sociedade de sua https://www.coladaweb.com/artes/teatro 22 época, acreditava que era necessário restabelecer a moral e a religiosidade. Devido a isso se tem a denominação dos “autos de moralidade”. Assim, suas obras faziam o entretenimento nos ambientes da corte. O teatro vicentino era simples no que tange à estrutura cênica, pois não havia preocupação com o cenário luxuoso, apenas utiliza- se de materiais simples para encenar suas peças. Por abordar temas inerentes a toda sociedade em qualquer tempo e espaço, as obras vicentinas são atemporais e as problemáticas nelas apresentadas são perti- nentes nas sociedades da atualidade. Gil Vicente é autor de 44 peças, sendo 17 es- critas em português, 16 bilíngues e 11 em castelhano, dentre elas estão autos e far- sas. Nos autos vicentinos a religiosidade aparece de maneira marcante, como exem- plo, nos conflitos entre anjos, demônios e outros, elementos também são personifica- dos como a virtude. São autos: Monólogo do vaqueiro, Auto da Índia, trilogia das bar- cas, Auto da Lusitânia e Auto da alma. Nas farsas está presente o lado mais marcante da crítica social vicentina. São farsas: Farsa de Inês Pereira, O velho da horta e quem tem farelos? Uma consequência direta, na área cultural é a criação de bibliotecas fora dos conventos. Os direitos ligados à individualidade também são valorizados. Começa a se abandonar o teocentrismo em busca de valores relacionados às próprias possibili- dades de desenvolvimento, mas sem abandonar totalmente o temor a Deus Gil Vi- cente cresce nesse universo. Escreveu autos, comédias e farsas, em castelhano e em português. São conhecidas 44 peças, 17 em português, 11 em castelhano e 16 bilín- gues. 8 GÊNEROS PRINCIPAIS, CRONOLOGIA E EVOLUÇÃO A – Os autos: inspirados nos mistérios, milagres e moralidades medievais, en- cerram uma intenção moralizante ou religiosa. Suas personagens não são seres indi- vidualizados, com psicologia própria; são antes abstrações, generalizações, símbolos ou alegorias que personificam anjos, demônios, vícios, virtudes, instituições sociais, tipos humanos, categorias profissionais etc. Originalmente caracterizados pela inten- ção didática (religiosa, moral ou política), Gil Vicente acrescentou aos seus autos a dimensão satírica e polêmica. Ao lado de alegorias como a Luxúria, a Avareza, o Tra- balho, a Comunhão, o Tempo, a Sabedoria, a Igreja, a Esperança, o Pecado, desfila 23 uma vasta galeria de tipos humanos e sociais, representativa de toda a sociedade portuguesa, no limiar do Renascimento. B – As farsas: retratam os tipos humanos e sociais, por meio da exploração de efeitos cômicos, da caricatura e do exagero. A farsa gilvicentina é uma poderosa arma de crítica e de combate a serviço dos valores morais que defende. Por meio do riso, desnudam-se as mazelas da sociedade pré-renascentista. Aproximam-se do lema das comédias latinas de Plauto e Terêncio: “ridendo castigai mores” (“rindo, cor- rigem-se os costumes”). Elementos farsescos são frequentes também nos autos, e não se pode falar em uma distinção nítida entre as modalidades dramáticas que Gil Vicente praticou. Ambos são plenos de críticas à sociedade Entre os autos, a Trilogia das Barcas ("Barca do Inferno", 1517; "Barca do Pur- gatório", 1518; e "Barca da Glória", 1519) reúne peças de moralidade, que constituem uma alegoria dos vícios humanos; e o "Auto da Alma", de 1518, de 1518, encena a transitoriedade do homem na vida terrena e os seus conflitos entre o bem e o mal. As farsas, como "Quem Tem Farelos?", 1515; "Mofina Mendes", 1515, e "A Farsa de Inês Pereira", 1523, realizam quadros populares de força moral e simbólica, num tom cô- mico mais contundente. O ponto mais forte de Gil Vicente está na criação de tipos humanos como o velho apaixonado, a alcoviteira, a velha beata, o escudeiro fanfarrão, o médico incom- petente, o judeu ganancioso, o fidalgo decadente, a mulher adúltera e o padre cor- rupto. Escritas em versos, as peças estão repletas de trocadilhos e ditados populares. É importante ressaltar que a crítica do dramaturgo português é muito mais aos indiví- duos corruptos do que à religião em si mesma, seus dogmas e hierarquias. Nesse aspecto, Gil Vicente crê no teatro como uma forma de denunciar a de- gradação dos costumes, seja na Igreja, na família ou entre as classes profissionais como os médicos ou sapateiros. Acima de tudo, acredita no poder do riso como uma maneira de recolocar o homem no bom caminho, aquele que o afasta do vício em direção à virtude. Conheça outras obras do teatro de Gil Vicente: Auto do vaqueiro ou Auto da visitação (1502) - Auto pastoril castelhano (1502) Auto da Fé (1510) O velho da horta (1512) 24 Exortação da Guerra (1513) Auto da Fama (1516) Farsa de Inês Pereira (1523) Farsa dos almocreves (1527) Auto da feira (1528) Auto do triunfo do Inverno (1529) Romagem dos Agravados (1533) Auto da Cananea (1534) 9 AUTO DA BARCA DO INFERNO Na peça Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente coloca vários personagens numa situação-limite. Todos estão mortos e chegam a um porto onde há duas embarcações: uma é chefiada pelo Anjo, que conduz ao paraíso; a outra, comandada pelo Diabo e seu Companheiro, vai para o inferno. Os personagens se apresentam diante do es- pectador como em um desfile, ao fim do qual cada um terá de enfrentar seu destino. Esses personagens não representam indivíduos definidos, mas, sim, tipos so- ciais. Ou seja, não têm características psicológicas particulares. Servem como espé- cies de modelo, para exemplificar qual era, segundo Gil Vicente, o comportamento de determinados setores da sociedade da época. Por isso, podem ser denominados per- sonagens alegóricos. As alegorias são imagens que servem de símbolo a interpretações, como re- presentações de uma situação ou de um setor social. Nessa peça, por exemplo, um fidalgo com um pajeme uma cadeira são uma alegoria para toda a nobreza ociosa de Portugal. O autor se inspirou bastante no teatro alegórico medieval, puramente ceno- gráfico, e também nos momos – manifestações populares em que figuras fantasiadas representavam os vícios e as virtudes. Os autos eram representações comuns na Idade Média, em geral de conteúdo satírico ou alegórico. Publicado em 1517, o Auto da Barca do Inferno é, de acordo com o autor, um “auto de moralidade”. 25 10 PERSONAGENS ANJO – arrais, ou seja, navegante da barca celeste. DIABO E SEU COMPANHEIRO – conduzem a barca infernal. FIDALGO – representa todos os nobres ociosos de Portugal. ONZENEIRO – simboliza o pecado da usura e a classe dos agiotas. PARVO – representa o povo português, rude e ignorante, porém bom de coração e temente a Deus. FRADE – representa os maus sacerdotes. BRÍSIDA VAZ – alcoviteira (cafetina), simboliza a degradação moral e a feitiçaria popular. JUDEU – representa os infiéis, que são alheios à fé cristã. CORREGEDOR E PROCURADOR – Encarnam a burocracia jurídica da época. ENFORCADO – é o símbolo da falta de fé e da perdição. QUATRO CAVALEIROS – representam as cruzadas contra os mouros e a força da fé católica. 11 ENREDO O Fidalgo é o primeiro a aproximar-se dos barcos, acompanhado de um pajem e de uma cadeira, símbolo de sua pretensa nobreza. O Fidalgo dirige-se primeira- mente à Barca do Inferno, ainda sem reconhecer seu capitão. Quando enfim o Diabo se apresenta, o Fidalgo recusa-se a entrar no batel (barco) infernal, alegando que se salvaria por deixar na outra vida quem rezasse por ele. O Diabo responde-lhe com ironia: “Quem reze sempre por ti?… Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!… E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer (encontrar abrigo, salvação) 26 porque rezam lá por ti? Embarca!, ou embarcai!, que haveis de ir à derradeira, (final) mandai meter a cadeira que assim passou vosso pai”. Nesse trecho, é possível perceber a fineza da ironia do Diabo – personagem pelo qual fala muitas vezes a voz do autor. Observe, por exemplo, como o Diabo muda o pronome de tratamento de “tu” para “vós” no verso: “Embarca!, ou Embarcai!”, colo- cando em dúvida a nobreza de seu interlocutor. No último verso do trecho, o Diabo ofende a linhagem do Fidalgo, dizendo que o pai do personagem também teria tido como destino a danação. O Fidalgo encaminha-se então para a barca do paraíso, na qual é duramente reprimido pelo arrais do céu, o Anjo, que o acusa de “tirania” e o manda de volta à barca infernal, para a qual ele se encaminha resignadamente. O Onzeneiro (agiota) carrega uma bolsa, símbolo de sua ganância. Assim como o Fidalgo e os demais personagens, ele acredita erroneamente em sua salvação. Após travar diálogo com o Diabo, encaminha-se para o batel celeste, do qual é repe- lido e obrigado a retomar seu destino, ou seja, o inferno. Esse triplo movimento (Barca do Inferno, Barca do Céu, Barca do Inferno) é seguido pela maioria dos personagens. Por isso, a peça apresenta uma estrutura es- quemática, que se disfarça pela inclusão da figura do Parvo, personagem que repre- senta o povo e é colocado assimetricamente entre os condenados. O Parvo, por ser tolo e inocente, não é condenado, embora utilize uma linguagem chula e muitas vezes ofensiva. Dirige-se ao Diabo da seguinte forma: “Furta-cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado das igrejas! Burrela, cornudo sejas! (diminutivo de burra, zombaria, esparrela) Toma o pão que te caiu, A mulher que te fugiu 27 Pera a Ilha da Madeira! Ratinho da Giesteira, (Trabalhador do campo) O demo que te pariu! ” Ao Parvo segue-se o Sapateiro, que leva consigo as ferramentas, símbolos de seu ofício e de sua maneira de ganhar dinheiro com a necessidade alheia. Ele espera salvar-se por ter confessado seus pecados e comungado antes de morrer. O Diabo, porém, o condena por sua hipocrisia, que o levava a roubar seus clientes logo depois de assistir às missas. O Frade carrega armas de combate – um capacete e uma es- pada – e uma amante, Florença. Um dos personagens mais ridicularizados do auto, ele baila o tordião (dança cortesã) e dá aulas de esgrima diante do Diabo. O Frade acredita que, graças à sua condição de sacerdote, encontrará salvação. Após ser iro- nizado pelo Diabo e pelo Parvo, o padre segue o caminho dos demais danados. Brísida Vaz é uma alcoviteira (dona de prostíbulo) e carrega vários apetrechos: hímens postiços, peças de encantar os homens, artigos de feitiçaria – o que indica que Gil Vicente condenava crendices e superstições populares. Seu destino é a per- dição. Ela ainda argumenta, em vão, que salvou mais meninas do que Santa Úrsula. Utilizando linguagem vulgar, chama o Anjo de “barqueiro, mano, meus olhos”. O Judeu aparece acompanhado de um bode e, por não seguir a fé cristã, não compreende tudo o que está ocorrendo. Inicialmente, nenhum dos barqueiros deseja levá-lo. O Diabo, por fim, consente em carregá-lo, mas a reboque. Em Portugal, na- quela época, estava disseminado um forte antissemitismo (preconceito contra os ju- deus), A cena escrita por Gil Vicente expressa essa situação. Cabe aos leitores atuais entendê-la no contexto do período em que foi criada. Os dois personagens que se seguem – o Corregedor e o Procurador – chegam carregados de livros e de processos. São corruptos e falam numa linguagem empo- lada, cheia de citações em latim, nas quais quase sempre incorrem em erros. Achin- calhados pelo Parvo, são logo mandados para a Barca do Inferno, cada vez mais cheia. O Enforcado também é um condenado, embora esperasse encontrar salvação porque lhe disseram que iria para o céu se abdicasse da vida. Logo percebe que havia sido enganado e acaba aceitando entrar na barca satânica. O auto se encerra com 28 quatro cavaleiros trazendo uma cruz, o que indica que morreram nas cruzadas, de- fendendo a fé cristã. Após uma curta resposta ao Diabo (“Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa! ”), encaminham-se à barca celeste. 11.1 Tempo e espaço Na obra, o tempo e o espaço não são definidos. Encontram-se em uma dimen- são mítica, às margens do rio da morte, o rio Letes, já que se trata de uma obra ale- górica. 11.2 Biografia Dramaturgo e poeta, Gil Vicente nasceu provavelmente em Guimarães (Portu- gal), em 1465. Dados seguros sobre sua biografia, porém, não são conhecidos. Sabe- se que desde o início do século XVI vivia na corte, em Lisboa, onde organizava festas e comemorações. Como poeta lírico, encontra-se representado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. É considerado o criador do teatro em Portugal. Como drama- turgo, produziu 44 peças, de inúmeros temas. Nelas, é marcante o caráter crítico e satírico, de sentido moralizante. A circulação de sua obra se fazia, em parte, por meio de folhetos impressos e em literatura de cordel. No entanto, alguns dos títulos do escritor foram proibidos ou expurgados pela censura inquisitorial. Sete deles foram incluídos em 1551 no Index (lista de livros cuja leitura era proibida pela Igreja Católica). A primeira reunião com- pleta de suas criações, a Compilação de Todas as Obras de Gil Vicente, foi organizada sob responsabilidade do filho, Luís Vicente, em 1562. O escritor morreu entre 1536 e 1540. 11.3 Trechos comentados “Corregedor – Ó arrais dos gloriosos, Passai-nos neste batel! Anjo – Oh, pragas pera papel Pera as almas odiosas! 29 Como vindes preciosos, Sendo filhos da ciência! Corregedor – Oh, habetatis, clemência e passai-nos como vossos! Parvo – Hou, homem dos breviários, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanários!” Comentário Nesse trecho, há uma amostra do realismo linguístico de Gil Vicente. O Corre- gedor utiliza termos em latim para se defender. O Parvo faz, então, uma hilariante paródiade seu discurso: “rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum”, ou seja, “rapi- nastes – roubastes – coelhos, pernis e perdizes”. “Anjo – Eu não sei quem te cá traz… Brísida – Peço-vo-lo de giolhos! (joelhos) Cuidais que trago piolhos, anjo de Deos, minha rosa? Eu sô aquela preciosa que dava as moças a molhos, a que criava as meninas pera os cónegos da Sé… Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, (margaridas) olhos de perlinhas finas! E eu som apostolada, angelada e martelada, e fiz cousas mui divinas. Santa Úrsula nom converteu tantas cachopas como eu (…)” (meninas, raparigas) 30 Comentário Brísida Vaz tenta convencer o Anjo a deixá-la entrar na barca celeste. Usando linguagem vulgar, como se o Anjo fosse um dos seus clientes, chama-o de “meu amor, minhas boninas”, e afirma que espera salvar-se porque “criava as meninas” (prostitu- tas) para os padres da Sé – outra crítica do autor aos maus sacerdotes. 12 O PARADIGMA DO ESCRITOR CLÁSSICO – CAMÕES Luís de Camões (1524-1580) foi um poeta e soldado português, considerado o maior escritor do período do Classicismo. Além disso, ele é apontado como um dos maiores representantes da literatura mundial. Autor do poema épico “Os Lusíadas”, revelou grande sensibilidade para escre- ver sobre os dramas humanos, sejam amorosos ou existenciais. Pouco se sabe sua vida, portanto, o local e os anos de nascimento e morte ainda são incertos. 12.1 Biografia Luís de Camões, um dos maiores poetas de língua portuguesa. Fonte: educalingo.com 31 Filho de Simão Vaz e Ana de Sá, Luís Vaz de Camões nasceu em Lisboa por volta de 1524. Provavelmente teve uma boa e sólida educação, na qual aprendeu sobre história, línguas e literatura. Estudos indicam que ele era indisciplinado e que supostamente teria ido à Coimbra para estudar. No entanto, não há registros de que ele tenha sido aluno da Universidade. Ainda jovem, interessou-se pela literatura iniciando sua carreira literária como um poeta lírico na corte de Dom João III. Muitos historiadores dizem que nesse perí- odo Camões teve uma vida muito boêmia. Na altura, também passou por uma desilu- são amorosa, momento em que decidiu tornar-se um soldado. Assim, ingressou no Exército da Coroa Portuguesa em 1547 e, no mesmo ano, embarcou como soldado para a África, onde combateu na guerra contra os celtas, no Marrocos. Foi ali que Camões perdeu o olho direito. Em 1552 volta a Lisboa e continua com sua vida boêmia e de promiscuidade. No ano seguinte embarca para as Índias, onde participa de várias expedições militares. Estudos apontam que ele foi preso tanto em Portugal, quando no Oriente. Foi durante uma de suas prisões que ele escreveu sua obra mais conhecida: Os Lusíadas. Quando retornou a Portugal, resolveu publicar sua obra. No momento, recebeu uma pequena quantia em dinheiro do Rei Dom Sebastião. Muitas vezes incompreen- dido pela sociedade, Camões se queixou pelo pouco reconhecimento que teve em vida. Foi somente após sua morte que sua obra passou a ser foco das atenções. Hoje é considerado um dos maiores escritores de língua portuguesa e ainda, um dos mai- ores representantes da literatura mundial. Seu nome é conhecido em todo o mundo e é usado em diversas praças, avenidas, ruas e instituições. 12.2 Morte Camões faleceu dia 10 de junho de 1580 em Lisboa provavelmente vítima de peste. No final da sua vida, passou por grandes problemas financeiros morrendo po- bre e infeliz, uma vez que não teve o reconhecimento que merecia. O Dia de Portugal é celebrado em 10 de junho em comemoração à data de sua morte. 32 Túmulo de Camões no Mosteiro dos Jerônimos em Lisboa. Fonte: www.pportodosmuseus.pt 12.3 Características e obras Camões escreveu poesias, epopeias e obras de dramaturgia. Foi assim que se tornou um poeta múltiplo, sofisticado e ao mesmo tempo, popular. Decerto que ele possuía grande habilidade poética na qual soube explorar com muita criatividade as mais diferentes formas de composição. Foi um dos maiores poetas do Renascimento, mas às vezes se inspirou em canções ou trovas populares escrevendo poesias que lembram várias canções medi- evais. Seus versos revelam que estudou os clássicos da Antiguidade e os humanistas italianos. Suas obras de maior destaque são: El-Rei Seleuco (1545), peça de teatro; Filodemo (1556), comédia de moralidade; Os Lusíadas (1572), grande poema épico; Anfitriões (1587), comédia escrita em forma de auto; Rimas (1595), coletânea de sua obra lírica; 33 12.4 Os Lusíadas Capa da primeira edição de Os Lusíadas. Fonte: www.bn.gov.br A poesia épica “Os Lusíadas”, publicada em 1572, celebra os feitos marítimos e guerreiros de Portugal. Destacam-se as conquistas ultramarinas, as viagens por mares desconhecidos, a descoberta de novas terras, o encontro com povos e costu- mes diferentes. Tomando como assunto central a viagem de Vasco da Gama às Índias, Ca- mões fez do navegador uma espécie de símbolo da coletividade lusitana. Ele exaltou a glória das novas conquistas e as proezas dos navegadores portugueses. Isso per- mitiu comparar os feitos dos portugueses com as façanhas dos lendários heróis dos poemas de Homero (Odisseia e Ilíada) e de Virgílio (Eneida). Camões usou os modelos clássicos para cantar os acontecimentos do seu tempo, que ao contrário dos antigos, eram reais e não fictícios. Camões faz algumas entidades mitológicas participarem da ação. Assim, coube a Vênus o papel de prote- tora dos portugueses. Ela os defende do deus Baco que quer destruir a frota de Vasco da Gama. No final do poema, os navegantes são levados à ilha dos Amores, onde são recompensados de seus esforços por sedutoras ninfas. https://www.todamateria.com.br/os-lusiadas-de-luis-de-camoes/ https://www.todamateria.com.br/vasco-da-gama/ https://www.todamateria.com.br/odisseia/ https://www.todamateria.com.br/iliada/ https://www.todamateria.com.br/eneida/ 34 12.5 Curiosidade Camões sofreu um naufrágio perto de Goa na Índia e diz a lenda que ele nadou salvando o manuscrito de Os Lusíadas na mão. Selo em comemoração aos 400 anos do nascimento do poeta (1924). Fonte: www.todamateria.com.br 12.6 Poesias A maior parte da poesia lírica de Camões é composta de sonetos e redondilhas (estrofes com versos de cinco ou sete sílabas). Confira abaixo alguns exemplos: Exemplo I Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente, É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; 35 É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Exemplo II Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração. Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes, De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração. Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis; Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração. 36 Exemplo III Quem diz que Amor é falso ou enganoso, Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso. Amor é brando, é doce, e é piedoso. Quem o contrário diz não seja crido; Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens, e inda aos Deuses, odioso. Se males faz Amor em mim se vêem; Em mim mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia. Mas todas suas iras são de Amor; Todos os seus males são um bem,Que eu por todo outro bem não trocaria. 12.7 Frases de Camões “O fraco rei faz fraca a forte gente.” “Ah o amor... que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.” “Coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las.” “Jamais haverá ano novo se continuar a copiar os erros dos anos velhos. ” “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda- se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, tomando sem- pre novas qualidades. ” 37 12.8 Poesia épica camoniana Análise da obra Publicado em 1572 sob a proteção do Rei D. Sebastião, o poema épico Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, tem como assunto central a viagem de Vasco da Gama às Índias (1497 - 1498). As perigosas viagens por mares nunca dantes nave- gados, o contato com povos e costumes diferentes, a exaltação do homem-herói (na- vegador, soldado, aventureiro, cavaleiro e amante) encontram, na euforia antropocên- trica do Renascimento, um instante oportuno para o sentimento heróico e conquista- dor, não apenas dos portugueses, mas de toda Europa quinhentista. Obra de cunho enciclopédico, o poema narra, além da descoberta do caminho marítimo para as Índias, as grandes navegações portuguesas, a conquista do Império Português do Oriente e toda a história de Portugal, seus reis, seus heróis e as batalhas que venceram. Paralelamente a essa dupla ação histórica (a viagem de Vasco da Gama e a história de Portugal), desenvolve-se uma importantíssima ação mitológica: a luta que travam os deuses olímpicos (o "maravilhoso pagão"), contrapondo Vênus e Marte (favoráveis aos lusos) a Baco e Netuno (contrários às navegações). Os Lusíadas fundem harmoniosamente os ideais renascentistas, imperialistas e nacionalista de expansão do Império, com a ideologia medieval, feudal e conserva- doras; a mitologia pagã com o ideal cristão; o tom épico na exaltação dos feitos dos navegadores e guerreiros e o tom lírico do amor trágico de Inês de Castro; a objetivi- dade e a subjetividade; o ufanismo e o espírito crítico; o espírito clássico com acentos maneiristas e antecipação barroca. O poema divide-se em 10 cantos. Cada canto contém em média 100 estrofes ou estâncias. O canto III é o mais curto, com 87 estrofes; o canto X é o mais longo, com 156 estrofes. O poema todo compõe-se de 1.102 estrofes ou estâncias. Cada uma delas contém regularmente 8 versos (oitavas). O poema totaliza 8.816 versos, decassílabos (medida nova), predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. Há também alguns decassílabos sáficos, com a 4ª, a 8ª e a 10ª sílabas tônicas. Os Lusíadas são o maior poema da língua portuguesa e a maior expressão de sua excelência literária. Camões soube elaborar uma linguagem suficientemente rica 38 e maleável, elegante e sonora, com que exprimiu tanto os feitos heróicos e altisso- nantes, como as dolorosas súplicas de Inês de Castro diante de seus algozes ou o desconsolo do eu-poemático diante do "desconcerto do mundo" e da decadência de seu país. Os Lusíadas têm cinco partes, como a tradição clássica impõe a uma epo- peia: 1 - Proposição - É a apresentação do poema, a síntese do assunto. Ocupa as três primeiras estrofes. Evidencia algumas características fundamentais da obra: o caráter coletivo do herói, a valorização do homem (antropocentrismo), a sobrevivência do "ideal cruzada", a valorização da Antiguidade clássica, o nacionalismo (ufanismo), sin- taxe rica e complexa. 2 - Invocação das Tágides - É o pedido de inspiração às musas. Camões elege como suas inspiradoras as Tágides, ninfas do rio Tejo, "nacionalizando" suas musas. 3 - Dedicatória ao Rei D. Sebastião - É como menino ainda, como dádiva de Deus, que Camões apresenta D. Sebastião na dedicatória. O jovem rei assumiu o trono aos 14 anos, em 1568, e como a redação do poema consumiu mais de 12 anos, Camões não deixa de observar que ele é "novo no ofício" e disso abusam seus conselheiros. O fato do jovem rei ser exaltado como símbolo e esperança da pátria, não impede de o poeta critique as intrigas palacianas e a ambição de mando e de riqueza dos jesuítas e seus aliados. 4 - Narração - A narração de Os Lusíadas compreende três ações principais: a via- gem de Vasco da Gama às Índias, a narrativa da história de Portugal e as lutas e intervenções dos deuses do Olimpo. São, portanto, duas ações históricas e uma ação mitológica que se alternam e se interpenetram no poema. A narrativa começa já no meio da aventura do herói, quando Vasco da Gama e os navegadores estão em pleno Oceano Índico, na costa leste da África, próximo ao Canal de Moçambique. A narrativa histórica termina com a partida de Calicute. Camões não narra o regresso a Lisboa. Os acontecimentos anteriores são relatados por discursos dos protagonistas huma- nos (Vasco da Gama e seu irmão Paulo da Gama), e os acontecimentos futuros são anunciados por deuses ou outras personagens com o dom da profecia. Nessa profu- são de episódios históricos, mitológicos, proféticos, simbólicos, líricos, guerreiros e 39 romanescos, Camões entremeia descrições de fenômenos naturais (a tromba marí- tima, o fogo-de-anselmo etc) e frequentes dissertações poéticas sobre a moral, sobre a desconsideração de seus contemporâneos pela poesia, sobre o verdadeiro valor da glória, sobre a onipotência do ouro e da riqueza e sobre o destino de Portugal. É uma verdadeira enciclopédia de Portugal e do homem renascentista. 5 - Epílogo - Contém as lamentações e críticas do poeta, suas exortações ao Rei D. Sebastião e os vaticínios sobre as futuras glórias portuguesas. São as doze últimas estrofes do poema. Contrastando com o tom vibrante e ufanista do início, o tom agora é de pessimismo, desencanto e de crítica à decadência do país e aos portugueses de seu tempo, esquecidos dos valores nacionais. É uma clara premonição da derrocada de Portugal, submetido em 1580 ao domínio espanhol, e da retratação do Império do Oriente. Há ainda o sentido de desabafo de Camões, que se queixa da incompreensão e das privações pelas quais parece ter passado em seus últimos anos de vida. Enredo dos Cantos Canto I e II - Após as partes introdutórias e a rápida apresentação dos navega- dores em pleno Oceano Índico, narra-se o Consílio dos Deuses no Olimpo. Convoca- dos por Júpiter, os deuses irão deliberar sobre o destino dos novos argonautas. Baco é contrário aos portugueses, pois teme que eles superem seus feitos no Oriente. Vê- nus, e depois Marte, toma a defesa dos lusos. Júpiter encerra o consílio, decidindo a favor dos navegadores. Baco, inconformado, resolve agir. Assumindo a formas hu- mana de um velho sábio, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses, põe a bordo da esquadra um traidor, falso piloto, arma ciladas em Quiloa e Mombaça. Graças às intervenções de Vênus, das nereidas, de Mercúrio e à coragem e astúcia de Vasco da Gama, os portugueses chegam a Melinde, terra de muçulmanos que, por obra de Mercúrio, enviado por Júpiter, a pedido de Vênus, tinham se tornado simpáti- cos aos portugueses. Durante os perigos e provações, o capitão roga a proteção da Providência Divina e agradece por ela ao Deus cristão, mas quem atende às suas preces é Vênus, divindade pagã, meiga e sedutora, deusa do amor, que convence Júpiter a ajudar seus protegidos. Paganismo e cristianismo juntos, sem qualquer cons- trangimento. 40 Nota: Essa ação mitológica, a disputa entre Vênus e Baco, tem o propósito de elevar os navegadores à condição de semi-deuses. Numa clara alegoria, os portugueses, senhores do amor e da guerra, protegidos por Vênus e Marte, triunfam sobre os oce- anos (Netuno) e sobre seus adversários no Oriente (Baco). Canto III - Após Camões invocar a inspiração de Calíope, musa grega da poesia épica, Vasco da Gama começa a contar ao rei Melinde a história de Portugal.Principia pela localização geográfica do país no mapa da Europa: “Eis aqui quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusita no / Onde a terra se acaba e o mar começa / E onde Febo repousa no Oceano” (Lus., III. 20). Fala das origens de Portugal, do primeiro herói, Viriato, o Pastor da Serra da Estrela, que resistiu à dominação romana. Na Guerra de Reconquista, que os povos já cristianizados moveram contra árabes invasores, no século XII, surge o Reino de Portugal e a Primeira Dinastia, a Casa de Borgonha. O terceiro canto contém a história de todos os reis dessa dinastia, desta- cando-se seu fundador, Afonso Henriques de Borgonha, vencedor da Batalha de Ou- rique, contra os árabes, ao lado de Egas Moniz, símbolo nacional de lealdade e hon- radez. Ainda sob a Dinastia de Borgonha, no reinado de D. Afonso IV, ocorre o episó- dio de Inês de Castro, aquela“que depois de ser morta foi rainha". Canto IV - Vasco da Gama prossegue a narrativa da história de Portugal, concen- trando-se na Segunda Dinastia, a Casa de Avis. Fala da Revolução de Avis (1383 - 1385), de seu grande herói, D. Nuno Álvares Pereira, da Batalha de Aljubarrota e de D. João I, Mestre de Avis, que funda o Estado Nacional Português, consolida a cen- tralização monárquica e inicia a expansão ultramarina, com a Tomada de Ceuta, em 1415. A partir do reinado de D. Manuel I, o Venturoso, Vasco da Gama começa a narrar os episódios preliminares de sua viagem. D. Manuel tivera um sonho profético: os rios Indo e Canges, sob forma de dois anciões, profetizam os sucessos e perigos que os portugueses enfrentariam no Oriente. Estimulado por esse sonho, D, Manuel I pede a Vasco da Gama que monte uma esquadra para concretizar a profecia. Na partida das naus da praia de Belém, um ancião, o Velho do Restelo, faz uma enfática advertência contra as navegações portuguesas. Canto V - Vasco da Gama conclui a narrativa de sua viagem até Melinde. Fala da https://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas_ines_de_castro.php https://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas_ines_de_castro.php https://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas_o_velho_do_restelo.php 41 partida da esquadra, do Cruzeiro do Sul, descreve o fogo-de-santelmo, depois uma tromba marítima na costa da Guiné, e a aventura cômica de Veloso. Perto da África do Sul, na travessia do Cabo das Tormentas, os portugueses defrontam-se com o Gigante Adamastor, monstro disforme que simboliza a superação do medo do “Mar Tenebroso” e o domínio do homem sobre as crendices medievais e sobre a natureza. De volta a Melinde, Vasco da Gama conclui o seu relato elogiando a tenacidade por- tuguesa. Encenando a primeira parte da epopéia, Camões retoma a palavra para la- mentar o descaso dos portugueses pela poesia. Canto VI - Enquanto os portugueses rumam em direção às Índias, Baco desce ao palácio de Netuno e incita os deuses marinhos contra a esquadra de Vasco da Gama. Novamente Vênus e as nereidas salvam os navegadores. A bordo da nau capitânea, o marinheiro Veloso entretém seus companheiros com a narrativa cavaleiresca de Os Doze de Inglaterra: doze portugueses, liderados pelo Magriço, vão à Inglaterra resga- tar a honra de doze donzelas inglesas ultrajadas por doze cavaleiros bretões. Os na- vegadores avistam Calicute, e o narrador medita sobre o sentido e valor da glória. Canto VII e VIII - Vasco da Gama faz contato com as autoridades de Calicute. O sa- morim (= rei) determina ao catual (= governador) que receba os navegadores. Vasco da Gama desembarca na Índia, visita o samorim e oferece a amizade dos portugue- ses, em nome de D. Manuel. O catual colhe informações sobre os recém-chegados e, em visita à esquadra, indaga Paulo da Gama acerca do significado das figuras dese- nhadas nas bandeiras lusas. O irmão do comandante assume a narrativa e conta os feitos dos heróis da pátria (Viriato, D. Afonso Henriques, Egas Moniz, D. Nuno Álvares e outros). Os muçulmanos tramam contra os cristãos portugueses e envenenam as boas relações com o samorim. Novas ciladas. Vasco da Gama é feito prisioneiro. Ne- gocia com o catual sua liberdade, em troca de mercadorias européias. O poeta en- cerra o oitavo canto com dissertação sobre o poder do dinheiro. Canto IX e X - Ainda em Melinde, na partida das naus, dois feitores portugueses que vendiam mercadorias em Calicute são retidos em terra para retardar a partida das naus e permitir que fossem alcançadas e destruídas por uma esquadra muçulmana. Em represália, Vasco da Gama retém a bordo vários mercadores indianos. Trocam- se os feitores portugueses pelos mercadores orientais, o samorim manda devolver as 42 fazendas que os portugueses pagaram como resgate pelo capitão, e os navegadores, cumprida sua missão, iniciam a viagem de regresso a Lisboa. Os historiadores regis- tram ter sido uma viagem acidentada, mas Camões encerra aqui a matéria propria- mente histórica do poema. O longo episódio da Ilha dos Amorespertence já ao plano mitológico, fantástico. É o congraçamento entre os homens e os deuses, a elevação dos navegadores à esfera da imortalidade. Vênus decide premiar os navegadores e, numa ilha paradisíaca, reúne as ne- reidas (ninfas marinhas), feridas por Cupido com suas setas, para que ardam de amor pelos portugueses. Estes, deslumbrados com o espetáculo divino, passam a perseguir as ninfas que se deixam alcançar e se entregam, entre gritinhos de prazer. É a mais clara manifestação do pan-erotismo, da ideia de que não há pecado sexual. Oh! Que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves, que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã e na sesta, Que Vênus com prazeres inflamava, Melhor é experimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. (Lus., IX, 83) Após um banquete oferecido por Tétis e pelas ninfas, uma delas, Sirena (ou sereia), anuncia as futuras conquistas portuguesas. Tétis conduz Vasco da Gama a uma elevação e mostra a ele a Máquina do Mundo, réplica em miniatura do sistema solar, segundo a teoria geocêntrica de Ptolomeu, e que somente os deuses podiam contemplar. Descobrindo o orbe terrestre, Tétis aponta os lugares onde os portugue- ses ainda se farão presentes. Aí, sem que se dê particular importância, fala-se do Descobrimento do Brasil. Mas cá onde mais se alarga, ali tereis Parte também, com pau vermelho nota; De Santa Cruz o nome lhe poreis; https://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas_a_ilha_dos_amores 43 Descobri-la-á a primeira vossa frota. (Lus.. X, 140) Na estrofe 144 do 10º canto, os portugueses estão de volta a Lisboa. Segue- se o epílogo do poema. Nota: A obra Os Lusíadas passou pela censura inquisitorial, desafiando o espírito da Contra Reforma, as convenções moralistas e repressoras da corte, orientada pelos jesuítas. A publicação deveu-se ao empenho de alguns admiradores de Camões: D. Manuel de Portugal, Dona Francisca de Aragão (amiga íntima da rinha), os dominica- nos, a quem não deviam desagradar as críticas do poema aos jesuítas. O censor da obra, o frei dominicano Bartolomeu Ferreira, não só aprovou a obra como também a elogiou. 13 BARROCO: NORMA E TRANSGRESSÃO; RELEITURAS DO LÍRICO E DO SA- TÍRICO: BOCAGE Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 - 1805) Poeta português natural de Setúbal, de ascendência francesa por parte da mãe. A sua vocação foi incentivada pelo ambiente familiar. Madame Fiquet du Bocage, uma tia-avó do poeta, era uma poetisa ilustre na época e traduzira o poeta suíço pré-ro- mântico Gessner. O próprio pai de Bocage lia o pré-romântico inglês Young e cultivava a poesia nas horas vagas. Igualmente o marcou, como ele próprio o sublinhou, a morte
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