Buscar

TCC JP

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 80 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 80 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 80 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA 
FACULDADE DE DIREITO PROF. JACY DE ASSIS 
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
 
 
JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS 
 
 
 
 
DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À 
REVISTA “VEJA” POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UBERLÂNDIA 
2020 
 
 
 
 
 
JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À 
REVISTA “VEJA” POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 
 
Monografia apresentada ao Curso de 
Graduação em Direito da Faculdade Prof. Jacy 
de Assis como requisito parcial à obtenção do 
título de Bacharel em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UBERLÂNDIA 
2020 
 
 
 
 
 
JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS 
 
 
 
 
 
DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À 
REVISTA VEJA POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 
 
Monografia apresentada ao Curso de 
Graduação em Direito da Faculdade Prof. Jacy 
de Assis como requisito parcial à obtenção do 
título de Bacharel em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne 
 
 
 
Uberlândia, ___ de ______________de ______ 
 
 
______________________________________________________ 
Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne, UFU/MG 
 
______________________________________________________ 
Profa, Ma. Neiva Flávia de Oliveira, UFU/MG 
 
______________________________________________________ 
Prof. Dr. Israel de Sá, UFU/MG 
AGRADECIMENTOS 
Primeiramente, deixo meu agradecimento a todos que, nas diversas etapas da minha educação 
me ensinaram. Tanto na educação básica quanto o do ensino superior, se hoje tenho a 
oportunidade de entregar uma monografia em uma universidade pública, meus professores 
decerto tiveram participação nisto. Em especial, agradeço aos professores da banca, prof. Neiva 
Flávia e prof. Israel de Sá pelo aceite em avaliar esta pesquisa, bem como ao meu orientador, 
prof. Vinícius Dorne, que com muita paciência me orientou, tanto no PIBIC quanto no TCC, e 
me apresentou ao mundo da Análise do Discurso, do qual antes só conhecia menção. 
Agradeço àqueles que me acompanharam nessa jornada até aqui, e que me ajudaram a suportar 
o que sem eles seria insuportável. A todos meus amigos: sejam eles do ensino médio e de 
infância, sejam os RPGistas, os da faculdade (tantos os BFF’s da 69ª quanto o squad da 70ª) ou 
quaisquer daqueles com os quais eu tenha sido agraciado com a chance de conviver: obrigado 
por tornarem esse mundo mais agradável. 
Agradeço também a meus pais e família, que desde meus primeiros dias se esforçaram para que 
eu pudesse ser a melhor versão de mim, e que com amor, carinho e brigas, ajudaram a me 
moldar na pessoa que hoje sou. 
Por fim, agradeço Àquele que, independente do nome pelo qual seja conhecido ou chamado, 
pôs estas pessoas incríveis em meu caminho. 
 
 
 
 
 
OMENA SANTOS, J. P. Do discurso de si do jurista: análise de entrevistas cedidas à revista 
veja por ex-presidentes do supremo tribunal federal. 2020. 79 f. Monografia (Graduação em 
Direito) — Universidade Federal de Uberlândia, MG, 2020. 
RESUMO 
A pesquisa tratará da (auto)construção dos sujeitos nos discursos, mais especificamente em 
duas entrevistas cedidas à Revista Veja por ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal do 
Brasil: min. Carmen Lúcia e min. Dias Toffoli. A fim de buscar de que maneira se constroem 
os sujeitos “STF” e “ministro do STF” nos discursos de si que estes dão origem, os autores 
farão uma construção teórica acerca do discurso e sua análise, e da verdade; bem como uma 
contextualização histórica do discurso jurídico, e sua relevância e/ou reflexos ao longo da 
história, havendo uma seção dedicada especificamente a alguns discursos normativos 
relacionados ao Supremo Tribunal Federal no Brasil. Posteriormente haverá a análise, onde 
buscaremos a emersão destes sujeitos nos discursos analisados, bem como vincular os achados 
da análise aos conceitos vistos nos capítulos anteriores. Ao fim da análise, conclui-se o trabalho, 
havendo retomada dos conceitos até então utilizados, bem como havendo o surgimento de novas 
indagações acerca do tema e do objeto estudado. 
Palavras-chave: Análise do Discurso. Supremo Tribunal Federal. Revista Veja. Discurso de 
si. 
 
 
 
 
 
RESUMÉ 
La recherche portera sur la (auto)construction des sujets dans les discours, plus précisément 
dans deux entretiens donnés au Magazine Veja par d'anciens présidents de la Cour Suprême 
Fédérale (CSF) brésilienne: min. Carmen Lúcia et min. Dias Toffoli. Afin de rechercher 
comment les sujets “CSF” et “ministre de la CSF” sont construits dans les discours d'eux-
mêmes qu'ils suscitent, les auteurs feront une construction théorique sur le discours et son 
analyse; sur la vérité; ainsi qu'une contextualisation historique du discours juridique, sa 
pertinence et/ou ses réflexes à travers l'histoire, avec une section dédiée spécifiquement à 
certains discours normatifs liés à la Cour Suprême Fédérale du Brésil. Ensuite, il y aura 
l'analyse, où nous chercherons l'émergence de ces sujets dans les discours analysés, ainsi que 
lierons les résultats de l'analyse aux concepts vus dans les chapitres précédents. Au terme de 
l'analyse, le travail est conclu, après avoir repris les concepts utilisés jusque-là, ainsi que 
l'apparition de nouvelles questions sur le thème et l'objet étudié. 
Mots clés: Analyse du Discours. Cour Fédérale de Justice. Magazine Veja. Discours de soi-
même. 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 7 
2 DO DISCURSO E DA VERDADE ................................................................................ 10 
2.1 Discurso e enunciado ....................................................................................................... 10 
2.2 Discurso e efeitos de verdade .......................................................................................... 14 
3 DO DISCURSO DE SI NA SOCIEDADE OCIDENTAL ........................................... 22 
3.1 Da penitência canônica e sua relevância na mudança da cultura ocidental .............. 26 
3.2 Do cuidado de si e do conhecer a si ................................................................................ 28 
4 O DISCURSO JURÍDICO AO LONGO DA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS ...... 32 
4.1 Discurso jurídico na Grécia Arcaica e Clássica: Ilíadas e Édipo-Rei ......................... 32 
4.2 Discurso jurídico na Idade Média: o Direito Germânico e o inquérito ...................... 36 
4.3 Discurso jurídico na Modernidade: do inquérito ao exame ........................................ 41 
4.4 O discurso e o sujeito STF/ministro do STF ................................................................. 45 
5 ANÁLISE DISCURSIVA DAS ENTREVISTAS “ESTADO DE ALERTA” E 
“PODER SUPREMO” .................................................................................................... 58 
5.1 “Estado de Alerta” .......................................................................................................... 58 
5.2 “Poder Supremo” ............................................................................................................ 63 
5.3 A formação e as regularidades discursivas das entrevistas ......................................... 70 
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................... 75 
 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 77 
 
 
7 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
As instituições de poder recorrentemente são objetos da análise do discurso: mais 
propriamente, os discursos destas instituições sempre foram objetos de análise. Dentre elas, e 
em especial para o filósofo francês Michel Foucault,que trata das relações saber-poder 
presentes na(s) sociedade(s), as instituições de Direito guardam especial espaço. Se isto é 
verdade, torna-se ainda mais enfática a relevância dos discursos das instituições jurídicas no 
cenário brasileiro pós-eleições de 2018. 
É desta maneira que surge a inquietação motivante desta pesquisa: “Como os ministros 
do Supremo Tribunal Federal (STF) se constituem como/em sujeitos em entrevistas cedidas a 
jornalistas”? 
No tocante ao percurso metodológico, ambos a metodologia e o método serão a Análise 
de Discurso Francesa, com alicerce especial em Foucault (1984; 2002; 2004; 2006; 2008; 
2014). Em essência, consistirá em recortamos e delimitarmos os corpi e, dentro destes (que 
serão os discursos a serem analisados), extrair enunciados nos quais se possa ver a construção 
de si (em oposição à construção de si pelo outro; discurso do outro); mostrar como se dá essa 
construção; e comparar as subjetividades eregidas no primeiro e no segundo discurso. 
A situação que se mostra, e que será revista ao longo do presente trabalho, é uma 
situação de conflito entre instituições e poderes políticos. No período entre a cessão da 
entrevista que forma o primeiro corpus e a entrevista que forma o segundo corpus a ser 
analisado, o Brasil passa por um processo eleitoral que tem por resultado a eleição de Jair 
Bolsonaro, então deputado do Partido Social Liberal (PSL), à presidência da República. 
Buscaremos observar como tal historicidade – constituinte dos discursos – (não) possibilitaram 
dizeres outros sobre como os ministros se inscrevem como sujeitos de/do direito em seus 
dizeres. 
Enquanto objetivo geral, buscamos: Analisar como, discursivamente, os ministros do 
STF se constituem como sujeitos de/do direito em entrevistas concedidas a jornalistas antes e 
após a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Como objetivos específicos: a) refletir sobre como 
o Direito se constituiu na sociedade; b) compreender como os sujeitos, nos seus próprios 
dizeres, buscam se constituir como sujeitos; c) identificar regularidades discursivas da inscrição 
do sujeito ministro do STF em seus próprios enunciados. 
8 
 
 
Os objetos de análise desta monografia são, então, entrevistas cedidas à Revista Veja 
por ex-presidentes do STF, quais sejam: José Antonio Dias Toffoli e Carmen Lúcia. O recorte 
se deu, primeiramente, pelas similaridades entre os sujeitos — ambos ex-presidentes do STF 
—; em segundo plano, temos que se trata do mesmo veículo de divulgação, a Revista Veja, 
tendo sido, inclusive, entrevistados pela mesma pessoa (o ministro Dias Toffoli teve dois 
entrevistadores, um deles em comum com a ministra Carmen Lúcia); por fim, entre o mandato 
e a entrevista destes dois ministros o Brasil, ocorreu as eleições de 2018, que, dentre outras 
coisas, possivelmente modificou o panorama político- jurídico do Brasil. 
De maneira breve, cabe aqui explicar a estrutura organizacional do Supremo: o STF é a 
máxima instância jurídica do Brasil em matéria constitucional (BRASIL, 1988). Ele é composto 
por onze juízes, que são chamados de ministros, nomeados pelo Presidente da República e 
aprovados pelo Senado Federal. O presidente do STF é escolhido pelos ministros em votação 
secreta, com quórum mínimo de 8 juízes. O presidente do STF é também presidente do 
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e ocupa a 4ª posição na linha de sucessão presidencial 
(precedido pelo vice-presidente, pelo presidente da Câmara dos Deputados e pelo presidente do 
Senado Federal, respectivamente) (BRASIL, 1988). 
Em busca de responder a pergunta de pesquisa, o presente se estrutura da seguinte 
maneira. No tocante à Análise do Discurso francesa (AD), nos valeremos especialmente das 
reflexões de Michel Foucault sobre e para a teoria do discurso; assim, no capítulo 2 da presente 
monografia, abordaremos os conceitos de discurso e verdade: em que consistem; o que são, e 
alguns exemplos de regimes de verdade; o que são enunciados; o porquê de o discurso não ser 
tão somente continuidade da/na história; o porquê de ele não olhar para a origem; e o porquê 
de ele também ser história. 
No capítulo 3, nos deteremos naquela que é considerada a terceira fase dos estudos de 
M. Foucault: ética e estética da existência. Assim ,abordaremos a questão do discurso de si: 
como as técnicas e as formas de se constituir em sujeito se deram, foram moldadas e moldaram 
a história ocidental, em especial suas relações com o cristianismo; e a diferenciação de alguns 
tipos de discursos de si, nomeadamente o conhecer a si e o cuidar de si, e sua gestação na 
cultura grega. 
No capítulo 4, buscaremos mostrar como o discurso jurídico gestou no seio das 
sociedades ao longo dos tempos mudanças estruturais, ou como ele foi um indicativo das 
9 
 
 
mudanças pelas quais passava a sociedade. Nos 3 primeiros subcapítulos, usaremos os já citados 
ensinamentos de Michel Foucault, sendo que no subcapítulo 4 buscamos compreender como se 
constituiu o discurso jurídico (em especial os que tratam do STF) ao longo dos séculos XIX e 
XX. Para tanto, também nos valemos de Fausto (2006) e Mathias (2009): aquele nos fornecerá 
uma contextualização histórica do Brasil, e este nos fornecerá um levantamento de mudanças 
ocorridas no âmbito do judiciário ao longo da história brasileira. 
No capítulo 5, buscamos responder nossa pergunta discursiva, a partir das reflexões 
levantadas no curso deste trabalho, ou seja, como os ministros do STF se constituem como 
sujeitos de/do direito em seus próprios dizeres. 
Para poder refletir sobre o que somos hoje, é de grande importância compreender como 
os discursos fabricam a história e os sujeitos. De um ponto de vista social, portanto, a 
compreensão dos discursos jurídicos que dão conteúdo à estrutura jurídica brasileira, bem como 
dos contextos em que se inscrevem, contribui para a própria compreensão da atualidade 
brasileira, de maneira que se viabilize a criação de estratégias cada vez mais eficazes para o 
direcionamento do judiciário brasileiro. De um ponto de vista científico a proposta pode 
contribuir tanto para a compreensão do próprio objeto pela comunidade acadêmica, quanto para 
contribuir como fontes futuras acerca da temática. 
Consequentemente, interroga como, ao discursar sobre si, os ministros do STF se 
constituem como sujeitos de/do Direito, responsáveis pela “judicialização da vida”. 
Compreender o funcionamento discursivo permite, assim, um olhar menos ingênuo para a 
linguagem e, principalmente, para os poderes exercidos pelo discurso jurídico na sociedade e 
as consequências de sua autoridade e legitimidade no corpo social 
Finalizada esta introdução e indicada a estrutura que seguirá esta monografia, podemos 
dar seguimento ao planejado e começar o lançamento da base teórica tratando do discurso e da 
verdade. 
 
10 
 
 
2 DO DISCURSO E DA VERDADE 
No presente trabalho, em que serão analisados os corpi explicitados na introdução, há 
de se, invariavelmente, versar sobre a questão do poder para Foucault, uma vez que não há 
discurso sem um dado exercício de poder, que não haja um dado funcionamento da verdade. 
Não se trata de uma análise do que seria, para outras ciências, uma verdade objetiva, concreta, 
mas de se compreender como se produzem efeitos de verdade (FOUCAULT, 1984). 
Porém, antes de darmos início ao breve estudo da verdade na teoria de Foucault, 
buscaremos elucidar a base teórica da AD foucaultiana. Desta forma, o capítulo que segue busca 
tratar da problemática da verdade (e regimes de verdade) para Foucault. Tentaremos definir, de 
maneira geral, os conceitos; quando possível, exemplificá-los; e, por suposto, relacioná-los. 
No início deste capítulo, então, exploraremos alguns elementos como a (também) 
descontinuidade do discurso; a não-observância da origem na análise discursiva; e a relação 
intrínseca entre discurso e história. 
2.1 Discurso e enunciadoPrimeiramente, cumpre-se ressaltar como o discurso se constitui pela/na história 
(descontínua); isso se faz importante, uma vez que a descontinuidade implicaria uma 
problemática tanto procedimental quanto teórica à história (FOUCAULT, 2008). Portanto, 
trataremos brevemente de tentar remover essa aparência de conflito. Primeiramente, 
mostraremos o discurso também enquanto descontinuidade, para, apoiando-se nisso 
posteriormente, nos debruçarmos sobre os outros elementos levantados. 
Segundo Foucault (2008), conceitos como tradição, influência, desenvolvimento, 
evolução, mentalidade, espírito et cetera, são usados na história para esboçar uma coerência e 
continuidade para dados acontecimentos e tempos. Uma espécie de elo entre uma origem e um 
termo que não chegará (dado o eterno desenrolar do tempo). 
Contudo, tal perspectiva não encontrará sustento na AD. Por um lado, a continuidade 
no discurso seria dada através da noção de que o discurso, na realidade, não revela a “verdade”, 
mas sim remete à algo além, intangível e inatingível, como se através “de qualquer começo 
[discursivo] aparente [houvesse] sempre uma origem secreta - tão secreta e tão originária que 
dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente” (FOUCAULT, 2008, p. 27). Por outro 
lado, teríamos que todo “dito” estaria na realidade apoiado em um já-dito, um discurso sem 
11 
 
 
corpo. Nesse sentido, Foucault (2008, p. 28) assim descreve essa visão de continuidade 
discursiva, em que: 
todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este 
já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, 
mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto 
um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. 
A primeira perspectiva condena a análise do discurso a ser “busca e repetição de uma 
origem que escapa a toda determinação histórica” (FOUCAULT, 2008, p. 28); a segunda 
condena a análise do discurso a ser “interpretação ou escuta de um já-dito que seria, ao mesmo 
tempo, um não-dito” (FOUCAULT, 2008, p. 28). 
Não obstante, para uma própria análise foucaultiana do discurso, faz-se necessária a 
supressão, embora não total, destas tentativas de aplicação de uma continuidade infinita ao 
discurso. Ambas as perspectivas são úteis numa “análise do pensamento”, em que se buscará o 
que se dizia (de fato) “por trás do que foi dito”. A AD, por sua vez, busca na "unidade" 
discursiva as razões para que este se dê da maneira que se dá. Não se busca na AD o não-dito 
por trás do dito, mas sim por quê dado enunciado é o que é de modo que exclui todos os outros 
que poderiam ter sido: como o dito exclui os não-ditos, delimitando tanto o próprio sujeito 
discursivo (subjetividade) como o objeto sobre o qual se discursa (identidade). 
Dessa forma, sabendo que o objeto desta análise é este enunciado descontínuo e 
“singular”, que ao mesmo tempo que revela a si mesmo (e não um outro ser intangível e 
inalcançável) se relaciona com os outros (sem apoiar sua existência nestes), fica claro o porquê 
não se olha para essa origem, e o porquê dele ainda ser história, embora descontínuo. Neste 
sentido: 
Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso 
tratá-lo no jogo de sua instância. Essas formas prévias de continuidade, todas 
essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, 
é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se trata, é claro, de recusá-las 
definitivamente, mas sacudir a quietude cora a qual as aceitamos; mostrar que 
elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma 
construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser 
controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são 
legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas 
(FOUCAULT, 2008, p. 28). 
Como visto, o discurso não aponta que a si e somente a si. Ele não é mecanismo pelo 
qual se revela algo oculto, a essa origem inalcançável, tampouco existe tão somente enquanto 
repetição de um já-dito (embora seja acontecimento na história, moldando-lhe e por ela sendo 
12 
 
 
moldado, ele é em si) (FOUCAUL, 2008). 
A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se mantém fora 
de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o que escondem, [...] 
mas, ao contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se 
terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para 
uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido - e 
nenhuma outra em seu lugar. (FOUCAULT, 2008, p. 124). 
Frisada a necessidade da suspensão das noções que implicam continuidade ao discurso, 
nota-se que em parágrafos anteriores muito foi dito acerca de enunciados e discurso, e, antes de 
dar seguimento à pesquisa, também se faz necessário aqui distanciar estes conceitos no campo 
da AD do que se entende cotidianamente. Trataremos, então, de tentar elucidar em que 
consistem as formações discursivas e o discurso. 
O discurso, resumidamente, será o conjunto de enunciados circunscritos na mesma 
formação discursiva. Ao analisá-lo, tendo como o objeto, não nos distanciaremos buscando uma 
origem terceira e oculta, nem procuraremos revelar um discurso outro que não o que esteja dito 
e revelado, circunscrito em dado período temporal e social. O analisaremos como é: 
descontínuo, heterogêneo e histórico. Neste sentido: 
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se 
apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica 
ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização 
poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de 
um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um 
conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma 
forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema 
não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num 
determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de 
história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema 
de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos 
específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio 
às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008, p. 132) 
 
Isto posto, resta, antes de definirmos o que é enunciado, conceituar de maneira não 
exaustiva a que nos referimos quando aqui formação discursiva. Sucintamente, a formação 
discursiva é o conjunto de regras e padrões de repetição e similaridades em que se inscrevem 
diversos enunciados distintos; é a regularidade entre enunciados singulares. Foucault usa esse 
termo (formação discursiva) para retratar essas regularidades visando se distanciar de termos 
mais “carregados”, como “ideologia” e afins (FOUCAULT, 2008): 
13 
 
 
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, 
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos 
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma 
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, 
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação 
discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e 
consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais 
como "ciência", ou "ideologia", ou "teoria", ou "domínio de objetividade" 
(FOUCAULT, 2008, p. 43). 
Estando sedimentados os conceitos de discursos e formação discursiva, passemos ao 
enunciado. Foucault, ao tratar de enunciado, o faz de uma maneira negativa (no sentido de que 
não afirma de maneira direta, mas exclui). O autor inicia essa explicação, que se estende por 
alguns capítulos, começa por distanciar o termo de seus cotidianos. Ele diferencia enunciadodo que poderia ser seu entendimento gramatical (performance verbal/linguística), lógico 
(proposições) e contextual/psicológico (formulação) (FOUCAULT, 2008). 
Quanto à performance verbal, o filósofo explica que não se pode reduzir o enunciado 
discursivo à construção frasal, haja vista que um quadro puramente numérico, uma fórmula, 
uma imagem, pode ser um enunciado (FOUCAULT, 2008). 
Finalmente, um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, 
um esboço de repartição, formam enunciados; quanto às frases de que podem 
estar acompanhados, elas são sua interpretação ou comentário; não são o 
equivalente deles: a prova é que, em muitos casos, apenas um número infinito 
de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explicitamente 
formulados nessa espécie de enunciados. Não parece possível, assim, definir 
um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase (FOUCAULT, 2008, p. 
93). 
A proposição lógica, por sua vez, tem de depender de algo além dela mesma para que 
exista e faça sentido, o que colide com a descontinuidade do discurso da qual falamos, e nos 
impede de reduzir o enunciado à proposição, visto que naquele estamos em busca de uma 
unidade discursiva (FOUCAULT, 2008). A proposição lógica contém enunciados, por suposto, 
mas reduzir o enunciado a ela geraria o problema da necessidade da continuidade da proposição, 
em vez da possibilidade de descontinuidade do enunciado. 
Quanto aos atos e contextos de formulação de dizeres (atos ilocutórios), ainda não cabe 
reduzir o enunciado à este conceito. Embora todo ato ilocutório pressuponha um enunciado, 
estes não coincidem. Há no bojo de todo ato ilocutório um enunciado, ou enunciados, e 
justamente aí reside o ponto de distanciamento. Aquele contém este, mas não o é (FOUCAULT, 
2008). 
14 
 
 
Além disso, certos atos ilocutórios só podem ser considerados como acabados 
em sua unidade singular se vários enunciados tiverem sido articulados, cada 
um no lugar que lhe convém. Esses atos são, pois, constituídos pela série ou 
soma desses enunciados, por sua necessária justaposição; não se pode 
considerar que estejam inteiramente presentes no menor deles, e que se 
renovem com cada um. Aqui também não se poderia estabelecer uma relação 
biunívoca entre o conjunto dos enunciados e o dos atos ilocutórios 
(FOUCAULT, 2008, p. 94). 
Foucault conclui sua discussão acerca de enunciado caracterizando-o como, em suma, 
qualquer elemento que dote um signo de sentido, e constitui nele a sua unidade discursiva. O 
enunciado é o elemento basilar do discurso, e de onde este extrai seu significado: 
Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de 
signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, 
algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente 
de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe 
permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição 
definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances 
verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível. (FOUCAULT, 
2008, p. 121) 
Expostos estes conceitos preliminares, discorreremos agora sobre os a verdade, seus 
efeitos e regimes e a relação destes com o discurso. 
2.2 Discurso e efeitos de verdade 
Ao tratar da verdade, não procuraremos aqui analisar e delimitar limites tangíveis da 
mesma, mas como as condições sociais, históricas moldaram a importância dela na sociedade 
ocidental. Dessa forma, para Foucault, não se trata de determinar o que é a Verdade, mas sim 
como as relações de poder moldaram e foram moldadas pelos efeitos de verdade. 
Neste sentido, Foucault (2002, p. 23-27, grifo nosso) bem afirma: 
Ora, se quisermos realmente conhecer o conhecimento [da verdade], saber o 
que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar 
não dos filósofos, mas dos políticos, devemos compreender quais são as 
relações de luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e de poder —
na maneira como as coisas entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns 
aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder — que 
compreendemos em que consiste o conhecimento 
[...] O que pretendo mostrar nestas conferências é como, de fato, as condições 
políticas, econômicas, de existência não são um véu ou um obstáculo para o 
sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de 
conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. 
Com certa recorrência, a título de representação da citada relação entre poder e 
15 
 
 
conhecimento, entre saber e verdade, Foucault frequentemente se vale da tragédia de Édipo. 
Foucault realiza uma análise de Édipo-Rei não sobre a perspectiva do inconsciente e dos 
desejos, como é usual no campo da psicologia, mas sob a ótica de um “complexo de Édipo 
coletivo” entre poder e saber (FOUCAULT, 2002). Ele usa a obra de Sófocles, em “A verdade 
e as formas jurídicas”, para delimitar (de maneira exemplificativa, não exaustiva) dois métodos 
de manifestação da verdade, ou aleturgias1: o método dos deuses, da provação; e o método do 
testemunho (FOUCAULT, 2002). 
A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos 
das práticas judiciárias gregas. Como todo mundo sabe, trata-se de uma 
história em que pessoas —um soberano, um povo — ignorando uma certa 
verdade, conseguem, por uma série de técnicas de que falaremos, descobrir 
uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano. A 
tragédia de Édipo é, portando [sic], a história de uma pesquisa da verdade; é 
um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas 
judiciárias gregas dessa época. Por esta razão o primeiro problema que se 
coloca é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da verdade 
(FOUCAULT, 2002, p. 31). 
O método dos deuses refere-se à verdade à qual não cabe contestação, a verdade da fé. 
Percebe-se essa aleturgia em discursos proferidos por oráculos e deuses (essa é a verdade pois 
é a verdade dos deuses), mas também é possível notá-la nos mecanismos judiciários pré-
romanos e que serão posteriormente reencontrados na Alta Idade Média: a provação 
(FOUCAULT, 2002). O autor dá o exemplo, retirado de cena da Ilíada, em que, frente a um 
litígio entre Antíloco e Menelau, em que este acusa aquele, Menelau desafia Antíloco: “Põe tua 
mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus 
que não cometeste irregularidade”. Antíloco, diante do desafio, da provação, se recusa a fazer 
a jura, reconhecendo assim, implicitamente, a falta (FOUCAULT, 2002, p. 32). 
Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de estabelecer a verdade 
jurídica: não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, 
de desafio lançado por um adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro 
deve aceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito o risco, se 
tivesse realmente jurado, imediatamente a responsabilidade do que iria 
acontecer, a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses. E seria 
Zeus, punindo o falso juramente, se fosse o caso, que teria com seu raio 
manifestado a verdade (FOUCAULT, 2002, p. 33). 
Fica claro neste excerto a validação divina do discurso, incontestável. A 
“responsabilidade” da descoberta da verdade, na aleturgia da provação, é delegada aos deuses, 
 
1 “[...] conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro 
em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível, ao imprevisível, ao esquecimento” (FOUCAULT, 2014, p. 8). 
16 
 
 
e assim inquestionável pelos que a ela se submetem. 
A segunda aleturgia remete ao método testemunhal. É a validação do discurso pelo 
próprio emissor que afirmará “ocorreu assim pois assim vi” ou “foi dito pois assim ouvi”. Nota-
se esta aleturgia quando, ao final de Édipo-Rei, doisescravos são chamados a dizer o que 
ocorreu quando do nascimento de Édipo. Este método está arraigado no desenvolvimento do 
Direito como este é (FOUCAULT, 2002, 2014). 
Novamente, estas são somente duas de várias formas de aleturgia. À vera, o próprio 
método científico é, por definição, uma aleturgia, uma maneira de manifestação da verdade, 
estando ainda sujeito a um regime de verdade (do qual trataremos adiante). O autor denota, 
abaixo, tanto a relação intrínseca entre poder e a manifestação da verdade, quanto a 
característica da ciência enquanto uma aleturgia: 
Ou ainda – e vocês sabem que eu adoro as palavras gregas – porque o exercício 
do poder chama-se em grego hegemonia, não no sentido que damos hoje a 
essa palavra, mas hegemonia é simplesmente o fato de se encontrar, em face 
dos outros, na possibilidade de conduzi-los e de conduzir, de algum modo, 
suas condutas; então eu diria que é bem provável que não exista nenhuma 
hegemonia que possa se exercer sem qualquer coisa como uma aleturgia. E 
tudo isso para dizer simplesmente, de uma maneira bárbara e herética, que 
tudo aquilo que se chama conhecimento, quer dizer, a produção da verdade na 
consciência dos indivíduos pelos procedimentos lógicos e experimentais, não 
é, depois de tudo, mais que uma das formas possíveis de aleturgia. A ciência, 
o conhecimento objetivo, é somente um momento possível de todas essas 
formas pelas quais pode-se manifestar o verdadeiro (FOUCAULT, 2002, p. 
46) 
Édipo-Rei será novamente mencionado pelo autor na obra “Do governo dos vivos” 
(2014). Nela, encontramos algo do qual nos valeremos nos capítulos que seguirão, é o que 
Foucault chama de “ato de verdade. 
Foucault assim define o ato de verdade: 
[...] a parte que retorna ao sujeito no procedimento da aleturgia [procedimento 
de manifestação da verdade] para que se possa defini-lo: 1) pelo papel que ele 
desempenha como operador; 2) pelo papel que ele desempenha como 
espectador; 3) pelo papel que ele desempenha como objeto mesmo da 
aleturgia. Em outras palavras, [o ato de verdade indica que] em um 
procedimento de manifestação da verdade o sujeito pode ser o agente ativo 
graças ao qual a verdade emerge (FOUCAULT, 2014, p.75). 
Percebe-se que ato de verdade é, como já dito na parte introdutória, essencialmente o 
que buscaremos nos discursos selecionados dos ministros: declarações que (levando em conta 
17 
 
 
o papel ora como espectador, ora como narrador, ora como objeto) definirão o sujeito discursivo 
em pauta. 
Embora, como já visto na passagem de Édipo, o fenômeno de um ato de verdade já 
existisse na sociedade helênica, Foucault aponta que com o advento do cristianismo, que 
portava em sua essência um ato de verdade refletido ao se levar em conta a profissão de fé, bem 
como a confissão, o ato de verdade assumiria um posto central em toda a cultura ocidental, 
subsidiando as relações de poder. Estabeleceu-se assim no seio do cristianismo, e, por 
desdobramento, no seio da sociedade ocidental, dois “regimes da verdade” (FOUCAULT, 
2014): o da profissão de fé, do reconhecimento; e o da confissão, assunção da culpa. 
Regime de verdade é, para Foucault, aquilo que 
(...) força os indivíduos a um certo número de atos de verdade. [...] Um regime 
de verdade é, portanto, o que constrange os indivíduos a esses atos de verdade, 
o que define, determina a forma desses atos e estabelece para esses atos 
condições de efetivação e efeitos específicos. Em linhas gerais, podemos 
dizer, um regime de verdade é o que determina as obrigações dos indivíduos 
quanto aos procedimentos de manifestação do verdadeiro (FOUCAULT, 
2014, p. 85) 
Foucault ressalta ainda que o regime de verdade só diz respeito àquilo que não possa 
ser, por si, declarado ou exposto como verdadeiro, necessitando do reforço e embasamento 
desse regime (a título de exemplo, temos a profissão de fé no cristianismo: por esta não poder 
ser, por si, demonstrada, é necessário um regime de verdade que obrigue o sujeito a reconhecer 
a existência de Deus, e por conseguinte a validade de seu dogma) (FOUCAULT, 2014). 
Exemplo de regime de verdade é a própria noção de sistema judiciário penal no mundo 
ocidental. O criminoso que após ter cometido ato dito ilícito pela sociedade, seja julgado 
culpado, se declina à “lógica” de que “fiz, logo devo ser culpado, e sendo culpado receberei 
uma pena” ou de que “não fiz, logo sou inocente e não receberei pena”. Encontramos aqui um 
regime em que, após assumir a existência e validade de um conjunto de regras (o Código Penal), 
aquele que as violar deverá ser punido. Reconhecer uma lei, trata-se, de certa forma, de uma 
profissão de fé. 
Dessa forma, Foucault revela a existência de inúmeros regimes de verdade na sociedade 
ocidental, do regime religioso ao legal (é lei, portanto a cumpro), havendo inclusive um regime 
que “não aparece como tal”, relacionado às ciências e à lógica (FOUCAULT, 2014). 
18 
 
 
Dessa forma, Foucault (2014) explicita que há sempre na aparição e funcionamento da 
verdade, um dado regime de verdade: 
Não é a verdade que é criadora dos direitos que exerce sobre os homens, da 
obrigação que estes têm para com ela e dos efeitos que eles esperam dessas 
obrigações, uma vez [que] e na medida em que forem cumpridas. [...] Para 
[exprimir] as coisas mais simplesmente, de uma forma quase infantil ou 
totalmente infantil: em todos os raciocínios, por mais rigorosamente 
construídos que os imaginemos, e mesmo no fato de reconhecer algo como 
uma evidência, sempre há, e sempre há que se supor, uma certa afirmação, 
uma afirmação que não é da ordem lógica da constatação ou da dedução, em 
outras palavras, uma afirmação que não é exatamente da ordem do verdadeiro 
e do falso, que é antes uma espécie de comprometimento de profissão. Sempre 
há, em todo raciocínio, essa afirmação ou profissão que consiste em dizer: se 
é verdadeiro, eu me inclinarei (FOUCAULT, 2014, p.88). 
O autor nos mostra então que junto à aparição da verdade e à autoindexação do que é 
verdadeiro, há, implícito, um regime de verdade (permeado em toda conversação tida como sã 
na sociedade ocidental) que obriga a vinculação ao que se indexar como verdadeiro. 
Este regime está centrado no fenômeno de constituição do indivíduo enquanto sujeito 
lógico (de maneira que ele é proeminente nos campos científicos em geral). Enfaticamente, 
temos um regime de verdade que se oculta atrás da aceitação “obrigatória” do que é verdadeiro 
(FOUCAULT, 2014). 
Foucault chama este regime de verdade de “exclusão da loucura”. É necessário um 
sujeito que não seja louco, que não se recuse a aceitar a verdade, para que a sociedade lógica 
funcione. Este regime de verdade é o entrelace definitivo entre a verdade e o poder. Não há reis 
nem generais em uma ciência lógica, de maneira que não é necessário “suplemente de poder 
para se fazer geometria” (FOUCAULT, 2014, p.92), sendo necessária tão somente a exclusão 
da loucura, e reconhecimento do que se mostrar como verdadeiro. 
Temos aí então demonstrado o regime científico da verdade, entretanto, como temos 
pretendido mostrar, este é só mais um de incontáveis regimes, que permeiam as relações (de 
poder). Estes regimes (que não foram criados pelo cristianismo, mas certamente expandidos e 
arraigados2) são o que dão base à toda a cultura ocidental. A “vontade de saber”, como Foucault 
diz, vinculou o homem moderno a estes regimes de verdade em que ele precisa tanto se revelar 
enquanto é, ou aparenta ser (tornando-se objetos de atos de verdade), como revelar o que sabe 
 
2 Resumidamente, a inegável dominação cristã no mundo ocidental moldou, de certa forma, a mentalidade deste. 
A partir do momento em que se fez toda a vida cristã girar em torno da fé e atos de verdade, em consequência toda 
a sociedade ocidental passou a girar em torno destes, e outros, atos de verdade (FOUCAULT, 2014). 
19 
 
 
(sendo oradores de atos de verdade) e ver outros revelarem (sendo umespectador de atos de 
verdade). Em suma, há uma obrigação generalizada de participação em inúmeros atos de 
verdade no cotidiano, cada um regido e guiado por outros diversos regimes de verdade 
(FOUCAULT, 2014). 
Malgrado a relevância deste regime científico, Foucault se afeiçoa a versar sobre os atos 
e regimes de verdade cristãos, vez que foram os responsáveis pelo enraizamento da primazia 
da verdade no mundo ocidental. Ademais, o cristianismo foi responsável por institucionalizar 
dois grandes regimes de verdade, já citados, dos quais um muito nos interessa: a profissão de 
fé, que vincula o sujeito à crença e ao dogma cristão, e o regime de reconhecimento das faltas, 
sobre a qual nos debruçaremos de maneira mais extensa. 
Destarte cumpre ressaltar que, embora não reduzamos o termo confissão ao uso 
coloquial da confissão enquanto verbalização das faltas cometidas, reconhecemos a importância 
desta enquanto método de vinculação do cristão à verdade. Ao criar uma relação entre o pecado 
— o erro — e a manifestação da verdade sobre si, foi lançada a base para o fortalecimento para 
a “primazia da verdade” sob o mundo ocidental (FOUCAULT, 2014). Esta vinculação se deu 
em três níveis distintos: o batismo; a penitência; e a direção de consciência. 
O batismo representa e é a ação pela qual o ingressante, após tomar conhecimento da 
religião, busca acesso através do conhecimento. Uma vez aceitas como verdadeiras as crenças 
e os ensinamentos que foram passados ao discípulo. Desta forma, temos que, através da 
aquisição do conhecimento, e, mais importante, da crença nesse conhecimento (profissão de 
fé/ato de fé) temos sancionado a primeira maneira de vinculação do erro à verdade: a liberação 
do estado de “ignorância” e “necessidade”, para a “escolha” e o saber” (FOUCAULT, 2014). 
Enquanto penitência, teremos a confissão como meio de reconhecimento e castigo da 
natureza, para o cristianismo, corrupta do homem. A partir do reconhecimento da verdade e de 
sua natureza má, por meio do batismo, o sujeito será purificado, configurando-se outra base 
para a dominação da verdade na sociedade (FOUCAULT, 2014). 
Por fim, enquanto direção de consciência, com o ato de verdade de reconhecer Deus e 
expor suas faltas perante ele (Foucault realiza diversas analogias com a exposição das faltas ao 
Sol), o sujeito teria seu caminho “iluminado”, guiado, de maneira que se configura a terceira 
base para a primazia da verdade no mundo ocidental (FOUCAULT, 2014). 
20 
 
 
Estes três aspectos acabaram por arraigar na consciência discursiva3 dos sujeitos a ideia 
de verdade enquanto salvação, purificação etc. Isto influenciou (note-se que esta construção, 
bem como a influência derivada se deu ao longo de séculos) de maneira ímpar os países com 
mentalidade cristã presente (Europa e colônias, em geral). 
Logo, à guisa de relacionar os conceitos, que atos de verdade nada mais são que 
aleturgias em que o sujeito, seja como espectador, orador, ou objeto, traz a verdade à tona. Estes 
atos de verdade e aleturgias são, enfim, guiados e regulados por regimes de verdade, que 
obrigam os sujeitos à certos comportamentos em decorrência das “verdades” que confessam e 
professam. 
Quanto ao tema do presente trabalho, é nítida a relação que se busca. Iremos procurar 
nos corpi atos de verdade refletidos, em que o próprio sujeito analisado se defina, bem como, 
se possível, entender os regimes de verdade que permeiam a relação exposta. Seguindo a 
comparação com os dogmas cristão e a sociedade moderna, buscaremos o que, embora não seja 
uma confissão, é um discurso de si (assim como a confissão o é). Em outras palavras, iremos, 
dos corpi levantados, extrair enunciados em que o sujeito discursivo Ministro do Supremo 
Tribunal Federal se revele e se construa, e buscaremos as maneiras e os porquês deste 
enunciado ter surgido dentre todos os outros possíveis, e porque só ele poderia ter surgido. 
Dada a exposta, e à qual esta pesquisa dá suporte, centralidade dos regimes de verdade 
na vida moderna, fizeram-se necessárias estas páginas para clarificação do que estaremos 
buscando quando começarmos de fato a análise do discurso, haja vista que, como dito, não há 
que se falar em poder, sem também se falar em verdade. 
Passaremos agora a um breve estudo acerca do tipo de discurso que será buscado e 
analisado nos capítulos posteriores: o discurso de si. No tocante a análise desta pesquisa, o 
discurso de si aqui tratado é essencial o que buscaremos nos enunciados dos corpi. Embora, de 
certo, os enunciados e discursos presentes nas entrevistas construam e versem sobre uma 
miríade de sujeitos outros, focaremos nos enunciados que, proferidos por um sujeito discursivo 
Ministro do Supremo Tribunal Federal, construa e verse sobre o mesmo sujeito discursivo. 
 
3 A memória discursiva é um “espaço de memória” constituída por um corpo sócio-histórico-cultural que 
representará a memória coletiva na qual se inscreve dado discurso. A memória discursiva consiste de 
“acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades que 
intervêm na sua construção” (FERNANDES, 2005, p. 47). 
21 
 
 
Antes de darmos prosseguimento, cumpre-se notar que o “si” a qual nos referimos 
quando dele tratamos nesta pesquisa não remete ao indivíduo, ao sujeito de direitos, à 
personalidade, de alguém. Trata-se de um sujeito discursivo4, com todas as características que 
o delimitam. 
 
 
4 Em uma descrição sucinta, o sujeito discursivo, muito mais do que um indivíduo em enunciação, é um “lugar 
que se ocupa para ser sujeito do que diz” (ORLANDI, 2001, p. 49). O sujeito, nesse sentido, é uma intensa 
miscigenação de variadas vozes sociais, inerentemente conflituosas e heterogêneas, em que os desejos pessoais 
e as construções sociais se inter-relacionam por meio da linguagem (FERNANDES, 2005). O sujeito discursivo 
é o resultado de toda a construção sócio histórica de vivência do indivíduo falante que naquele momento assumirá 
uma posição para poder ser sujeito do que diz. 
22 
 
 
3 DO DISCURSO DE SI NA SOCIEDADE OCIDENTAL 
Como já dito, um discurso de si será uma aleturgia, um processo de revelação da 
verdade, em que o indivíduo será simultaneamente operador dessa aleturgia, à medida que faz 
a verdade vir à tona, e objeto da aleturgia (FOUCAULT, 2014). 
Embora Foucault enfatize os aspectos que enumeraremos a seguir na escrita de si, na 
presente pesquisa é feita a indução lógica desse raciocínio. Porém, antes de passarmos a análise 
de atos de verdade enunciados durante a contemporaneidade, cumpre ressaltar como se incutiu 
na mentalidade ocidental o regime de verdade que leva à valorização daqueles. Esta busca pela 
historicidade levou Foucault a investigar o intervalo de tempo que compreende a antiguidade 
clássica, o período helênico e o início do cristianismo como meio para obter suas respostas 
(FERREIRA, 2010, p. 71) 
Como exposto alhures, tem início na Grécia antiga um movimento de valorização do 
testemunho enquanto método de revelação da verdade, método esse que será consolidado com 
a ascensão do cristianismo a partir do século II-III d.C. (FOUCAULT, 2014). Vê-se o início em 
tragédias gregas, como as já citadas, por Foucault, obras de Sófocles e Homero, e a continuação 
da mentalidade do testemunho e da provação com escritos teológicos do séc. II d.C. em diante. 
Ou seja: 
Vamos [portanto] procurar abordar a questão, ou seja, o cristianismo 
focalizado do ponto de vista dos regimes de verdade, regimes de verdade que 
eu sei, em sua maioria, ele não inventou, mas pelo menos estabeleceu, 
ampliou, institucionalizou, generalizou. Regimes de verdade que 
evidentemente ponho desde já no plural — e aí volto ao que evocava da última 
vez—, na medida em que o cristianismo pelo menos definiu dois grandes polos 
de regimes de verdade, dois grandes tipos de atos que, como procurei lhes 
mostrar, não eram independentesum do outro, mas que são mesmo assim tipos 
bem diferentes, de morfologia bem diferente. De um lado, haveria o que 
poderíamos chamar de regime de verdade que gira em torno dos atos de fé, 
isto é, atos de verdade que constituem aceitações-compromissos, adesões-
fidelidades em relação a certos conteúdos que devem ser considerados 
verdadeiros, aceitações-compromissos que não consistem simplesmente em 
afirmar essas coisas como verdadeiras em si e por si, mas devem também 
fornecer garantias, provas, autenticações exteriores de acordo com certo 
número de regras, que são regras de conduta ou obrigações rituais. [...] E 
depois, por outro lado, há no cristianismo um outro polo, um outro regime de 
verdade, ou em todo caso uma outra fronteira do regime geral de verdade. É a 
fronteira que tocaria o que podemos chamar de atos de reconhecimento das 
faltas (FOUCAULT, 2014, p. 93). 
Ressalte-se que os corpi a serem analisados posteriormente não são atos de 
23 
 
 
reconhecimento de faltas, necessariamente. Tratar-se-á, no presente capítulo, tão somente de 
discorrer acerca da maneira como foi construído no imaginário ocidental o discurso de si na 
sociedade ocidental, sendo os atos de reconhecimentos de faltas, institucionalizados pelo 
cristianismo, essenciais para entender o que permeia a sociedade. 
Dito isso, embora como já dito o cristianismo não tenha inventado o discurso de si, ele 
insere algumas mudanças na percepção da sociedade ocidental, o que se evidencia por meio de 
mudanças no próprio cristianismo. Durante o período helênico, como sendo um traço recorrente 
no mundo antigo, havia uma recorrência discursiva da sabedoria, da verdade, enquanto estado 
permanente, uma vez alcançado. Nota-se isso tanto em excertos romanos e gregos, como na 
própria concepção primeira do que seria o batismo para os catecúmenos dos séculos anteriores 
ao III d.C. (FOUCAULT, 2014). 
O batismo, por exemplo, era o fim de um ato de verdade pelo qual o catecúmeno, após 
um período de estudos acerca do cânone e conhecida a verdade das escrituras, se livraria de 
pecados anteriores, cometidos em um estado de ignorância, e se tornaria cristão, para não mais 
pecar (FOUCAULT, 2014). Neste primeiro momento, o batismo era, portanto, um “ciclo que 
começa pelo ensino, que continua com o ato de fé, que prossegue com a livre escolha e o 
conhecimento e que termina com a iluminação” (FOUCAULT, 2014, p. 97). 
Em outras palavras, o batismo era um processo que tinha um início e um fim claro, a 
partir do qual o catecúmeno passa a ser cristão, sendo inconcebível para ele deste momento em 
diante: uma vez iluminado, as ações do cristão seriam iluminadas e sem pecado. 
Contudo, afora os problemas de ordem ontológica que este argumento gera, durante o 
decorrer do séc. II d.C., com o fim do período helênico, um contingente cada vez maior de 
catecúmenos, e a institucionalização da Igreja Católica, fez-se necessário uma renovação deste 
pensamento a fim de reabilitar a intensidade da vida religiosa que se viu diminuída com o 
número cada vez maior de postulantes (i); responder à crescente perseguição ao cristianismo à 
época (ii); dar força a argumentos cristãos em debates contra os que eram pagãos (com os quais 
o diálogo não era nem necessariamente agressivo, nem necessariamente de contestação) (iv); e 
facilitar a assimilação da religião pelas “religiões de mistério”, que apresentavam ritos 
iniciáticos muito distintos desse caminho de aquisição da iluminação que era a entrada ao 
cristianismo (FOUCAULT, 2014, p 135). 
Surge então, na passagem do séc. II d.C. ao III d.C., uma corrente teológica, encabeçada 
24 
 
 
por Tertuliano5, pela qual o batismo passa a ser entendido não como um acúmulo de sabedoria, 
mas uma reflexão por parte do indivíduo. O batismo que representava a obtenção do estado de 
“purificado”, a partir do momento do batismo, passa a ser permitido tão somente aos que já 
estavam “purificados” através de um olhar a si mesmo. Há então um deslocamento cronológico 
da salvação (FOUCAULT, 2014). 
Se antes a salvação decorria do conhecimento, agora ela decorrerá da penitência do 
catecúmeno. Penitência aqui não utilizada no sentido moderno da palavra, mas sim relacionada 
à origem grega, à metanoia do indivíduo. A salvação agora decorre da inflexão do indivíduo 
sobre si mesmo, de maneira a deixar de encarar “as sombras, a matéria, o mundo, as aparências 
[...] e, pelo próprio fato de desviar destas sombras, se vira para a luz, para o verdadeiro” 
(FOUCAULT, 2014, p. 118), que é ao mesmo tempo a recompensa desse pivoteio da alma 
sobre si e o próprio motor desse movimento (FOUCAULT, 2014). 
Dessa forma, o que antes era um processo pelo qual o indivíduo, a alma, se tornava um 
sujeito de conhecimento, uma operadora da aleturgia religiosa, através de um período prévio de 
estudos e iluminação que culminava no reconhecimento sacrossanto da cristandade, passa a ser 
um processo pelo qual o indivíduo, já sendo um sujeito de conhecimento, torna a si mesmo 
objeto de conhecimento. Passa-se, ainda, de uma estrutura de ensino para a iniciação ao 
cristianismo, a uma estrutura de prova (FOUCAULT, 2014). Segundo Foucault, temos que: 
Em todo caso, nele [Tertuliano], e sem dúvida nos outros, podemos encontrar 
as seguintes mudanças. Por um lado, a alma, batismo — preparação para o 
batismo, ato de batismo — não aparece somente num processo que vai pouco 
a pouco qualificá-la como sujeito de saber ou sujeito de conhecimento. Na 
preparação do batismo e no ritual do batismo, a alma vai ser situada num 
processo que a constitui sempre como sujeito de saber ou sujeito de 
conhecimento. E [por outro lado], me parece que a relação entre purificação e 
acesso à verdade, em Tertuliano e em certo número de contemporâneos, não 
assume mais, não assume exclusivamente, não assume nem mesmo de modo 
dominante a forma de ensino, mas assume a forma, a estrutura do que 
poderíamos chamar de prova, e é isso que gostaria de procurar esclarecer um 
pouco agora (FOUCAULT, 2014, p. 106). 
 
Logo, o que era um caminho gradual de aquisição de sabedoria passa a ser um 
movimento pivotante do indivíduo em relação a si próprio. Passa a ser uma necessidade de se 
expor, se conhecer, para que, se conhecendo, conheça a verdade, e conhecendo a verdade, seja 
 
5 Teólogo do início do cristianismo (séc. II-III d.C.). 
25 
 
 
salvo e não peque. Além disso, enquanto na primeira concepção de batismo, uma vez atingida 
a cristandade, o cristão estaria a salvo das tentações terrenas (traço característico da concepção 
do sábio helênico), essa nova visão acerca do batismo incute no postulante o medo, pois nunca 
se está a salvo dessas tentações. É necessário manter a alma sob contínuo reexame, de maneira 
que não se caia em tentação (FOUCAULT, 2014). 
Em que pese essa teoria (a Tauftheorie — teoria do batismo) ter facilitado a assimilação 
do cristianismo pelos pagãos, resta a problemática do perfeito, do sábio (recorrente no período 
helênico), e que, sendo sábio, portanto, não mais pode errar. Resta ainda o questionamento 
acerca não de pecados menores, mas de afastamento da fé. Pois ora, se com o movimento de 
reflexão de si o catecúmeno conhece a verdade, qual a solução ou a explicação para os que, 
tendo conhecido a verdade e a fé, voluntariamente a abandonam, dado a força autoindexativa 
da mesma? 
Esta problemática se manterá durante os séc. II-V d.C., em que, findo esse período, se 
efetuará nova mudança na mentalidade da Igreja, que levará à primazia do reconhecimento das 
faltas nas sociedades cristãs. É formulada, nesse intervalo de tempo, a Jubiläumstheorie — 
teoria do jubileu — que postula que será ofertada aos que fraquejaram, em tempo oportuno, 
uma segunda penitência, com efeitos similares ao batismo (libertação de pecados passados, 
reafirmação da fé), mas que ainda difere em essência (FOUCAULT, 2014). Assim sendo: 
De fato, se admitirmos, como fazia a velha Taufstheorie,que o cristianismo 
só admitiu penitência no batismo, com o batismo e pelo batismo, e se é 
verdade que foi apenas depois, no correr do século II, talvez com Hermas, que 
se começou a acrescentar a possibilidade de um segundo recurso, isso significa 
que, durante todo esse período primitivo do cristianismo, até esse meado (mais 
ou menos) do século II, o cristianismo se considerava como um religião de 
perfeitos, de puros, de pessoas incapazes de cair no pecado. Se, de fato, não 
há recurso [à] penitência depois do batismo, isso quer dizer que o batismo em 
si proporcionava aos que o recebiam um acesso à verdade, à luz, à perfeição, 
um acesso tal que não era possível, para aqueles a quem essa luz e essa verdade 
eram abertas, voltar atrás e recair. Ou se tem a iluminação, e nesse momento 
nela se permanece, ou não se permanece na iluminação, o que quer dizer que 
não se havia sido realmente iluminado (FOUCAULT, 2014, p. 158). 
Hermas6, o autor citado por Foucault, apresentou essa problemática, não diretamente, 
mas indiretamente. Ao afirmar que havia a oportunidade de uma segunda penitência (aqui ainda 
no sentido grego da palavra, de metanoia), deixava implícita a possibilidade de falta pelo que 
 
6 Hermes de Filipópolis foi um bispo da cidade de Filipópolis, na Trácia, suposto autor do Pastor de Hermas. 
26 
 
 
já teria atingido a iluminação (FOUCAULT, 2014). 
E dessa forma, surge no seio do cristianismo uma espécie de mesclagem entre o esquema 
da salvação, típico do helenismo, binário entre o ser perfeito que, por decorrência, só realiza 
atos perfeitos e o ser imperfeito que não realiza atos perfeitos (o iluminado e o não iluminado); 
e o sistema da lei, que compreende um ato enquanto bom ou mal por qualquer sistema de 
normas. Se antes o mundo mediterrâneo conhecia essas duas formas de pensar as ações (uma 
centrada no sujeito — esquema da salvação — e uma centrada no ato — sistema da lei), o 
cristianismo teve que enfrentar a problemática de inserir um método que compatibilizasse um 
ato faltoso (sistema da lei) a pessoas iluminadas (esquema da salvação) (FOUCAULT, 2014). 
O cristianismo — e, em certo sentido, foi esse um dos seus grandes problemas 
históricos, um dos grandes desafios históricos que ele teve de enfrentar —, o 
cristianismo teve de pensar essa relação lei-perfeição, ou ainda, se preferirem, 
esse problema da irreversibilidade da relação sujeito-verdade e da repetição 
da falta. Se o vínculo sujeito-verdade é irreversível, como a falta ainda é 
possível? E, por conseguinte, como alguém pode repetir a falta, e isso é 
legítimo, é possível, podemos conceber que se reconstitua essa relação sujeito-
verdade adquirida uma primeira vez e, parece, perdida pela falta interior ao 
cristão, interior a quem já atingiu esse estágio? O cristianismo foi obrigado a 
colocar essa necessidade, esse desafio de pensar a repetibilidade da metanoia, 
o recomeço do estabelecimento da relação — relação essencial — entre o 
sujeito e a verdade, por duas razões, uma interior e a outra ao mesmo tempo 
interior e exterior a seus limites (FOUCAULT, 2014, p. 167). 
Ou seja, o cristianismo não foi o responsável pela introdução do erro, do pecado, em um 
mundo que não operava com essa variável (o erro e a queda são temas recorrentes em tragédias 
gregas), mas sim pela introdução do pecado em relação à inocência. Ele não introduziu a queda, 
mas a recaída (FOUCAULT, 2014). E junto com a recaída, introduziu-se o método de 
recuperação do devoto: a penitência canônica, o estágio antes da penitência infinitamente 
repetível. 
3.1 Da penitência canônica e sua relevância na mudança da cultura ocidental 
A penitência canônica é, como já dito, o meio pelo qual a igreja deixará um esquema 
binário de salvação (ser iluminado e assim permanecer ou não ter sido iluminado) à uma lei que 
sancionaria infindamente a falta cometida pelo devoto. A penitência canônica pode ser vista 
como essa transição, ao passo que já reconhece a falibilidade do cristão (visto que se é 
proporcionada uma penitência, deve ter ocorrido uma falta), mas que oferece essa salvação pós-
batismal apenas uma vez. 
27 
 
 
Para que se efetivasse essa mudança no pensamento da Igreja, e ao que parece, segundo 
Foucault (2014), em toda a cultura ocidental, foram necessários, resumidamente, 2 elementos: 
primeiramente, a institucionalização da estrutura cristã no seio da sociedade, com decorrente 
controle dos indivíduos, enumeração de regras e punição para faltas que as quebrassem; e, fator 
este exterior ao cristianismo, foi necessária a chegada à Europa de um sistema de direito (o 
direito germânico, especificamente), que retratava a “punição da falta como uma espécie de 
resgate. A punição como resgate da falta vai ser a forma jurídica laica e externa na qual será 
repensada, a partir da Idade Média, toda a economia da penitência” (FOUCAULT, 2014, p. 
179). 
O fato concernente à presente pesquisa, no tocante à penitência canônica, são os atos de 
verdade que a ela integram. À guisa de exemplo, nas entrevistas dos ministros buscaremos, 
dentre outras coisas, de que maneira, de que recursos, de que aleturgias ele se vale para dizer 
as verdades que diz. 
 Nesta penitência, novamente encontraremos dois tipos de atos de verdade, os objetivos 
e os refletidos, sendo estes, os refletidos, nosso foco no momento. Os atos objetivos são 
similares ao do batismo, compreendendo aqueles em que o então catecúmeno professa ou rejeita 
algumas verdades “externas”. Os atos refletidos desta penitência, entretanto, são a novidade 
peculiar dela. Em que pese no batismo o catecúmeno se pôr a “conhecer a si mesmo”, através 
da metanoia7 realizada no próprio, na penitência canônica mais do que conhecer suas verdades, 
o cristão deve expor suas verdades a público (FOUCAULT, 2014). Vejamos: 
Quando, nos ritos de batismo, se falava da probatio animae, quando se falava 
da disciplina paenitentiae, quando Tertuliano dizia que o catecúmeno devia 
exercitar sua alma, tratava-se efetivamente para [este] de manifestar sua 
verdade e dar aos outros a possibilidade de apreender qual a situação da sua 
alma e de seu progresso, da sua capacidade de receber os ritos. Mas essa 
obrigação de se mostrar, de se manifestar, não tinha estatuto próprio no 
interior da instituição catecúmena. Já na penitência [canônica] há toda uma 
série de atos e de procedimentos que são explicitamente destinados a convidar, 
a exortar ou a constranger quem faz a penitência a mostrar sua própria verdade 
(FOUCAULT, 2014, p. 184). 
Em todo o caso, aí se encontra um ponto de interesse à esta pesquisa. Essa penitência, 
 
7 Mudança essencial de pensamento ou caráter. Nas palavras de Foucault (2014, p. 118): “Como vocês sabem é a 
mudança da alma, quer dizer, essencialmente o movimento pelo qual a alma pivoteia em torno de si mesma ou, 
mais precisamente, o movimento pelo qual ela se desvia do que olhava até então [...]”. 
28 
 
 
essa exomologese8, introduz no cotidiano cristão não o reconhecimento “público”, coletivo do 
ato da falta, do pecado, mas sim o reconhecimento “público” de que se cometeu uma falta. “Não 
se trata, portanto, de uma confissão-reconhecimento do que se fez, mas de uma profissão ou de 
uma súplica coletiva concernente ao que somos, a saber, pecadores” (FOUCAULT, 2014, p. 
186). 
Se antes era requisitado do catecúmeno o pivoteio sobre si mesmo, o autoconhecimento 
decorrente de uma metanoia pré-batismal, nessa segunda penitência será cobrada a exposição 
da própria alma. Não tanto o reconhecimento interno da impureza, mas a exteriorização 
desta.Neste sentido, bem afirma Foucault (2014, p. 191) quando diz que deixa de ser uma ação 
de pura consciência: 
A metanoia característica da penitência [canônica] não deve ser simplesmente 
uma conversão do pensamento, no pensamento e para o próprio pensamento. 
[...] também tem de ser um ato. O que é esse ato? É a exteriorização da 
metanoia, é a exteriorização da conversãodo pensamento [...]. 
Essa disciplina penitentiae será adotada por séculos, sendo eventualmente substituída 
por atos de verdade similares, mas de natureza repetível (dado que a penitência canônica é, tal 
qual o batismo, uma “chance” única para o cristão) (FOUCAULT, 2014). De toda forma, isso 
dará azo, na cultura ocidental, a toda uma construção de um regime de verdade em torno do 
discurso de si, do qual trataremos a seguir. 
3.2 Do cuidado de si e do conhecer a si 
Dado que buscaremos em capítulo posterior enunciações por meio do qual o sujeito se 
fabrica/se constitui, e estando, mesmo que brevemente, sedimentada a base para a consolidação 
do discurso de si na nossa sociedade, far-se-á breve explicação acerca de como o discurso de si 
afeta o próprio sujeita que o enuncia, mesmo que o enuncie, em tese, a outro. 
Bom, se é certo que o discurso de si, a revelação da verdade do sujeito que enuncia, fez-
se cada vez mais presente na sociedade tendo um percurso atrelado à história do cristianismo, 
faz-se mister reconhecer as particularidades deste discurso, desta subjetivação da verdade sobre 
si por dado sujeito. 
De início, constata-se que o discurso de si (acerca de si, sobre si) constitui um meio de 
se efetuar o que Foucault chamará de “cuidado de si”. O “cuidado de si”, como já vimos sem 
 
8 Confissão pública dos pecados cometidos. Um ritual de penitência católico. 
29 
 
 
ter nomeado, permeia o discurso cristão. Seja por meio da metanoia batismal, da metanoia da 
penitência canônica ou por meio de rituais que surgiram posteriormente (FOUCAULT, 2006). 
De acordo com o autor (FOUCAULT, 2006), a noção do cuidado de si existe desde a 
antiguidade, sendo um dos seus expoentes, à época, Sócrates. Contudo, a noção que se tinha e, 
que foi aos poucos ressignificada (Foucault a chama de epiméleia heautoû), dizia respeito não 
tanto a uma relação de subjetivação da verdade, mas sim de “ocupar-se consigo mesmo”. Essa 
visão do cuidado de si perdurou por aproximadamente um milênio (séc V a.C. – séc. V d.C.). 
Nesse sentido, Foucault assim delineia o que é este cuidado de si da antiguidade clássica: 
Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de encarar as 
coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. A 
epiméleia heautoû é uma atitude — para consigo, para com os outros, para 
com o mundo. 
Em segundo lugar, a epiméleia heautoû é também uma certa forma de atenção, 
de olhar. Cuidar de si mesmo implica [...] que é preciso converter o olhar, do 
exterior, dos outros, do mundo, etc. para “si mesmo”. O cuidado de si implica 
uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no 
pensamento. 
[...] Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa simplesmente esta 
atitude geral ou esta forma de atenção voltada para si. Também designa 
sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas 
quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos 
e nos transfiguramos (FOUCAULT, 2006, p. 14). 
Contudo, deu-se, principalmente a partir do séc. V d.C., uma transição da importância 
ao cuidado de si neste sentido, de epiméleia heautoû, para o cuidado de si enquanto 
conhecimento de si (Foucault chama este de gnôthi seautón — “conhece-te a ti mesmo”9 — em 
referência ao terceiro edito para os que iam consultar o oráculo de Delfos) (FOUCAULT, 2006). 
Houve, simultaneamente, uma valorização (bem como uma ressignificação) filosófica do gnôthi 
seautón e uma desqualificação moral da epimeléia heautoû. 
Quanto à desqualificação moral, se nota que as menções da antiguidade ao cuidar de si 
mesmo, se ocupar de si, são sempre positivas, virtuosas, porém essa preocupação excessiva 
com o si, com o individual em detrimento do coletivo encontrará obstáculos, seja na moral cristã 
ou na moral moderna não-cristã. Transferiu-se a prioridade do individual ao coletivo, seja pelo 
 
9 Com origem na Grécia Antiga, essa expressão era entendida à época como um “mandamento” aos que iam 
consultar o oráculo (conhece-te à medida que saiba o que podes e o que não podes quando tratares com os 
deuses), sendo posteriormente ressignificada no ascetismo cristão, bem como na filosofia pós-cartesiana. 
30 
 
 
cristianismo ou pela moral moderna do não-egoísmo (FOUCAULT, 2006). 
Quanto à qualificação filosófica, ela diz respeito à relação que o sujeito apresentava com 
a verdade, com o conhecimento. Anteriormente à essa valorização do gnôthi seautón, o sujeito 
por si só não teria a capacidade de acesso a verdade, era necessário que ele se modificasse, se 
transformasse, que, até certo ponto, fosse outro que não ele mesmo para ter acesso à verdade. 
Isto somado à associação da, como já discorremos anteriormente, associação da verdade com o 
estado de perfeição, beatitude ou sabedoria do qual não se decai (FOUCAULT, 2006). Esta 
visão sofrerá várias mudanças e críticas ao longo dos séculos. 
Com efeito, quando Descartes descobre o cogito10, consolida-se na filosofia um 
pensamento que aos poucos se desenvolvia, o da primazia da consciência enquanto meio de 
acesso à verdade (em contrapartida ao divino ou ao espiritual enquanto meio de acesso à 
verdade; a terceirização do conhecimento, por assim dizer). Dessa forma, passa ao próprio 
sujeito a responsabilidade pelo acesso, e pela revelação a outros, da verdade, da sua verdade 
(FOUCAULT, 2006). 
Não mais era necessária uma força externa, nem qualquer mudança do sujeito para que 
se alcançasse a verdade, bastava, somente, ser um sujeito. A própria existência lhe assegurava 
o acesso ao conhecimento, à verdade. Embora semelhantes, não se confunda o cogito, o 
procedimento cartesiano e o gnôthi seautón. Somente se ressalta aqui a importância da lógica 
cartesiana para a ressignificação do cuidado de si. Neste sentido, afirma Foucault (2006, p. 19): 
Além disto, colocando a evidência da existência própria do sujeito no 
princípio do acesso ao ser, era este conhecimento de si mesmo (não mais sob 
a forma da prova da evidência mas sob a forma da indubitabilidade de minha 
existência como sujeito) que fazia do “conhece-te a ti mesmo” um acesso 
fundamental à verdade. Certamente, entre o gnôthi seautón socrático e o 
procedimento cartesiano, a distância é imensa. Compreende-se porém por que, 
a partir deste procedimento, o princípio do gnôthi seautón como fundador do 
procedimento filosófico, pôde ser aceito, desde o século XVII portanto, em 
certas práticas ou procedimentos filosóficos. 
Diferenciados o cuidado de si e o “conhece-te a ti mesmo” filosófico, nesta pesquisa 
 
10 Descartes, após se pôr a questionar a indubitabilidade de tudo, chegou à conclusão de que, no mínimo, ele 
deveria existir. Nas próprias palavras: “De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado 
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta preposição, eu sou, eu existo, 
é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncio ou que a concebo em meu espírito” (DESCARTES, 
2000, p. 100). Descartes “descobre” então o cogito, essa consciência de si, que viria a ser trabalhado 
posteriormente por diversos outros filósofos. 
31 
 
 
enveredaremos pelo cuidado de si, propriamente dito. Em que pese o valor filosófico do gnôthi 
seautón, a escrita, o discurso de si, que é o objeto desta monografia, é uma maneira peculiar de 
cuidar de si, e por isso coube explicar, ainda que brevemente, o que é esse cuidar de si. 
É nestes termos que buscaremos a constituição do sujeito nos objetos a serem 
analisados: à medida em que “cuidam”, que conhecem, que discursam de si, bem como ao passo 
em que discursam de si para o outro, haja vista o inegável “constrangimento que a presença do 
outro exerce na ordem da conduta” (FOUCAULT, 2004, p. 145). Dado isto, procuraremos nos 
corpi o sujeito à medida que se revela, à medida que se constitui no discurso, à medida que ele 
se revela para nós enquantofenômeno e à medida em que enuncia11. 
Buscaremos enunciados que revelem a verdade como dada pelo sujeito e, mais 
especificamente, a verdade sobre si como dada pelo sujeito. De que maneiras e por quais 
métodos o Ministro do Supremo Tribunal Federal se revela, o que diz de si e de onde vem o 
que ele diz de si. Afinal, o discurso de si é “ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o 
destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu 
olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 156, grifo nosso). 
Ressalte-se que, mais uma vez, o discurso de si, mesmo não sendo uma invenção do 
cristianismo, deve a sua consolidação no seio da nossa cultura a ele; e que os discursos que 
buscaremos nos corpi no capítulo em que se efetuará a análise não serão confissões ou 
exomologeses, como as que tratamos aqui, prestando-se esse capítulo tão somente a denotar a 
construção histórica do discurso de si na sociedade ocidental. 
 
 
11 Neste sentido, diferenciam-se o sujeito discursivo enquanto ser ontológico e o sujeito discursivo enquanto 
fenômeno, à medida que este, remetendo àquele, não coincide com o mesmo. Como explica Sartre (2011, p. 19-
20): “O existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si mesmo [sujeito discursivo enquanto fenômeno], e não 
seu ser [ontológico]. [...] o ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição 
fenomênica — na qual alguma coisa só existe enquanto se revela — e que, em consequência, ultrapassa e 
fundamenta o conhecimento que dele se tem”. 
32 
 
 
4 O DISCURSO JURÍDICO AO LONGO DA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS 
Estando já sedimentada a base em relação à Análise do Discurso, buscamos, neste 
momento, estabelecer um dimensionamento histórico do discurso jurídico ao longo da história. 
Em capítulos anteriores, por vezes trouxemos algumas visões de procedimentos jurídicos 
históricos, que revisitaremos neste capítulo, com uma pequena mudança do que se busca extrair 
do objeto: se anteriormente nos contentamos em compreender o mecanismo que estes 
procedimentos usavam para revelar a verdade, buscaremos agora porque este, e não outro 
qualquer possível, procedimento, discurso, surgiram e foram utilizados às épocas que foram. 
Dentre os que revisitaremos estão o desafio de Antíloco a Menelau, e o julgamento de Édipo. 
Perpassaremos ainda pela análise da provação, fundamental no Direito Germânico, e do 
inquérito, finalizando com uma exposição de um discurso jurídico que se nota na modernidade: 
o exame. 
4.1 Discurso jurídico na Grécia Arcaica12 e Clássica13: Ilíadas14 e Édipo-Rei15 
Começaremos tratando deste tema a partir da dinâmica jurídica grega. Um dos primeiros 
relatos de uma forma de pensar jurídico grego que se tem notícia remonta à uma passagem das 
Iliádas, em que é proferida uma acusação de irregularidade ao júri/juiz em uma corrida da qual 
participavam Menelau, acusador, e Antíloco, acusado. Antíloco, por suposto, nega a acusação. 
Havia neste desafio (a corrida), uma pessoa responsável por ver o que acontecia: uma 
testemunha. Entretanto, nem Menelau, nem Antíloco, recorreram à testemunha para a aferição 
da “verdade”, e aí que reside a extração dessa primeira forma de pensar o Direito grego: eles 
recorreram a um desafio de jura. Menelau desafia Antíloco que, caso não houvesse de fato 
cometido irregularidade, jurasse perante Zeus que não o havia feito (FOUCAULT, 2002). 
Decorre-se dessa passagem que: 
 
12 Usa-se aqui o termo abrangendo ambos os períodos arcaicos e homéricos da Grécia Antiga, compreendendo, 
portanto, o ínterim passado entre o século XII a.C. e o séc. V a.C. O período é acompanhado de crescimento e 
expansão da civilização, após a Idade das Trevas grega. 
13 Aqui usado como compreendendo ambos os períodos clássico e helênico da Grécia Antiga. Marcado pelo 
fortalecimento das Cidades-Estados, e pela conquista da Grécia, bem como de grande parte do mundo antigo, por 
Alexandre, o Grande. 
14 Atribuída a Homero, que viveu circa séc. VII a.C., o épico grego narra o último ano da Guerra de Troia, 
mitológica guerra da Grécia Antiga que teria ocorrido no fim da Idade do Bronze (séc. XIV a.C. — séc. XIII a.C.). 
A obra e a lenda têm início com um acesso colérico de Aquiles após a morte de Pátroclo, seu amigo (GLEESON-
WHITE, 2009). 
15 Édipo-Rei (grego antigo: Οἰδίπους Τύραννος) é uma tragédia ateniense de Sófocles que data de circa 429 a.C. 
Originalmente, para os gregos antigos, o título era simplesmente Édipo (Οἰδίπους), como é referido por Aristóteles 
em suas obras. 
33 
 
 
a) O método testemunhal de se aferir um acontecimento não encontrava 
espaço, dando lugar ao método da provação (jurar perante Zeus); e 
b) havia forte influência e abalroamento entre os discursos jurídicos e 
religiosos, haja vista que, embora houvesse uma testemunha 
designada, o peso da provação perante um deus era superior. 
Ou seja, embora já existente o sujeito discursivo da testemunha, encontrava pouco ou 
mínimo espaço, e o ser-juiz/jurado tinha seu papel (como hoje em dia o entendemos) ofuscado 
pelo ser-deus, enquanto julgador. A prova final da verdade seria caso Zeus punisse o que jurou 
em mentira, pouco importando a visão dos fatos apresentada pela testemunha e aferida pelo juiz 
(FOUCAULT, 2002). 
Este julgamento teria ocorrido no fim da Idade do Bronze16, no fim do séc. XIV a.C. ou 
início do séc. XIII a.C., muito antes, portanto, das grandes transformações filosóficas que 
seriam operadas nos próximos séculos, por filósofos como Platão. Trata-se da época do mito, 
da explicação mística e divina do mundo. Não havia espaço (ou, mais propriamente, havia 
pouco espaço) naquela sociedade àquele tempo para a “verdade” dos homens. O discurso da 
provação divina, que será retomado na Alta Idade Média, é a consequência óbvia do contexto 
em que está inscrito (FOUCAULT, 2002; PERINE, 2008) 
Como expõe Foucault (2002), séculos adiante, à época dos idos de Édipo, há outro relato 
interessante de aferição da verdade. Embora o método da provação ainda seja utilizado em 
alguns escassos momentos da peça, são resquícios da antiga tradição, e não o mecanismo 
principal. Na peça de Édipo, encontram-se um dos primeiros registros do inquérito, 
propriamente dito, enquanto forma de se alcançar a verdade, e, consequentemente o sujeito 
discursivo testemunha ganha espaço, embora, como exporemos, haja notável gradação. Quando 
uma praga assola Tebas, Édipo procura em Apolo e seus oráculos as respostas. À vista da 
necessidade de se estabelecer o assassino de Laio, os testemunhos de Édipo e Jocasta são 
indispensáveis. Ao se ver necessário estabelecer a genealogia de Édipo, um escravo oferece seu 
testemunho. Estas são as três gradações presentes: a verdade dos deuses e dos oráculos (um 
discurso inquestionável), a verdade dos reis e soberanos (um discurso sustentado pelo poder) e 
a verdade dos servidores e escravos (um discurso sustentado empiricamente) (FOUCAULT, 
 
16 Período temporal caracterizado pela criação da liga metálica homônima, bem como de maneiras de trabalhá-la. 
Teve início circa 3.300 a.C., com termo em 700 a.C. (por suposto, diferentes partes do mundo passaram pela Idade 
do Bronze em diferentes momentos). 
34 
 
 
2002). 
Ao longo de toda a peça, há um deslocamento gradual e constante do poder (na forma 
do saber) e da busca da verdade na provação e no divino para a verdade na prova (material) e 
no testemunho fático. Os mistérios, e a própria profecia, só se vê esclarecida quando um 
escravo, por meio de uma prova de que falava a verdade, confiada a ele por seu senhor, revela 
a verdade última. O que os pastores e escravos dizem ao final é, em outra forma, o que já haviam 
dito os deuses. A própria narrativa em sua totalidade mostra um distanciamento do ser-deus 
enquanto juiz para a testemunha, e a prova (FOUCAULT, 2002). Há, portanto, um 
fortalecimento da testemunha, embora ela, para que

Outros materiais

Outros materiais