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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA FACULDADE DE DIREITO PROF. JACY DE ASSIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À REVISTA “VEJA” POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL UBERLÂNDIA 2020 JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À REVISTA “VEJA” POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade Prof. Jacy de Assis como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne UBERLÂNDIA 2020 JOÃO PEDRO OMENA DOS SANTOS DO DISCURSO DE SI DO JURISTA: ANÁLISE DE ENTREVISTAS CEDIDAS À REVISTA VEJA POR EX-PRESIDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade Prof. Jacy de Assis como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne Uberlândia, ___ de ______________de ______ ______________________________________________________ Prof. Dr. Vinicius Durval Dorne, UFU/MG ______________________________________________________ Profa, Ma. Neiva Flávia de Oliveira, UFU/MG ______________________________________________________ Prof. Dr. Israel de Sá, UFU/MG AGRADECIMENTOS Primeiramente, deixo meu agradecimento a todos que, nas diversas etapas da minha educação me ensinaram. Tanto na educação básica quanto o do ensino superior, se hoje tenho a oportunidade de entregar uma monografia em uma universidade pública, meus professores decerto tiveram participação nisto. Em especial, agradeço aos professores da banca, prof. Neiva Flávia e prof. Israel de Sá pelo aceite em avaliar esta pesquisa, bem como ao meu orientador, prof. Vinícius Dorne, que com muita paciência me orientou, tanto no PIBIC quanto no TCC, e me apresentou ao mundo da Análise do Discurso, do qual antes só conhecia menção. Agradeço àqueles que me acompanharam nessa jornada até aqui, e que me ajudaram a suportar o que sem eles seria insuportável. A todos meus amigos: sejam eles do ensino médio e de infância, sejam os RPGistas, os da faculdade (tantos os BFF’s da 69ª quanto o squad da 70ª) ou quaisquer daqueles com os quais eu tenha sido agraciado com a chance de conviver: obrigado por tornarem esse mundo mais agradável. Agradeço também a meus pais e família, que desde meus primeiros dias se esforçaram para que eu pudesse ser a melhor versão de mim, e que com amor, carinho e brigas, ajudaram a me moldar na pessoa que hoje sou. Por fim, agradeço Àquele que, independente do nome pelo qual seja conhecido ou chamado, pôs estas pessoas incríveis em meu caminho. OMENA SANTOS, J. P. Do discurso de si do jurista: análise de entrevistas cedidas à revista veja por ex-presidentes do supremo tribunal federal. 2020. 79 f. Monografia (Graduação em Direito) — Universidade Federal de Uberlândia, MG, 2020. RESUMO A pesquisa tratará da (auto)construção dos sujeitos nos discursos, mais especificamente em duas entrevistas cedidas à Revista Veja por ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal do Brasil: min. Carmen Lúcia e min. Dias Toffoli. A fim de buscar de que maneira se constroem os sujeitos “STF” e “ministro do STF” nos discursos de si que estes dão origem, os autores farão uma construção teórica acerca do discurso e sua análise, e da verdade; bem como uma contextualização histórica do discurso jurídico, e sua relevância e/ou reflexos ao longo da história, havendo uma seção dedicada especificamente a alguns discursos normativos relacionados ao Supremo Tribunal Federal no Brasil. Posteriormente haverá a análise, onde buscaremos a emersão destes sujeitos nos discursos analisados, bem como vincular os achados da análise aos conceitos vistos nos capítulos anteriores. Ao fim da análise, conclui-se o trabalho, havendo retomada dos conceitos até então utilizados, bem como havendo o surgimento de novas indagações acerca do tema e do objeto estudado. Palavras-chave: Análise do Discurso. Supremo Tribunal Federal. Revista Veja. Discurso de si. RESUMÉ La recherche portera sur la (auto)construction des sujets dans les discours, plus précisément dans deux entretiens donnés au Magazine Veja par d'anciens présidents de la Cour Suprême Fédérale (CSF) brésilienne: min. Carmen Lúcia et min. Dias Toffoli. Afin de rechercher comment les sujets “CSF” et “ministre de la CSF” sont construits dans les discours d'eux- mêmes qu'ils suscitent, les auteurs feront une construction théorique sur le discours et son analyse; sur la vérité; ainsi qu'une contextualisation historique du discours juridique, sa pertinence et/ou ses réflexes à travers l'histoire, avec une section dédiée spécifiquement à certains discours normatifs liés à la Cour Suprême Fédérale du Brésil. Ensuite, il y aura l'analyse, où nous chercherons l'émergence de ces sujets dans les discours analysés, ainsi que lierons les résultats de l'analyse aux concepts vus dans les chapitres précédents. Au terme de l'analyse, le travail est conclu, après avoir repris les concepts utilisés jusque-là, ainsi que l'apparition de nouvelles questions sur le thème et l'objet étudié. Mots clés: Analyse du Discours. Cour Fédérale de Justice. Magazine Veja. Discours de soi- même. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 7 2 DO DISCURSO E DA VERDADE ................................................................................ 10 2.1 Discurso e enunciado ....................................................................................................... 10 2.2 Discurso e efeitos de verdade .......................................................................................... 14 3 DO DISCURSO DE SI NA SOCIEDADE OCIDENTAL ........................................... 22 3.1 Da penitência canônica e sua relevância na mudança da cultura ocidental .............. 26 3.2 Do cuidado de si e do conhecer a si ................................................................................ 28 4 O DISCURSO JURÍDICO AO LONGO DA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS ...... 32 4.1 Discurso jurídico na Grécia Arcaica e Clássica: Ilíadas e Édipo-Rei ......................... 32 4.2 Discurso jurídico na Idade Média: o Direito Germânico e o inquérito ...................... 36 4.3 Discurso jurídico na Modernidade: do inquérito ao exame ........................................ 41 4.4 O discurso e o sujeito STF/ministro do STF ................................................................. 45 5 ANÁLISE DISCURSIVA DAS ENTREVISTAS “ESTADO DE ALERTA” E “PODER SUPREMO” .................................................................................................... 58 5.1 “Estado de Alerta” .......................................................................................................... 58 5.2 “Poder Supremo” ............................................................................................................ 63 5.3 A formação e as regularidades discursivas das entrevistas ......................................... 70 6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................... 75 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 77 7 1 INTRODUÇÃO As instituições de poder recorrentemente são objetos da análise do discurso: mais propriamente, os discursos destas instituições sempre foram objetos de análise. Dentre elas, e em especial para o filósofo francês Michel Foucault,que trata das relações saber-poder presentes na(s) sociedade(s), as instituições de Direito guardam especial espaço. Se isto é verdade, torna-se ainda mais enfática a relevância dos discursos das instituições jurídicas no cenário brasileiro pós-eleições de 2018. É desta maneira que surge a inquietação motivante desta pesquisa: “Como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se constituem como/em sujeitos em entrevistas cedidas a jornalistas”? No tocante ao percurso metodológico, ambos a metodologia e o método serão a Análise de Discurso Francesa, com alicerce especial em Foucault (1984; 2002; 2004; 2006; 2008; 2014). Em essência, consistirá em recortamos e delimitarmos os corpi e, dentro destes (que serão os discursos a serem analisados), extrair enunciados nos quais se possa ver a construção de si (em oposição à construção de si pelo outro; discurso do outro); mostrar como se dá essa construção; e comparar as subjetividades eregidas no primeiro e no segundo discurso. A situação que se mostra, e que será revista ao longo do presente trabalho, é uma situação de conflito entre instituições e poderes políticos. No período entre a cessão da entrevista que forma o primeiro corpus e a entrevista que forma o segundo corpus a ser analisado, o Brasil passa por um processo eleitoral que tem por resultado a eleição de Jair Bolsonaro, então deputado do Partido Social Liberal (PSL), à presidência da República. Buscaremos observar como tal historicidade – constituinte dos discursos – (não) possibilitaram dizeres outros sobre como os ministros se inscrevem como sujeitos de/do direito em seus dizeres. Enquanto objetivo geral, buscamos: Analisar como, discursivamente, os ministros do STF se constituem como sujeitos de/do direito em entrevistas concedidas a jornalistas antes e após a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Como objetivos específicos: a) refletir sobre como o Direito se constituiu na sociedade; b) compreender como os sujeitos, nos seus próprios dizeres, buscam se constituir como sujeitos; c) identificar regularidades discursivas da inscrição do sujeito ministro do STF em seus próprios enunciados. 8 Os objetos de análise desta monografia são, então, entrevistas cedidas à Revista Veja por ex-presidentes do STF, quais sejam: José Antonio Dias Toffoli e Carmen Lúcia. O recorte se deu, primeiramente, pelas similaridades entre os sujeitos — ambos ex-presidentes do STF —; em segundo plano, temos que se trata do mesmo veículo de divulgação, a Revista Veja, tendo sido, inclusive, entrevistados pela mesma pessoa (o ministro Dias Toffoli teve dois entrevistadores, um deles em comum com a ministra Carmen Lúcia); por fim, entre o mandato e a entrevista destes dois ministros o Brasil, ocorreu as eleições de 2018, que, dentre outras coisas, possivelmente modificou o panorama político- jurídico do Brasil. De maneira breve, cabe aqui explicar a estrutura organizacional do Supremo: o STF é a máxima instância jurídica do Brasil em matéria constitucional (BRASIL, 1988). Ele é composto por onze juízes, que são chamados de ministros, nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. O presidente do STF é escolhido pelos ministros em votação secreta, com quórum mínimo de 8 juízes. O presidente do STF é também presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e ocupa a 4ª posição na linha de sucessão presidencial (precedido pelo vice-presidente, pelo presidente da Câmara dos Deputados e pelo presidente do Senado Federal, respectivamente) (BRASIL, 1988). Em busca de responder a pergunta de pesquisa, o presente se estrutura da seguinte maneira. No tocante à Análise do Discurso francesa (AD), nos valeremos especialmente das reflexões de Michel Foucault sobre e para a teoria do discurso; assim, no capítulo 2 da presente monografia, abordaremos os conceitos de discurso e verdade: em que consistem; o que são, e alguns exemplos de regimes de verdade; o que são enunciados; o porquê de o discurso não ser tão somente continuidade da/na história; o porquê de ele não olhar para a origem; e o porquê de ele também ser história. No capítulo 3, nos deteremos naquela que é considerada a terceira fase dos estudos de M. Foucault: ética e estética da existência. Assim ,abordaremos a questão do discurso de si: como as técnicas e as formas de se constituir em sujeito se deram, foram moldadas e moldaram a história ocidental, em especial suas relações com o cristianismo; e a diferenciação de alguns tipos de discursos de si, nomeadamente o conhecer a si e o cuidar de si, e sua gestação na cultura grega. No capítulo 4, buscaremos mostrar como o discurso jurídico gestou no seio das sociedades ao longo dos tempos mudanças estruturais, ou como ele foi um indicativo das 9 mudanças pelas quais passava a sociedade. Nos 3 primeiros subcapítulos, usaremos os já citados ensinamentos de Michel Foucault, sendo que no subcapítulo 4 buscamos compreender como se constituiu o discurso jurídico (em especial os que tratam do STF) ao longo dos séculos XIX e XX. Para tanto, também nos valemos de Fausto (2006) e Mathias (2009): aquele nos fornecerá uma contextualização histórica do Brasil, e este nos fornecerá um levantamento de mudanças ocorridas no âmbito do judiciário ao longo da história brasileira. No capítulo 5, buscamos responder nossa pergunta discursiva, a partir das reflexões levantadas no curso deste trabalho, ou seja, como os ministros do STF se constituem como sujeitos de/do direito em seus próprios dizeres. Para poder refletir sobre o que somos hoje, é de grande importância compreender como os discursos fabricam a história e os sujeitos. De um ponto de vista social, portanto, a compreensão dos discursos jurídicos que dão conteúdo à estrutura jurídica brasileira, bem como dos contextos em que se inscrevem, contribui para a própria compreensão da atualidade brasileira, de maneira que se viabilize a criação de estratégias cada vez mais eficazes para o direcionamento do judiciário brasileiro. De um ponto de vista científico a proposta pode contribuir tanto para a compreensão do próprio objeto pela comunidade acadêmica, quanto para contribuir como fontes futuras acerca da temática. Consequentemente, interroga como, ao discursar sobre si, os ministros do STF se constituem como sujeitos de/do Direito, responsáveis pela “judicialização da vida”. Compreender o funcionamento discursivo permite, assim, um olhar menos ingênuo para a linguagem e, principalmente, para os poderes exercidos pelo discurso jurídico na sociedade e as consequências de sua autoridade e legitimidade no corpo social Finalizada esta introdução e indicada a estrutura que seguirá esta monografia, podemos dar seguimento ao planejado e começar o lançamento da base teórica tratando do discurso e da verdade. 10 2 DO DISCURSO E DA VERDADE No presente trabalho, em que serão analisados os corpi explicitados na introdução, há de se, invariavelmente, versar sobre a questão do poder para Foucault, uma vez que não há discurso sem um dado exercício de poder, que não haja um dado funcionamento da verdade. Não se trata de uma análise do que seria, para outras ciências, uma verdade objetiva, concreta, mas de se compreender como se produzem efeitos de verdade (FOUCAULT, 1984). Porém, antes de darmos início ao breve estudo da verdade na teoria de Foucault, buscaremos elucidar a base teórica da AD foucaultiana. Desta forma, o capítulo que segue busca tratar da problemática da verdade (e regimes de verdade) para Foucault. Tentaremos definir, de maneira geral, os conceitos; quando possível, exemplificá-los; e, por suposto, relacioná-los. No início deste capítulo, então, exploraremos alguns elementos como a (também) descontinuidade do discurso; a não-observância da origem na análise discursiva; e a relação intrínseca entre discurso e história. 2.1 Discurso e enunciadoPrimeiramente, cumpre-se ressaltar como o discurso se constitui pela/na história (descontínua); isso se faz importante, uma vez que a descontinuidade implicaria uma problemática tanto procedimental quanto teórica à história (FOUCAULT, 2008). Portanto, trataremos brevemente de tentar remover essa aparência de conflito. Primeiramente, mostraremos o discurso também enquanto descontinuidade, para, apoiando-se nisso posteriormente, nos debruçarmos sobre os outros elementos levantados. Segundo Foucault (2008), conceitos como tradição, influência, desenvolvimento, evolução, mentalidade, espírito et cetera, são usados na história para esboçar uma coerência e continuidade para dados acontecimentos e tempos. Uma espécie de elo entre uma origem e um termo que não chegará (dado o eterno desenrolar do tempo). Contudo, tal perspectiva não encontrará sustento na AD. Por um lado, a continuidade no discurso seria dada através da noção de que o discurso, na realidade, não revela a “verdade”, mas sim remete à algo além, intangível e inatingível, como se através “de qualquer começo [discursivo] aparente [houvesse] sempre uma origem secreta - tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente” (FOUCAULT, 2008, p. 27). Por outro lado, teríamos que todo “dito” estaria na realidade apoiado em um já-dito, um discurso sem 11 corpo. Nesse sentido, Foucault (2008, p. 28) assim descreve essa visão de continuidade discursiva, em que: todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. A primeira perspectiva condena a análise do discurso a ser “busca e repetição de uma origem que escapa a toda determinação histórica” (FOUCAULT, 2008, p. 28); a segunda condena a análise do discurso a ser “interpretação ou escuta de um já-dito que seria, ao mesmo tempo, um não-dito” (FOUCAULT, 2008, p. 28). Não obstante, para uma própria análise foucaultiana do discurso, faz-se necessária a supressão, embora não total, destas tentativas de aplicação de uma continuidade infinita ao discurso. Ambas as perspectivas são úteis numa “análise do pensamento”, em que se buscará o que se dizia (de fato) “por trás do que foi dito”. A AD, por sua vez, busca na "unidade" discursiva as razões para que este se dê da maneira que se dá. Não se busca na AD o não-dito por trás do dito, mas sim por quê dado enunciado é o que é de modo que exclui todos os outros que poderiam ter sido: como o dito exclui os não-ditos, delimitando tanto o próprio sujeito discursivo (subjetividade) como o objeto sobre o qual se discursa (identidade). Dessa forma, sabendo que o objeto desta análise é este enunciado descontínuo e “singular”, que ao mesmo tempo que revela a si mesmo (e não um outro ser intangível e inalcançável) se relaciona com os outros (sem apoiar sua existência nestes), fica claro o porquê não se olha para essa origem, e o porquê dele ainda ser história, embora descontínuo. Neste sentido: Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância. Essas formas prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude cora a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas (FOUCAULT, 2008, p. 28). Como visto, o discurso não aponta que a si e somente a si. Ele não é mecanismo pelo qual se revela algo oculto, a essa origem inalcançável, tampouco existe tão somente enquanto repetição de um já-dito (embora seja acontecimento na história, moldando-lhe e por ela sendo 12 moldado, ele é em si) (FOUCAUL, 2008). A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se mantém fora de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o que escondem, [...] mas, ao contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido - e nenhuma outra em seu lugar. (FOUCAULT, 2008, p. 124). Frisada a necessidade da suspensão das noções que implicam continuidade ao discurso, nota-se que em parágrafos anteriores muito foi dito acerca de enunciados e discurso, e, antes de dar seguimento à pesquisa, também se faz necessário aqui distanciar estes conceitos no campo da AD do que se entende cotidianamente. Trataremos, então, de tentar elucidar em que consistem as formações discursivas e o discurso. O discurso, resumidamente, será o conjunto de enunciados circunscritos na mesma formação discursiva. Ao analisá-lo, tendo como o objeto, não nos distanciaremos buscando uma origem terceira e oculta, nem procuraremos revelar um discurso outro que não o que esteja dito e revelado, circunscrito em dado período temporal e social. O analisaremos como é: descontínuo, heterogêneo e histórico. Neste sentido: Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008, p. 132) Isto posto, resta, antes de definirmos o que é enunciado, conceituar de maneira não exaustiva a que nos referimos quando aqui formação discursiva. Sucintamente, a formação discursiva é o conjunto de regras e padrões de repetição e similaridades em que se inscrevem diversos enunciados distintos; é a regularidade entre enunciados singulares. Foucault usa esse termo (formação discursiva) para retratar essas regularidades visando se distanciar de termos mais “carregados”, como “ideologia” e afins (FOUCAULT, 2008): 13 No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como "ciência", ou "ideologia", ou "teoria", ou "domínio de objetividade" (FOUCAULT, 2008, p. 43). Estando sedimentados os conceitos de discursos e formação discursiva, passemos ao enunciado. Foucault, ao tratar de enunciado, o faz de uma maneira negativa (no sentido de que não afirma de maneira direta, mas exclui). O autor inicia essa explicação, que se estende por alguns capítulos, começa por distanciar o termo de seus cotidianos. Ele diferencia enunciadodo que poderia ser seu entendimento gramatical (performance verbal/linguística), lógico (proposições) e contextual/psicológico (formulação) (FOUCAULT, 2008). Quanto à performance verbal, o filósofo explica que não se pode reduzir o enunciado discursivo à construção frasal, haja vista que um quadro puramente numérico, uma fórmula, uma imagem, pode ser um enunciado (FOUCAULT, 2008). Finalmente, um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, um esboço de repartição, formam enunciados; quanto às frases de que podem estar acompanhados, elas são sua interpretação ou comentário; não são o equivalente deles: a prova é que, em muitos casos, apenas um número infinito de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explicitamente formulados nessa espécie de enunciados. Não parece possível, assim, definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase (FOUCAULT, 2008, p. 93). A proposição lógica, por sua vez, tem de depender de algo além dela mesma para que exista e faça sentido, o que colide com a descontinuidade do discurso da qual falamos, e nos impede de reduzir o enunciado à proposição, visto que naquele estamos em busca de uma unidade discursiva (FOUCAULT, 2008). A proposição lógica contém enunciados, por suposto, mas reduzir o enunciado a ela geraria o problema da necessidade da continuidade da proposição, em vez da possibilidade de descontinuidade do enunciado. Quanto aos atos e contextos de formulação de dizeres (atos ilocutórios), ainda não cabe reduzir o enunciado à este conceito. Embora todo ato ilocutório pressuponha um enunciado, estes não coincidem. Há no bojo de todo ato ilocutório um enunciado, ou enunciados, e justamente aí reside o ponto de distanciamento. Aquele contém este, mas não o é (FOUCAULT, 2008). 14 Além disso, certos atos ilocutórios só podem ser considerados como acabados em sua unidade singular se vários enunciados tiverem sido articulados, cada um no lugar que lhe convém. Esses atos são, pois, constituídos pela série ou soma desses enunciados, por sua necessária justaposição; não se pode considerar que estejam inteiramente presentes no menor deles, e que se renovem com cada um. Aqui também não se poderia estabelecer uma relação biunívoca entre o conjunto dos enunciados e o dos atos ilocutórios (FOUCAULT, 2008, p. 94). Foucault conclui sua discussão acerca de enunciado caracterizando-o como, em suma, qualquer elemento que dote um signo de sentido, e constitui nele a sua unidade discursiva. O enunciado é o elemento basilar do discurso, e de onde este extrai seu significado: Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível. (FOUCAULT, 2008, p. 121) Expostos estes conceitos preliminares, discorreremos agora sobre os a verdade, seus efeitos e regimes e a relação destes com o discurso. 2.2 Discurso e efeitos de verdade Ao tratar da verdade, não procuraremos aqui analisar e delimitar limites tangíveis da mesma, mas como as condições sociais, históricas moldaram a importância dela na sociedade ocidental. Dessa forma, para Foucault, não se trata de determinar o que é a Verdade, mas sim como as relações de poder moldaram e foram moldadas pelos efeitos de verdade. Neste sentido, Foucault (2002, p. 23-27, grifo nosso) bem afirma: Ora, se quisermos realmente conhecer o conhecimento [da verdade], saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar não dos filósofos, mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e de poder — na maneira como as coisas entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder — que compreendemos em que consiste o conhecimento [...] O que pretendo mostrar nestas conferências é como, de fato, as condições políticas, econômicas, de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. Com certa recorrência, a título de representação da citada relação entre poder e 15 conhecimento, entre saber e verdade, Foucault frequentemente se vale da tragédia de Édipo. Foucault realiza uma análise de Édipo-Rei não sobre a perspectiva do inconsciente e dos desejos, como é usual no campo da psicologia, mas sob a ótica de um “complexo de Édipo coletivo” entre poder e saber (FOUCAULT, 2002). Ele usa a obra de Sófocles, em “A verdade e as formas jurídicas”, para delimitar (de maneira exemplificativa, não exaustiva) dois métodos de manifestação da verdade, ou aleturgias1: o método dos deuses, da provação; e o método do testemunho (FOUCAULT, 2002). A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Como todo mundo sabe, trata-se de uma história em que pessoas —um soberano, um povo — ignorando uma certa verdade, conseguem, por uma série de técnicas de que falaremos, descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano. A tragédia de Édipo é, portando [sic], a história de uma pesquisa da verdade; é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época. Por esta razão o primeiro problema que se coloca é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da verdade (FOUCAULT, 2002, p. 31). O método dos deuses refere-se à verdade à qual não cabe contestação, a verdade da fé. Percebe-se essa aleturgia em discursos proferidos por oráculos e deuses (essa é a verdade pois é a verdade dos deuses), mas também é possível notá-la nos mecanismos judiciários pré- romanos e que serão posteriormente reencontrados na Alta Idade Média: a provação (FOUCAULT, 2002). O autor dá o exemplo, retirado de cena da Ilíada, em que, frente a um litígio entre Antíloco e Menelau, em que este acusa aquele, Menelau desafia Antíloco: “Põe tua mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade”. Antíloco, diante do desafio, da provação, se recusa a fazer a jura, reconhecendo assim, implicitamente, a falta (FOUCAULT, 2002, p. 32). Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de estabelecer a verdade jurídica: não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado por um adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito o risco, se tivesse realmente jurado, imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer, a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o falso juramente, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade (FOUCAULT, 2002, p. 33). Fica claro neste excerto a validação divina do discurso, incontestável. A “responsabilidade” da descoberta da verdade, na aleturgia da provação, é delegada aos deuses, 1 “[...] conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível, ao imprevisível, ao esquecimento” (FOUCAULT, 2014, p. 8). 16 e assim inquestionável pelos que a ela se submetem. A segunda aleturgia remete ao método testemunhal. É a validação do discurso pelo próprio emissor que afirmará “ocorreu assim pois assim vi” ou “foi dito pois assim ouvi”. Nota- se esta aleturgia quando, ao final de Édipo-Rei, doisescravos são chamados a dizer o que ocorreu quando do nascimento de Édipo. Este método está arraigado no desenvolvimento do Direito como este é (FOUCAULT, 2002, 2014). Novamente, estas são somente duas de várias formas de aleturgia. À vera, o próprio método científico é, por definição, uma aleturgia, uma maneira de manifestação da verdade, estando ainda sujeito a um regime de verdade (do qual trataremos adiante). O autor denota, abaixo, tanto a relação intrínseca entre poder e a manifestação da verdade, quanto a característica da ciência enquanto uma aleturgia: Ou ainda – e vocês sabem que eu adoro as palavras gregas – porque o exercício do poder chama-se em grego hegemonia, não no sentido que damos hoje a essa palavra, mas hegemonia é simplesmente o fato de se encontrar, em face dos outros, na possibilidade de conduzi-los e de conduzir, de algum modo, suas condutas; então eu diria que é bem provável que não exista nenhuma hegemonia que possa se exercer sem qualquer coisa como uma aleturgia. E tudo isso para dizer simplesmente, de uma maneira bárbara e herética, que tudo aquilo que se chama conhecimento, quer dizer, a produção da verdade na consciência dos indivíduos pelos procedimentos lógicos e experimentais, não é, depois de tudo, mais que uma das formas possíveis de aleturgia. A ciência, o conhecimento objetivo, é somente um momento possível de todas essas formas pelas quais pode-se manifestar o verdadeiro (FOUCAULT, 2002, p. 46) Édipo-Rei será novamente mencionado pelo autor na obra “Do governo dos vivos” (2014). Nela, encontramos algo do qual nos valeremos nos capítulos que seguirão, é o que Foucault chama de “ato de verdade. Foucault assim define o ato de verdade: [...] a parte que retorna ao sujeito no procedimento da aleturgia [procedimento de manifestação da verdade] para que se possa defini-lo: 1) pelo papel que ele desempenha como operador; 2) pelo papel que ele desempenha como espectador; 3) pelo papel que ele desempenha como objeto mesmo da aleturgia. Em outras palavras, [o ato de verdade indica que] em um procedimento de manifestação da verdade o sujeito pode ser o agente ativo graças ao qual a verdade emerge (FOUCAULT, 2014, p.75). Percebe-se que ato de verdade é, como já dito na parte introdutória, essencialmente o que buscaremos nos discursos selecionados dos ministros: declarações que (levando em conta 17 o papel ora como espectador, ora como narrador, ora como objeto) definirão o sujeito discursivo em pauta. Embora, como já visto na passagem de Édipo, o fenômeno de um ato de verdade já existisse na sociedade helênica, Foucault aponta que com o advento do cristianismo, que portava em sua essência um ato de verdade refletido ao se levar em conta a profissão de fé, bem como a confissão, o ato de verdade assumiria um posto central em toda a cultura ocidental, subsidiando as relações de poder. Estabeleceu-se assim no seio do cristianismo, e, por desdobramento, no seio da sociedade ocidental, dois “regimes da verdade” (FOUCAULT, 2014): o da profissão de fé, do reconhecimento; e o da confissão, assunção da culpa. Regime de verdade é, para Foucault, aquilo que (...) força os indivíduos a um certo número de atos de verdade. [...] Um regime de verdade é, portanto, o que constrange os indivíduos a esses atos de verdade, o que define, determina a forma desses atos e estabelece para esses atos condições de efetivação e efeitos específicos. Em linhas gerais, podemos dizer, um regime de verdade é o que determina as obrigações dos indivíduos quanto aos procedimentos de manifestação do verdadeiro (FOUCAULT, 2014, p. 85) Foucault ressalta ainda que o regime de verdade só diz respeito àquilo que não possa ser, por si, declarado ou exposto como verdadeiro, necessitando do reforço e embasamento desse regime (a título de exemplo, temos a profissão de fé no cristianismo: por esta não poder ser, por si, demonstrada, é necessário um regime de verdade que obrigue o sujeito a reconhecer a existência de Deus, e por conseguinte a validade de seu dogma) (FOUCAULT, 2014). Exemplo de regime de verdade é a própria noção de sistema judiciário penal no mundo ocidental. O criminoso que após ter cometido ato dito ilícito pela sociedade, seja julgado culpado, se declina à “lógica” de que “fiz, logo devo ser culpado, e sendo culpado receberei uma pena” ou de que “não fiz, logo sou inocente e não receberei pena”. Encontramos aqui um regime em que, após assumir a existência e validade de um conjunto de regras (o Código Penal), aquele que as violar deverá ser punido. Reconhecer uma lei, trata-se, de certa forma, de uma profissão de fé. Dessa forma, Foucault revela a existência de inúmeros regimes de verdade na sociedade ocidental, do regime religioso ao legal (é lei, portanto a cumpro), havendo inclusive um regime que “não aparece como tal”, relacionado às ciências e à lógica (FOUCAULT, 2014). 18 Dessa forma, Foucault (2014) explicita que há sempre na aparição e funcionamento da verdade, um dado regime de verdade: Não é a verdade que é criadora dos direitos que exerce sobre os homens, da obrigação que estes têm para com ela e dos efeitos que eles esperam dessas obrigações, uma vez [que] e na medida em que forem cumpridas. [...] Para [exprimir] as coisas mais simplesmente, de uma forma quase infantil ou totalmente infantil: em todos os raciocínios, por mais rigorosamente construídos que os imaginemos, e mesmo no fato de reconhecer algo como uma evidência, sempre há, e sempre há que se supor, uma certa afirmação, uma afirmação que não é da ordem lógica da constatação ou da dedução, em outras palavras, uma afirmação que não é exatamente da ordem do verdadeiro e do falso, que é antes uma espécie de comprometimento de profissão. Sempre há, em todo raciocínio, essa afirmação ou profissão que consiste em dizer: se é verdadeiro, eu me inclinarei (FOUCAULT, 2014, p.88). O autor nos mostra então que junto à aparição da verdade e à autoindexação do que é verdadeiro, há, implícito, um regime de verdade (permeado em toda conversação tida como sã na sociedade ocidental) que obriga a vinculação ao que se indexar como verdadeiro. Este regime está centrado no fenômeno de constituição do indivíduo enquanto sujeito lógico (de maneira que ele é proeminente nos campos científicos em geral). Enfaticamente, temos um regime de verdade que se oculta atrás da aceitação “obrigatória” do que é verdadeiro (FOUCAULT, 2014). Foucault chama este regime de verdade de “exclusão da loucura”. É necessário um sujeito que não seja louco, que não se recuse a aceitar a verdade, para que a sociedade lógica funcione. Este regime de verdade é o entrelace definitivo entre a verdade e o poder. Não há reis nem generais em uma ciência lógica, de maneira que não é necessário “suplemente de poder para se fazer geometria” (FOUCAULT, 2014, p.92), sendo necessária tão somente a exclusão da loucura, e reconhecimento do que se mostrar como verdadeiro. Temos aí então demonstrado o regime científico da verdade, entretanto, como temos pretendido mostrar, este é só mais um de incontáveis regimes, que permeiam as relações (de poder). Estes regimes (que não foram criados pelo cristianismo, mas certamente expandidos e arraigados2) são o que dão base à toda a cultura ocidental. A “vontade de saber”, como Foucault diz, vinculou o homem moderno a estes regimes de verdade em que ele precisa tanto se revelar enquanto é, ou aparenta ser (tornando-se objetos de atos de verdade), como revelar o que sabe 2 Resumidamente, a inegável dominação cristã no mundo ocidental moldou, de certa forma, a mentalidade deste. A partir do momento em que se fez toda a vida cristã girar em torno da fé e atos de verdade, em consequência toda a sociedade ocidental passou a girar em torno destes, e outros, atos de verdade (FOUCAULT, 2014). 19 (sendo oradores de atos de verdade) e ver outros revelarem (sendo umespectador de atos de verdade). Em suma, há uma obrigação generalizada de participação em inúmeros atos de verdade no cotidiano, cada um regido e guiado por outros diversos regimes de verdade (FOUCAULT, 2014). Malgrado a relevância deste regime científico, Foucault se afeiçoa a versar sobre os atos e regimes de verdade cristãos, vez que foram os responsáveis pelo enraizamento da primazia da verdade no mundo ocidental. Ademais, o cristianismo foi responsável por institucionalizar dois grandes regimes de verdade, já citados, dos quais um muito nos interessa: a profissão de fé, que vincula o sujeito à crença e ao dogma cristão, e o regime de reconhecimento das faltas, sobre a qual nos debruçaremos de maneira mais extensa. Destarte cumpre ressaltar que, embora não reduzamos o termo confissão ao uso coloquial da confissão enquanto verbalização das faltas cometidas, reconhecemos a importância desta enquanto método de vinculação do cristão à verdade. Ao criar uma relação entre o pecado — o erro — e a manifestação da verdade sobre si, foi lançada a base para o fortalecimento para a “primazia da verdade” sob o mundo ocidental (FOUCAULT, 2014). Esta vinculação se deu em três níveis distintos: o batismo; a penitência; e a direção de consciência. O batismo representa e é a ação pela qual o ingressante, após tomar conhecimento da religião, busca acesso através do conhecimento. Uma vez aceitas como verdadeiras as crenças e os ensinamentos que foram passados ao discípulo. Desta forma, temos que, através da aquisição do conhecimento, e, mais importante, da crença nesse conhecimento (profissão de fé/ato de fé) temos sancionado a primeira maneira de vinculação do erro à verdade: a liberação do estado de “ignorância” e “necessidade”, para a “escolha” e o saber” (FOUCAULT, 2014). Enquanto penitência, teremos a confissão como meio de reconhecimento e castigo da natureza, para o cristianismo, corrupta do homem. A partir do reconhecimento da verdade e de sua natureza má, por meio do batismo, o sujeito será purificado, configurando-se outra base para a dominação da verdade na sociedade (FOUCAULT, 2014). Por fim, enquanto direção de consciência, com o ato de verdade de reconhecer Deus e expor suas faltas perante ele (Foucault realiza diversas analogias com a exposição das faltas ao Sol), o sujeito teria seu caminho “iluminado”, guiado, de maneira que se configura a terceira base para a primazia da verdade no mundo ocidental (FOUCAULT, 2014). 20 Estes três aspectos acabaram por arraigar na consciência discursiva3 dos sujeitos a ideia de verdade enquanto salvação, purificação etc. Isto influenciou (note-se que esta construção, bem como a influência derivada se deu ao longo de séculos) de maneira ímpar os países com mentalidade cristã presente (Europa e colônias, em geral). Logo, à guisa de relacionar os conceitos, que atos de verdade nada mais são que aleturgias em que o sujeito, seja como espectador, orador, ou objeto, traz a verdade à tona. Estes atos de verdade e aleturgias são, enfim, guiados e regulados por regimes de verdade, que obrigam os sujeitos à certos comportamentos em decorrência das “verdades” que confessam e professam. Quanto ao tema do presente trabalho, é nítida a relação que se busca. Iremos procurar nos corpi atos de verdade refletidos, em que o próprio sujeito analisado se defina, bem como, se possível, entender os regimes de verdade que permeiam a relação exposta. Seguindo a comparação com os dogmas cristão e a sociedade moderna, buscaremos o que, embora não seja uma confissão, é um discurso de si (assim como a confissão o é). Em outras palavras, iremos, dos corpi levantados, extrair enunciados em que o sujeito discursivo Ministro do Supremo Tribunal Federal se revele e se construa, e buscaremos as maneiras e os porquês deste enunciado ter surgido dentre todos os outros possíveis, e porque só ele poderia ter surgido. Dada a exposta, e à qual esta pesquisa dá suporte, centralidade dos regimes de verdade na vida moderna, fizeram-se necessárias estas páginas para clarificação do que estaremos buscando quando começarmos de fato a análise do discurso, haja vista que, como dito, não há que se falar em poder, sem também se falar em verdade. Passaremos agora a um breve estudo acerca do tipo de discurso que será buscado e analisado nos capítulos posteriores: o discurso de si. No tocante a análise desta pesquisa, o discurso de si aqui tratado é essencial o que buscaremos nos enunciados dos corpi. Embora, de certo, os enunciados e discursos presentes nas entrevistas construam e versem sobre uma miríade de sujeitos outros, focaremos nos enunciados que, proferidos por um sujeito discursivo Ministro do Supremo Tribunal Federal, construa e verse sobre o mesmo sujeito discursivo. 3 A memória discursiva é um “espaço de memória” constituída por um corpo sócio-histórico-cultural que representará a memória coletiva na qual se inscreve dado discurso. A memória discursiva consiste de “acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na sua construção” (FERNANDES, 2005, p. 47). 21 Antes de darmos prosseguimento, cumpre-se notar que o “si” a qual nos referimos quando dele tratamos nesta pesquisa não remete ao indivíduo, ao sujeito de direitos, à personalidade, de alguém. Trata-se de um sujeito discursivo4, com todas as características que o delimitam. 4 Em uma descrição sucinta, o sujeito discursivo, muito mais do que um indivíduo em enunciação, é um “lugar que se ocupa para ser sujeito do que diz” (ORLANDI, 2001, p. 49). O sujeito, nesse sentido, é uma intensa miscigenação de variadas vozes sociais, inerentemente conflituosas e heterogêneas, em que os desejos pessoais e as construções sociais se inter-relacionam por meio da linguagem (FERNANDES, 2005). O sujeito discursivo é o resultado de toda a construção sócio histórica de vivência do indivíduo falante que naquele momento assumirá uma posição para poder ser sujeito do que diz. 22 3 DO DISCURSO DE SI NA SOCIEDADE OCIDENTAL Como já dito, um discurso de si será uma aleturgia, um processo de revelação da verdade, em que o indivíduo será simultaneamente operador dessa aleturgia, à medida que faz a verdade vir à tona, e objeto da aleturgia (FOUCAULT, 2014). Embora Foucault enfatize os aspectos que enumeraremos a seguir na escrita de si, na presente pesquisa é feita a indução lógica desse raciocínio. Porém, antes de passarmos a análise de atos de verdade enunciados durante a contemporaneidade, cumpre ressaltar como se incutiu na mentalidade ocidental o regime de verdade que leva à valorização daqueles. Esta busca pela historicidade levou Foucault a investigar o intervalo de tempo que compreende a antiguidade clássica, o período helênico e o início do cristianismo como meio para obter suas respostas (FERREIRA, 2010, p. 71) Como exposto alhures, tem início na Grécia antiga um movimento de valorização do testemunho enquanto método de revelação da verdade, método esse que será consolidado com a ascensão do cristianismo a partir do século II-III d.C. (FOUCAULT, 2014). Vê-se o início em tragédias gregas, como as já citadas, por Foucault, obras de Sófocles e Homero, e a continuação da mentalidade do testemunho e da provação com escritos teológicos do séc. II d.C. em diante. Ou seja: Vamos [portanto] procurar abordar a questão, ou seja, o cristianismo focalizado do ponto de vista dos regimes de verdade, regimes de verdade que eu sei, em sua maioria, ele não inventou, mas pelo menos estabeleceu, ampliou, institucionalizou, generalizou. Regimes de verdade que evidentemente ponho desde já no plural — e aí volto ao que evocava da última vez—, na medida em que o cristianismo pelo menos definiu dois grandes polos de regimes de verdade, dois grandes tipos de atos que, como procurei lhes mostrar, não eram independentesum do outro, mas que são mesmo assim tipos bem diferentes, de morfologia bem diferente. De um lado, haveria o que poderíamos chamar de regime de verdade que gira em torno dos atos de fé, isto é, atos de verdade que constituem aceitações-compromissos, adesões- fidelidades em relação a certos conteúdos que devem ser considerados verdadeiros, aceitações-compromissos que não consistem simplesmente em afirmar essas coisas como verdadeiras em si e por si, mas devem também fornecer garantias, provas, autenticações exteriores de acordo com certo número de regras, que são regras de conduta ou obrigações rituais. [...] E depois, por outro lado, há no cristianismo um outro polo, um outro regime de verdade, ou em todo caso uma outra fronteira do regime geral de verdade. É a fronteira que tocaria o que podemos chamar de atos de reconhecimento das faltas (FOUCAULT, 2014, p. 93). Ressalte-se que os corpi a serem analisados posteriormente não são atos de 23 reconhecimento de faltas, necessariamente. Tratar-se-á, no presente capítulo, tão somente de discorrer acerca da maneira como foi construído no imaginário ocidental o discurso de si na sociedade ocidental, sendo os atos de reconhecimentos de faltas, institucionalizados pelo cristianismo, essenciais para entender o que permeia a sociedade. Dito isso, embora como já dito o cristianismo não tenha inventado o discurso de si, ele insere algumas mudanças na percepção da sociedade ocidental, o que se evidencia por meio de mudanças no próprio cristianismo. Durante o período helênico, como sendo um traço recorrente no mundo antigo, havia uma recorrência discursiva da sabedoria, da verdade, enquanto estado permanente, uma vez alcançado. Nota-se isso tanto em excertos romanos e gregos, como na própria concepção primeira do que seria o batismo para os catecúmenos dos séculos anteriores ao III d.C. (FOUCAULT, 2014). O batismo, por exemplo, era o fim de um ato de verdade pelo qual o catecúmeno, após um período de estudos acerca do cânone e conhecida a verdade das escrituras, se livraria de pecados anteriores, cometidos em um estado de ignorância, e se tornaria cristão, para não mais pecar (FOUCAULT, 2014). Neste primeiro momento, o batismo era, portanto, um “ciclo que começa pelo ensino, que continua com o ato de fé, que prossegue com a livre escolha e o conhecimento e que termina com a iluminação” (FOUCAULT, 2014, p. 97). Em outras palavras, o batismo era um processo que tinha um início e um fim claro, a partir do qual o catecúmeno passa a ser cristão, sendo inconcebível para ele deste momento em diante: uma vez iluminado, as ações do cristão seriam iluminadas e sem pecado. Contudo, afora os problemas de ordem ontológica que este argumento gera, durante o decorrer do séc. II d.C., com o fim do período helênico, um contingente cada vez maior de catecúmenos, e a institucionalização da Igreja Católica, fez-se necessário uma renovação deste pensamento a fim de reabilitar a intensidade da vida religiosa que se viu diminuída com o número cada vez maior de postulantes (i); responder à crescente perseguição ao cristianismo à época (ii); dar força a argumentos cristãos em debates contra os que eram pagãos (com os quais o diálogo não era nem necessariamente agressivo, nem necessariamente de contestação) (iv); e facilitar a assimilação da religião pelas “religiões de mistério”, que apresentavam ritos iniciáticos muito distintos desse caminho de aquisição da iluminação que era a entrada ao cristianismo (FOUCAULT, 2014, p 135). Surge então, na passagem do séc. II d.C. ao III d.C., uma corrente teológica, encabeçada 24 por Tertuliano5, pela qual o batismo passa a ser entendido não como um acúmulo de sabedoria, mas uma reflexão por parte do indivíduo. O batismo que representava a obtenção do estado de “purificado”, a partir do momento do batismo, passa a ser permitido tão somente aos que já estavam “purificados” através de um olhar a si mesmo. Há então um deslocamento cronológico da salvação (FOUCAULT, 2014). Se antes a salvação decorria do conhecimento, agora ela decorrerá da penitência do catecúmeno. Penitência aqui não utilizada no sentido moderno da palavra, mas sim relacionada à origem grega, à metanoia do indivíduo. A salvação agora decorre da inflexão do indivíduo sobre si mesmo, de maneira a deixar de encarar “as sombras, a matéria, o mundo, as aparências [...] e, pelo próprio fato de desviar destas sombras, se vira para a luz, para o verdadeiro” (FOUCAULT, 2014, p. 118), que é ao mesmo tempo a recompensa desse pivoteio da alma sobre si e o próprio motor desse movimento (FOUCAULT, 2014). Dessa forma, o que antes era um processo pelo qual o indivíduo, a alma, se tornava um sujeito de conhecimento, uma operadora da aleturgia religiosa, através de um período prévio de estudos e iluminação que culminava no reconhecimento sacrossanto da cristandade, passa a ser um processo pelo qual o indivíduo, já sendo um sujeito de conhecimento, torna a si mesmo objeto de conhecimento. Passa-se, ainda, de uma estrutura de ensino para a iniciação ao cristianismo, a uma estrutura de prova (FOUCAULT, 2014). Segundo Foucault, temos que: Em todo caso, nele [Tertuliano], e sem dúvida nos outros, podemos encontrar as seguintes mudanças. Por um lado, a alma, batismo — preparação para o batismo, ato de batismo — não aparece somente num processo que vai pouco a pouco qualificá-la como sujeito de saber ou sujeito de conhecimento. Na preparação do batismo e no ritual do batismo, a alma vai ser situada num processo que a constitui sempre como sujeito de saber ou sujeito de conhecimento. E [por outro lado], me parece que a relação entre purificação e acesso à verdade, em Tertuliano e em certo número de contemporâneos, não assume mais, não assume exclusivamente, não assume nem mesmo de modo dominante a forma de ensino, mas assume a forma, a estrutura do que poderíamos chamar de prova, e é isso que gostaria de procurar esclarecer um pouco agora (FOUCAULT, 2014, p. 106). Logo, o que era um caminho gradual de aquisição de sabedoria passa a ser um movimento pivotante do indivíduo em relação a si próprio. Passa a ser uma necessidade de se expor, se conhecer, para que, se conhecendo, conheça a verdade, e conhecendo a verdade, seja 5 Teólogo do início do cristianismo (séc. II-III d.C.). 25 salvo e não peque. Além disso, enquanto na primeira concepção de batismo, uma vez atingida a cristandade, o cristão estaria a salvo das tentações terrenas (traço característico da concepção do sábio helênico), essa nova visão acerca do batismo incute no postulante o medo, pois nunca se está a salvo dessas tentações. É necessário manter a alma sob contínuo reexame, de maneira que não se caia em tentação (FOUCAULT, 2014). Em que pese essa teoria (a Tauftheorie — teoria do batismo) ter facilitado a assimilação do cristianismo pelos pagãos, resta a problemática do perfeito, do sábio (recorrente no período helênico), e que, sendo sábio, portanto, não mais pode errar. Resta ainda o questionamento acerca não de pecados menores, mas de afastamento da fé. Pois ora, se com o movimento de reflexão de si o catecúmeno conhece a verdade, qual a solução ou a explicação para os que, tendo conhecido a verdade e a fé, voluntariamente a abandonam, dado a força autoindexativa da mesma? Esta problemática se manterá durante os séc. II-V d.C., em que, findo esse período, se efetuará nova mudança na mentalidade da Igreja, que levará à primazia do reconhecimento das faltas nas sociedades cristãs. É formulada, nesse intervalo de tempo, a Jubiläumstheorie — teoria do jubileu — que postula que será ofertada aos que fraquejaram, em tempo oportuno, uma segunda penitência, com efeitos similares ao batismo (libertação de pecados passados, reafirmação da fé), mas que ainda difere em essência (FOUCAULT, 2014). Assim sendo: De fato, se admitirmos, como fazia a velha Taufstheorie,que o cristianismo só admitiu penitência no batismo, com o batismo e pelo batismo, e se é verdade que foi apenas depois, no correr do século II, talvez com Hermas, que se começou a acrescentar a possibilidade de um segundo recurso, isso significa que, durante todo esse período primitivo do cristianismo, até esse meado (mais ou menos) do século II, o cristianismo se considerava como um religião de perfeitos, de puros, de pessoas incapazes de cair no pecado. Se, de fato, não há recurso [à] penitência depois do batismo, isso quer dizer que o batismo em si proporcionava aos que o recebiam um acesso à verdade, à luz, à perfeição, um acesso tal que não era possível, para aqueles a quem essa luz e essa verdade eram abertas, voltar atrás e recair. Ou se tem a iluminação, e nesse momento nela se permanece, ou não se permanece na iluminação, o que quer dizer que não se havia sido realmente iluminado (FOUCAULT, 2014, p. 158). Hermas6, o autor citado por Foucault, apresentou essa problemática, não diretamente, mas indiretamente. Ao afirmar que havia a oportunidade de uma segunda penitência (aqui ainda no sentido grego da palavra, de metanoia), deixava implícita a possibilidade de falta pelo que 6 Hermes de Filipópolis foi um bispo da cidade de Filipópolis, na Trácia, suposto autor do Pastor de Hermas. 26 já teria atingido a iluminação (FOUCAULT, 2014). E dessa forma, surge no seio do cristianismo uma espécie de mesclagem entre o esquema da salvação, típico do helenismo, binário entre o ser perfeito que, por decorrência, só realiza atos perfeitos e o ser imperfeito que não realiza atos perfeitos (o iluminado e o não iluminado); e o sistema da lei, que compreende um ato enquanto bom ou mal por qualquer sistema de normas. Se antes o mundo mediterrâneo conhecia essas duas formas de pensar as ações (uma centrada no sujeito — esquema da salvação — e uma centrada no ato — sistema da lei), o cristianismo teve que enfrentar a problemática de inserir um método que compatibilizasse um ato faltoso (sistema da lei) a pessoas iluminadas (esquema da salvação) (FOUCAULT, 2014). O cristianismo — e, em certo sentido, foi esse um dos seus grandes problemas históricos, um dos grandes desafios históricos que ele teve de enfrentar —, o cristianismo teve de pensar essa relação lei-perfeição, ou ainda, se preferirem, esse problema da irreversibilidade da relação sujeito-verdade e da repetição da falta. Se o vínculo sujeito-verdade é irreversível, como a falta ainda é possível? E, por conseguinte, como alguém pode repetir a falta, e isso é legítimo, é possível, podemos conceber que se reconstitua essa relação sujeito- verdade adquirida uma primeira vez e, parece, perdida pela falta interior ao cristão, interior a quem já atingiu esse estágio? O cristianismo foi obrigado a colocar essa necessidade, esse desafio de pensar a repetibilidade da metanoia, o recomeço do estabelecimento da relação — relação essencial — entre o sujeito e a verdade, por duas razões, uma interior e a outra ao mesmo tempo interior e exterior a seus limites (FOUCAULT, 2014, p. 167). Ou seja, o cristianismo não foi o responsável pela introdução do erro, do pecado, em um mundo que não operava com essa variável (o erro e a queda são temas recorrentes em tragédias gregas), mas sim pela introdução do pecado em relação à inocência. Ele não introduziu a queda, mas a recaída (FOUCAULT, 2014). E junto com a recaída, introduziu-se o método de recuperação do devoto: a penitência canônica, o estágio antes da penitência infinitamente repetível. 3.1 Da penitência canônica e sua relevância na mudança da cultura ocidental A penitência canônica é, como já dito, o meio pelo qual a igreja deixará um esquema binário de salvação (ser iluminado e assim permanecer ou não ter sido iluminado) à uma lei que sancionaria infindamente a falta cometida pelo devoto. A penitência canônica pode ser vista como essa transição, ao passo que já reconhece a falibilidade do cristão (visto que se é proporcionada uma penitência, deve ter ocorrido uma falta), mas que oferece essa salvação pós- batismal apenas uma vez. 27 Para que se efetivasse essa mudança no pensamento da Igreja, e ao que parece, segundo Foucault (2014), em toda a cultura ocidental, foram necessários, resumidamente, 2 elementos: primeiramente, a institucionalização da estrutura cristã no seio da sociedade, com decorrente controle dos indivíduos, enumeração de regras e punição para faltas que as quebrassem; e, fator este exterior ao cristianismo, foi necessária a chegada à Europa de um sistema de direito (o direito germânico, especificamente), que retratava a “punição da falta como uma espécie de resgate. A punição como resgate da falta vai ser a forma jurídica laica e externa na qual será repensada, a partir da Idade Média, toda a economia da penitência” (FOUCAULT, 2014, p. 179). O fato concernente à presente pesquisa, no tocante à penitência canônica, são os atos de verdade que a ela integram. À guisa de exemplo, nas entrevistas dos ministros buscaremos, dentre outras coisas, de que maneira, de que recursos, de que aleturgias ele se vale para dizer as verdades que diz. Nesta penitência, novamente encontraremos dois tipos de atos de verdade, os objetivos e os refletidos, sendo estes, os refletidos, nosso foco no momento. Os atos objetivos são similares ao do batismo, compreendendo aqueles em que o então catecúmeno professa ou rejeita algumas verdades “externas”. Os atos refletidos desta penitência, entretanto, são a novidade peculiar dela. Em que pese no batismo o catecúmeno se pôr a “conhecer a si mesmo”, através da metanoia7 realizada no próprio, na penitência canônica mais do que conhecer suas verdades, o cristão deve expor suas verdades a público (FOUCAULT, 2014). Vejamos: Quando, nos ritos de batismo, se falava da probatio animae, quando se falava da disciplina paenitentiae, quando Tertuliano dizia que o catecúmeno devia exercitar sua alma, tratava-se efetivamente para [este] de manifestar sua verdade e dar aos outros a possibilidade de apreender qual a situação da sua alma e de seu progresso, da sua capacidade de receber os ritos. Mas essa obrigação de se mostrar, de se manifestar, não tinha estatuto próprio no interior da instituição catecúmena. Já na penitência [canônica] há toda uma série de atos e de procedimentos que são explicitamente destinados a convidar, a exortar ou a constranger quem faz a penitência a mostrar sua própria verdade (FOUCAULT, 2014, p. 184). Em todo o caso, aí se encontra um ponto de interesse à esta pesquisa. Essa penitência, 7 Mudança essencial de pensamento ou caráter. Nas palavras de Foucault (2014, p. 118): “Como vocês sabem é a mudança da alma, quer dizer, essencialmente o movimento pelo qual a alma pivoteia em torno de si mesma ou, mais precisamente, o movimento pelo qual ela se desvia do que olhava até então [...]”. 28 essa exomologese8, introduz no cotidiano cristão não o reconhecimento “público”, coletivo do ato da falta, do pecado, mas sim o reconhecimento “público” de que se cometeu uma falta. “Não se trata, portanto, de uma confissão-reconhecimento do que se fez, mas de uma profissão ou de uma súplica coletiva concernente ao que somos, a saber, pecadores” (FOUCAULT, 2014, p. 186). Se antes era requisitado do catecúmeno o pivoteio sobre si mesmo, o autoconhecimento decorrente de uma metanoia pré-batismal, nessa segunda penitência será cobrada a exposição da própria alma. Não tanto o reconhecimento interno da impureza, mas a exteriorização desta.Neste sentido, bem afirma Foucault (2014, p. 191) quando diz que deixa de ser uma ação de pura consciência: A metanoia característica da penitência [canônica] não deve ser simplesmente uma conversão do pensamento, no pensamento e para o próprio pensamento. [...] também tem de ser um ato. O que é esse ato? É a exteriorização da metanoia, é a exteriorização da conversãodo pensamento [...]. Essa disciplina penitentiae será adotada por séculos, sendo eventualmente substituída por atos de verdade similares, mas de natureza repetível (dado que a penitência canônica é, tal qual o batismo, uma “chance” única para o cristão) (FOUCAULT, 2014). De toda forma, isso dará azo, na cultura ocidental, a toda uma construção de um regime de verdade em torno do discurso de si, do qual trataremos a seguir. 3.2 Do cuidado de si e do conhecer a si Dado que buscaremos em capítulo posterior enunciações por meio do qual o sujeito se fabrica/se constitui, e estando, mesmo que brevemente, sedimentada a base para a consolidação do discurso de si na nossa sociedade, far-se-á breve explicação acerca de como o discurso de si afeta o próprio sujeita que o enuncia, mesmo que o enuncie, em tese, a outro. Bom, se é certo que o discurso de si, a revelação da verdade do sujeito que enuncia, fez- se cada vez mais presente na sociedade tendo um percurso atrelado à história do cristianismo, faz-se mister reconhecer as particularidades deste discurso, desta subjetivação da verdade sobre si por dado sujeito. De início, constata-se que o discurso de si (acerca de si, sobre si) constitui um meio de se efetuar o que Foucault chamará de “cuidado de si”. O “cuidado de si”, como já vimos sem 8 Confissão pública dos pecados cometidos. Um ritual de penitência católico. 29 ter nomeado, permeia o discurso cristão. Seja por meio da metanoia batismal, da metanoia da penitência canônica ou por meio de rituais que surgiram posteriormente (FOUCAULT, 2006). De acordo com o autor (FOUCAULT, 2006), a noção do cuidado de si existe desde a antiguidade, sendo um dos seus expoentes, à época, Sócrates. Contudo, a noção que se tinha e, que foi aos poucos ressignificada (Foucault a chama de epiméleia heautoû), dizia respeito não tanto a uma relação de subjetivação da verdade, mas sim de “ocupar-se consigo mesmo”. Essa visão do cuidado de si perdurou por aproximadamente um milênio (séc V a.C. – séc. V d.C.). Nesse sentido, Foucault assim delineia o que é este cuidado de si da antiguidade clássica: Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. A epiméleia heautoû é uma atitude — para consigo, para com os outros, para com o mundo. Em segundo lugar, a epiméleia heautoû é também uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo implica [...] que é preciso converter o olhar, do exterior, dos outros, do mundo, etc. para “si mesmo”. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. [...] Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenção voltada para si. Também designa sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos (FOUCAULT, 2006, p. 14). Contudo, deu-se, principalmente a partir do séc. V d.C., uma transição da importância ao cuidado de si neste sentido, de epiméleia heautoû, para o cuidado de si enquanto conhecimento de si (Foucault chama este de gnôthi seautón — “conhece-te a ti mesmo”9 — em referência ao terceiro edito para os que iam consultar o oráculo de Delfos) (FOUCAULT, 2006). Houve, simultaneamente, uma valorização (bem como uma ressignificação) filosófica do gnôthi seautón e uma desqualificação moral da epimeléia heautoû. Quanto à desqualificação moral, se nota que as menções da antiguidade ao cuidar de si mesmo, se ocupar de si, são sempre positivas, virtuosas, porém essa preocupação excessiva com o si, com o individual em detrimento do coletivo encontrará obstáculos, seja na moral cristã ou na moral moderna não-cristã. Transferiu-se a prioridade do individual ao coletivo, seja pelo 9 Com origem na Grécia Antiga, essa expressão era entendida à época como um “mandamento” aos que iam consultar o oráculo (conhece-te à medida que saiba o que podes e o que não podes quando tratares com os deuses), sendo posteriormente ressignificada no ascetismo cristão, bem como na filosofia pós-cartesiana. 30 cristianismo ou pela moral moderna do não-egoísmo (FOUCAULT, 2006). Quanto à qualificação filosófica, ela diz respeito à relação que o sujeito apresentava com a verdade, com o conhecimento. Anteriormente à essa valorização do gnôthi seautón, o sujeito por si só não teria a capacidade de acesso a verdade, era necessário que ele se modificasse, se transformasse, que, até certo ponto, fosse outro que não ele mesmo para ter acesso à verdade. Isto somado à associação da, como já discorremos anteriormente, associação da verdade com o estado de perfeição, beatitude ou sabedoria do qual não se decai (FOUCAULT, 2006). Esta visão sofrerá várias mudanças e críticas ao longo dos séculos. Com efeito, quando Descartes descobre o cogito10, consolida-se na filosofia um pensamento que aos poucos se desenvolvia, o da primazia da consciência enquanto meio de acesso à verdade (em contrapartida ao divino ou ao espiritual enquanto meio de acesso à verdade; a terceirização do conhecimento, por assim dizer). Dessa forma, passa ao próprio sujeito a responsabilidade pelo acesso, e pela revelação a outros, da verdade, da sua verdade (FOUCAULT, 2006). Não mais era necessária uma força externa, nem qualquer mudança do sujeito para que se alcançasse a verdade, bastava, somente, ser um sujeito. A própria existência lhe assegurava o acesso ao conhecimento, à verdade. Embora semelhantes, não se confunda o cogito, o procedimento cartesiano e o gnôthi seautón. Somente se ressalta aqui a importância da lógica cartesiana para a ressignificação do cuidado de si. Neste sentido, afirma Foucault (2006, p. 19): Além disto, colocando a evidência da existência própria do sujeito no princípio do acesso ao ser, era este conhecimento de si mesmo (não mais sob a forma da prova da evidência mas sob a forma da indubitabilidade de minha existência como sujeito) que fazia do “conhece-te a ti mesmo” um acesso fundamental à verdade. Certamente, entre o gnôthi seautón socrático e o procedimento cartesiano, a distância é imensa. Compreende-se porém por que, a partir deste procedimento, o princípio do gnôthi seautón como fundador do procedimento filosófico, pôde ser aceito, desde o século XVII portanto, em certas práticas ou procedimentos filosóficos. Diferenciados o cuidado de si e o “conhece-te a ti mesmo” filosófico, nesta pesquisa 10 Descartes, após se pôr a questionar a indubitabilidade de tudo, chegou à conclusão de que, no mínimo, ele deveria existir. Nas próprias palavras: “De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta preposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncio ou que a concebo em meu espírito” (DESCARTES, 2000, p. 100). Descartes “descobre” então o cogito, essa consciência de si, que viria a ser trabalhado posteriormente por diversos outros filósofos. 31 enveredaremos pelo cuidado de si, propriamente dito. Em que pese o valor filosófico do gnôthi seautón, a escrita, o discurso de si, que é o objeto desta monografia, é uma maneira peculiar de cuidar de si, e por isso coube explicar, ainda que brevemente, o que é esse cuidar de si. É nestes termos que buscaremos a constituição do sujeito nos objetos a serem analisados: à medida em que “cuidam”, que conhecem, que discursam de si, bem como ao passo em que discursam de si para o outro, haja vista o inegável “constrangimento que a presença do outro exerce na ordem da conduta” (FOUCAULT, 2004, p. 145). Dado isto, procuraremos nos corpi o sujeito à medida que se revela, à medida que se constitui no discurso, à medida que ele se revela para nós enquantofenômeno e à medida em que enuncia11. Buscaremos enunciados que revelem a verdade como dada pelo sujeito e, mais especificamente, a verdade sobre si como dada pelo sujeito. De que maneiras e por quais métodos o Ministro do Supremo Tribunal Federal se revela, o que diz de si e de onde vem o que ele diz de si. Afinal, o discurso de si é “ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 156, grifo nosso). Ressalte-se que, mais uma vez, o discurso de si, mesmo não sendo uma invenção do cristianismo, deve a sua consolidação no seio da nossa cultura a ele; e que os discursos que buscaremos nos corpi no capítulo em que se efetuará a análise não serão confissões ou exomologeses, como as que tratamos aqui, prestando-se esse capítulo tão somente a denotar a construção histórica do discurso de si na sociedade ocidental. 11 Neste sentido, diferenciam-se o sujeito discursivo enquanto ser ontológico e o sujeito discursivo enquanto fenômeno, à medida que este, remetendo àquele, não coincide com o mesmo. Como explica Sartre (2011, p. 19- 20): “O existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si mesmo [sujeito discursivo enquanto fenômeno], e não seu ser [ontológico]. [...] o ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição fenomênica — na qual alguma coisa só existe enquanto se revela — e que, em consequência, ultrapassa e fundamenta o conhecimento que dele se tem”. 32 4 O DISCURSO JURÍDICO AO LONGO DA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS Estando já sedimentada a base em relação à Análise do Discurso, buscamos, neste momento, estabelecer um dimensionamento histórico do discurso jurídico ao longo da história. Em capítulos anteriores, por vezes trouxemos algumas visões de procedimentos jurídicos históricos, que revisitaremos neste capítulo, com uma pequena mudança do que se busca extrair do objeto: se anteriormente nos contentamos em compreender o mecanismo que estes procedimentos usavam para revelar a verdade, buscaremos agora porque este, e não outro qualquer possível, procedimento, discurso, surgiram e foram utilizados às épocas que foram. Dentre os que revisitaremos estão o desafio de Antíloco a Menelau, e o julgamento de Édipo. Perpassaremos ainda pela análise da provação, fundamental no Direito Germânico, e do inquérito, finalizando com uma exposição de um discurso jurídico que se nota na modernidade: o exame. 4.1 Discurso jurídico na Grécia Arcaica12 e Clássica13: Ilíadas14 e Édipo-Rei15 Começaremos tratando deste tema a partir da dinâmica jurídica grega. Um dos primeiros relatos de uma forma de pensar jurídico grego que se tem notícia remonta à uma passagem das Iliádas, em que é proferida uma acusação de irregularidade ao júri/juiz em uma corrida da qual participavam Menelau, acusador, e Antíloco, acusado. Antíloco, por suposto, nega a acusação. Havia neste desafio (a corrida), uma pessoa responsável por ver o que acontecia: uma testemunha. Entretanto, nem Menelau, nem Antíloco, recorreram à testemunha para a aferição da “verdade”, e aí que reside a extração dessa primeira forma de pensar o Direito grego: eles recorreram a um desafio de jura. Menelau desafia Antíloco que, caso não houvesse de fato cometido irregularidade, jurasse perante Zeus que não o havia feito (FOUCAULT, 2002). Decorre-se dessa passagem que: 12 Usa-se aqui o termo abrangendo ambos os períodos arcaicos e homéricos da Grécia Antiga, compreendendo, portanto, o ínterim passado entre o século XII a.C. e o séc. V a.C. O período é acompanhado de crescimento e expansão da civilização, após a Idade das Trevas grega. 13 Aqui usado como compreendendo ambos os períodos clássico e helênico da Grécia Antiga. Marcado pelo fortalecimento das Cidades-Estados, e pela conquista da Grécia, bem como de grande parte do mundo antigo, por Alexandre, o Grande. 14 Atribuída a Homero, que viveu circa séc. VII a.C., o épico grego narra o último ano da Guerra de Troia, mitológica guerra da Grécia Antiga que teria ocorrido no fim da Idade do Bronze (séc. XIV a.C. — séc. XIII a.C.). A obra e a lenda têm início com um acesso colérico de Aquiles após a morte de Pátroclo, seu amigo (GLEESON- WHITE, 2009). 15 Édipo-Rei (grego antigo: Οἰδίπους Τύραννος) é uma tragédia ateniense de Sófocles que data de circa 429 a.C. Originalmente, para os gregos antigos, o título era simplesmente Édipo (Οἰδίπους), como é referido por Aristóteles em suas obras. 33 a) O método testemunhal de se aferir um acontecimento não encontrava espaço, dando lugar ao método da provação (jurar perante Zeus); e b) havia forte influência e abalroamento entre os discursos jurídicos e religiosos, haja vista que, embora houvesse uma testemunha designada, o peso da provação perante um deus era superior. Ou seja, embora já existente o sujeito discursivo da testemunha, encontrava pouco ou mínimo espaço, e o ser-juiz/jurado tinha seu papel (como hoje em dia o entendemos) ofuscado pelo ser-deus, enquanto julgador. A prova final da verdade seria caso Zeus punisse o que jurou em mentira, pouco importando a visão dos fatos apresentada pela testemunha e aferida pelo juiz (FOUCAULT, 2002). Este julgamento teria ocorrido no fim da Idade do Bronze16, no fim do séc. XIV a.C. ou início do séc. XIII a.C., muito antes, portanto, das grandes transformações filosóficas que seriam operadas nos próximos séculos, por filósofos como Platão. Trata-se da época do mito, da explicação mística e divina do mundo. Não havia espaço (ou, mais propriamente, havia pouco espaço) naquela sociedade àquele tempo para a “verdade” dos homens. O discurso da provação divina, que será retomado na Alta Idade Média, é a consequência óbvia do contexto em que está inscrito (FOUCAULT, 2002; PERINE, 2008) Como expõe Foucault (2002), séculos adiante, à época dos idos de Édipo, há outro relato interessante de aferição da verdade. Embora o método da provação ainda seja utilizado em alguns escassos momentos da peça, são resquícios da antiga tradição, e não o mecanismo principal. Na peça de Édipo, encontram-se um dos primeiros registros do inquérito, propriamente dito, enquanto forma de se alcançar a verdade, e, consequentemente o sujeito discursivo testemunha ganha espaço, embora, como exporemos, haja notável gradação. Quando uma praga assola Tebas, Édipo procura em Apolo e seus oráculos as respostas. À vista da necessidade de se estabelecer o assassino de Laio, os testemunhos de Édipo e Jocasta são indispensáveis. Ao se ver necessário estabelecer a genealogia de Édipo, um escravo oferece seu testemunho. Estas são as três gradações presentes: a verdade dos deuses e dos oráculos (um discurso inquestionável), a verdade dos reis e soberanos (um discurso sustentado pelo poder) e a verdade dos servidores e escravos (um discurso sustentado empiricamente) (FOUCAULT, 16 Período temporal caracterizado pela criação da liga metálica homônima, bem como de maneiras de trabalhá-la. Teve início circa 3.300 a.C., com termo em 700 a.C. (por suposto, diferentes partes do mundo passaram pela Idade do Bronze em diferentes momentos). 34 2002). Ao longo de toda a peça, há um deslocamento gradual e constante do poder (na forma do saber) e da busca da verdade na provação e no divino para a verdade na prova (material) e no testemunho fático. Os mistérios, e a própria profecia, só se vê esclarecida quando um escravo, por meio de uma prova de que falava a verdade, confiada a ele por seu senhor, revela a verdade última. O que os pastores e escravos dizem ao final é, em outra forma, o que já haviam dito os deuses. A própria narrativa em sua totalidade mostra um distanciamento do ser-deus enquanto juiz para a testemunha, e a prova (FOUCAULT, 2002). Há, portanto, um fortalecimento da testemunha, embora ela, para que
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