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Aspectos Discursivos da Língua 1ª edição 2017 Aspectos Discursivos da Língua Presidente do Grupo Splice Reitor Diretor Administrativo Financeiro Diretora da Educação a Distância Gestor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Gestora do Instituto da Área da Saúde Gestora do Instituto de Ciências Exatas Autoria Parecerista Validador Antônio Roberto Beldi João Paulo Barros Beldi Claudio Geraldo Amorim de Souza Jucimara Roesler Henry Julio Kupty Marcela Unes Pereira Renno Regiane Burger Daniella Caruso Rosemeire Rodrigues Mirian Lúcia Brandão *Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência. Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. 44 Sumário Unidade 1 Introdução aos estudos de leitura e discurso ...........6 Unidade 2 Aspectos de dialogismo e polifonia .........................23 Unidade 3 Apontamentos sobre letramento e intersubjetividade........................................................41 Unidade 4 Noções de interlocução ..............................................58 Unidade 5 Gêneros do discurso e o diálogo ................................75 Unidade 6 Estrutura textual como aparato do discurso ...........93 Unidade 7 A dimensão ideológica da linguagem .....................112 Unidade 8 Tópicos de enunciação: o sentido discursivo .........130 5 Palavras do professor Caro aluno, seja bem-vindo à disciplina Aspectos Discursivos da Língua! A partir de agora, você está convidado a adentrar no universo da língua e suas múltiplas facetas. No decorrer de oito unidades, teremos a opor- tunidade de refletir sobre a dinâmica social e ideológica do discurso e estudaremos conceitos centrais, como língua, texto, gênero e discurso, compreendendo-os em sua dinâmica de funcionamento e relacionando- -os ao campo de ensino-aprendizagem. A língua e seus discursos permeiam nossa vida cotidiana, independen- temente de nossa área de estudo ou atuação profissional, sendo assim, as concepções teóricas e práticas aqui abordadas serão de fundamen- tal importância para você e o ajudarão a ampliar sua leitura da realidade, afinal, a língua se faz viva a partir dos discursos que construímos através dela. Os conteúdos que preparamos para você têm como objetivos específicos ajudar na reflexão sobre aspectos linguísticos, sociais e ideológicos da lei- tura, compreender conceitos de letramento e gêneros discursivos, iden- tificar as relações entre dialogismo e polifonia, assim como reconhecer os elementos enunciativos constitutivos dos discursos, como interlocução e intersubjetividade. Conhecer e refletir sobre os processos de construção e análise da língua como discurso é a competência central que desejamos que você desen- volva, de modo a aprofundar sua leitura de mundo, ou melhor, das leitu- ras que se entrelaçam por meio das relações entre língua e discurso, no mundo. Então, está pronto para começarmos esta viagem? Bons estudos! 1 6 Unidade 1 Introdução aos estudos de leitura e discurso Para iniciar seus estudos Nesta primeira unidade da disciplina Aspectos Discursivos da Língua, estudaremos os conceitos mais complexos e que fazem parte do estudo de toda a disciplina. Começaremos nossa aula refletindo sobre leitura, lín- gua e discurso e o modo como esses conceitos se relacionam, além disso, conheceremos quais são suas implicações sociais e ideológicas. Esse assunto é de vital importância, afinal, a leitura é a base de todo estudo, em quaisquer ramos do conhecimento. Preparado? Objetivos de Aprendizagem • Apresentar conceitos de leitura e seus aspectos sociais e discur- sivos. • Estabelecer relação entre língua e discurso. • Compreender os conceitos de texto e formação discursiva. 7 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso 1.1 O que é leitura A leitura é inerente às relações humanas. Estamos sempre, de alguma maneira, a ler: muito antes de lermos textos propriamente ditos, lemos a realidade que nos cerca, as pessoas e nós mesmos. O ato de ler, mais do que decodificar palavras, implica revelar o que está por trás delas, o que as permeia, o que representam. Um bom leitor é uma espécie de decifrador de “segredos” nas mensagens implícitas daquilo que lê. O código escrito, na dinâmica da linguagem, não é uma expressão direta do pensamento; existe uma opacidade, algo a ser desvendado. Nesta disciplina, vamos conhecer como isso se dá, mas, antes, conheça algumas concep- ções sobre leitura e as diferentes visões de linguagem e de mundo que tais concepções evidenciam. A concepção de leitura como mera decodificação de palavras é recusada pelos Parâmetros Curriculares Nacio- nais (BRASIL, 1998), que definem leitura como: [...] um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem [...]. (BRASIL, 1998, p. 41). Dessa forma, ler “[...] implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência” (BRASIL, 1998, p. 69). Esse modo de conceber a leitura pressupõe o leitor como um sujeito ativo no ato de ler, o que, infelizmente, não tem se verificado no desempenho dos alunos em exames como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Segundo Nascimento (2011), os péssimos resultados obtidos nos exames avaliativos indicam que a lei- tura tem sido trabalhada na escola de modo centrado no texto, contemplando somente o modelo ascendente de leitura. Destaca-se que o modelo ascendente de leitura tem relação com um dos modos como o leitor constrói sentidos na atividade de leitura. Você já ouviu falar sobre isso? Entenda melhor essa questão acompanhando com atenção o que vem a seguir. 1.1.1 Modelos ascendente, descendente e interativo de leitura As pesquisas sobre leitura ganharam força a partir da década de 1960, com as investigações nos campos da Psicolinguística e da Linguística Cognitivista (SANTOS, 2017). Esses estudos demonstravam que a leitura de um texto é um processo que ocorre por operações mentais, daí surgem as definições de três modelos de processa- mento de leitura, propostos por Gough e Goodman (1976 apud SANTOS, 2017), que são: ascendente, ou “bot- tom-up”, descendente, ou “top-down”, e interativo. Nas palavras de Aebersold e Field (1997, p. 10): A teoria bottom-up argumenta que o leitor constrói o texto das pequenas unidades (letras para palavras para frases para sentenças, etc.) [...] Decodificação é o termo para esse processo. 2. A teoria top-down argumenta que os leitores trazem seu próprio conhecimento, suas experiências e suas dúvidas para o texto e continuam lendo-o até que as hipóteses ditas anteriormente sejam confirmadas [...] 3. A teoria interativa argumenta que os processos top-down e bottom-up ocorrem alternados ou ao mesmo tempo. No modelo ascendente (também chamado “bottom-up”), o leitor acompanha o texto linearmente, decodifi- cando suas unidades linguísticas das menores para as maiores, partindo assim do grafema para a sílaba, para o morfema, deste para a palavra, depois, para a frase, e assim por diante, buscando compreender seu sentido. Nesse modelo, o leitor assume uma função mais passiva e presa aos elementos textuais. Vale destacar também que esse modelo foi muito popular nas salas de alfabetização brasileiras até os anos de 1990, pois as atividades 8 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso de ensino tinham como ponto de partida os sons e letras até chegar ao texto. Devido às críticas e controvérsias em relação às discussões do método ascendente,Gough (1986 apud SANTOS, 2017) declara que o problema central da leitura é especificar o modo como os significados das sentenças são registrados no léxico mental. Por sua vez, no modelo descendente (também designado de “top-down”), o leitor busca a compreensão por movimento inverso, partindo de unidades maiores, abarcando, inclusive, elementos extralinguísticos, contextu- ais, sem se prender a linearidades. Nesse modelo, o leitor tem um papel mais ativo e realiza inferências, a partir de seus conhecimentos prévios, na construção de sentido do que lê. De acordo com Kleiman (1996), quando o leitor lê, seguindo o modelo descendente, o ato não ocorre de forma linear, da mesma forma que na hipótese ascendente. De acordo com a autora, o significado não é construído palavra por palavra, pois o leitor realiza o levantamento de hipóteses com base naquilo que está sendo lido e que, posteriormente, serão confirmadas ou rejeitadas por meio de testes feitos pelo próprio leitor, os quais vão desde o nível do discurso até o nível grafofonêmico, passando pelos níveis sintático e lexical (KLEIMAN, 1996). Nível grafofonêmico: refere-se às relações de correspondência entre letras (grafemas) e sons (CRISTÓFARO SILVA, 2014). Glossário Já o modelo interativo resulta da associação dos modelos ascendente e descendente de leitura, de maneira que o leitor, no decorrer de sua leitura, aciona os dois movimentos, havendo interação entre seus conhecimentos linguísticos e extralinguísticos na construção da compreensão do que lê. Nesse contexto, Santos (2017, p. 29-30) adverte que: [...] a interação desses conhecimentos, segundo a perspectiva cognitiva, ocorre na mente do leitor; ler é, portanto, uma ação individual, um ato estratégico de processamento da informação que não estabelece relação com os fatores externos ao texto. Cada uma das palavras que compõem o texto representa entidades do mundo físico, havendo uma relação direta entre linguagem e mundo. O modelo interativo de leitura ainda não é uma atividade dialógica entre leitores, afinal, o diálogo que ocorre é uma operação mental, na qual os conhecimentos prévios acionados pelo leitor são aliados à sua percepção das unidades linguísticas presentes no texto e, embora configure uma atividade de leitura mais madura e autônoma, não é ainda uma leitura como interação social, e sim uma interação entre o leitor e o texto. Os estudos sociocognitivistas, que surgiram nos anos de 1980, questionaram as concepções cognitivistas e psi- colinguísticas de leitura, contrapondo-se não aos modelos em si, mas ao pressuposto de que os movimentos 9 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso mentais e sociais ocorrem de modo separado. Por esse motivo, defendem que a cognição é, também, um fenô- meno social (SANTOS, 2017). Figura 1.1: Modelos de processamento de leitura Legenda: A figura apresenta um livro aberto, do qual emergem letras aleatórias simbolizando modelos de leitura. Fonte: Plataforma Deduca (2018). No próximo tópico, discutiremos sobre a leitura em um viés sociocognitivista. 1.1.2 Perspectiva sociocognitivista de leitura Você certamente já ouviu falar que “uma pessoa é um leitor competente ou não”. Tal afirmação tem relação com os estudos sociocognitivistas como os de Lerner (2002) e Solé (1998), que compreendem a leitura como uma prática em que se mobiliza um conjunto de estratégias para o desenvolvimento da competência leitora. Essas estratégias envolvem operações cognitivistas gerais que consistem em: decodificar o escrito, levantar hipó- teses, localizar e generalizar, informar, inferir, relacionar, comparar e sintetizar informações (BICALHO, 2014). Nas palavras de Solé (1998, p. 45-46), tais estratégias funcionam: [...] porque você, como leitor, dispõe de conhecimento prévio relevante, que lhe permite compre- ender e integrar a informação que encontra e porque esta possui um certo grau de clareza e coe- rência, que facilita a sua árdua tarefa. Entretanto, estas condições não representam nada sem a sua disponibilidade para ir a fundo, para desentranhar a informação, para discernir o essencial do acessório, para estabelecer o maior número possível de relações [...] É evidente que, para mostrar essa disponibilidade, precisa encontrar sentido em ler um texto [...] deve se sentir motivado para essa atividade concreta. A partir do que leciona Solé (1998), compreendemos que a prática da linguagem se realiza por meio de relações lógicas entre o leitor e o texto e, por isso, o primeiro é convidado a colocar seu conhecimento prévio a serviço da mobilização de estratégias de texto. Ainda segundo Solé (1998), as estratégias de leitura são procedimentos que o leitor deve utilizar para ajudá-lo na compreensão do texto e que precisam ser mobilizadas no processo de leitura: antes, durante e depois. Para a autora, antes da leitura, o leitor pode mobilizar estratégias para levantar 10 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso conhecimento prévio sobre o assunto, criar expectativas em função do portador (livro, jornal, revista, por exem- plo) e seus elementos, como capa, formatação, ilustrações e outros elementos paratextuais (título, subtítulo e outros). Durante a leitura, segundo Solé (1998), outras estratégias de leitura podem ser mobilizadas, como confirmar ou retificar as antecipações, expectativas e hipóteses elaboradas antes ou durante a leitura; esclarecer palavras des- conhecidas e identificar palavras-chave, pistas linguísticas e referências a outros textos. Depois da leitura, o leitor pode construir uma síntese semântica do texto como estratégia de apropriação do conteúdo lido. Embora essa perspectiva apresente a leitura como atividade cognitiva e social, o estabelecimento de estratégias para o desenvolvimento de competência leitora desconsidera as relações dialógicas de construção de sentidos do texto. Assim, a centralidade está nos aspectos cognitivos e na materialidade do texto, sem relação com as condições de produção nem com os discursos. Nesse contexto, os estudos posteriores apontam para uma perspectiva interacionista da linguagem, revelando que a leitura não se localiza exclusivamente no texto (tal como no modelo ascendente) e nem parte simplesmente do leitor (modelo descendente), sendo perpassada pela interação entre leitor, autor e texto (NASCIMENTO, 2011). Esse entendimento de que a leitura é um processo discursivo é aprofundado por Bakhtin e Voloshinov (1992), conforme veremos na próxima seção. Agora que você iniciou seus estudos e está ampliando seus conhecimentos sobre o tema, chegou a hora de conhecer o fórum desafio e refletir sobre o que estudamos até aqui. Vamos lá? 1.1.3 Concepção interacionista de leitura Você já observou que, para uma mesma notícia veiculada nas redes sociais, há diferentes sentidos de leitura sobre o que foi relatado? Já se perguntou por que isso ocorre? De acordo com os pressupostos de Bakhtin e Voloshinov (1992), as interações entre autor, texto e leitor consti- tuem a atividade de leitura, considerando a importância do contexto na construção de sentidos do texto, sendo esta um processo dialógico. Assim, o sentido se constrói na interação verbal, de modo que poderá haver tantos e diferentes sentidos à medida que mais interações ocorrerem. Tal perspectiva compreende a leitura como uma prática de linguagem em que a interação verbal ocorre pela reciprocidade do diálogo, como fenômeno heterogêneo, vivo, variável, flexível e situado em um contexto sócio- -histórico. Também a leitura é compreendida como uma atividade multifacetada, em que autor e leitor de deter- minado texto assumem seus papéis como interlocutores ativos (BAKHTIN, 2007). Assim, na interlocução ativa, toda palavra comporta duas faces, pois sempre procede de alguém para outro alguém. Dessa forma, a palavra e a sua multiplicidade de sentidos são o resultado da interação entre locutor e ouvinte,sendo que a expressão parte de um para o outro e vice-versa (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1992). Ainda de acordo com os autores, os interlocutores partilham provisoriamente as mesmas palavras, mas cada uma delas está “prenhe” de sentidos, visto que cada “face” comporta valores sociais e culturais únicos e multifacetados. Segundo Bakhtin e Voloshinov (1992, p. 112): 11 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Nesse contexto, a produção de sentidos ocorre na enunciação, estruturada pela situação imediata e pelo con- texto sócio-histórico em que a interação verbal está inserida e em função do contexto de produção e recepção do texto na atividade de leitura. Segundo Bronckart (2009, p. 93), o contexto de produção e recepção textual “[...] pode ser definido como o conjunto de parâmetros que podem exercer influência sobre a forma como um texto é organizado [...]” e recebido. Consoante a isso, o contexto de produção e recepção textual se organiza em dois planos: na situação imediata da produção e recepção do texto e no plano sócio-histórico, que consiste no meio social mais amplo em que se produzem normas, valores, regras sociais, ideologias, relações de poder, conflitos sociais, intenções e visões de mundo (BAKHTIN, 2007). No plano da situação imediata, situam-se o lugar e o momento físico de produção de texto, o autor e o leitor/ coprodutor. No plano sócio-histórico, considera-se a posição social dos interlocutores, os contextos de circula- ção dos textos e os objetivos de interação. Compreende-se, então, que produtor e leitor/coprodutor de textos têm a representação de si como indivíduos e também de seus papéis sociais (como filha, mãe, professora, por exemplo), assim como do tipo de imagem que pretendem mostrar de si mesmos (como acadêmica, bem-humo- rada, democrática, por exemplo). Assim, na representação de si mesmos, os interlocutores, em especial o leitor, têm no outro o horizonte da ação discursiva como uma realidade concreta. Segundo Bakhtin (2007, p. 271): [...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Embora a citação trate do ouvinte, no processo de interação pela leitura, este é o equivalente ao leitor, que exerce uma posição ativa. Assim, ao estabelecer a interação entre dois interlocutores, um deles não só espera a resposta do outro como também constrói o seu processo interno de sentido da palavra por meio da palavra do outro, em outras palavras. Nesse processo dinâmico e multifacetado, o leitor transforma-se em produtor de sentidos ou coprodutor de texto. Figura 1.2: Interações dialógicas de leitura Legenda: A figura apresenta jovens interagindo com textos diversos. Fonte: Plataforma Deduca (2018). 12 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso Dessa forma, o leitor ocupa uma posição de interlocutor ativo diante do texto, pois atua como produtor de sen- tidos ao realizar a análise do enunciado e fazer deduções, sínteses, identificação ou inferência dos aspectos rele- vantes do texto, dos propósitos e das intencionalidades do autor. Tal atitude responsiva é pressuposta pelo pro- dutor do texto com base nas representações que realiza sobre o contexto de produção pelo qual considera um leitor previsto; pelo meio no qual o seu texto será publicado; pelo âmbito de circulação e pelos possíveis objetivos a serem construídos na interação verbal. Nessa direção, quando uma notícia na internet tem diferentes sentidos atribuídos, outras perguntas precisam ser realizadas para compreender a leitura como prática dialógica: “Quem são os interlocutores, ou seja, autor e leitores?”; “Que posição social eles ocupam na sociedade”; “De que ponto de vista social o autor produz o enun- ciado?”; “De qual ponto de vista o leitor interage com o que leu?”; “Onde foi publicada a notícia?”; “Qual ponto de vista informado esse meio de publicação do texto tem em relação ao conteúdo?”; “Em quais circunstâncias o texto foi produzido?”; “Em quais circunstâncias foi lido?; “Quais motivações levaram à escrita do texto”; “E quais motivaram o leitor?”. Assim, as respostas a essas perguntas reconstroem o contexto de produção e recepção do texto e possibilitam compreender o percurso da interação entre autor/leitor/texto na produção de sentidos. 1.2 Língua, texto e discurso Desde que nascemos, a linguagem permeia nossas interações no e com o mundo. Antes mesmo de aprendermos a usar as palavras em nossa língua materna, somos capazes de nos comunicar. Você já parou para pensar sobre isso? Como podemos nos expressar de modos tão variados? Como estabelecemos nossas relações por meio da linguagem? Figura 1.3: Palavras do universo das teorias discursivas Legenda: Nuvem de palavras com os conceitos discutidos na unidade. Fonte: Elaborada pela autora (2018). Essa dinâmica é possível porque a linguagem é inerente à natureza humana. No seu dia a dia, você se depara com variados tipos de linguagem: a linguagem cinematográfica, a linguagem de programação, a linguagem cor- 13 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso poral etc. Desse modo, a linguagem pode ser compreendida como um processo de interlocução que se realiza em práticas sociais existentes em situações sociocomunicativas e em contextos sócio-históricos determinados (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1992). Além disso, o processo de interlocução se constitui na e pela linguagem que, por sua vez, é instrumento, processo e produto na constituição das relações humanas. Como atividade social e histórica, a linguagem atua na cons- trução de quadros de referências culturais, como representações sociais, teorias científicas e populares, concep- ções, orientações teórico-filosóficas ou ideológicas ou preconceitos (BRAIT, 2000). Segundo Bakhtin (2008, p. 210, grifo do autor): [a] linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comuni- cação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas [...] Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, pois, tais relações devem ser estudadas pela metalinguística, que ultra- passa os limites da linguística e possui objeto autônomo e metas próprias. Para Saussure (apud BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1992), a língua é o produto social da faculdade de linguagem dos seres humanos, é um sistema organizado de signos, um conjunto de convenções que permite o exercício da linguagem. Segundo Bakhtin (2007), a língua é também uma atividade social, todavia, sua perspectiva se con- trapõe à ideia de que a língua compõe um sistema estático de convenções. Para o filósofo, “[...] a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (BAKHTIN, 2007, p. 282), e qualquer linguagem só pode existir dentro de um complexo e ininterrupto sistema de diálogos. Nas palavras de Bakhtin e Voloshinov (1992, p. 125, grifo dos autores),a língua: [...] não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação mono- lógica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da inte- ração verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. Nas relações sociais estabelecidas pela enunciação, pela interação verbal, a língua é colocada em movimento, em transformação, em mudança, graças ao papel empreendido pelos falantes, no uso diário e a cada instante de sua vida em sociedade, pelo diálogo, em um sentido amplo (BAGNO, 2014). Nesse sentido, os enunciados concretos que realizam a língua, ainda de acordo com Bakhtin (2007), não per- tencem exclusivamente a quem os produziu, posto que são permeados de outras vozes. Desse modo, ao abor- dar os enunciados como polifônicos, isto é, carregados de múltiplas vozes, Mikhail Bakhtin convoca o conceito de discurso, haja vista que considera os enunciados como unidades da comunicação discursiva. Para Bakhtin e Voloshinov (1992, p. 371): Não pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o suce- dem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado [...] Assim, a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora [...] A co-criação dos sujeitos da compreensão. [...] é impossível uma compreensão sem avaliação. [...] O sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento. 14 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso Figura 1.4: Cadeia de enunciados Legenda: A figura apresenta um balão de diálogo formado por várias pessoas. Fonte: Plataforma Deduca (2018). Em muitos momentos, texto e discurso são tratados de forma relacionada, assim, podemos definir, de forma básica, o texto como a materialização dos enunciados. De acordo com Bakhtin e Voloshinov (1992), o texto é compreendido como ponto de partida, dado primário, para acessar qualquer área de conhecimento, pois os sujeitos dialogam com os demais e se veem na relação com os outros pelos textos que criam, criaram ou criarão. Segundo Brait (2012), os textos podem ser entendidos como organizações coerentes nas quais a associação da materialidade linguística funciona como princípio organizador da produtividade da vida social. Sobre a relação entre texto e enunciado, Bakhtin (2007, p. 308-310) afirma que se trata de: Dois elementos que determinam o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção. As inter-relações dinâmicas desses elementos, a luta entre eles [...] O problema do segundo sujeito, que reproduz (para esse ou outro fim, inclusive para a pesquisa) o texto (do outro) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.) [...] O texto como enunciado incluído na comunicação discursiva (na cadeia textológica) de dado campo. As relações dialógicas entre os textos e no interior de um texto. Nesse sentido, de acordo com Bakhtin (2007), o que determina o texto como enunciado são a sua ideia, cujos sentidos e a significação são inerentes a qualquer atividade discursiva, e a realização da intenção, que é a sua materialização. As inter-relações desses elementos criam uma cadeia textológica, na qual os textos/enunciados, que vieram antes e virão depois do momento do enunciado, constituirão outros textos e diferentes discursos em relações intertextuais e interdiscursivas. Sobre o texto, Bakhtin (2008, p. 402) afirma: Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correla- cionamento de dado texto com outros textos. O comentário. A índole dialógica desse correlacio- namento. [...] a interpretação como correlacionamento com outros textos e reapreciação em um novo contexto (no meu, no atual, no futuro). Dessa forma, o texto, como enunciado, não é tratado isoladamente, mas em relações dialógicas entre os textos e no interior dos textos, em uma cadeia de outros enunciados. Ainda se compreende que o texto como enunciado extrapola o aspecto linguístico, colocando-se na dimensão que se realiza no confronto de duas consciências: de 15 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso quem o produz e na compreensão responsiva do outro interlocutor, assim como na conjunção dos seus discursos situados em contextos sócio-históricos e culturais. O enunciado concreto se define, então, na enunciação em situações de contexto de produção e de recepção definidos. Mas qual é a relação entre textos e discursos? O texto engloba os discursos e é formado por discursos, colocando- -se na fronteira entre discursos culturais e históricos que constroem outros textos ou enunciados. Assim, o enun- ciado tem relação com os sujeitos e com a linguagem em uso e apresenta dois lados de sua natureza, o dado e o criado. Toda a criação nas relações de linguagem ocorre a partir de algo dado, então, todo dado se transforma em algo criado, e a criação ocorre na relação entre diferentes enunciados e por consequência de diferentes discursos (BAKHTIN, 2007). Dessa forma, o “discurso” se situa nas relações entre os sujeitos, na conjunção do histórico, social, cultural e polí- tico, em suas diferentes vivências, em uma perspectiva exclusivamente externa. De acordo com os PCNs (BRASIL, 1998, p. 22): Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são aleatórias — ainda que possam ser inconscientes —, mas decorrentes das condições em que esse discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage ver- balmente com alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação a ele e vice-versa. Podemos compreender, a partir da discussão apresentada, que não há discurso sem texto, ou vice-versa, porque as relações dialógicas entre os enunciados se dão tanto na materialidade do texto quanto nos elementos extra- linguísticos, como espaço de produção e reprodução, assim como valores históricos, sociais, culturais e políticos. Para ampliar seu entendimento a respeito do caráter ideológico da língua, sugerimos a lei- tura do artigo de José Luiz Fiorin, “Língua, Discurso e Política”. Disponível em: <http://www. scielo.br/pdf/alea/v11n1/v11n1a12.pdf>. 1.3 Texto e formação discursiva Pelas reflexões até aqui propostas, você já deve ter percebido que não existe neutralidade em qualquer texto, pois sempre haverá algum aspecto ideológico subjacente ao que dizemos, ao que lemos ou ouvimos. Da mesma forma, os interlocutores, ao proferirem um enunciado (e como já vimos, um discurso), sempre o fazem a partir de um lugar social, e essas formações discursivas têm, em essência, uma formação ideológica. Importa destacar que o conceito de formação discursiva surge na Análise do Discurso e se refere aos possíveis efeitos de sentido que um enunciado pode suscitar. Segundo Orlandi (1996), o sentido é algo aberto e depende da formação discursiva e ideológica dos interlocutores para garantir a compreensão damaterialidade discur- http://www.scielo.br/pdf/alea/v11n1/v11n1a12.pdf http://www.scielo.br/pdf/alea/v11n1/v11n1a12.pdf 16 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso siva, isto é, do discurso propriamente dito. Ainda segundo a autora, os sentidos, determinados ideologicamente, emergem das palavras, as quais mudam de significação de acordo com as posições daqueles que a empregam. Dessa forma, segundo Orlandi (1996), o sentido não está nas palavras, mas nas formações discursivas em que são escritas, que representam as formações ideológicas no discurso, dadas pela conjuntura sócio-histórica. Nesse sentido, para Orlandi (1996), os diferentes efeitos de sentido, dados pela formação discursiva, podem estar relacionados com a materialidade discursiva. Diferentes efeitos de sentido podem ser analisados pelo dispositivo de leitura interpretativa, sendo que essa leitura interpretativa, por meio da materialidade do texto, pode revelar diferentes discursos, em decorrência das escolhas lexicais, da organização sintática, do registro linguístico e dos modalizadores selecionados, pois revelam sentidos que somente podem ser alcançados pela análise dos ele- mentos linguísticos. Sendo assim, o sentido pode variar de acordo com a formação discursiva, relacionada com o interdiscurso, por- tanto, nunca há um sentido predeterminado, pois ele sempre será construído pelas escolhas do sujeito enuncia- dor a cada formação discursiva, que terá, invariavelmente, implicações ideológicas. Qualquer modificação na materialidade do texto corresponde a diferentes gestos de interpre- tação, compromisso com diferentes posições do sujeito, com diferentes formações discursivas, distintos recortes de memória, distintas relações com a exterioridade. (ORLANDI, 1996, p. 14). Por essa via, o interdiscurso é uma espécie de lacuna discursiva e pode ser definido como tudo aquilo que já foi formulado e que determina tudo o que é dito (ORLANDI, 1996). Nas interações discursivas, no entanto, Orlandi (1996) pondera que o sujeito não percebe a origem das formações discursivas das quais participa. Interdiscurso: é uma propriedade constitutiva do discurso, é o espaço não palpável, a memória do que já foi enunciado e que garante o funcionamento do discurso (ORLANDI, 1996). Glossário Figura 1.5: Interdiscursividade Legenda: A figura apresenta balões se entrecruzando. Fonte: Plataforma Deduca (2018). 17 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 1 - Introdução aos estudos de leitura e discurso De acordo com Silva (2014), a interdiscursividade alinha-se à concepção de que os discursos se relacionam com outros discursos. Isso quer dizer que um discurso traz em si outros discursos e é constituído por eles, seja os que já foram ditos pelos sujeitos, seja os que ainda serão produzidos. Ainda segundo Silva (2014), a interdiscursividade significa que não existe discurso homogêneo e monológico, pois, quando nos expressarmos, os nossos enuncia- dos são permeados por outras fontes enunciativas. Nesse contexto, alinhado ao conceito de interdiscursividade encontra-se o texto. Segundo Orlandi (1995), a con- dição necessária para se considerar um texto como tal é a possibilidade de identificar sua textualidade, cuja inter- pretação deriva de um discurso que o sustenta e o provê de realidade significativa. Ainda de acordo com a autora, na compreensão do que é texto, podemos entender a relação com o interdiscurso, a relação com os sentidos mesmos e com outros que surgirem. Nas palavras de Orlandi (1995, p. 115): Na perspectiva dessa relação dado/fato, quando afirmo que um texto não é um documento, mas um discurso, estou produzindo algo mais fundamental: estou instalando na consideração dos elementos submetidos à análise — no movimento contínuo entre descrição e interpretação — a memória. Em outras palavras, os dados não têm memória, são os fatos que nos conduzem à memória linguística. Nos fatos, temos a historicidade. Observar os fatos de linguagem vem a ser considerá-los em sua historicidade, enquanto eles representam um lugar de entrada na memória da linguagem, sua sistematicidade, seu modo de funcionamento. Nessa perspectiva, Orlandi (2001) afirma que a sua análise do texto não se pauta na sua discursividade, mas na sua relação como um fato que pode ser interpretado pela memória, considerando a sua historicidade e, por con- sequência, seu funcionamento e sistematicidade. Em suas interações cotidianas, ou mesmo em seus discursos, você consegue se dar conta de que eles são o resultado de inúmeras outras interações e discursos, ou seja, de muitas outras vozes? Reflita sobre os vários discursos que você enuncia. No processo de produção de sentidos, os enunciados trazem consigo outros tantos e estão no centro da consti- tuição dos diálogos. Acerca disso, Bakhtin (2007, p. 348) assegura que: [...] a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo incon- cluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, res- ponder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. Sob uma ótica discursiva de leitura, a constituição do sentido carrega vestígios de sua determinação histórica (ORLANDI, 2001), de forma que toda fala é a simulação de um discurso anterior, na qual o sentido muda e ao mesmo tempo se reescreve indefinidamente (PÊCHEUX, 1997 apud ORLANDI, 2001). Considerando essas questões, a autora recomenda que, para que alguém se forme como um bom leitor, mais do que ler muitas coisas, é necessário que se envolva em situações de interdiscursividade. 18 Considerações finais Vamos, agora, retomar os pontos principais abordados nesta unidade. • Ler não é meramente compreender os sinais gráficos, o ato de ler é dinâmico e pressupõe um leitor ativo na compreensão do texto. • A perspectiva cognitivista de leitura prevê três modelos de proces- samento de leitura: ascendente (que parte de unidades menores para as maiores do texto), descendente (na qual o leitor parte de seus conhecimentos prévios, fazendo predições antes de conside- rar os elementos linguísticos) e o interativo, que é a combinação dos dois primeiros. • A perspectiva sociocognitivista enfatiza o desenvolvimento de competência leitora por meio de estratégias de leitura mobiliza- das pelo leitor. O enfoque está no sujeito e na sua capacidade de realizar relações lógicas no contexto imediato da leitura. • A concepção interacionista de leitura enfatiza a importância do contexto e sustenta que a atividade de leitura se constitui nas interações dialógicas entre autor, texto e leitor, e que a produção de sentidos ocorre na enunciação, sendo o leitor um interlocutor ativo. • O processo de interlocução se constitui na e pela linguagem, ativi- dade social e histórica cujo produto social é a língua. • O texto engloba os discursos e é formado por discursos, assim como o enunciado tem relação com os sujeitos e com a lingua- gem em uso, nunca havendo neutralidade nesse processo. • A produção de sentidos não é algo previamente determinado, pois os sentidos variam de acordo com a formação discursiva e com os aspectos interdiscursos (a memória de tudo que já foi enunciado), reatualizando-se a cada nova interlocução. • Um leitor proficiente participa de variadas situações de interdis- cursividade. 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Estamos iniciando esta unidade de estudo em que iremos tratar da enunciação, sendo esta compreendida como a interação que ocorre quando a língua está em funcionamento, manifestando posições socioideológicas e histórico-culturais, como também o universo parti- cular de cada indivíduo. Além disso, você terá a oportunidade de apro- fundar seu estudo em conceitos como o de enunciado/texto, semiótico e semântico, mediados pelo dialogismo e polifonia, aspectos caracterís- ticos dos discursos, a fim de chegar à produção de sentidos. Bom estudo! Objetivos de Aprendizagem • Introduzir conceitos da Teoria da Enunciação. • Diferenciar os conceitos de dialogismo e polifonia. • Relacionar os conceitos de dialogismo, polifonia e leitura. 24 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia Aspectos da Teoria da Enunciação Antigamente, era comum a linguística se basear em construções de enunciados que mantinham um monólogo fechado, sendo que a língua posta em movimento, aberta e inacabada, era ignorada. De algum tempo para cá, no entanto, nos estudos sobre a enunciação se percebe a linguagem em movimento, isto é, o processo de cons- trução de frases. Além disso, muito se discutiu sobre a relação entre língua, fala e sentido, em que este último sobressaiu para estabelecer o que, hoje, denominamos discurso, que já não se baseia na forma para compreen- der a estrutura da língua, mas na sua significação. Benveniste (2005 [1966]), em seu artigo intitulado “Problèmes de Linguistique Générale”, atesta que o sentido é a própria essência da língua, e não algo que lhe é somado, mas construído na comunidade dos falantes, quando se usa a língua para atingir determinados fins por meio de unidades de significação denominadas signos linguís- ticos (significante e significado). A frase, por sua vez, é uma referência e, quando inserida em um contexto, traduz um sentido e, consequente- mente, um discurso, pois expressa uma enunciação. Assim, uma enunciação produz um enunciado, que é tudo aquilo que emite sentido e é associado a um contexto (situação). A frase, portanto, é uma entidade da língua que depende de um contexto para fazer sentido, isto é, quando ela acontece de modo particular, segundo uma intenção, cria-se um enunciado. Desse modo, a língua é a ferramenta que o falante ou o escritor utiliza para se expressar (enunciar), formando um discurso. Portanto, é através do ato de enunciar (enunciação) que a língua (sistema formal de código) se torna discurso. Também importa destacar que é através da língua que se dá a interação dialógica entre interlocutores no meio social, tanto na comunicação verbal quanto na não verbal, possibilitando a construção dos enunciados em um contexto em que todos são envolvidos. Ao interpretar e responder ao que é enunciado, temos uma ação de modo interno (por meio de seus pensamentos) ou externo (por meio de um novo enunciado oral ou escrito). Também podemos entender a enunciação como uma atividade de interação social através da qual a língua é colocada em funcionamento. Assim, o resultado da enunciação é o enunciado. Logo, sem o dito não ocorre enunciado. Nesse sentido, ao compreendermos um enunciado por meio da oralidade, da escrita ou de múltiplas linguagens, saberemos que ocorre uma enunciação. Vale ressaltar que a enunciação nos indica o sentido do enunciado, com atenção para o enunciador, aquele que partilha o seu pensamento, seu papel social, sua intenção comunicativa com o enunciatário; o enunciatário, que também partilha aquilo que recebe e suas impressões, suas ideologias; o espaço onde a mensagem é veiculada (lugar físico ou abstrato) e o tempo no qual ela ocorre (época, evento). Desse modo, outro ponto que destacamos é a questão de o enunciado não depender da língua, embora através dela se concretize, pois este é uma realidade do discurso. Isso porque, para identificar o sentido de um enunciado, precisamos saber em que contexto ele acontece. Por exemplo, quando alguém pergunta para outra pessoa: “Conseguiu a aprovação?”, existem para essa resposta milhares de significados, no entanto, só é possível iden- tificar do que realmente se trata a pergunta analisando-se em que situação o processo de enunciação ocorre. 25 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia 2.1 Teoria da Enunciação Èmile Benveniste, linguista francês, inspirador da Teoria da Enunciação, ao longo de sua vida, estudou muito a respeito da enunciação, do discurso, cuja natureza deste último é heterogênea, haja vista os inúmeros significa- dospossíveis a depender da conjuntura em que o discurso se insere. O linguista atesta que “[a] linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão, e o discurso provoca a emergência da subjetividade” (BENVENISTE, 1988, p. 289). Logicamente, é por meio da subjetividade que o enunciador se propõe como sujeito, pois somente na linguagem ele existe, conforme a realidade que o permeia. A partir da afirmação de Benveniste (1988), deduzimos que a referência integra o discurso, que é algo subjetivo, mesmo que dito ou escrito objetivamente. Desse modo, pela importância dada ao outro na teoria de Benveniste, à intersubjetividade, é que o discurso tem a capacidade de se renovar, atualizar-se. Isto ocorre porque na realiza- ção do discurso existem sujeitos que atuam e materializam a estrutura dialógica. Essa teoria também aponta para o fato de a língua expressar uma relação com o mundo, sendo que tal relação é propiciada pelo discurso, refletida, então, na dinâmica entre os locutores da enunciação e entre a referência. Figura 2.1: A subjetividade no discurso Legenda: Uma mulher fazendo uma declaração qualquer com base nas referências de mundo que possui. Fonte: Plataforma Deduca (2018). Contudo, uma observação se faz necessária no que concerne à enunciação: seu sentido é verificado ao se pro- duzir o enunciado, e não somente ao se falar alguma coisa. Portanto, o enunciado é a matéria da enunciação apropriada pelo sujeito que enuncia (enunciador). Nos estudos de Benveniste, a condição principal para que a enunciação produza o enunciado, e não o texto que nele aparece, consiste no fato de não se poder repeti-la, por isso, afirma-se que a enunciação é irrepetível. Já um enunciado pode ser, inclusive, ressignificado, como na declaração: “O Rio está em situação de emergência”. Perceba que na frase podemos tanto relacionar o Rio como o curso natural de água como o estado do Sudeste brasileiro. Isto posto, notamos que é através do enunciado (produto da enunciação) que detectamos o sentido. É, por- tanto, no enunciado que estão o conteúdo, o estilo (jeito próprio de expressar ideias) e a construção composi- 26 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia cional. Logo, cada enunciado é individual, mas cada contexto de utilização da língua equivale a tipos específicos de enunciados, denominados gêneros do discurso. Nesse sentido, enquanto o enunciado se revela como uma experiência interior, na qual prevalece o “eu”, a enunciação é fruto da necessidade de conceder ao mundo a lin- guagem que se concretiza quando há um “eu” e um “tu” (outro). Ducrot (apud BRAIT; MELO, 2005, p. 64) afirma: [...] para as diversas realizações, escolheremos a palavra enunciado (é o termo correspondente a token da Escola de Oxford). De acordo com essas definições, nosso primeiro exemplo comporta dois enunciados diferentes, ocorrências do mesmo enunciado-tipo, e que possuem característi- cas “históricas” (notadamente espaço-temporais) distintas. Enfim, entenderemos por enuncia- ção o fato que constitui a produção de um enunciado, isto é, a aparição da ocorrência de um enunciado-tipo. O que eu chamo de “frase” é um objeto teórico, entendendo por isso, que ele não pertence, para o lingüista, ao domínio do observável, mas constitui uma invenção desta ciên- cia particular que é a gramática. O que o lingüista pode tomar como observável é o enunciado, considerado como a manifestação particular, como ocorrência de uma frase. O que designarei por termo [enunciação] é o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado. A realização de um enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dando existência a alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá depois. É esta aparição momentânea que chamo de enunciação. 2.1.1 Semiótico e semântico Ao percebermos que o discurso articula forma (sistema de códigos da língua) e sentido (enunciação), podemos formular novos conceitos que dialogam entre si e coexistem no discurso: o semiótico e o semântico. O primeiro se refere a tudo o que somos capazes de interpretar e atribuir sentidos; o segundo, ao modo como moldamos os significados para atingirmos determinados fins. Figura 2.2: Exemplo do que é semiótico Legenda: A figura do relógio, como objeto concreto, cuja ideia é o passar do tempo. Fonte: Plataforma Deduca (2018). 27 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia A Figura 2.2 mostra um objeto que nos é familiar, o relógio, que indica o passar das horas, o tempo cronológico no sentido horário, mas também podemos ressignificar esse signo como no poema de Quintana (2006), a seguir: O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família. (QUINTANA, 2006, s.p.). No poema, o relógio admite outro sentido, o de uma sequência linear de momentos passados de geração em geração, perspectiva em que essa palavra se aproxima de outra (animal doméstico) para corresponder ao con- texto criado pelo poeta, que é o de significar a vida das pessoas com base no relógio, em que somos todos con- trolados por ele ou assim seguimos permitindo. Notamos, então, que uma frase como a do poema: “O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede”, compõe-se de um significado e de um valor semântico, sendo que cada palavra da frase possui um significado conhecido por nós, ou seja, sabemos o que cada uma delas quer dizer, conseguimos imaginá-las, mas elas só ganham sentido a partir da forma como a frase é enunciada. No caso analisado, o poeta construiu as frases de modo que o leitor, por meio dos significados de cada uma das palavras contidas no poema, possa chegar ao sentido da mensagem, à intencionalidade do autor. A semiótica, portanto, não pode ser compreendida sem abranger a semântica. Para você se familiarizar com a coexistência do semiótico e do semântico, além de compre- ender o processo da enunciação, desde os conceitos linguísticos formulados por Saussure – teórico que originou e desenvolveu estudos sobre a Linguística, tornando-a ciência autô- noma –, leia o texto “Signo, significação e discurso”, de Rubens César Baquião. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/esse/article/download/35250/37970>. https://www.revistas.usp.br/esse/article/download/35250/37970 28 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia 2.2 Dialogismo e polifonia na enunciação Na década de 1980, dois outros conceitos surgiram no Brasil e renderam longas discussões nas décadas pos- teriores: dialogismo e polifonia. Mas antes de tratarmos desses conceitos, é importante lembrarmos de Mikhail Bakhtin – filósofo e teórico que analisou a linguagem, criando conceitos e categorias para estudá-la com base em discursos do cotidiano, das artes, filosóficos e institucionais – e seus estudos sobre a palavra do outro. De acordo com Bakhtin (apud TEZZA, 1988, p. 55): Nossas palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos rodeiam. Assim, podemos compreender que a linguagem se insere não só em uma conversa interativa, em que há dois ou mais interlocutores, mas também entre línguas, literaturas, culturas, estilos, gêneros e, até mesmo, no universo das ideias, em um sentido totalizador. Diante disso, Bakhtin (1997) aprofundou-se ainda mais em sua análise sobre a linguagem, ao estudar outro autor, Dostoiévski, um destaque do romance russo, e uma de suas obras mais populares (Crime e Castigo), na qual é concedida a cada personagem uma visão de mundo, e não uma repetição do que pensa o próprio autor da obra. Assim, as vozes lá contidas são polifônicas, e os indivíduos são autônomos em relação ao criador da obra. A essência dapolifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independen- tes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, rea- liza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. (BAKHTIN, 1997, p. 21). Vale destacar que existe a possibilidade também de compreendermos o conceito de polifonia por aquilo que ela representa na música. Primeiramente, na Idade Média, aproximando-se do canto popular, sendo uma composi- ção simultânea de sons, em que cada som é independente um do outro, contudo, são percebidos como um todo. No entanto, na literatura, foi Bakhtin (1997) quem desenvolveu o conceito de polifonia, por meio de seus estudos sobre o romance, principalmente os de Dostoiévski, em que identificou que as vozes das personagens indepen- dem da estrutura da obra, bem como do autor, já que as consciências dessas personagens são apresentadas de forma similar, sem que uma seja superior à outra, e, muito menos, inferiores à consciência do autor. Além disso, também é possível notar a combinação dos universos particulares de cada uma das personagens, embora todos mantenham sua própria individualidade. Nesse contexto, outra característica que também pode ser incluída em um romance polifônico é o caráter aberto da obra, ou seja, inconclusivo, uma vez que os conflitos não são dissolvidos, mas permanecem em um processo contraditório: afirmando e negando simultaneamente. Na obra “Crime e Castigo”, Dostoiévski conta a história de um assassinato que tem como estopim o conflito moral sofrido por um ex-estudante de direito, Raskólnikov, o qual vive em uma condição miserável, em um quarto alu- gado, sendo explorado pela locadora do imóvel, que cobra juros altos pelas minguadas moedas que lhe empresta sob a penhora de objetos familiares. O rapaz também tem uma irmã, que está desempregada por não ter se ren- dido à sedução do patrão casado e, também, por ter sido mal falada na cidade por conta dos ciúmes da esposa traída, que, depois, ao descobrir a honestidade da moça, decide lhe arranjar um “bom partido”. Raskólnikov, con- tudo, não deseja ver o sacrifício de sua irmã ao se casar sem amor. Ao longo da trama, a personagem protagonista, Raskólnikov, assim como as outras que com ela interagem e per- meiam a narrativa, move-se de maneira interdependente, de modo que seus pensamentos e atitudes são regi- dos por uma dinâmica afórica, na qual se notam outras vozes a dialogar no percurso da personagem em foco no momento, alterando-se entre sentimentos e emoções eufóricas e negativas. Veja um exemplo retirado do livro: 29 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia Caramba, Zamiótov!... a delegacia!... E por que é que estão me intimando à delegacia? Cadê a intimação? Caramba!... eu confundi: a intimação foi da outra vez! Naquele momento eu também examinei a meia, mas agora... agora eu estava doente. E o que Zamiótov veio fazer aqui? Para que Razumíkhin o trouxe aqui?... – resmungava ele impotente, voltando a sentar-se no sofá. – O que é mesmo isso? Será que eu continuo delirando ou isso é verdade? Parece que é verdade... Ah, me lembrei: fugir! Fugir logo, sem falta, sem falta fugir! Sim... mas para onde? E onde está minha roupa? Não tenho botas! Recolheram! Esconderam! Compreendo! Mas, e o sobretudo – não dis- tinguiram! Eis o dinheiro na mesa, graças a Deus! E eis a letra... Pego o dinheiro e vou embora, alugo outro quarto, eles não vão me achar!... É, mas e o serviço de informações de endereços? Vão achar! Razumíkhin acha. O melhor é fugir de vez... para longe... para a América, e me lixar para eles! E levar a letra... lá ela vai servir. Levar mais o quê? Eles pensam que estou doente! Eles nem sabem que estou podendo andar, he-he he!... Pelo olhar deles percebi que estão sabendo de tudo! Eu só precisava descer a escada! Mas lá estão os guardas deles, os policiais! O que é isso, chá? Ah, olha sobrou cerveja, meia garrafa, fresca! (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 140). Afórica: no contexto sugerido, é uma espécie de referência a termos que já apareceram no texto ou que ainda aparecerão. Glossário Ao refletir sobre a possibilidade de fugir, a personagem Raskólnikov imagina a reação de Zamiótov e dos policiais ali presentes, promovendo uma polêmica ao levantar a questão da fuga. Tal fato também constitui a polifonia, pois, além de se situar em um campo dialógico, as vozes se fazem presentes e coexistentes (interagem simulta- neamente), mesmo que através de uma só personagem. Podemos perceber, então, que essa tessitura de vozes polifônicas carrega posicionamentos ideológicos que são questionados pela personagem protagonista e, de acordo com Bakhtin (1997, p. 7, grifo nosso), “[...] a multiplici- dade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes consti- tuem, de fato, a peculiaridade dos romances de Dostoiévski”. Imiscíveis: que não se misturam. Plenivalentes: no contexto sugerido, significam independentes. Glossário Se formos trazer o conceito de polifonia que até agora estudamos a um nível de compreensão em nosso país, veremos como este é confundido com o conceito de dialogismo e até com o de carnavalização (banalização). No entanto, devemos compreendê-lo como uma reflexão a respeito da natureza do discurso, que se manifesta como um embate social devido à dialética constituinte do signo (unidade que integra o código da língua, composta de 30 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia significante e significado), através da qual o indivíduo se reflete e se refrata (muda de direção ou de ideia), sendo que isto ocorre porque há na interação uma dinâmica socioideológica. Desse modo, o texto que lemos é dialógico porque sugere um confronto de várias vozes sociais (Raskólnikov, o jovem estudante; Zamiótov, o escrivão; e os policiais), cujas concepções do dialogismo se encontram na interação entre o enunciador e o receptor da mensagem, como também no interior do próprio discurso (intertextualidade). Assim, a intertextualidade presente na narrativa romântica de Dostoiévski ocorre pela superposição da obra referida a outra, como a Bíblia. Veja um trecho no qual Raskólnikov visita a prostituta Sônia, inclina-se diante dela e beija-lhe os pés exclamando: “Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento humano” (DOSTOI- ÉVSKI, 2001, p. 332). Note que esse excerto lembra a passagem de Jesus na vida de Maria Madalena. Superposição: no contexto sugerido, tem o sentido de referenciação. Glossário Assim, podemos diferenciar um texto monológico de outro polifônico. No primeiro, os traços típicos sociais e os que caracterizam a individualidade são fixos, nem se alteram nem se moldam; já no segundo tipo de texto, o homem está sempre questionando a sua própria consciência, o que gera mudanças constantes. Notamos que o dialogismo consiste em relações de sentido que possam ser estabelecidas no decorrer das enunciações, em diálogos, em narrativas, de modo a se verificar uma gama de valores retidos pelas várias vozes atuantes e a correspondência entre textos. 31 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia 2.2.1 O discurso dialógico e polifônico observado na leitura Segundo as concepções de Bakhtin (1997), o dialogismo é a engrenagem da polifonia, ou seja, da interação tex- tual, que ocorre na interposição de um texto sobre outro, similares entre si de algum modo, ou na convergência entre eles. Convergência: engloba um ponto em comum. Glossário Em uma conversa, por exemplo, o processo de percepção se dá em um mesmo espaço, que é preenchido tanto pelo emissor quanto pelo receptor da comunicação. Então, para Bakhtin (1997), todos os envolvidos no movi- mento dialógico, que tem na linguagem o seu instrumento principal, refletemelementos sociais, históricos e ideológicos, que estruturam sentidos reais, mesmo estando contidos em obras ficcionais. A partir disso, então, também podemos conceber a leitura como um diálogo em que se constroem sentidos, por meio da visão do autor e do leitor que interagem entre si, sem que a do primeiro se sobressaia ou se imponha, mas deixando que o leitor interprete livremente aquilo que lê, chegando a uma formulação de pensamento. Conforme as palavras de Orlandi (2012, p. 71), leitura é: [...] trabalho simbólico no espaço aberto da significação que aparece quando há textualização do discurso. Há pois muitas versões de leitura possíveis. São vários os efeitos-leitor produzidos a par- tir de um texto. São diferentes possibilidades de leitura que não se alternam, mas coexistem assim como coexistem diferentes possibilidades de formulação em um mesmo sítio de significação. Desse modo, compreendemos que ler é uma prática simbólica que admite múltiplos sentidos, a depender da posição que o sujeito ocupa no discurso, isto porque o texto será determinado pelas formações discursivas e ide- ológicas que indagam o sujeito no decorrer da leitura, assim como por não haver um sentido acabado, limitado, nem um sentido reproduzido, mas o perpassar permitido do leitor diante da obra. E, logicamente, cada discurso, manifestado em textos, intercala outros ditos, outros saberes, histórias, ideologias, culturas, enfim, identificados na leitura. Barros (1994, p. 6) sintetiza: Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. Para Bakhtin (1997), podemos compreender o dialogismo sob duas formas: o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre discursos. O primeiro tipo de diálogo ocorre entre interlocutores, isto é, duas pessoas; funda a linguagem porque é atra- vés dessa interação que as palavras ganham significado e os sentidos são construídos. Há também a noção de sociabilidade, que não só se vale da conversa entre dois sujeitos, mas desses sujeitos com a sociedade (aspectos ideológicos, culturais). 32 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia Podemos, então, resumir o dialogismo como uma forma de se organizar a linguagem, já que: [...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado, sem- pre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falara sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em intera- ções complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. (BAKHTIN, 1998, p. 86). O segundo tipo trata da relação de um discurso com outros discursos, pois cada texto tece muitas vozes (textos) que se entrecruzam, inter-relacionam-se, posto que todo discurso carrega um caráter ideológico. Nesse sen- tido, essas relações dialógicas podem ser notadas em enunciações completas, como parte de um enunciado, ou mesmo em palavras isoladas. Assim sendo, compreendemos que o texto é o entrecruzamento de várias vozes geradas em práticas de comunicação que se polemizam, completam-se ou respondem umas às outras. Todavia, também podemos compreender o dialogismo em relação ao próprio processo de construção de sen- tidos, no qual há uma seleção de procedimentos por parte de escritores e leitores para dialogar com o texto e produzir um significado para ele, incorporando nesse processo tanto aspectos internos, do próprio ser, quanto as experiências trazidas por outros textos lidos. Dessa forma, o texto, segundo Reid (1993, p. 34), é um produto escrito e sendo produzido, no qual o objetivo inicial é constituir um sentido, sendo a tarefa do escritor atribuir ao texto uma forma e uma utilidade conforme a vontade e conhecimento do escritor (experiências anteriores, percepções do interlocutor, conhecimento do tema e intenção comunicativa), levando em consideração o leitor (suas experiências anteriores, percepções, conhecimento do tópico e propósito da leitura). Por esse motivo, o leitor, além de ser quem lê o texto, deduz o seu sentido e questiona o que ali é colocado diante dele, sendo que, também, ao reler o mesmo texto, pode gerar um novo sentido para ele. Ainda sobre o processo de leitura, Zamel (1992, p. 468) comenta as formas de se construir sentidos: [...] a leitura representa uma atividade engajada de construir significado e assim, permite aos aprendizes fazer conexões com o texto. A escrita fornece uma oportunidade única para desco- brir e explorar essas contribuições e conexões, além de permitir ao leitor dialogar com o texto e encontrar uma maneira particular de entrar nele. Todo texto é dialógico, mas alguns são monofônicos, nos quais uma voz se sobressai em relação a outras, e outros são polifônicos, em que há várias vozes independentes umas das outras para conferir sentidos. 33 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia 2.2.2 O texto no âmbito dos discursos O texto é popularmente conhecido como unidade de sentido, mas no entendimento da Análise do Discurso o texto tem um significado muito mais profundo porque parte da premissa de que qualquer fato enunciativo estará sempre à mercê das relações de sentido naturalmente antagônicas, pois ocorre sempre algum equívoco na sua apreensão. [...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se des- locar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da inter- pretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxicosintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso. (PÊCHEUX, 1997a, p. 53). Esse processo pode ser explicado pela autonomia característica da própria língua, por toda representação histó- rica e ideológica que ela marca, embora ela, a língua, não atue de modo isolado, mas se configure pelos sentidos, afinal, todo enunciado pode transformar-se em outro. Para melhor compreender essa representatividade manifestada pela língua, vamos nos ater um pouco sobre a teoria do discurso, que também diz respeito à determinação histórica dos processos semânticos, que se vincula ao social, que está atrelada à história. Desse modo, devemos olhar para a história como um processo descontínuo e permeado por rupturas, em que a ideologia é percebida pelo sujeito de maneira imediata, no momento presente em que esse sujeito é interpelado pela história. Por essa via, Bakhtin e Voloshinov (1995) destacam que a existência da ideologia e o chamamento ou interpelação dos indivíduos como sujeitos não apresentam diferença, aparentando, assim, acontecer na rea- lidade, e não na ideologia. Nesse sentido, o discurso que esse mesmo sujeito produz não pode ser desassociado do contexto, posto que o dis- curso é uma construção linguística realizada em um dado contexto social. Assim, para compreendermos o sentido de um discurso, precisamos analisar o contexto, o aspecto estético – relacionado à sensibilidade que o teor provoca – e a forma de construção desse discurso, no entanto, ele permanece aberto à interpretação de seu leitor. Vejamos, no Quadro 2.1,a seguir, três aspectos relacionados ao processo de significação do texto realizado pelo sujeito para a atribuição de sentidos. Quadro 2.1: Concepções do processo de atribuição do sentido de um texto INTELIGÍVEL INTERPRETÁVEL COMPREENSÍVEL Aquilo que é claro, de fácil assimilação. Atribuição de um sentido para o texto. Está além da interpretação. Decodificam-se as palavras no texto. O sentido do texto parte da interpretação do contexto. O sujeito compreende o texto com base em usa ideologia, memória e situações vivenciadas. Fonte: Adaptado de Lima e Heine (2014). 34 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia Orlandi (1988, p. 74) resume bem esses aspectos: “[o] sujeito que produz uma leitura a partir de sua posição, interpreta. O sujeito que se relaciona criticamente com sua posição, que problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, compreende”. Com isso, podemos pensar a língua como uma rede de significação, que depende da relação entre efeito-leitor e vice-versa, com base na linguagem, cuja condição para existir se dá pela incompletude, pelo inacabado. A autora (2012, p. 53) complementa afirmando que, “[ao] dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos e, também, por sua formação discursiva [...]”. A seguir, vamos analisar uma pequena fábula para visualizar como a apreensão do texto funciona na prática. Uma rã viu um boi que tinha uma boa estatura. Ela, que era pequena, invejosa, começou a inflar-se para igualar-se ao boi em tamanho. Depois de algum tempo, disse: - Olhe-me, minha irmã, já é o bastante? Estou do tamanho do boi? - De jeito nenhum. - E agora? - De modo algum. - Olhe-me agora. - Você nem se aproxima dele. - O animal invejoso inflou-se tanto que estourou. Fonte: Rocha ([s. d.]), p. 63). Se fosse perguntado a você se a história é sobre bichos ou humanos, saberia responder? Se você respondeu sobre humanos, acertou! Mas como você chegou a essa conclusão? Simples. Pelo fato de que algumas informações presentes na fábula dizem respeito ao comportamento humano, como o adjetivo “invejo- sos” e a vontade de a rã se igualar em tamanho ao boi. Essas informações revelam o traço semântico contido no texto. Assim, os traços semânticos presentes no texto direcionam a leitura que devemos fazer sobre ele, portanto, a leitura está arrolada a uma possibilidade existente no texto (interpretação). E quanto aos textos polifônicos? Como identificar os traços semânticos que nos permitem compreender, de fato, o texto? Vejamos um exemplo, a partir do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, cujo discurso confessional também se encaixa no discurso de várias vozes (polifônico). Nesse conto, o narrador, Nogueira, jovem ingênuo do campo, recém-chegado à cidade grande e não familiari- zado com a vida urbana, é também uma personagem que conversa com sua autoconsciência, ao tentar entender o seu passado, uma vez que logo no início do conto, na primeira página, o enunciado – “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta” – reflete dois narra- dores fundidos em um só: o jovem e o velho, já que no momento em que a história é contada Nogueira já é um homem maduro. Perceba que essa marca temporal consiste em uma presença dialógica. Além desta, a outra forma de percebermos a polifonia no texto é através da autoconsciência da personagem com os discursos que vêm de fora e, também, os que dizem respeito à realidade que o permeia. Veja o trecho na segunda página do conto de Machado de Assis que transmite essa ideia: “Boa Conceição! Chamavam-lhe ‘a santa’ e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido”. Nesse trecho, o narrador faz um juízo de valor sobre a personagem Conceição. 35 Aspectos Discursivos da Língua | Unidade 2 - Aspectos de dialogismo e polifonia Desse modo, entendemos que existem duas maneiras de incorporar vozes de outro em um enunciado: • uma, em que o discurso do outro é demarcado, separado e citado abertamente no texto; • outra, em que o discurso do outro é dialogicamente interno, é bivocal. Com base nessas informações, percebemos que só produzimos linguagem por meio do discurso, quando dize- mos algo a alguém em um contexto específico, demarcado por condições peculiares, que vão desde convicções a posições sociais das pessoas envolvidas, sendo que essas condições definem o gênero textual no qual o discurso se realiza e onde o texto pressupõe a atividade discursiva. No entanto, não devemos confundir tipologia textual, compreendida pelo gênero ao qual o texto pertence (narra- tivo, descritivo, argumentativo e injuntivo), com o gênero discursivo (que trata das ações de interação que ocorrem através da linguagem, considerando a situação comunicativa, o objetivo, o público e as escolhas do interlocutor). Exemplos de gêneros do discurso são: chat, crônica, bate-papo entre amigos, anúncio publicitário etc. A importância de entendermos esses conceitos tem a ver com a forma como lidaremos com as atividades de lei- tura, compreensão e produção textual em sala de aula. E, como professores de Língua Portuguesa, não devemos restringir as nossas aulas à gramática, mas permitir ao aluno leitor construir “[...] um sentido que seja compatível com a proposta apresentada pelo seu produtor” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 8). Tendo como base os conhecimentos sobre interpretação e compreensão de sentidos que adquiriu ao longo do estudo desta unidade, você, agora, tem mais conhecimentos e infor- mações para participar do Fórum Desafio e ampliar sua reflexão sobre o tema. 36 Considerações finais Por fim, chegamos à conclusão desta unidade, na qual vimos os conceitos que envolvem a Teoria da Enunciação, cerne dos estudos sobre a lingua- gem, a partir de Benveniste, pondo a dinâmica dos discursos como centro das atenções para analisar a apreensão de sentidos nos textos, como tam- bém a relação dialógica presente em discursos e percebida na atividade de leitura. Vejamos os pontos mais importantes que aprendemos. • Uma frase fora de contexto não tem significação, mas, quando sustentada por uma dada situação específica, gera um enunciado. • A enunciação dá-se pelo ato de enunciar, cujo resultado é o enun- ciado; sem o dito não há enunciação. • Na Teoria da Enunciação, o sujeito existe por meio da linguagem na qual incorpora a sua subjetividade. • A subjetividade do sujeito é também uma referência da realidade que o permeia. • A diferença entre semiótico e semântico se encontra no sentido das coisas. Enquanto o primeiro compreende o que cada palavra significa, o segundo interpreta as palavras de acordo com o con- texto em que elas estão inseridas. • Discursos polifônicos dizem respeito à multiplicidade de vozes contidas em um único texto ou enunciado, que refletem posi- cionamentos histórico-ideológicos e a consciência individual do homem. • Há dois tipos de diálogos: os que ocorrem entre interlocutores e os que ocorrem entre textos. Este último trata da noção de inter- textualidade. • A intertextualidade pressupõe a existência de referências no pro- cesso de produção e recepção dos textos. • Um texto pode ser inteligível (decodificado), compreensível (evo- cado por outras instâncias, como a memória do leitor ou ouvinte, por exemplo) e interpretável (percepção do contexto). 37 Referências ASSIS, J. M. M. de. Missa do Galo. In: Páginas recolhidas. Domínio Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000223.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2018. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ______. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1998. ______. VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel
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