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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA HÉRCULIS DIOMARTIN DA SILVA MOURA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 CURITIBA 2019 HÉRCULIS DIOMARTIN DA SILVA MOURA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 Monografia apresentada como requisito parcial para à obtenção do grau de Bacharel em Direito, do Centro Universitário Curitiba. Orientadora: Alessandra Galli Aprá CURITIBA 2019 HÉRCULIS DIOMARTIN DA SILVA MOURA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitário Curitiba, pela Banca Examinadora formada pelas professoras: ________________________________________________________ Orientadora: Alessandra Galli Aprá ________________________________________________________ Prof. Membro da Banca Curitiba, de de 2019. AGRADECIMENTOS Primeiramente, a minha mãe, que nunca mediu esforços para que eu tivesse boas oportunidades na vida. Agradeço também a minhas tias e minha prima, pelo apoio durante todos esses anos que estive na faculdade. A minha amiga Caroline Agnes Ribeiro, que sempre ouviu meus desabafos de como estava sendo difícil concluir esse trabalho. A minha amiga Priscila Yumi Nomura, por me levar para “tomar um ar” nas vezes em que eu estava ansioso e com vontade de desistir. Agradeço a minha orientadora, Alessandra Galli Aprá, que me apresentou ideias e me fez enxergar esse trabalho com um novo sentido. Enfim, agradeço a todas as pessoas que fizeram parte dessa etapa decisiva em minha vida. RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar como a proteção do meio ambiente é indispensável e deve ser observada no exercício do direito de propriedade, eis que a Constituição da República de 1988 eleva o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito difuso e coletivo, indispensável à sadia qualidade de vida, devendo o Poder Público e a coletividade protegê-lo. Ainda, o direito à propriedade privada sofre limitações em decorrência do dever de zelar pelo meio ambiente que é um bem intergeracional, ou seja, que deve ser preservado em benefício das gerações atuais e futuras. Desta forma, mesmo que a propriedade diga respeito à quem a pertence, ela não é absoluta, sua tutela constitucional está pautada no cumprimento da função socioambiental que obriga o proprietário a mantê-la socialmente útil para que não traga malefícios para os indivíduos que com ela não têm ligação, bem como está atrelada à preservação do meio ambiente para que ele continue equilibrado e todos os indivíduos gozem de seus benefícios. A pesquisa exploratória e descritiva do tipo mista (quantitativa e qualitativa) utilizou-se do método empírico, a partir da coleta de dados obtidos pela pesquisa jurisprudencial, com o objetivo de verificar qual caracterização é conferida à função socioambiental da propriedade, enquanto parâmetro extralegal - na medida em que a seu respeito não há uma definição no texto constitucional - para evidenciar como os Tribunais têm visto e dispõem sobre a função socioambiental da propriedade privada, seja ela urbana ou rural. Palavras-chave: Meio ambiente. Propriedade privada. Função socioambiental da propriedade. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. ABSTRACT The present work aims to demonstrate how the protection of the environment is indispensable and must be observed in the exercise of the right of property, as the Constitution of the Republic of 1988 elevates the ecologically balanced environment as a diffuse and collective right, indispensable to the healthy quality of life and the government and the community must protect it. Still, the right to private property suffers limitations due to the duty of caring for the environment that is an intergenerational good, that is, that must be preserved for the benefit of present and future generations. Thus, even if the property concerns the person who owns it, it is not absolute, its constitutional protection is based on the fulfillment of the social and environmental function that obliges the owner to keep it socially useful so that it does not bring harm to the individuals who with it. They have no connection, and are linked to the preservation of the environment so that it remains balanced and all individuals enjoy its benefits. The exploratory and descriptive research of the mixed type (quantitative and qualitative) used the empirical method, from the collection of data obtained by the jurisprudential research, in order to verify which characterization is conferred to the socio-environmental function of the property, as an extralegal parameter. insofar as there is no definition in it about the constitutional text - to show how the courts have seen and disposed of the social and environmental function of private property, whether urban or rural. Keywords: Environment. Private property. Socio-environmental function of the property. Constitution of the Federative Republic of Brazil 1988. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Divisão das áreas de conservação que integram o SNUC ......................36 Tabela 2 - Divisão dos espaços territoriais especialmente protegidos em sentido amplo e estrito .....................................................................................................38 Tabela 3 - Resultado quantitativo por região da pesquisa jurisprudencial pelo termo “função socioambiental da propriedade”..............................................................................................45 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 MEIO AMBIENTE E DIREITO AMBIENTAL .......................................................... 10 2.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE ...................................................................... 10 2.2 DIREITO AMBIENTAL......................................................................................... 12 2.3 PRINCÍPIOS AMBIENTAIS ................................................................................. 14 2.3.1 Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana ......................................................................................................... 15 2.3.2 Princípio do poluidor-pagador .......................................................................... 17 2.3.3 Princípio da função socioambiental da propriedade privada ............................ 19 3 A PROPRIEDADE PRIVADA ................................................................................ 23 3.1 Direito à propriedade ........................................................................................... 23 3.2 A função socioambiental da propriedade privada urbana e rural ........................ 25 3.3 Limitações administrativas à propriedade em decorrência dos espaços ambientais e a desapropriação .................................................................................................... 35 4 A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS .......................................................................................................... 44 4.1 A pesquisa jurisprudencial ................................................................................... 46 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................52 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 55 8 1 INTRODUÇÃO O meio ambiente é a soma de conjuntos naturais que tem impacto sobre os seres vivos e as atividades humanas, sendo essencial à sadia qualidade de vida e de uso comum do povo. Ele repercute em todos eixos da sociedade, pois, os elementos químicos, físicos e biológicos que os compõe podem trazer consequências negativas ou benefícios para toda coletividade a depender do modo como o tema é tratado. Por isso é um bem coletivo passível de proteção pelo sistema jurídico. O ordenamento jurídico brasileiro através da Constituição Federal de 1988 passou a ter o meio ambiente como um bem juridicamente tutelado, trazendo modos para sua preservação e controle. E através de leis específicas, como a Lei n. 6.938/81 que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação; a Lei n. 7.347/85 que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente; alavancou o enfoque dado ao assunto. E ainda o Código Florestal e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, são leis que vieram proteger o meio ambiente através da criação de espaços ambientais que limitam a propriedade em função da preservação e conservação do meio ambiente. A partir do momento em que o meio ambiente é reconhecido como bem e tutelado pelo ordenamento jurídico, o Estado tem deveres de protegê-lo que devem ser observados em todas as relações sociais. Então, o cumprimento da função socioambiental da propriedade privada aparece como uma forma de cuidado para que a propriedade, direito fundamental garantido constitucionalmente, atenda aos anseios de seu proprietário de usar, gozar e dispor da coisa e de reavê-la de quem a detenha, mas também a administrando de forma a preservar o meio ambiente e garantir o direito constitucional à o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Diante da relevância que o assunto apresenta ao abordar o meio ambiente e sua repercussão na esfera social e jurídica, bem como isso pode obstar o caráter absoluto do direito de propriedade, seu estudo é pertinente, tendo em vista a efetividade da preservação ambiental que deve ser escorada pelo Estado e a maneira que esse irá agir em observância a dois direitos previstos na Constituição da 9 República: meio ambiente ecologicamente equilibrado e propriedade; para que a função socioambiental da propriedade seja cumprida. Além do mais, o estudo do tema é cabível para buscar como os Tribunais brasileiros por meio das jurisprudências tem delimitado a função socioambiental da propriedade privada e observado o seu cumprimento pelo proprietário. 10 2 MEIO AMBIENTE E DIREITO AMBIENTAL A sociedade passou a se preocupar com as questões relativas ao meio ambiente quanto tomou consciência de que os recursos naturais não são finitos, então o seu uso inadequado e a não preservação deles podem resultar em grave ameaça para o futuro, comprometendo a sadia vida humana. O meio ambiente é necessário para a vida humana. Ele oferece aos seres vivos o essencial para sobrevivência. Sendo fator importante para vida, seus reflexos vão além das esferas biológicas e impactam também na sociedade, pois para aproveitar seus recursos é necessário que o homem adote medidas para sua preservação e manejo que irão refletir em limitações a sua liberdade absoluta de agir, inclusive em relação a sua propriedade. O Direito Ambiental emana dessa nova percepção sobre o meio ambiente e do entendimento que existem bens ambientais que devem ser preservados para benefício das gerações atuais e futuras. Sendo assim, o legislador coloca a responsabilidade no Poder Público e na coletividade, pois os bens ambientais são para o proveito de todos. 2.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE Um dos motivos pelo qual a lei nº 6.938/81 abriu caminhos na implementação do direito ambiental no Brasil foi por ter estabelecido conceitos gerais. Partindo do ponto de vista normativo, a referida lei que trata da Política Nacional do Meio Ambiente define o meio ambiente, em seu artigo 3º, I, como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.”1 Portanto, a expressão “meio ambiente” utilizada pelo legislador, trata das relações estabelecidas nesse espaço que são importantes para vida com qualidade. No entanto, importante observar que o ambiente significa entorno, tudo que cerca ou 1 BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 31 de agosto de 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 02 de abr. 2019. 11 envolve as pessoas e as coisas, então é amplo e pode abranger outros aspectos que também regem a vida. Por isso, Édis Milaré estabelece que há uma conceituação abrangente a respeito de um meio ambiente em dois sentidos: estrito e amplo: Numa visão estrita, o meio ambiente nada mais é do que a expressão do patrimônio natural e as relações com e entre os seres vivos. Tal noção, é evidente, despreza tudo aquilo que não diga respeito aos recursos naturais. Numa concepção ampla, que vai além dos limites estreitos fixados pela Ecologia tradicional, o meio ambiente abrange toda a natureza original (natural) e artificial, assim como os bens culturais correlatos. Temos aqui, então, um detalhamento do tema: de um lado, com o meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, pela água, pelo ar, pela energia, pela fauna e pela flora; e, do outro, com o meio ambiente artificial (ou humano), formado pelas edificações, equipamentos e alterações produzidos pelo homem, enfim, os assentamentos e demais construções.2 Sintetizando esse sentido amplo trazido por Édis Milaré, que discorre sobre a concepção de meio ambiente natural e artificial, Marcelo Abelha Rodrigues diz que Em resumo, o meio ambiente corresponde a uma interação de tudo que, situado nesse espaço, é essencial para a vida com qualidade em todas as suas formas. Logo, a proteção do meio ambiente compreende a tutela de um meio biótico (todos os seres vivos) e outro abiótico (não vivo), porque é dessa interação, entre as diversas formas de cada meio, que resultam a proteção, o abrigo e a regência de todas as formas de vida.3 A interação entre o meio biótico e abiótico faz com que o homem seja enxergado como integrante do meio ambiente, e não um ser distinto dele, porque suas atitudes também geram ações que repercutem na conservação de todas as formas de vida conforme com o disposto pelo legislador. Devido a isso, o homem deve ter responsabilidades e a consciência quanto ao meio ambiente ser atual e para as gerações futuras, porque também obtém benefícios oriundos da preservação ambiental. Essa interação serve para que ele não sobreponha seus interesses ao meio ambiente, pois faz parte dele. 2 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 78. 3 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 74. 12 Há preocupação em reestabelecer e conservar o ambiente diante da relação existente entre o homem e sua incorporação com elementos naturais e artificiais que podem propiciar uma sadia qualidade de vida. 2.2 DIREITO AMBIENTAL O Direito Ambiental é uma matéria interdisciplinar que repercute em outras esferas do Direito, como no direito penal, tributário,civil, administrativo, trabalhista, etc. Isso ocorre devido ao caráter difuso do campo de atuação, pois a preservação ambiental é em benefício de toda coletividade, não de um indivíduo específico. Por isso o enlace com outros ramos do Direito acontece para dar maior efetividade à política disposta nos instrumentos normativos ambientais. A consciência ambiental somou-se a consciência social no Brasil mais fortemente na década de 80 com a instituição da Política Nacional do Meio Ambiente em 1981 e com a promulgação da Constituição da República de 1988. Antes desse marco em matéria constitucional o meio ambiente era tutelado em leis dispersas. Como bem preceitua José Afonso da Silva, “a Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a lidar deliberadamente com a questão ambiental”4, sendo tratada por alguns como “Constituição Verde”. A constitucionalização do Direito Ambiental impõe obrigações, responsabilidades e deveres à coletividade no que se refere à proteção ambiental, incluindo-se o Poder Público em toda sua extensão: Executivo, Legislativo e Judiciário; e a sociedade civil. Nesse sentido, levando em consideração os direitos que vão além da esfera individual e se conectam ao meio ambiente, de acordo com Celso Antonio Pacheco Fiorillo A partir da Constituição Federal de 1988, a estrutura política em matéria ambiental passou a ter seus fundamentos fixados em dois dispositivos constitucionais apontados no art. 1º da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), com redação determinada pela Lei nº 8.028/90: os arts. 23, VI e VII, e 225. Isso exigiu do intérprete uma nova visão de aplicação do direito positivo, baseado no critério de competência material cumulativa e de 4 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 46. 13 predominância do bem difuso em face dos bens públicos ou privados, estabelecendo os parâmetros para a tutela do direito ambiental no Brasil.5 Assim, o Direito Ambiental surge em resposta ao efeito decorrente da crise ambiental contemporânea na qual os indivíduos tomaram consciência de que os recursos naturais são benéficos para vida, mas finitos, e que é necessária toda uma remodelação para que se preserve o meio ambiente em sentido estrito (natureza) e também se obtenha uma sadia qualidade de vida nos seus reflexos, ou seja, no meio ambiente em sentido amplo (artificial). E além disso, os seres estão ligados com o meio natural por circunstâncias de fato, o que faz com que exista o bem difuso, aquele que alcança a todos. Para Toshio Mukai, o Direito Ambiental pode ser definido como “um conjunto de normas e institutos jurídicos pertencentes a vários ramos do direito reunidos por sua função instrumental para a disciplina do comportamento humano em relação ao seu meio ambiente.”6 Ou seja, um compêndio normativo que regula a interação entre ações humanas e o meio ambiente e seus implicações na saúde do ambiente que possam comprometer o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Para corroborar com a ideia de interdisciplinaridade do Direito Ambiental, Paulo de Bessa Antunes explicita: O direito ao meio ambiente é um direito humano fundamental que cumpre a função de integrar os direitos à saudável qualidade de vida, ao desenvolvimento econômico e à proteção dos recursos naturais. Mais do que um ramo autônomo do direito, o Direito Ambiental é uma concepção de aplicação da ordem jurídica que penetra, transversalmente, em todos os ramos do Direito. O Direito Ambiental, tem uma dimensão humana, uma dimensão ecológica e uma dimensão econômica que devem ser compreendidas harmonicamente.7 No mesmo tocante, ao tratar das outras esferas do Direito que são englobadas pelo Direito Ambiental para uma maior efetivação da tutela dos bens ambientais, Paulo Affonso Leme Machado defende a articulação jurídica em prol do meio ambiente: O Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o ambiente. Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua 5 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 189. 6 MUKAI, 1992 apud ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 08. 7 Ibid., p. 09. 14 abordagem antagônica. Não se trata mais de construir um Direito das águas, um Direito da atmosfera, um Direito do solo, um direito florestal, um Direito da fauna ou um Direito da biodiversidade. O Direito ambiental não ignora o que cada matéria tem de específico, mas busca interligar estes temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramento e de participação.8 A globalização do Direito Ambiental marcada pela interdisciplinaridade da matéria e defendida pelos dois autores supracitados pode ser pautada no artigo 225 da Constituição Federal, que dispõe sobre o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, ainda, as medidas a serem adotadas pelo Poder Público para assegurar a efetividade desse direito. Além do mais, por ser direito fundamental, essencial a todos os cidadãos e de inegável importância, faz com que pela via da norma constitucional, o meio ambiente esteja em posição privilegiada em relação aos demais direitos. Logo, necessária a atuação dos diversos ramos jurídicos pautados na normatividade e princípios para dar amplitude a tal efetividade, pois o ambiente não é mero conjunto de bens materiais subordinado a um regime público ou privado, e sim de uso comum do povo, devendo a gestão pública manter a preponderância dos interesses coletivos que atingem a todos sobre os individuais, no caso de uso dos recursos naturais e nos seus reflexos, para que não seja criado um descompasso entre o uso e renovação dos recursos naturais, oferta e demanda. Ressaltando a Constituição, no artigo 225, que o meio ambiente é necessário à sadia qualidade de vida não somente de um sujeito determinado, mas da própria humanidade, então deve ser preservado no presente e no futuro. 2.3 PRINCÍPIOS AMBIENTAIS Princípios são um conjunto de normas ou padrões de conduta a serem seguidos. É o ponto de partida que orienta o estudo e aplicação das normas ambientais que devem ser observadas no que tange a tutela do meio ambiente, sendo o desenvolvimento sustentável para obtenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado a finalidade primeira. 8 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 129. 15 É importante salientar que o Direito é sobretudo um conjunto de normas sociais e as vezes nem sempre a resposta estará fundada em aspectos somente positivados, até porque o Direito Ambiental possui diversas normas que podem ser aplicadas ao mesmo tema. Então os princípios ambientais fornecem os elementos necessários para que o julgador extraia da lei um pensamento lógico-subsuntivo a ser aplicado na resolução da lide, além de auxiliar na interpretação de outras normas jurídicas e permitirem a integração de lacunas. Os princípios ambientais podem ser explícitos, ou seja, estarem escritos no texto constitucional, ou implícitos, quando decorrem do sistema constitucional mesmo sem estarem nele escritos. Mas há uma dificuldade em se estabelecer quais são os princípios jurídicos ambientais e suas definições, pois a doutrina não é unânime ao tratar disso. Nem sequer existe unanimidade para se definir qual é o conceito de Direito Ambiental, seu objeto e finalidade. O meio ambiente é amplo e devido as mudanças socioculturais, não se limitamais a um sentido estrito que diz respeito só aos recursos naturais, e sim, a interação do homem com isso. Ao se tratar sobre a função socioambiental da propriedade privada no Brasil após a promulgação da Constituição da República de 1988, o foco deve ser voltado ao princípio em matéria ambiental que trata justamente disso. 2.3.1 Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio é consequência do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência humana, pois propicia melhores condições para se viver. Sendo assim, Celso Antonio Pacheco Fiorillo trata o meio ambiente como um direito humano fundamental, interessado em proteger os valores fundamentais da pessoa humana e necessário a toda população brasileira.9 O meio ambiente ecologicamente equilibrado foi reconhecido como direito humano pela Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Ambiente 9 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do processo ambiental. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 33. 16 Humano de 1972 e reafirmado pela Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992. Na Constituição de 1988, esse direito está expresso no artigo 225, prevendo que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”10 O Poder Público e a coletividade têm esse dever de proteção com o meio ambiente porque os recursos ofertados não são ilimitados, devendo observar esse fato ao desenvolverem as atividades voltadas em proveito próprio ou coletivo. Todos usufruem do que o meio ambiente oferece de bom à vida humana e se não agirem com cautela os benefícios serão menores para as gerações atuais e quase inexistentes para as futuras. É necessário que haja uma coexistência harmônica entre os interesses individuais e coletivos, econômicos e ambientais, os executando de forma sustentável e não egoística para que esses recursos não se esgotem. Seguindo a lógica da preservação atual para proveito futuro, Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria dispõem: Dessa forma, o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição.11 O princípio possui grande importância, visto que o crescimento econômico faz parte da sociedade, ainda mais em uma sociedade capitalista como o Brasil, e cada um quer desenvolver seus anseios para crescer dentro dessa perspectiva, porém importante que atenda às necessidades do presente, sem comprometer as gerações posteriores e acarretar em uma piora na qualidade de vida. Uma forma para atingir o equilíbrio ecológico é através da sustentabilidade. Um conjunto de ideias, estratégias e demais atitudes ecologicamente corretas, 10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 14. abr. 2019. 11 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; DIAFÉRIA, Adriana. Biodiversidade e patrimônio genético no direito ambiental brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 31. 17 economicamente viáveis, socialmente justas e culturalmente diversas; servindo de garantia para sobrevivência dos recursos naturais no planeta. Luís Paulo Sirvinskas discorre sobre a finalidade da sustentabilidade: Sustentabilidade, em outras palavras, tem por finalidade buscar compatibilizar o atendimento das necessidades sociais e econômicas do ser humano com a necessidade de preservação do ambiente. Visa-se, com essa conciliação, assegurar a manutenção de todas as formas de vida na Terra, inclusive a humana. Busca-se, por meio desse princípio, melhorar a qualidade de vida, respeitando a capacidade de suporte dos ecossistemas. Objetiva-se, com isso, a diminuição da miséria, da exclusão social e econômica, do consumismo, do desperdício e da degradação ambiental.12 Então, todo posicionamento político, econômico ou social deve ter um viés ambiental que propicie a preservação e respeite o meio ambiente, levando em consideração os fatores atuais e planejando e precavendo os futuros para garantia do bem-estar de todos e existência dos bens ambientais. 2.3.2 Princípio do poluidor-pagador O intuito primeiro quanto se tem em voga o meio ambiente é prevenir o dano, mas, se o mesmo ocorrer, é importante definir quem será o responsável por recuperar o dano causado, ficando sujeito as possíveis sanções penais e administrativas cabíveis. Celso Antonio Pacheco Fiorillo identifica um caráter preventivo e um repressivo nesse princípio, e explica: Desse modo, num primeiro momento, impõe-se ao poluidor o dever de arcar com as despesas de prevenção dos danos ao meio ambiente que a sua atividade possa ocasionar. Cabe a ele o ônus de utilizar instrumentos necessários à prevenção dos danos. Numa segunda órbita de alcance, esclarece este princípio que, ocorrendo danos ao meio ambiente em razão da atividade desenvolvida, o poluidor será responsável pela sua reparação.13 O princípio do poluidor-pagador está previsto na legislação infraconstitucional. A lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) impõe ao poluidor a obrigação de indenizar e recuperar os prejuízos que foram causados pela sua ação lesiva, tendo também que atuar para minimizar esses efeitos negativos. Além da existência de 12 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 144. 13 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p.77. 18 disposições no mesmo sentido nos 13º e 16º princípios da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Porém, importante compreender que o princípio do poluidor-pagador não significa pagar para poder poluir, ou seja, poluir mediante pagamento prévio. Referido princípio busca “imputar ao poluidor o custo social da poluição por ele gerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano ecológico abrangente dos efeitos da poluição não somente sobre os bens e pessoas, mas sobre toda natureza.”14 Em sentido econômico, há uma internalização dos custos externos. Através do lado financeiro, são adotadas medidas que estimulem e incentivem os agentes econômicos a reduzir os danos de suas atividades ou ainda, prevenir para que não ocorram. À medida que os custos da prevenção forem imputados aos agentes causadores da contaminação, eles serão motivados a adotar providências para evitar ou reduzir a contaminação. Para José Rubens Morato Leite em relação ao corpo econômico do princípio do poluidor-pagador Em seu aspecto econômico, o princípio poluidor pagador tem ligações subjacentes ou auxiliar ao instituto da responsabilidade, pois é um princípio multifuncional, na medida em que visa à precaução e à prevenção de atentados ambientais e também à redistribuição dos custos da poluição. O princípio do poluidor pagador visa sinteticamente à indenização dos custos externos de deterioração ambiental. Tal situação resultaria em uma maior prevenção e precaução em virtude de um consequente maior cuidado com situações de potencial poluição.15 Desse modo a degradação, vista como externalidade negativa,será compensada, pois o dano é coletivo e o lucro recebido pelo produtor que polui, privado. Tendo em vista que os recursos naturais são limitados, quem produz, mesmo que no âmbito privado de sua atividade ou propriedade, deve ser o primeiro a adotar medidas preventivas e se essas resultarem de qualquer forma em dano, arcar com isso. O pagamento serve para que ocorra a diminuição do desperdício dos recursos naturais, pondo fim a utilização gratuita do meio ambiente com interesses que só 14 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 142. 15 LEITE, José Rubens Morato. Estado de Direito do Ambiente: uma difícil tarefa. In: LEITE, José Rubens Morato (Org.). Inovações em Direito Ambiental. Florianópolis: Boiteux, 2000, p. 33. 19 atentam a um nicho específico, uma vez que os custos dos bens e serviços refletirão a finitude dos recursos naturais utilizados em sua produção. Não é justo que ocorra uma socialização do dano, que todos tenham que arcar com ele mas sem ter concorrido para sua ocorrência, por isso o princípio do poluidor- pagador fundamenta-se em “afastar o ônus do custo econômico de toda a coletividade e repassá-lo ao particular que, de alguma forma, retira proveito do dano e das implicações que o meio ambiente sofrerá com o seu empreendimento.”16 2.3.3 Princípio da função socioambiental da propriedade privada O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem sido considerado, nas Constituições modernas, e em especial na Carta Magna brasileira, como um direito fundamental, dada a importância da preservação ambiental que resulta na sadia qualidade de vida, em harmonia com o desenvolvimento sustentável e com a responsabilidade de preservar que cabe as gerações atuais e futuras. Anteriormente, partindo de uma visão fundada em um Estado Liberal, a propriedade tinha como uma de suas características ser absoluta, ou seja, o proprietário poderia usufruí-la como bem entendesse, porém, com a maior preocupação advinda de questões ambientais e em zelo ao direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ela passou a ter que cumprir função social e ambiental. Para Hébia Luiza Machado, “o princípio da função social da propriedade impõe que, para o reconhecimento e proteção constitucional do direito do proprietário, sejam observados os interesses da coletividade e a proteção do meio ambiente.”17 As funções sociais da propriedade já eram atribuídas desde as Constituições editadas na primeira metade do século XX. A noção de função social surgiu com Léon Duguit, jurista francês especialista em Direito Público, segundo o qual a pessoa detinha um poder jurídico determinado à satisfação de interesses individuais e a função social acontecia quando a propriedade exercia sua função em prol da sociedade. Acerca do assunto, Guilherme Purvin de Figueiredo explicou: 16 TRENNEPOHL, Dorneles, T. Manual de direito ambiental. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 52. 17 MACHADO, Hébia Luiza. Função socioambiental: solução para o conflito de interesses entre o direito à propriedade privada e o direito ao meio ambiente ecologicamente preservado. MPMG Jurídico, Belo Horizonte, v. 3, n. 12, p. 26-27, abr/mai/jun. 2008. 20 [...] Duguit sustenta que a propriedade não tem mais um caráter absoluto e intangível. O proprietário, pelo fato de possuir uma riqueza, deve cumprir uma função social. Seus direitos de proprietário só estarão protegidos se ele cultivar a terra ou não permitir a ruína de sua casa. Caso contrário, será legítima a intervenção dos governantes no sentido de obrigarem o cumprimento, do proprietário, de sua função social.18 No tocante à função ambiental da propriedade, Tibério Bassi Melo acredita que a questão é polêmica a Função Ambiental da propriedade, que faz parte do conceito de função social, tem sido questão muito polêmica, pois discute-se até que ponto o meio ambiente deve ser preservado, à custa de quem e de que, e como o ser humano poderá seguir explorando a natureza, que até agora foi em um sentido ilimitado de seus recursos.19 Esses conflitos decorrentes da relação entre propriedade e meio ambiente acontecem pela visão legislativa brasileira voltada fundamentalmente a questões econômicas, por isso o legislador constituinte, no artigo 170 da Constituição Federal, define como princípios de ordem econômica a propriedade privada, sua função social e a defesa do meio ambiente. Assim, quando o exercício do direito de propriedade ou a propriedade em si ferem o meio ambiente, o Estado atua para proteção do bem difuso predominante, atrelando a função social da propriedade ao meio ambiente, pois, de acordo com o princípio da natureza pública da proteção ambiental, explica Édis Milaré O interesse na proteção do ambiente, por ser de natureza pública, deve prevalecer sobre os direitos individuais privados, de sorte que, sempre que houver dúvida sobre a norma a ser aplicada a um caso concreto, deve prevalecer aquela que privilegie os interesses da sociedade.20 Então, o direito de propriedade privada surge ambientalmente qualificado, nas palavras de Guilherme José Purvin de Figueiredo isso salienta a “dimensão ambiental da função social da propriedade”;21 uma vez que até a década de 70 somente a função 18 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental: a dimensão ambiental da função social da propriedade. 2. ed. Rio de Janeiro: ADCOAS/Ed. Esplanada, 2005, p. 70. 19 MELO, Tibério Bassi. Direito Ambiental na Propriedade Rural. Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 39. 20 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 139. 21 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. op. cit, 2005, p. 20. 21 social era levada em conta e pressupunha-se que ela deveria abranger também em sua interpretação (legislativa e judicial) o meio ambiente. Essa medida de aplicação interpretativa da função social não foi suficiente porque não apresentava concretude no campo das decisões judiciais, visto que a interpretação é um meio incerto, pois depende da atribuição de sentido dada pelo seu interpretador, desse modo a interpretação poderia não observar as questões ambientais. No entendimento de Antônio Herman Benjamin sobre a função socioambiental no texto constitucional A ecologização da Constituição, portanto, teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explícito componente ambiental. Os arts. 170, VI, e 186, II da Constituição brasileira, inserem-se nessa linha de pensamento de alteração radical do paradigma clássico da exploração econômica dos chamados bens ambientais.22 Sendo assim, o regime da propriedade passou a ser relativizado de acordo com o caráter difuso inerente ao direito ambiental, limitando o direito do proprietário que teve que começar a explorar sua propriedade privada respeitando as funções ecológicas essenciais, para desse modo atender a disposição constitucional em relação ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e fomentar a consciência ambiental presente na sociedade moderna. Tendo a função socioambiental que ser cumprida tanto na propriedade privada urbana quanto na rural. Pode-se dizer que a função social se preocupa com a relação entre a propriedade e sua repercussão na coletividade e na economia, mas também na esfera individual de cada indivíduo; e a função ambiental está apontada para preservação do meio ambiente de modo a manter um ambiente ecologicamente equilibrado que propicie sadia qualidade de vidae maior disposição de recursos naturais, em benefício de todos no presente e futuro. A ideia de função socioambiental seria junção dos conceitos, dando para a propriedade privada uma visão holística, que concebe o mundo como um todo integrado. Essa visão, elaborada pelo físico austríaco Fritjof Capra que vem se 22 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 91. 22 dedicando à pesquisa de temas relacionados à visão de mundo, mudança de paradigmas e educação ecológica, entende que “a percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza [...].”23 Por isso deve-se ter cuidado com o meio ambiente quando formos exercer qualquer tipo de atividade, inclusive as dentro da propriedade. Além do mais, a proteção jurídica conferida ao meio ambiente através da inserção do princípio da função socioambiental da propriedade privada é um meio de frear o egoísmo do homem. O proprietário sente-se no direito de agir como bem entender sobre o seu solo, não se importando com o impacto na vida do próximo. Ao ser observado esse princípio, há a obrigação do zelo ao meio ambiente. 23 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996, p.49. 23 3 A PROPRIEDADE PRIVADA A propriedade privada confere aos seus titulares a prerrogativa de usar, gozar e dispor o que lhes pertence. Desse modo, o proprietário pode extrair da coisa todos os benefícios e vantagens que ela oferece, limitando-se a determinados interesses que a sociedade impõe. Atualmente o exercício da propriedade deve atender a anseios sociais e ambientais, existindo então limitações que, no tocante ao Direito Ambiental, servem para preservar e manter o meio ambiente, garantindo a sadia qualidade de vida dele proveniente. 3.1 Direito à propriedade O conceito de propriedade não é unânime. No decorrer do tempo, desde a antiguidade, nota-se que cada povo em seu respectivo momento histórico teve concepção própria sobre o tema. Fato é que o modo como a propriedade era vista resulta da organização política dos povos. Nas sociedades primitivas a propriedade só cabia às coisas móveis que fossem objeto de uso pessoal. O solo pertencia a toda a coletividade, que exercia atividades de caça, pesca e colheita de frutos silvestres, tudo em prol da comunidade a qual estava inserido, não tendo motivo para a utilização individual e exclusiva do solo. Inclusive, com a escassez do território proveniente da exploração das atividades de subsistência, os povos se mudavam para outro lugar, fazendo com que não houvesse apego ao solo ocupado. Para as sociedades gregas e romanas existia uma ligação entre a propriedade, religião e família. A propriedade privada fazia parte da religião, e esta estava ligada à família, que deveria ter um solo para cultuar aos deuses. Logo, conclui-se que para essas sociedades o que garantia a propriedade do solo era a religião. Na Idade Média, a propriedade passou a ser sinônimo de poder. O Direito Canônico estimulava a ideia de que a propriedade privada era a garantia da liberdade individual do homem. Essas ideias fomentavam a aquisição de terras pelos homens, pois ter propriedades conferia mais poder. 24 O Código de Napoleão reforçou fortemente um caráter individualista ao instituir que a propriedade era o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se fizesse uso proibido pelas leis ou regulamentos. A ocorrência do processo de individualização da propriedade se deu justificado pelo advento das especializações de produção de subsistência, prática de atividades agrícolas, domínio de terras por conquistadores, entre outros fatores, fazendo com que os proprietários quisessem a terra para si de modo a usufruir para si o que ela poderia render. Devido a isso, a partir do XIX com a era industrial, as ideias socialistas vinculadas às pressões sociais em contraponto ao capitalismo fizeram surgir o entendimento de que a propriedade deveria ser justa, pautada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva, com a finalidade de evitar a concentração de poder. Foi então que ela passou a necessitar de um sentido social à sua existência que não atendesse somente a interesses egoísticos de poder para determinados indivíduos. No entendimento de José de Afonso da Silva em relação a compreensão de propriedade ligada a função social, afirma que A funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social. Quem mostrou isso expressamente foi Karl Renner, segundo o qual a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorreu houve transformação na estrutura interna do conceito de “propriedade”, surgindo nova concepção sobre ela [...]24 As mudanças na relação de produção partem de um modo capitalista de enxergar a propriedade que era posto em detrimento dos interesses coletivos que repercutem na esfera da sociedade. Ou seja, a propriedade era um direito de caráter absoluto, que não permitia limitações, restrições, reservas e existia independente de qualquer condição; dessa forma conferia ao seu titular o poder de usar, abusar e dispor dele sem precedentes. Tibério Bassi de Melo discorre sobre a evolução do direito de propriedade e a perca de seu caráter absoluto O Direito de Propriedade sempre foi um direito fundamental da pessoa humana, não só nas sociedades capitalistas modernas, mas desde o Império Romano, quando já era consagrado como um direito natural do homem, assim como o direito à vida e a liberdade. Contudo, o Direito, como fator 24 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 76. 25 histórico, assim como a própria sociedade que evoluiu, partindo de um Estado Absolutista para um Estado Liberal e, posteriormente, para um Estado de Bem Estar Social, também evoluiu, de meros interesses individuais, para direitos transindividuais, principalmente após uma maior conscientização da crise ambiental.25 Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, XXII, ficou garantido o direito de propriedade. Porém, no inciso XXIII, relativizou-se o direito ao dispor que a propriedade atenderá a sua função social. Destarte, a Carta Magna, ao vincular a propriedade à função social rompeu o caráter absoluto desse direito, pois o caráter irrestrito ficou condicionado a limitações trazidas pela ordem econômica e social que podem ser no campo civil, administrativo, constitucional, por exemplo. Além de haver o atendimento aos interesses da coletividade, diversos dos individuais do proprietário, podendo ser a propriedade desapropriada por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, de acordo com o inciso XXIV do mesmo artigo. 3.2 A função socioambiental da propriedade privada urbana e rural A Constituição Federal de 1988 dispõe acerca dos direitos e garantias fundamentais em seu Título I, garantindo além do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, também o direito à propriedade. Deste modo, ao ser colocada como uma garantia fundamental no caput do artigo 5º e reforçado pelo inciso XXII, foi vinculada a essa garantia o atendimento de uma função social da propriedade. No Título VIIque abrange a ordem econômica e financeira, no artigo 170, incisos II e III, a propriedade privada e sua função social aparecem novamente, respectivamente, como elementos basilares da ordem econômica. Gustavo Soares Pires de Campos entende que com o fim da ditadura militar e a demanda pela redemocratização exercida por grupos que a queriam, houve um 25 MELO, Tibério Bassi. Direito Ambiental na Propriedade Rural. Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 31. 25 CAMPOS, Gustavo Soares Pires de. Controle e indução da função social da propriedade na escala da metrópole: a experiência paulista entre os anos de 2014 e 2016. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, São Paulo, v. 25, n. 46, p. 72-84, 9 ago. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2317-2762.v25i46p72-84>. Acesso em: 23 mai. 2019. 26 maior cuidado por parte do texto constitucional em seus dispositivos em um sentido mais socialista, repercutindo a ideia de função social da propriedade.26 A função social da propriedade trazida pelo legislador é um limitador ao direito de propriedade para que o titular do direito usufrua da coisa de uma forma mais coletiva, ou seja, respeitando e levando em conta os direitos dos outros indivíduos que também estão inseridos no mesmo contexto social. Portanto, “a situação jurídica “propriedade” exige o cumprimento de sua função social para que seja dotada de existência e eficácia”27 e cumprir com os preceitos constitucionais dispostos para proteção dos interesses individuais, mas que ao mesmo tempo não deixem de proteger os coletivos. Mesmo que a titularidade da propriedade continue com o indivíduo e desde que observada a função social ele possa exercer suas vontades no que lhe pertence, José Afonso da Silva, diferente da doutrina majoritária, acredita que o direito de propriedade não pode ser mais considerado um direito individual, pois, a função social a ser cumprida pode ser contrária aos interesses do proprietário e servir aos interesses da coletividade, desse modo a utilização do bem estaria condicionada; a presença da função social seria parte da estrutura da propriedade. Então desde sua concepção já deveria atender anseios ligados ao coletivo, não podendo o proprietário exercer puramente seus interesses próprios.28 Carlos Araújo Leonetti acata a ideia de a função social ser parte estruturante da propriedade, ao dispor que “o princípio da função social da propriedade, ao invés de se revelar uma mera restrição ao direito de propriedade, compõe o próprio desenho do instituto [...]”29 Porém, mesmo assim não há o que se falar em supressão da propriedade privada, porque esse ainda é um direito constitucional a ser preservado quando cumpridas as finalidades sociais. Finalidades estas que garantem a coexistência harmoniosa entre ações individuais e seus reflexos na comunidade, sendo uma característica própria intrínseca ao direito de propriedade e necessária para legitimação do mesmo. 26 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 108. 27 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 76, 77. 28 LEONETTI, Carlos, Araújo. Função social da propriedade: Mito ou Realidade. Sequência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, v. 19, n. 36, p. 47-59, jul. 1998. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15605>. Acesso em: 23 mai. 2019. 27 Por isso a função social da propriedade privada tem o intuito primeiro de ser um instrumento de democratização e justiça social, reprimindo o exercício egocêntrico por parte do proprietário. Além de servir para que o proprietário a use e mantenha de maneira proveitosa e socialmente benéfica. Em suma, “a chamada função social da propriedade representa um poder- dever positivo, exercido no interesse da coletividade, inconfundível, como tal, com as restrições tradicionais ao uso dos bens próprios”.30 As restrições à propriedade se apresentam como ônus a serem suportados pelo proprietário, comuns ao seu direito e que não afetam o exercício do mesmo. Cristiane Derani discorre sobre o ônus do proprietário A norma que dispõe sobre a função social da propriedade cria o ônus do proprietário privado perante a sociedade. Essa norma institui um ônus que recai sobre o desenvolvimento da relação de poder entre o sujeito e objeto, que configura a propriedade privada. O ônus imposto sobre o sujeito proprietário significa que sua atuação deve trazer um resultado vantajoso para sociedade, a fim de que este poder individualizado seja reconhecido legalmente.31 Então, pode-se dizer que a função social da propriedade privada é promover o bem comum, inserindo-a em um contexto coletivo benéfico não somente para o proprietário, mas para os indivíduos além da propriedade que não possuem titularidade sobre a mesma, sendo isto o ônus do proprietário, mas que não obsta seu proveito sobre o que lhe é seu por direito e nem tira o “elemento individual que possibilita o gozo e o lucro para o proprietário.”32 Tanto a propriedade urbana, quanto a rural, tem dispositivos no texto constitucional que determinam qual sua função social. O legislador constitucional trouxe a partir de 1988 um capítulo dedicado à política urbana. O artigo 182, parágrafo 2º da Constituição da República menciona expressamente a propriedade urbana, dispondo que “a propriedade urbana cumpre 30 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In: COMPARATO, Fábio Konder. Direito Empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 27-37. 31 DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da função social. Revista de direito ambiental. São Paulo, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 7, n. 27, p. 58-69, jul/set. 2002. 32 MACHADO, 1994 apud MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 177. 28 sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”33 Desta maneira a ela estará em consonância com os interesses públicos que influem na sociedade, pois, o plano diretor é um instrumento através do qual o Poder Público age na esfera urbanística levando em consideração também os objetivos sociais. Não há um entendimento único no atendimento à função social da propriedade urbana, visto que o legislador não a definiu objetivamente, deixando a cargo do plano diretor. Plano esse que respeitando os requisitos mínimos estipulados no artigo 42 da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade – fica a cargo do Gestor da localidade a ser implementado. Então, pode a função social urbana variar de localidade para localidade, mas sempre conforme o artigo 39 do Estatuto da Cidade, atendo-se “às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta lei.”34 O artigo 2º do Estatuto estabelece diretrizes gerais da política urbana, com o intuito de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, protegendo assim em um sentido estritamente urbanístico, a habitação, trabalho, lazer e mobilidade. Em uma perspectiva de crescimento das cidades que tem como um de seus componentes a propriedade privada, a função social dela a ser expressa através do plano diretor visa a utilidade da propriedade para seu proprietário e para o que está em seu entorno, fazendo com que o crescimento sejaordenado e haja o equilíbrio entre os interesses públicos e privados, uma solidariedade social. Em que concerne à função social da propriedade rural, anteriormente à Constituição de 1988, o Estatuto da Terra já dispunha em seu texto legal sobre a propriedade da terra e sua função social. 33 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 26. mai. 2019. 34 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 de julho de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 26. mai. 2019. 29 No artigo 2º, parágrafo 1º, do supracitado Estatuto, o cumprimento da função social da terra acontece quando, simultaneamente: “favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; assegura a conservação dos recursos naturais; e observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.”35 A função social da propriedade da terra também cabe quando as mesmas forem privadas, devendo proporcionar o bem-estar coletivo. No Capítulo III da Constituição de 1988, capítulo que versa sobre à política agrícola e fundiária e da reforma agrária, similarmente ao texto do Estatuto da Terra, também diz que o cumprimento da função social deve atender a alguns requisitos simultaneamente. Então, a partir da visualização agora da terra como propriedade rural, os requisitos são: “aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem- estar dos proprietários e dos trabalhadores.”36 As propriedades rurais que não cumprem sua função social estão sujeitas à desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. Na opinião de Ismael Marinho Falcão sobre a aplicabilidade da propriedade rural para o seu proprietário, tem-se que [...] O uso e o gozo da propriedade rural está diretamente vinculado à função social que a Constituição da República vota à propriedade. Já não temos um direito individual, mas socialmente coletivo. Enquanto não serve aos interesses da coletividade, promovendo-lhe o bem-estar e concorrendo para o progresso econômico e social de seu titular, a propriedade já não pode mais permanecer nas mãos de quem não a trabalha, impondo-se a desapropriação por interesse social a fim de que, redistribuída, possa alcançar, pelo trabalho, a função social a que estará fadada.37 Ou seja, a propriedade rural deve estar em funcionamento, sendo útil à coletividade e reforçando o cumprimento do interesse social que pode levar a 35 BRASIL. Lei nº 4.564, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 de novembro de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm> Acesso em: 01. jun. 2019. 36 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 01. jun. 2019. 37 FALCÃO, Ismael Marinho. Direito agrário brasileiro. Rio de Janeiro: Edipro, 1995, p. 213. 30 desapropriação, mas seu uso deve ser aceitável e apropriado, pois não irá repercutir somente sobre quem o exerce. A ideia de trabalho ligada a ela vem da conceituação trazida pelo Estatuto da Terra que em suma, volta o rural para a agricultura e a pecuária ao conceituar o que é um imóvel rural. O bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores trazido como um dos requisitos para a função social da propriedade privada ser cumprida reforça o caráter da utilização produtiva da propriedade rural. Logo, se faz necessário o trabalho para exercer o esforço requerido para produzir. E ainda a função social pode ser vista como uma imposição ao proprietário de não deixar sua propriedade sem uso, mas que os seus interesses quando da destinação atribuída a ela sejam orientados e estejam em equilíbrio com os interesses coletivos, passando esses a serem também deveres do proprietário.38 Com base nos dispositivos constitucionais trazidos pelos artigos 170, inciso IV, 186 inciso II e 225, nota-se a presença de uma percepção voltada ao meio ambiente, isto é, uma função ambiental a ser desempenhada juntamente com a função social no que diz respeito à propriedade. A respeito da função ambiental, Mariana Senna Sant’Anna a determina como “conjunto de atividades que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações”.39 O meio ambiente em seu atendimento à coletividade, postulado como direito a tê-lo ecologicamente equilibrado para todos de acordo com o que dispõe o artigo 225 da Constituição da República, para Ingo Wolfgang Sarlet, se enquadraria como sendo um direito de “terceira dimensão”: Os direitos fundamentais de terceira dimensão, também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.40 38 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade Rural. São Paulo: LTr, 1999, p. 96. 39 SANT’ANNA, Marianna Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao Plano Diretor. In: DALLARI, Adilson de Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (Coord.). Direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 156. 40 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito constitucional ambiental. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 50-51. 31 A colocação do meio ambiente como sendo coletivo ou difuso implica na satisfação que ele deve trazer aos indivíduos sem que haja distinção entre eles, ou seja, ao mesmo tempo em que atenda aos anseios do proprietário, não ultrapasse os direitos alheios e interesses da sociedade. Norberto Bobbio em sua obra “A era dos direitos”, sustenta, a respeito dos direitos os quais se refere como de “terceira geração”, que Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído.41 E ainda, no mesmo sentido de o meio ambiente ser um direito de terceira geração conforme o acima exposto por Norberto Bobbio, Manoel Gonçalves Ferreira Filho concorda que “de todos os direitos de terceira geração, sem dúvida o mais elaborado é o direito ao meio ambiente.”42 A importância da defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao ser colocado como direito coletivo, está no fato dos direitos de terceira geração serem ligados ao valor solidariedade. Logo, a função ambiental surge para fazer valer a proteção do meio ambiente no tocante aos interesses dos indivíduos, sendo abarcada também na funçãosocial da propriedade privada, pois essa expressa os interesses individuais dos proprietários sobre aquilo que lhes pertence. E, como o meio ambiente equilibrado é para todos, seus recursos devem ser utilizados de maneira racional, com o fim de proteger e melhorar a qualidade de vida, defender e restaurar o meio ambiente, com base na inescusável solidariedade coletiva, a qual obriga as pessoas umas às outras e cada uma delas a todas. Ou seja, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado aumenta o padrão de qualidade de vida e será usufruído por todos, mesmo no exercício de seus direitos privados e individuais, como a propriedade, deve ser observada a solidariedade entre os indivíduos e o proprietário não poderá fazer o que bem entender. 41 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 09. 42 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.62. 32 Por isso a função ambiental da propriedade privada une-se a função social para manter o equilíbrio entre os interesses individuais, coletivos e do meio ambiente, para que todos gozem dos benefícios. Já que a função ambiental defende os valores ambientais e a função social faz a ponte para que os interesses do proprietário se encaixem nos interesses da sociedade, a função socioambiental é a junção dos termos e prossegue com o mesmo intuito deles isolado, qual seja proteger o direito constitucional à propriedade em consonância com a proteção ambiental. O ordenamento jurídico fundando na Constituição Federal tem o compromisso de observar o cumprimento da função socioambiental da propriedade privada, aplicando as sanções previstas em caso de descumprimento, pois deve garantir a execução dos direitos fundamentais constantes na Carta Magna, sem conflitos, visto que a atividade humana quase sempre implicará a alteração das condições naturais e o meio ambiente não pode sair em desvantagem nessa relação, mas também o proprietário não pode ter impedidos seus direitos. No Código Civil também se percebe os elementos ambientais sendo trazidos ao texto legal. O artigo 1.228 que trata sobre propriedade, traz expressamente no parágrafo 1º que O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.43 Ao passo que a propriedade é uma virtude particular que confere ao seu detentor qualidades especiais: a de usufruir, utilizar e dispor do bem; os elementos naturais que fazem parte dela também cabem ao proprietário, mas junto a isso há o encargo de preservá-los para que a sociedade juntamente a ele goze dos benefícios. A liberdade que o proprietário gozava antes da Constituição da República de 1988 determinar o atendimento à função socioambiental pela propriedade não permanece mais a mesma, tendo que se adequar aos preceitos da ordem social e econômica, visto que tanto o direito de propriedade quanto a defesa do meio ambiente são princípios gerais da atividade econômica. 43 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 20 jun. 2019. 33 Sendo assim, a função socioambiental traz por meio da lei a criação de direitos, deveres e proibições, vinculando o proprietário aos comandos legais no exercício da propriedade. Logo, a defesa ao meio ambiente é exercida permitindo também a atividade econômica e a propriedade. O direito de propriedade continua a ser um direito fundamental e pode ser plenamente exercido, mas desde que se cumpra com responsabilidade os limites legais impostos. Não se pode permitir que aconteça a defesa de um direito prejudicando outro. Por isso a função socioambiental é uma balança entre propriedade e meio ambiente. E, quando o proprietário pesa mais a balança para o seu lado e não respeita o meio ambiente, prejudicando assim o funcionamento do meio ambiente ecologicamente equilibrado, “ferindo” os recursos naturais e os direitos coletivos, cabe ele suportar as sanções. O direito de propriedade não pode se opor aos interesses sociais e coletivos, assim como a proteção do meio ambiente não pode inibir afrontosamente as prerrogativas do proprietário sobre o bem que lhe pertence e é garantido fundamentalmente pela Constituição. Para Antônio Herman Benjamin, sobre a função social da propriedade e o meio ambiente ecologicamente equilibrado A apropriação dos espaços pela intervenção humana – seja pela ocupação da terra, seja pelo parcelamento do solo e do planejamento urbano das cidades – encontra-se condicionada por finalidades e usos que devem ser protegidos. O princípio da função social da propriedade se superpõe à autonomia privada, que rege as relações econômicas, para proteger os interesses de toda a coletividade em torno de um direito ao ambiente ecologicamente equilibrado. Somente a propriedade privada que cumpra sua função social possui proteção constitucional. Por essa razão, seu descumprimento importa a imposição de uma sanção: a expropriação compulsória. Esta é suportada pelo proprietário exatamente em razão do exercício irresponsável do direito e da gestão inadequada dos recursos naturais.44 A proteção constitucional da propriedade é efetivada quando seu exercício não implica em prejuízo à coletividade. Do ponto de vista ambiental, a propriedade deve se submeter a supremacia do interesse público sobre o particular, por isso o 44 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 90. 34 proprietário tem obrigações que criam uma rede protetiva do meio ambiente e se não observadas podem resultar na perda do bem para o Poder Público por descumprimento de sua função socioambiental. No mesmo sentido de reconhecer o atendimento da função social à proteção do meio ambiente, se posicionou a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ – no julgamento do Recurso Especial 1775867-SP, publicado no Diário Oficial eletrônico de 23/05/2019, da qual foi Relator o Ministro Og Fernandes, conforme se depreende da seguinte passagem: Inicialmente, é importante elucidar que o princípio da solidariedade intergeracional estabelece responsabilidades morais e jurídicas para as gerações humanas presentes em vista da ideia de justiça intergeracional, ou seja, justiça e equidade entre gerações humanas distintas. Dessa forma, a propriedade privada deve observar sua função ambiental em exegese teleológica da função social da propriedade, respeitando os valores ambientais ecológicos.45 (grifo nosso) Se a função social da propriedade abarca elementos voltados a proteção do meio ambiente, dispondo inclusive sobre a utilização racional e a preservação dos recursos naturais, não há porque não se adotar de pronto o termo “socioambiental”, pois ainda, conforme se extrai do pensamento supracitado, a função social da propriedade protege o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Há um redirecionamento da função social na perspectiva da proteção do bem ambiental, resultando na ecologização da propriedade que passa a pautar o uso, gozo e fruição do direito de propriedade ao atendimento dos dispositivos legais voltadosa preservação e proteção do meio ambiente. Então, tem-se que o atendimento à função social da propriedade não está somente ligado aos interesses coletivos e sociais, mas também aos aspectos ambientais trazidos pelo texto legal, logo há que se cumprir uma função socioambiental, não a função social e função ambiental isoladamente. Tendo a propriedade ligação com a dignidade da pessoa humana, pois ela permite moradia e trabalho, e o meio ambiente porque traz qualidade de vida; a função 45 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1775867-SP 2017/0043536-2. T2 - Segunda Turma. Recorrente: Fazenda do Estado de São Paulo. Recorrido: Pedro Henrique de Lima Coube. Relator: Ministro Og Fernandes. Publicado no DJe de 23.05.2019. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/712367794/recurso-especial-resp-1775867-sp-2017- 0043536-2/certidao-de-julgamento-712367841?ref=juris-tabs>. Acesso em: 20 jun. 2019. 35 socioambiental maximiza a dignidade da pessoa humana que é um dos princípios constitucionais, pois leva em conta esses dois aspectos. Ainda, cabe ao Estado participar nessa relação para garantir que o exercício da propriedade aconteça sem muitos obstáculos ao mesmo tempo em que o meio ambiente não saia prejudicado. “Em outras palavras, a intervenção do Estado é legítima, desde que seja feita na medida necessária ao cumprimento da função social e ambiental.”46 A função socioambiental serve para legitimar o direito do proprietário, permitir o uso, gozo e disposição da propriedade, alavancar a ordem econômica e social e proteger o meio ambiente. E ao ser inserida essa função, há uma estimulação à adoção de medidas para preservar os bens ambientais, que irá resultar na sadia qualidade de vida e preservação ambiental, resultando no meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito garantido pela Constituição.47 Assim, quando a propriedade adota um modelo sustentável fica mais fácil não incorrer em abuso de direito por parte do proprietário que pode levar à sansões impostas pelo Estado e à perda da propriedade. 3.3 Limitações administrativas à propriedade em decorrência dos espaços ambientais e a desapropriação A propriedade não é mais revestida de caráter absoluto. Com a imposição do cumprimento da função socioambiental, ela sofre restrições de uso de acordo com o atendimento aos interesses sociais e ambientais, necessários ao bem comum, pois ao mesmo tempo em que a propriedade é um direito individual fundamental, têm-se em torno dela interesses públicos. A propriedade privada e sua função socioambiental geram sanções nos casos de não serem atendidas, tanto em relação aos imóveis urbanos quanto aos rurais. Mas, sendo cumpridas, mesmo com a existência de limitações, não geram a diminuição de patrimônio e não obstaculizam seu proveito. 46 ARAÚJO. Giselle Marques de. Função ambiental da propriedade: uma proposta conceitual. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 14, n. 28, p. 251-276, jan/abr. 2017. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.18623/rvd.v14i28.985>. Acesso em: 20 jun 2019. 47 CAVEDON. Fernanda Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 124. 36 As limitações à propriedade em decorrência dos espaços ambientais visam proteger os mesmos da ação invasiva do proprietário, salvaguardando o meio ambiente e seus recursos naturais. “Limites à propriedade dizem respeito à sua projeção física.”48 A função socioambiental limita à propriedade com o intuito de atender a finalidade pública de interesses sociais que se vinculam a interesses ambientais, como por exemplo, áreas de preservação permanente. No artigo 225 da Constituição da República, ao ser tratado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbiu-se ao Poder Público para assegurar a efetividade desse direito, mais especificamente no inciso III do parágrafo 1º desse artigo: definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.49 Do fragmento supracitado se extrai a figura do Espaço Territorial Especialmente Protegido (ETEP). Porém os ETEPs não foram conceituados no texto legal, somente sendo utilizado para “designar áreas sob regime especial de administração, com o objetivo de proteger os atributos ambientais justificadores do seu reconhecimento e individualização pelo Poder Público.”50 Originou-se então o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), estabelecendo critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação; regulamentado pela Lei nº 9.985/2000. Dessa lei se extrai o conceito de unidade de conservação como sendo “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção.”51 48 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 169. 49 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 21. jun. 2019. 50 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 183. 51 BRASIL. Lei nº 9. 985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9985.htm>. Acesso em: 23. jun. 2019. 37 O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza divide as áreas de conservação que o integram em dois grupos: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. Ambas as unidades possuem a finalidade básica de proteger a natureza e o uso dos recursos naturais e cada uma foi constituída legalmente com subdivisões em outras subespécies de unidades de conservação, conforme tabela abaixo, elaborada com base na Lei nº 9.985/2000: Tabela 1 – Divisão das áreas de conservação que integram o SNUC PROTEÇÃO INTEGRAL USO SUSTENTÁVEL Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; Refúgio de Vida Silvestre. Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; Reserva Particular do Patrimônio Natural. Elaboração própria. As Unidades De Proteção Integral demandam mais cuidado devido às suas particularidades ambientais e fragilidades, tendo como finalidade a proteção da natureza para preservação dos seus recursos naturais, ecossistemas, fauna, flora e paisagens, sendo permitido apenas o uso indireto desses recursos, como para atividades de turismo ecológico, pesquisa científica, educação ambiental, entre outras. As Unidades de Uso Sustentável permitem conservar a natureza e utilizar de modo sustentável o que é dela proveniente. É permitido o uso dos recursos naturais, mas desde que respeitando-se os processos ecológicos e a renovação dos recursos, de modo a não prejudicar o meio ambiente e a provocar a escassez. Importante salientar ainda que esse tipo de unidade de conservação admite a presença de moradores, desde que os mesmos respeitem o meio ambiente a eles disposto. Paulo
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